SUCO COM O MARTELO

By EduMoreira8

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Composto por oito contos e uma peça de teatro: Contos: *Festa de aniversário *Pé de maçã *Madrugada *Fantasma... More

O JORNALISTA

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By EduMoreira8

[Contração... ... ... ... ...T r a n s b o r d a m e n t o]

... [cigarros]

"Estou mole... volta pra cama..."

...

"Me dá um cigarro."

Vou ver se ainda o vejo. Está dentro do carro. Vejo o farolete vermelho. Mais forte... mais fraco.

"Volta pra cama."

Temos que pensar em alguma coisa, antes que ele resolva entrar aqui. Ele sabe em que suíte estamos. Está olhando fixamente para a nossa janela.

"Senta aqui e me conta essa história... preciso entender tudo isso."

Tudo bem...

... [cigarros]

Tudo começou nesta segunda-feira.

[Longo silêncio... cigarros]

O gato fuçava no saco de lixo da cozinha provocando um barulho insuportável e intermitente de sacolas vagabundas de plástico, dessas de supermercado; quando se percebe que é tarde, pois pelas frestas da janela do quarto entrava aquela luz que já não é branca, limpa, clara, mas amarela de meio-dia. Decidi levantar-me.

Após a higiene matinal, que para mim não é tão estimulante, porque, afinal, é um pouco de água fria na cara, um pente que tenta desembaraçar os cabelos sem corte, em nós, e uma escova de dentes que teima em machucar a gengiva; sem contar a horrível sensação de ânsia quando a escova faz o trabalho de limpar a língua.

Tortura concluída, decidi descansar mais alguns minutos, fui me sentar, não mais com o desequilíbrio do sono; esticar-me, fui espreguiçar mais um pouco no sofá da sala. E esse processo era incômodo porque o móvel já estava com algumas décadas de vida e com partes do corpo quebradas; uma das costelas ficava saliente, e isso prejudicava bastante em contato com as minhas costas, mas, enfim, ali fiquei por mais trinta minutos.

Embaixo as buzinas me indicavam que a vida existia e era feita de movimento e de barulho. Ao meio dia alguém conseguia dormir a alguns metros da avenida Ipiranga? Era um andar alto, o oitavo, mas mesmo assim o eco se propagava entre as paredes do meu edifício e as do prédio do Bradesco, dando a sensação de um volume ainda maior.

O relógio mostrava nostalgicamente suas doze horas e quarenta minutos. Decidi então que, quando ele me indicasse às doze e cinqüenta eu iria fazer algo; não sei, um café, ir comprar o pão, ou até ir ao mercadinho – esse último de fato eu sabia que não iria fazer, pois era segunda-feira, e sempre sobra algo comestível do domingo ou do sábado; não precisaria ir a um local tão distante, e com filas tão longas para comprar somente alguns pães.

A padaria ficava no térreo do edifício, uma pequena panificadora. Não haveria problemas em descer rapidamente, ou até mesmo tomar um café em um dos dois coffes do prédio. Não, não queria ficar olhando para a cara do Zé, um balconista que nos momentos de minha bebedeira era um bom amigo, sabia escutar, mas conversar com ele sóbrio era o mesmo que falar com uma senhora de noventa anos após a missa de domingo, na porta de uma igreja. E também não queria que, como geralmente acontecia, algum turista chato me parasse no corredor, no elevador ou até mesmo interrompesse o meu café perguntando o que eu achava de morar em um prédio que tinha o seu próprio CEP, 01066-900, que possuía aproximadamente 2500 moradores em 1160 apartamentos, uma igreja, que antes fora cinema, um alfaiate, um fast-food chinês, quatro restaurantes, uma lavanderia, uma lanchonete, dez lojas de roupa e acessórios de moda, cinco cabeleireiros, uma imobiliária, uma relojoaria, dois cafés, uma vídeo-locadora, cinco telefones públicos, uma doceira, uma agência de turismo, uma papelaria, um despachante e uma vista maravilhosa de sua cobertura.

