A Menina do Casulo

By Geh_Alleyne

47.2K 5.5K 5.6K

SINOPSE: Elisa Meyer é uma mulher solitária que guarda no corpo e na alma marcas de um passado cheio d... More

Notas da Autora
Prólogo
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
32
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
Epílogo
CAPÍTULO BÔNUS - Parte 1
CAPÍTULO BÔNUS - Parte 2

31

684 78 14
By Geh_Alleyne



2003.

No segundo ano do ensino médio, o meu casulo de proteção estava quase totalmente formado. Eu não falava com quase ninguém. Andava pelos corredores com fones, ouvindo minhas músicas favoritas das bandas de rock'n'roll que mais gostava. O que evitava também que eu escutasse aquelas coisas horrendas ao meu respeito. Eu perambulava como um fantasma em todos os cantos da escola. Só havia um momento no qual eu me soltava, falava bastante e com tranquilidade; nos seminários de história. Tanto que eu sempre tirava as maiores notas e fazer parte do meu grupo era algo bem disputado entre os meus colegas de classe. Ou seja, eles se aproximavam de mim por puro e descarado interesse em obterem notas altas. E eu sabia disso. Achavam que me faziam de idiota, mas os trabalhos tinham que ser apresentados em grupo, não havia escolha para mim, a não ser me juntar a alguns deles.

Algumas vezes eu até esquecia que era um fantasma sem voz naquele lugar e interagia com os outros. Só que eu acabava me ferrando por isso. Como numa das poucas vezes que fiz um comentário sem pensar, logo após uma apresentação de história sobre a Civilização Egípcia, meu grupo tirou a nota máxima, o único 10 entre seis grupos. A professora nem precisou complementar a explicação. O completar era na verdade explicar o que foi apresentado, porque na maioria das vezes ficava meio confuso. Poucos alunos da turma vieram me elogiar.

— Parabéns, Elisa! — Parabenizou uma colega de turma.

— Mandou bem, garota! — Elogiou empolgada outra aluna.

Outros não disseram nada, apenas fizeram sinal de positivo com as mãos. Eu, ingênua, imaginei que as coisas mudariam a partir daquele instante, que eu poderia ser uma adolescente comum. Uma aluna como as outras. Ah! Sério que eu pude imaginar isso? É óbvio que não seria assim. Claro que foi um doce engano. Nada seria fácil assim para mim. Nunca foi.

Eu me sentei com alguns colegas da turma, entre dois bancos de concreto que ficavam de frente para o corredor, da rampa de acesso ao andar superior. Depois desse dia, eu iria descobrir que não é somente viver que é muito perigoso, como repetiu muitas vezes Riobaldo no clássico do Guimarães Rosa, mas que falar  também era muito arriscado. No banco ao lado, alguns garotos discordavam sobre o resultado de um jogo de futebol. As garotas, no outro, conversavam sobre seus ficantes, namorados, e afins. Eu no meio delas deixei escapar o que não deveria.

— Nossa, que garoto lindo! — Comentei a respeito de um aluno que caminhava sozinho pela rampa.

Um moreno alto de olhos verdes rasgados. Eu disse por dizer. Sabe quando você pensa alto? Então... Deveria ter controlado a minha boca e ficado quieta, fazendo apenas comentários mentais comigo mesma. Como sempre fiz. Mas não, fui cometer a burrada de abrir a minha boca, se arrependimento matasse, sim, eu estaria morta. Mortinha.

Alguém que estava sentado ali no grupo ouviu o que eu falei e o meu comentário inocente chegou aos ouvidos do garoto, amplificado e alterado, como se eu tivesse dito: Nossa que carinha gatinho, eu já fiquei com ele!

O telefone sem fio rolou solto. No outro dia, eu cheguei à escola mais cedo. Arrumei minhas coisas na carteira. Sentei-me e peguei um livro da mochila. Eu tinha que fazer uma resenha sobre Dom Casmurro, uma das obras do autor que inspirou o nome do colégio: Escola Estadual Machado de Assis. Antes que eu terminasse a primeira linha da página, duas mãos bateram sobre minha carteira. Por uns segundos pareceu que eu estava diante de um terremoto. A carteira tremeu toda. Assustei-me com o barulho.

