Nascidas entre Ossos e Metais...

By MadduNyah

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2347. A depressão alavancou o maior índice de vítimas possível, a comida é escassa e o Governo brasileiro é... More

CONTO

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By MadduNyah



Cara Lia,

Você já sabe, mas os corpos que nos tocam não transmitem calor, os beijos que nos dão não transmitem confiança. Nesse mundo automatizado, cada vulto parece nos relembrar que somos nascidos daqueles que se reclusaram nas margens: que somos bastardos inglórios de filhos da outra. Então, nos tocamos. É ao nos tocar que sabemos: estamos bem, temos uma a outra. O calor dos seus dedos e a sua pele não-artificial me permite sentir o traço de humanidade que foi dado a nós, tão raro e peculiar nesse mundo de casebres dominados por seres robóticos. Os prédios destruídos por guerra fazem com que o cenário utópico entregue pelos inspetores seja contrastante com o que enxergamos ao saímos do orfanato. Dizem que, ao passar pela transição, entendemos o mundo como ele está, até lá, somos apenas jovens bárbaros.

Quando o dia amanhecer, porque ele irá amanhecer, você entenderá e tudo será trocado em nossas vidas. Ou melhor, na sua. Quando o sol chegar, não será mais uma falha dos outros, e sim um deles. Se possível, me visite: deixe-me ver sua pele plastificada e seu corpo duro como aço, deixe-me dar leves toques em suas canelas e te ver impedida de sentir dores leves, como nós, humanos. A nossa raça estava destinada a extinção, é o que todos falam, até os marginais nos entregam a eles, para que possamos assim viver a utopia. Não reclamo, o Brasil não é ruim, temos comida para os dias famintos e ar-condicionado para o dia quentes, você sentirá falta disso? De sentir a temperatura? A fome antes do almoço? Espero que um dia encontrem um jeito de passar a sua consciência o sentimento de frio e calor, fome e estafa, para que possamos nos esticar em frente ao aparelho ou deitar no chão gelado como em nossa infância. Para que a diferença de três anos não nos separe completamente.

Até lá, permita-me ser nostálgica e escrever essa carta com as tintas que nossas professoras deram na infância, aquela que só aparece a luz negra e possuí o cheiro doce de tutti-frutti. Não para impedir de lerem, mas para que nossa comunicação possa se tornar tão sincera quanto um dia foi.

Quando você chegar, por favor, seja o que for, lembre-se: ainda sou nova. Eles te levaram hoje, prometeram te trazer amanhã, no seu aniversário de dezoito anos, mas ainda resta bastante tempo para a minha vez. Os meus quinze anos não me permitem te acompanhar na transição, mas ao olhar nos meus olhos, diga que toda essa minha inquietude é fruto da ansiedade, a mesma ansiedade que dominou a sociedade e nos forçou a transitar, e que um dia passará.

Quando você chegar, lembre-se de mim não como uma bastarda, mas como sua irmã.

Com amor,

Carol.

*

Corro!

Enquanto corro, vejo os restos do que já foi uma cidade. Existe um mangue e um shopping enterrado nele, depois da implosão marcada pelos livros de História como: "a queda do consumismo na zona nobre da área 9", não é tão explicativo quanto deveria ser. Continuo correndo, aproveitando dos prédios antigos e quebrados para cortar caminho. Corríamos juntas das madames ricas no passado, pulávamos os muros e nos riscávamos nas tintas das velhas fábricas, esperando o dia que nos riscassem com vidro e nada ocorresse.

A cidade é acabada, sabemos disso. Robôs não precisam de cuidados e os marginais não são considerados pessoas suficientes, por isso, os lixos consomem os bueiros e inundam as ruas no inverno. Você sempre ansiou para o dia que deixaríamos de ter o sangue deles – de nossos pais –, eu sempre ansiei igual, mas depois daquela frase... tudo está mudando, assim como o sol que se põe e transforma o céu do Nordeste em um tom esverdeado. Nos falaram que um dia foi azul, não o imagino de outra coisa: o verde-perolado colore o pouco dos que nos resta.

Após o Brasil realizar a transição, tomamos o poder e as coisas melhoraram. Havia dinheiro, educação, havia força ao povo e nada tiraria isso. Eu não sei quem você é, sinto muito. Lia me disse. Você me disse – pois se narro algo, é apenas para que tenhamos registros no futuro, para que nós tenhamos um futuro.