Um pouco antes de descer atrás de alimento, decidi fumar um cigarro na janela, como fazia todas as manhãs, pelo menos nas minhas manhãs vespertinas. Quando abri a porta que separava a sala de uma pequena área livre, senti um vulto passar por entre as minhas pernas, era o gato, indo para a sua liberdade, fazer, atrasado, sua higiene matinal. Acredito que para ele esse processo fosse de muito agrado: ficar alguns minutos no sol, estático, até que resolvia se deitar, mas não de maneira a dormir, e sim espapaçado, de barriga para cima, esticado, fazendo com que a superfície de contato com a luz fosse a maior possível, até se sentir quente o suficiente para sair do sol e começar o banho; lamber-se por inteiro; nisso ficava trinta, quarenta minutos. Até voltar e dormir a tarde inteira, sem preocupações.

Após apreciar o felino, como às vezes fazia, peguei as chaves, a carteira; ia abrir a porta para o corredor quando vi pelo reflexo do vidro que eu estava somente de cuecas. Voltei e me encaixei rapidamente em umas calças jeans, assaltei uma camisa que estava jogada por sobre o ventilador – estava repleta de pó – sacudi, coloquei-a e saí tossindo.

Fui de chinelas ao térreo, na padaria o atendente me olhou esquisito, quem iria comprar o café da manhã a uma hora da tarde? Pedi três pães, pensei em pedir mais, mas como tinha ouvido que pães fazem mal para gatos decidi comprar o suficiente para minha satisfação. Cogitei comprar queijo, daquele bem amarelo, mas estava sem paciência de esperar o atendente fatiá-lo.

No caminho de volta, ao descer do elevador, encontrei o vizinho, Joel Pereira, de um dos apartamentos do bloco, ex-funcionário público de alto cargo, aposentado, mas ainda prestava alguns serviços para o Estado, chefe de família, pai de duas filhas já crescidas e – semana passada fiquei sabendo – avô de seu primeiro neto. Estava radiante, cheio de bons-dias, peito estufado, camiseta Hering, bermuda beje, com duas listras azuis ao lado e tênis de caminhada, daqueles que parecem sapatilhas:

– Bom dia, vizinho – Alegre.

– Bom dia, vizinho – Respondi mecanicamente, abrindo já a minha porta, e sem acrescentar nada, pois queria que o diálogo terminasse ali.

A sensação que tive foi que, do momento em que recebi o bom dia até o momento em que estava quase fechando a porta, haviam se passado longas horas. Uma situação pela qual eu desejava passar rapidamente prolongou-se, e no momento sublime de fechamento da porta Joel interrompeu a diminuição do ângulo com o pé, fazendo com que ficasse uma pequena fresta:

– Já, vizinho. Não quer me acompanhar em uma corridinha? Vou ao parque do Ibirapuera. Vai tomar café agora, tarde, o senhor sabia que já almocei? Vamos, deixe esse pão aí, coloque um short, uma regata, um tênis bem confortável e me acompanhe.

Ele dizia isso com um sorriso no rosto, aos pulinhos, como se já estivesse aquecendo para a Maratona de São Paulo, que aconteceria dali alguns meses.

Naquele momento o meu desejo foi pegar cada palavra de bom tom e de carisma que ele me atirava, molhá-las em gasolina, incendiá-las e devolvê-las com força antagônica. Obviamente, não o fiz, acreditava na diplomacia.

– Obrigado, sr. Joel, é muita gentileza o senhor me chamar para acompanhá-lo, mas hoje estou um pouco indisposto.

– Ô, vizinho, cuidado, você deve se cuidar, exercícios, exercícios, exercícios... – E ao mesmo tempo em que falava, sempre aos pulinhos, levantava o ante-braço mostrando seus músculos, a pele flácida, mas com um certo e pequeno calombo muscular, lembrou-me Popeye, só faltava o cachimbo e a lata de espinafre, pois até o fundo musical pude escutar: "sou o marinheiro Popeye, pu, pu".

– Obrigado – Secamente respondi e fechei lenta a porta, forçando para fora o pé do intruso.

Assim que entrei vi novamente o gato, em cima da mesa, comendo restos de uma pizza de frango com catupiry, esquecida lá na noite de sábado. Comia como um mendigo quando lhe é colocado perante os olhos um banquete real. Comia com voracidade e dava patadas nos pedaços do galináceo, como se o quisesse matar, sentindo dentro de si seus antepassados, gatos selvagens na savana, em caça... um frango esmigalhado, triturado, que mesmo vivo não ofereceria resistência alguma.

Rapidamente enxotei o gato para a área, como se aquela felicidade alheia me fizesse mal. Mas logo depois joguei para lá também a caixa de pizza, com um ar de senhor feudal jogando migalhas à plebe.