— Garota, você é maluca? — Indagou de maneira grosseira o rapaz do dia anterior que subia a rampa. — Você deve ter um parafuso a menos na cabeça, só pode.

Ele gesticulava com as mãos e espiava os amigos que estavam pendurados nas janelas laterais da sala. Eles aplaudiam o showzinho dele. Mais uma vez me veio à mente palavras ditas pelo Riobaldo; Todos puxavam o mundo para si. Eu completaria dizendo, que para muitos o mundo era ele mesmo e que os outros orbitam ao seu redor.

— Não estou entendendo — respondi, levantei meus olhos do livro para o rapaz em pé na minha frente.

— Ah, você não se lembra do que falou, não? — Ele perguntou puxando o livro da minha mão. — Não lembra que disse que ficou comigo?

Continuei sentada com os braços em cima da carteira, olhando para ele, sem entender nada.

— Não sei o que está acontecendo, devolve meu livro, por favor. — Pedi com a voz calma. Estendi a mão para que me devolvesse o livro. Ele não devolveu e fez questão de jogá-lo no chão. O livro caiu com as páginas abertas viradas para baixo.

— Por favor, me dá o livro — pedi de novo.

Os outros alunos que foram chegando à sala observavam a cena, sem dizer nada. Eles apenas ficaram prestando atenção naquilo.

— Sabe quando que eu ficaria com uma garota feia e esquisita como você? Toda estragada assim... Filhote de cruz credo... Nunca! — Disse ele, cuja expressão de bravo me parecia mais a cara de alguém com dor de barriga.

— Acho que você está enganado.

— Olha para mim e olha para você. Fico com nojo só de ver essa sua boca. — Ele disse com um tom de voz tão alto que provavelmente todos na sala e fora dela ouviram. — Nunca, nunca... Eu fico com garotas bonitas e você é muito mais que feia. Você é horrorosa. Você deve ter passado umas dez vezes na fila da feiura no mínimo.

Eu preferi o silêncio. Fiquei calada passando os olhos pela sala. Senti-me mal ao ouvir essas palavras. Parecia que eu era um ovo podre que causava ânsia de vômito nas pessoas pelo mau cheiro. Ele disse que sentia nojo de mim, nojo? Como assim?

Uma tristeza se expandiu do meu peito e tomou conta de mim por inteiro. Senti um nó na garganta. Uma vontade de chorar.

Alguns dos que estavam na sala deram gargalhadas, já outros risadas contidas e teve quem apenas olhasse um para o outro sem acreditar no que viam e ouviam ali dentro daquela sala. Mas ninguém fez nada. Ninguém se levantou. Ninguém pediu para que ele parasse de falar daquele jeito comigo. Ninguém reagiu em minha defesa. Apenas ficaram olhando calados.

Nenhuma reação para impedi-lo de agir de modo tão rude comigo, que estava sentada na carteira querendo apenas continuar lendo o meu livro. Todos imóveis e indiferentes a mim, como se assistissem a um espetáculo de teatro, sem interromper a encenação dos atores no palco principal. Um bando de covardes, eu pensei. Quem agride o outro é um covarde, mas quem vê a agressão e não faz nada é o quê?

— É uma ridícula, sem noção! — Comentou um dos amigos dele na janela, balançado a cabeça de um lado para o outro, soltando risinhos ridicularizantes.

— A esquisitinha quer beijinho! — Caçoou outro da janela fazendo biquinho com a boca.

— Nossa! Parece um pesadelo, só de pensar! — Eu ouvi alguém da sala dizer, não consegui identificar a voz de quem era.

Eu demorei um pouco para assimilar aquilo que estava acontecendo na sala de aula com o que eu explanei no dia anterior. Até que eu me recordei.