Você não lembrava de mim.

Eu nunca conversei com alguém como aquele seu eu, Lia. Com seus olhos opacos e os movimentos ainda robóticos, parecia feliz em ter uma pele que nunca se rasgaria ao cair no cimento quente do Orfanato. A felicidade de ter um corpo que duraria 100 anos exatos, que seria bonito para sempre, que não engravidaria e não geraria reles bastardos como nós. A felicidade de ser um Deus, sim, Deus, pois Deuses não pensam no que ocorre depois que os anos acabam, apenas acreditam que nunca acabará. 100 anos é muito tempo, nos ensinaram na escola. É uma eternidade, nos repetiam. Para mim, 100 anos só significava passar 3 anos a mais sem você —seria desativada antes, mesmo que eu esperneasse e implorasse, suplicasse falando que é minha única família —, eu não poderia aguentar aquela dor, todavia você não parecia sentir nada daquilo: não era a minha Lia, a minha irmã não era uma vadia narcisista. A minha irmã amava a vida, o calor, o toque, me amava.

E não esqueceria de mim.

Você não esqueceria de mim. Mas quem é você, agora? Ela ou você, qual pronome usar? Se quando penso no presente encontro passado e futuro mesclado, encontro quem você costumava ser e quem a fizeram, com ligas de metais. 

Um monstro nascido entre ossos e metais.

O que fizeram com você?

Observo a escuridão da noite. Os guardas pararam de me procurar, por isso, voltei a andar. Nenhum jovem deveria fugir dos orfanatos, foda-se, eu fiz. Eu desviei dos tiros de borracha dos guardas, como se estivesse em um filme antigo, fosse SuperMan, ou qualquer dessas coisas proibidas. Como se fosse os meus pais, mas eles provavelmente esperaram os 18 anos para optarem por serem humanos.

Aqui estou eu, aos 15 anos, desistindo de 100 anos. Estou com medo. Tremendo, respirando apressadamente, sinto que meu peito vai explodir, sinto que eu vou explodir, não é algo normal, quero meus remédios. A ansiedade domina quando voltam a atirar, alí está ela, gritam. Meus pés doem, os deles não. Robôs não sentem os calos sendo formados pelos sapatos de sola baixa gratuitos, robôs não sentem nada.

Nem amor.

Por isso que 100 anos é uma eternidade.

Não consigo desviar dos tiros, ou consigo, não sei. Tudo está negro. Sei que um me atingiu de raspão, caio, levanto e apresso o passo. Pulo — com uma força desconhecida —os degraus de uma grande escada, enquanto as lágrimas desviam dos tiros por mim, desviam do percurso de meu rosto pálido e me deixam com aparência de uma criança de 3 anos, tão chorona quanto infantilizada. Não consigo resistir, estou relembrando os últimos momentos: Lia chegando, eu a abraçando, seu rosto se contorcendo e me afastando: quem é você? Pergunta. Foi uma falha, mas isso prova que até Deuses falham. Os velhos se acham imortais, trocando nossas vidas por mais alguns anos, tenho certeza que o presidente já foi acostumado a sobreviver por tanto tempo quanto os livros de Geografia Política ensinaram: nosso Messias é falso, nossos heróis morreram de overdose, e como diria as músicas que são tão proibidas, nossos inimigos estão no poder.

Se eu te cantasse esses trechos, se lembraria da dor de receber uma cintada após ser pega escutando? Ou do sufoco – aquela caixa estranha que nos prendiam dentro, sentados, sem ar, apenas para sofrermos de claustrofobia até aprendermos a obedecer? Lembraria de como é uma crise de pânico por pensar que, depois de tanta surra, morreria? Ou como era odiar a senhora Dias por sempre nos bater com gosto e depois dizer que não?

Você se lembraria?

Engulo o soluço, continuo a correr. Os guardas do purgatório parecem não desistir, porém diminuíram os passos há algumas quadras, crentes que logo irei cansar e retornar, como todos os outros: não voltarei. Viverei entre lixos e quadras, escondida dos olhos azuis e falsos dos transitados, não importa o quê for, não voltarei. Quero meus sentimentos: quero minha irmã.

Paro ao notar que ninguém mais me segue e ando devagar, como se seguisse a música que diz que já tivesse pressa, só não levo o sorriso, ainda choro demais. Ainda sofro mais. Não sei para que lugar ir, agora, a realidade bate em minha porta e me força a abrir: como se eu fosse uma única fagulha em meio a um incêndio.