Já sentindo pequenas dores no estômago, decidi finalmente preparar o meu café-da-manhã, que não fazia muito jus ao nome. Fiz. Pão com manteiga, ou melhor, margarina, pois manteiga não havia – definitivamente manteiga tem um sabor muito mais agradável, acredito por ser feita de gordura animal – e café – como também não havia leite e, logicamente, não iria voltar à padaria para comprá-lo, vai que encontrasse outro vizinho chato, ou em caso extremo, um testemunha-de-Jeová que, louco, invadira o prédio. Bebi o café puro mesmo.

Um café-da-manhã operário. Meia de café e pão na graxa.

Ao mesmo tempo em que comia, liguei a TV e comecei a assistir ao jornal da TV Globo:

– É um dado assustador – dizia Chico Pinheiro – agora já são dois moto-boys que morrem por dia na cidade, por ano são quase oitocentas mortes.

– Apostador aposentado ganha sozinho o valor de quarenta milhões de reais na mega-sena e morre de infarto ao saber do prêmio – Dizia, logo depois, Carla Vilhena, com um sorriso sarcástico.

Antes morrer como um moto-boy do que morrer após ganhar milhões de reais, afinal, o aposentado, como na maioria dos casos, devia ser pobre, hipocondríaco e aposto que o benefício mensal (malefício) não dava para comprar os remédios dos quais necessitava; após ganhar esse dinheirão certamente mudaria de vida, iria se tratar nos melhores hospitais, poderia ter uma enfermeira à sua disposição, e ela poderia ser muito bonita, loira, de peitos grandes, iria viajar, conhecer outros países, arrumar uma nova namorada, bem novinha e cheirando a carro zero-quilômetro – tudo bem, sabemos que seria uma relação interesseira, mas ele teria pouco tempo de vida, talvez mais cinco ou dez anos, poderia se dar ao luxo de uma bonequinha. Já o moto-boy, que também na maioria dos casos daria duro para sobreviver, e não teve a oportunidade de se profissionalizar, já não apresentava em si atrativos sociais, levava a sua vida e na hora da morte não ganhou nada, se não morresse continuaria levando a sua vida, a mesma vida pobre e sem oportunidades. Pouco provavelmente uma enfermeira bonita e com os peitos grandes iria atendê-lo em um hospital público. Antes morrer como moto-boy.

De fato, como a vida humana é frágil – acho que já ouvi algum poeta falar sobre isso, todos falam -; racional e poderosa, transformadora e revolucionária, mas essencialmente frágil, um esbarrão, a perda de controle, uma batida e pronto, foi-se. Uma conferida em uma seqüência de números, emoção, o coração explodindo e... foi-se.

Se a todo momento essa certeza de fragilidade estivesse dentro das pessoas, sem dúvida que não sairíamos de casa, não jogaríamos na mega-sena, nunca nos aventuraríamos em tomar, selvagemente, um vento forte na cara, ter sensação de liberdade, seria besta a vida – Outro poeta deve ter falado isso também. Geralmente falam sobre tudo, tornando os pensamentos mais honestos clichês.

Após o café plebeu, decidi ir ao trabalho, um caminho longo e árduo, da cozinha para o escritório; acredito que nesse percurso dei uns quinze, ou dezesseis passos, levei uns dois ou três minutos, pois fui longamente, sem pressa de chegar à labuta, não que não goste do que sou obrigado a fazer, mas é que quando demoro dá uma sensação de liberdade... de chefe... fui espreguiçando, olhando para o corredor – uma luz no fim do túnel.

Do que eu precisava naquele momento era um balde de água fria no rosto, para acordar definitivamente e obter coragem para começar a trabalhar. Foi o que fiz, uma escala rápida no banheiro, molhei as mãos e as esfreguei no rosto, de maneira forte, dando dois tapas, singelos, de cada lado: – acorda, acorda!

Finalmente sentei-me à minha mesa e, maquinalmente, comecei o processo industrial de criação.

Semanas antes, eu estava desempregado... e como todo bom brasileiro não deixei isso me abater, fiquei alguns dias em depressão profunda, ou melhor, algumas semanas, comi pouco, falei pouco, não recebi ninguém, não atendi aos telefonemas – lembro-me até que no meio de uma das semanas recebi um telegrama de minha mãe, perguntando por que eu não atendia aos telefonemas, e se eu ainda estava vivo; implorava um sinal. Mas logo depois dessa fase ruim veio a pior, comecei a mandar alguns currículos – Fui obrigado naquele momento, pois o aluguel já havia vencido, e a luz estava prestes a ser cortada; e para não perder os meus programas preferidos na TV decidi tomar uma atitude, uma que não necessitasse sair de meu apartamento: mandei os currículos por e-mail.