— Ah! Eu não disse que fiquei ou beijei você, garoto, eu disse que você era lindo, só isso — expliquei. — Mas olhando de perto, assim bem de perto, essas suas espinhas são muito nojentas. Eeeer... E alguém já te avisou que você fala cuspindo nas pessoas? Isto não é legal! Só que tem tratamento, eu tenho o contato de um fonoaudiólogo se você quiser.

Passei a mão no rosto limpando os respingos que caíram sobre a minha pele. Puxei o meu livro para perto de mim com o pé, catei-o do chão e continuei a minha leitura. Agi como se nada tivesse acontecido e li em voz alta:

— Levanta, Capitu!

Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus e...

— Você não tem mais nada o que fazer da vida não? Vai ficar parado igual um poste aqui na minha frente o dia todo? — Indaguei-o. — Eu tenho que terminar a minha leitura, dá licença.

Indiquei a direção da porta com a mão. As minhas palavras e a minha reação não eram as esperadas pelo garoto e nem pelos seus amigos, que saíram quietos da sala. As pessoas que observavam tudo aquilo mudaram o foco. Desviaram as suas atenções. Talvez, com medo de que eu desse uma patada neles pela falta de coragem de intervirem naquela situação.

Eu já estava tão habituada com situações constrangedoras e ofensivas, que chegou num dado momento da minha vida que não me causavam mais espanto. O modo como às pessoas agiam comigo, não me provocava raiva, e sim pena, eu sentia pena de como essas pessoas eram pequenas, muito pequenas por dentro. Eu pensava em como as vidas delas eram vazias ao ponto de terem que ocupar parte do tempo delas agredindo alguém, no caso a mim. Pessoas pequenas e vazias são dignas de pena, apenas pena. Descarregavam nos outros suas frustrações sem buscar melhorar suas vidas, faziam os outros se sentirem piores para aliviar os pesos que carregavam. Situações como essa e tantas outras me bloquearam para o amor. Na minha cabeça, alguém gostar de mim era algo impossível. Quem teria coragem de se envolver com uma pessoa que provocava asco nos outros? Por mais que me dissessem que não havia nada de errado com a minha aparência, eu só conseguia enxergar a garota bizarra que os caras diziam sentir nojo.


2017.

Nossos olhares se encontraram, era como se as pessoas ao nosso redor tivessem desaparecido, e tivéssemos apenas nós dois ali na pista. Ouvi apenas o som que emanava do palco. Ele sorriu com os olhos, que estavam radiantes e aproximou o seu corpo do meu aos poucos, como se pedisse a minha permissão. Seus braços entrelaçaram meu corpo pela cintura. O toque das suas mãos era suave e delicado. Estava segura e calma, não sentia aflição, pelo contrário, tinha a sensação de que poderia morar dentro daquele abraço para o resto da minha vida. Inclinei meu corpo para frente. Estiquei-me nas pontas dos pés. Ele se curvou até o seu rosto ficar na altura do meu. Minhas mãos envolveram o seu pescoço. Senti a sua respiração quente próxima a minha bochecha. Ele fechou os olhos devagar e se aproximou ainda mais de mim, nossas testas ficam coladas. Ele abriu os olhos. Nós nos fitamos calados. Ele pedia uma resposta minha, um sinal de que ele podia... Fechei os meus olhos sorrindo e senti o gosto doce dos seus lábios macios tocarem os meus. A sua boca tinha um gosto frutado. Conectamo-nos aos pouquinhos. Não foi um beijo feroz, foi calmo, com a delicadeza que eu imaginei que ele me beijaria. Meus dedos passearam pelos seus cabelos sem pressa. Foi um beijo demorado, com a intensidade da nossa espera. Aproveitamos cada segundo. Seus lábios se afastaram dos meus lentamente. Abri os olhos devagarinho.

— Eu te adoro, minha pequena! — Ele disse sorrindo ao afastar nossos lábios e me abraçou forte. A ponta do seu nariz roçou no meu pescoço.