Olho em direção as margens, parece tentador, mas é impossível: menores de 18 anos não podem optar por permanecerem humanos. Além disso, ninguém deseja viver com bandejões e pouco conforto, as margens são estranhas, criadas apenas para criminosos jovens e loucos que desistem do sonho. Agora, penso que eu também sou uma louca.

Só que não posso ir.

Lia está aqui.

E Lia não lembra de mim.

Preciso fazê-la lembrar.

Escuto o barulho dos tiros, alguém tentando fugir da margem, penso. Ou será que voltaram a correr atrás de mim? Está cansativo fugir e é só o primeiro dia, os outros serão assim? Melhores, piores? Será minha vida agora incendiada pelo pérola-água?

Antes que eu pudesse reagir, alguém puxa minhas mãos rapidamente, jogando-me ao chão.

Quando viro, existe uma garota. Seu toque é caloroso, humano, não sorri para mim, assim como Lia não sorriu. Faz sinal de silêncio, antes que eu repare, estamos juntas.

E juntas, sinto, por algum motivo, que estou humana novamente.

*

Ela sorri como você, Lia. 

Ela se movimenta como você. 
Mas ela não é você. 

E você faz falta. 

Ela me diz para esquecer você.

Lia, se você pudesse me ver, como rato pelo esgoto, passeando pelas ruas frias com roupas sujas e fugindo dos que me perseguem, se você pudesse me ver, deitada nos escombros do que um dia foi uma área de preservação ambiental e aproveitando o calor do sol para me secar, roubando ar puro de hospitais para cuidar dos meus pulmões —uma semana longe do orfanato o fez ficar mais fraco que quando contrair pneumonia, ainda na primeira infância —, furtando água de escolas apenas para beber algo que não seja contaminado... Lia, se me enxergasse agora, teria compaixão? Teria algo no seu olhar além dos cristais bem iluminados da capital?

Sei que não. 

Pois está com uma arma apontada para mim. 

E em alguns segundo apertará o gatilho. 

Você diz que eu devo ser o que chamam de rebelde, eu digo que sou apenas sua irmã. 

Você a pega— a moça de olhos bonitos —e diz que ela é a comandante dos ataques recentes aos hospitais, antes que eu possa fechar meus olhos, atira. O sorriso dela ao me pegar pela primeira vez gruda na cabeça, a humanidade com qual me salvou está pregada nos meus dedos, por isso, sei que não é mais minha irmã.

Você é um deles agora. 

E o que isso significa? 

O que eu significarei para você quando estiver morta, mesclada entre sangues e suor? 

Você diz que eu voltarei ao orfanato, até estar pronta para a cirurgia. Ataco-a. Irmãs são raras nesse mundo, todos nos disseram. Por isso, nunca brigavámos. Porque éramos raras, éramos preciosas, mas quando fui capturada, foi você que começou a gritar: foi você que eles chamaram para aplicar minha pena. A tortura psicológica faz meu corpo chorar, implorar para que se recorde de alguns de nossos momentos. 

Nada adianta. 

Você nunca deu ponto sem nó, Lia. Por isso, eu crio um último desejo: uma última chance de nos manter juntas. Crio uma carta, ela começa com Cara Lia, porque é como você gostava que eu começasse, ela será escrita com caneta tutti-frutti, porque era nosso cheiro preferido, e eu não saberei te chamar, porque você não virá mesmo que eu grite. Eu quero que tu venha... dói você me olhar e não ser você.

E eu... cantarolo, mas Lia não continua. Gostava tanto de você... 

O primeiro tiro preenche minha barriga. 

Um barulho soa, vem de dentro de você, caio no chão sujo e ainda posso sentir meus joelhos arderem. Podemos viver bem se eu sobreviver, ainda acredito em você. Pessoas entram e saem, médicos entram e saem, não por mim, para você. 

Outro tiro me acerta em algum lugar, só sei que dói. Dói como as cintadas, como as palavras de madame Dias, como a fome por não ter feito as tarefas. Dói quase tanto quanto perder você. 

E, como em um último desejo, escuto sua voz repetir: 

Gostava tanto de você...

Um bip é ouvido. Grito. Não. 

Você está desligada. 

E o último tiro me desliga também.

Com amor, 

Carol.

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