Pouco tempo depois recebi uma proposta pouco interessante, e mesmo sendo a primeira resolvi aceitar, pensava: vai que mais ninguém ligue. E foi o que aconteceu.

Recebia algumas matérias (diretamente da editora que, além de publicar um jornal impresso, publicava a versão virtual resumida) e as adequava à linguagem de Internet, tornando-as mais rápidas, além de criar (copiar partes do texto original) as chamadas de "primeira página", index.

Enfim, um trabalho que não necessitava de muito esforço, tão menos inteligência e pré-requisito de cinco anos em faculdade de Jornalismo, somente bom senso e um dicionário de idéias semelhantes. Assim construía. Criava!

Todos os dias: mortes, acidentes, corrupção, desespero, assassinatos, suicídios, estupros, desaparecimentos, choro, perda, fracasso, enfim, as coisas que impulsionam a humanidade e, principalmente, eram comercialmente viáveis.

Logo a primeira reportagem que recebi na segunda-feira contava que, no início da tarde do dia anterior, uma prostituta fora encontrada morta e estrangulada dentro de um vagão do Metrô.

Após alguns minutos de criação tive como resultado para a primeira página:

"Prostituta grávida é encontrada morta, com sinais de estrangulamento, em metrô paulistano".

Após ler na íntegra a notícia que seria publicada no jornal impresso, o que mais me impressionou não foi o fato de ser uma profissional do sexo, e muito menos por ter sido estrangulada – afinal é uma das maneiras mais baratas de se matar uma pessoa -, mas sim a simples informação, quase de rodapé, que ela estava grávida, obviamente esse fato saltou para a minha manchete. Os leitores geralmente não se impressionam mais quando acontece algo de grotesco com adultos, mas quando se coloca como vítima uma criança a coisa muda de figura.

Após algumas horas de trabalho, o sol de amarelo se tornou vermelho, as sombras já mudavam de lugar, as ruas ficavam mais quietas, os automóveis e as pessoas mais lentos, a visão mais embaçada, os óculos mais sujos.

Já com uma pequena, e chata, dor nas costas, por muito tempo sentado, os dedos com as juntas petrificadas e um pouco, bem pouco, de suor na testa, resolvi providenciar o que seria o meu almoço, já às cinco e meia da tarde. Fechei os textos, deixei as pessoas do MSN falando sozinhas e desliguei a máquina de trabalho.

Antes de ir à cozinha, e com a desculpa de tirar a pequena umidade de suor da testa, acabei indo tomar um banho. Na realidade era para me limpar de tanta tragédia e desgraça.

Peguei uma toalha e no caminho ao banheiro fui deixando calça, camisa, chinelas, cueca, óculos...

Coloquei o chuveiro no nível mais quente (inverno) e abri pouco o registro, deixando a água bastante quente, com o objetivo de desinfetar o corpo e o ambiente; o vapor, assim, lixava o corpo, esfregava os poros e, escapando pelo vitrô lateral, andava pelo apartamento, limpava os cantos, sujos...

Só quem não gostava desse vapor fantasmagórico era o gato, assim que via a água sair pela fresta da porta ficava louco, começava a correr pelos cômodos, pulava em cima dos armários, derrubava objetos, principalmente porta-retratos – acho que ele não gostava de pessoas observando – Os porta-retratos são fantasmas em um observatório, e eles julgam também.

Nesse dia eu me sentia tão sujo que esqueci do maldito gato, e após um tempo na água deliciosamente quente comecei a ouvir objetos caindo, barulho de vidro quebrando, miados de pura angústia, como se dissessem:

– Pelo amor do Deus dos gatos, deixe-me sair.

Ouvindo suas preces, ou melhor, preocupado com os meus pertences, principalmente com os meus fantasmas, enrolei-me na toalha e saí... o ambiente estava frio, e logo senti um ar gélido bater no peito, encharcando as narinas.

Deixando um rastro líquido, cheguei à porta da área e dei a liberdade ao bichano, este, mal abri a porta, se espremeu na fresta e saiu.