Senti que o lugar em que eu mais queria estar no mundo era no abraço dele. Encostei o rosto no seu peito, esqueci naquele instante de qualquer diferença que existia entre nós. Pensei apenas em aproveitar a noite com ele, que me beijou novamente, ele era uma das únicas pessoas que conseguia me enxergar de verdade, além das minhas cicatrizes. Além do meu rosto. E ali nos seus braços, eu descobri um refúgio para as dores que o mundo me causou. Um abrigo para as minhas feridas. Assim ficamos, sem muitas palavras, até o último acorde de Last Kiss.

O show terminou e com ele o choque de realidade do que acabávamos de fazer na pista. Minha cabeça estava uma bagunça. Como isso pôde acontecer? Não estávamos bêbados. Ambos estávamos conscientes, então ele quis me beijar, ele sabia o que estava fazendo. Caminhamos até a mesa, passamos pelo meio das pessoas que continuavam dançando na pista as músicas que tocavam no som bar. Ele não soltou a minha mão, a sua estava entrelaçada à minha como as dos outros casais dali. Mas nós não éramos um casal, éramos dois amigos que saíram para comemorar juntos, só isso. Sentamos um do lado do outro na mesa. Ele permaneceu com a sua mão na minha. Seus olhos sorriam na direção da minha boca. Afastei o olhar para a movimentação da pista, eu sabia o que ele queria fazer, não podia deixar que... Ele encostou o seu rosto no meu, senti sua respiração perto da minha boca. Pendi meu pescoço para trás, na tentativa de evitar que se repetisse aquilo que aconteceu na pista enquanto a banda tocava minutos antes.

— É melhor nããã... — tentei dizer que não, mas fui interrompida.

Ele pôs o dedo indicador sobre a minha boca antes que eu terminasse a frase.

— É melhor sim! Shiu... — sussurrou, encostando a boca nos meus lábios, não resisti, cedi a outro beijo. E outro. E outro. E outro...

O grupo de mulheres, da outra mesa, tecia alguns comentários sobre nós, escutei as suas vozes, porém não compreendi o que dizem. Talvez, não conseguiam admitir que alguém como eu fosse capaz de estar com um cara como Théo, o qual deveria estar com alguém igual a elas.

Quer saber danem-se elas, o que falam, pensei.

Tentei evitar, mas ele queria estar comigo, sentia isso nos seus gestos, nas suas atitudes e no seu olhar sorridente para mim. No seu beijo também. Estávamos diante de tantas pessoas ali naquele lugar e ele não demonstrou nenhum segundo sentir vergonha de estar comigo. Em nenhum instante, ele desviou a sua atenção para outra pessoa, para as mulheres estonteantes da mesa ao lado. Ele me fazia sentir alguém especial de verdade.

Não sabia como seria dali para frente; o futuro. Pelo menos, naquele instante decidi viver somente o presente, sem pensar muito, porque se eu pensasse... Era melhor não pensar em nada, não ali, enquanto nos beijávamos.


************

E ai, gostou? Deixe um voto e um comentário, por favor. <3

Qualquer dúvida ou sugestão, para que eu melhore a minha história e o meu texto, é bem-vinda. Não se acanhe, adoro saber a opinião dos meus leitores.

Abração e beijocas!

Continue Reading

You'll Also Like

457K 27.8K 33
Katie foi prometida a um homem que nem conhecia direito,obrigada a fazer a vontade do pai se vê na obrigação de morar com aquele estranho. Mas o que...
75.3K 9.3K 39
Tristan Bowman fechou-se para o amor após receber a maior traição da mulher que amava, o golpe o deixou com marcas para sempre. Decidido a recomeçar...
95.8K 8.6K 31
Amberly corre atrás dos seus sonhos em outro país deixando o passado pra atrás e ainda frustada com o término e a traição do ex que ficou no Brasil...
21.3K 2.4K 19
O que fazer quando você já nasce com um destino traçado e sua vida toda planejada? A princesa abriu mão de seu conto de fadas e se tornou rainha, ma...