Voltei, como que seguindo o rastro de pães, e vi, por fora, o vapor saindo do banheiro. Definitivamente era uma imagem bonita, ou melhor, imagens bonitas, pois a cada segundo, se eu ficasse parado, fixamente olhando, perceberia formas das mais variadas: uma cama, uma faca, um homem, cavalos, elefantes – eles sempre aparecem, se não em nuvens, em vapores d'água – até que um espirro me acordou e me obrigou a voltar para o banho.

A água tem um poder avassalador; de fato há tsunamis, tempestades, afogamentos, mas nada como o poder de limpeza que a água possui, realmente é capaz de eliminar todo e qualquer pensamento ruim, sujeira psíquica.

Costumava deixar o chuveiro ligado durante algum tempo, antes de entrar definitivamente no processo de higiene, que era lento e demorado – normalmente durava em torno de uma hora.

Fechei a válvula de escape para o vapor; e isso fez surgir uma sauna, a ponto de quase não ver a minha figura no espelho, e por alguns segundos a falta de percepção de mim mesmo me fazia bem... para depois do banho passar a mão no espelho e ver novamente quem sou, como se fosse apresentado a uma nova pessoa, um novo amigo.

Em um mundo de nuvens mergulhava no infinito, na atemporalidade, na metafísica... para uma cena de filme americano só faltavam belas mulheres nuas, de peitos grandes, como em S.O.S Malibu, ou como daquela enfermeira de desenho: "Olá! Enfermeira!".

E quando me sentia único em minha existência, como se o infinito fosse branco, deixava a água completar o processo, cair, forte, na cabeça, massageando, infiltrando no cérebro, fazendo uma faxina nos neurônios.

Era boa a sensação de fechar os olhos, sentir a água quente escorrer pelo corpo, e ao abri-los não ver as coisas nítidas, ter impressões.

Ensaboei-me, muito lentamente, usei o xampu, cotonetes, fio dental, todos os apetrechos necessários para uma boa limpeza superficial.

No momento em que estava ensaboando pela segunda vez os meus pés, e como obviamente tinha que ficar apoiado somente em uma perna, segurei no armário; em um momento de desequilíbrio acabei abrindo-o sem querer, e dele caiu uma revista... um exemplar da Playboy de março de 1999, que apresentava na capa Suzana Alves.

Vendo aquele bem estruturado corpo acabei por lembrar da matéria que tinha trabalhado há pouco, da prostituta que fora achada estrangulada no Metrô.

Como é de praxe no nosso país, os leitores que lêem tal tipo de matéria já sabem que tudo acaba em pizza, arrumam um laranja para pagar pelo crime, colocam-no meia dúzia de meses na cadeia e logo soltam por bom comportamento ou indulto de Natal.

*

Mas imaginava essa prostituta, deveria ser bonita, ou pelo menos ter um corpo muito apresentável. De onde ela seria, nascera em São Paulo, ou longe daqui? Bem, não importava, mas morrera aqui, e dentro de um vagão do Metrô, isso bastava para ser manchete de jornal. Aposto que se tivesse morrido em um desses becos quaisquer o fato não teria notoriedade.

Imagino uma mulher que não tivera oportunidade na vida, como a maioria delas, e como única alternativa achou luz no serviço scort de acompanhantes.

Era branca, o que talvez nos remetesse a uma descendência européia. Talvez viera de longe, acredito que do interior do Estado, uma cidade como aquelas que víamos em cartazes de festas, como a festa do morango, a festa da uva, a festa da pinga, a festa da jabuticaba por exemplo, e imaginava que ela teria vindo de uma cidade produtora de mel, doce, dourado...

Mas a menina, se ficasse por lá, teria como destino o comércio da cidade "Bom dia, senhor, um pote de mel? Este é dos bons, purinho, purinho. Como a vida é doce e os pássaros cantam a ternura da vida", ou teria que trabalhar na extração do mel "Mais um pote de mel, purinho, purinho, como a vida é doce e os pássaros cantam a ternura da vida". Mas a vida não é terna e muito menos doce, como dizia um conhecido.

Ela achava pouco, pois via na TV, principalmente nas novelas, que tudo poderia melhorar... Ir para São Paulo, arrumar um emprego, alugar uma casa, comprar um carro, ir ao shopping e principalmente arrumar um namorado paulistano para passear de mãos dadas, ao final da tarde, de óculos escuros, cachorrinho e um sorriso de comercial de margarina.

Já com 13 anos era uma das meninas mais bonitas da cidade, vencendo o concurso de beleza do município, a Garota de Mel, ela era dourada, loira, com os olhos claros, a boca com lábios bonitos, finos e vermelhos; riscas perfeitas de giz.

Quase todos os dias repetia para a mãe que iria para São Paulo vencer na vida. Sua família era pobre e os pais não poderiam investir nos projetos da filha.

O pai, homem duro em sua ignorância, mas uma raposa de experiência na vida, dizia que ela poderia ir, mas só quando completasse dezoito anos.

Fez dezessete e foi.

Seu José e Dona Naninha, quando chegaram em casa, após uma visita a parentes da região, viram a porta somente encostada e por sobre a mesa um curto bilhete:

"Papai e mamãe,

Espero que um dia vocês possam entender; fui atrás do meu destino.

Amo vocês

Marcela"

Um imenso coração ilustrava, preenchendo todos os lados do papel. O pingo do "i" em "papai" também era um coração pequeno.

Os pais ficaram desconsolados por não saberem do paradeiro da filha. O pai atreveu-se a vir para São Paulo um dia depois, após pedir dinheiro emprestado para alguns velhos amigos, mas ainda na rodoviária de sua cidade deu meia volta, sabia que era como procurar agulha em um palheiro, decidiu não enfrentar o monstro paulistano, que também cospe fogo.

Na mala de Marcela somente o que seria de extrema necessidade, algumas saias, duas ou três camisetas, uma blusa de lã feita pela avó, uma sandália, material de higiene pessoal e muita coragem.

Deixou sua cidade com a ajuda de um amigo. Um dia antes chamou-o para conversar e o convenceu a levá-la até a cidade mais próxima, onde pelo menos houvesse uma grande rodoviária, pois lá poderia comprar uma passagem para São Paulo sem levantar suspeitas de fuga.

– Por favor, moço – Disse de maneira afobada e gaguejante.

– Pois não, senhora.

– Uma passagem para São Paulo, quanto é?

A vontade de sair logo de sua cela interiorana era tão grande que não pesquisou, sequer perguntou sobre o valor de uma passagem para a Capital; afinal, se o fizesse poderia levantar suspeitas.

– 47 reais e 35 centavos.

– Nossa, tudo isso!

Olhou para o atendente de maneira que pedisse um desconto, um pequeno abatimento no preço.

Ele, entendendo o recado, disse que esse era o preço e não podia fazer nada.

Marcela começou a mexer, desesperadamente, em sua bolsa, sabia que nela havia 29 reais, ou melhor, 27, pois quando chegou à rodoviária estava com tanta fome que decidiu investir em um cachorro-quente, não esquecendo de fazer a ressalva ao vendedor: "muito purê de batatas" – Sabia que batata era um alimento que poderia sustentar por um longo período.

– Obrigado – De cabeça baixa em meia-volta.

Faltavam a ela 20 reais e alguns centavos.

A rodoviária em que estava não era grande, mas também não era pequena, havia alguns guichês para compra das passagens... por volta de cinco pequenas plataformas de embarque, que mais se assemelhavam a simples vagas de estacionamento... barracas de cachorro-quente, churrasquinho de gato... uma mulher que, à caráter, tentava vender algumas tapiocas, mas estas eram tão pequenas que pareciam docinhos para festas... e um homem que vendia cartões telefônicos junto aos orelhões, que eram quatro, sem contar aquele que é de impossível utilização, pois só de joelhos pode-se falar nele.

Marcela resolveu sair para ver se alguma corrente de ar lhe levaria a alguma boa solução; até que uma corrente bateu bem forte, e trouxe consigo um cheiro de gato assado, e junto não trouxe solução alguma, e sim uma vontade imensa de ir ao banheiro, aquele cheiro a enojou.

De maneira apressada andou – como em marcha atlética – em direção ao único banheiro público da rodoviária. Chegando ao seu destino viu que tal banheiro não era tão público. Para as necessidades fisiológicas eram precisos 50 centavos, para um banho 3,50.

Procurou na bolsa; pegou seus 27 reais, em notas de 10, 10, 5, 1, 1. Talvez se tivesse achado uma moeda entre o seu montante teria pagado o banheiro, mas a nota, o papel, dava àquele montante uma sensação de maior valor – a moeda passa a idéia de algo descartável -, por isso não quis se utilizar do papel, resolveu – ainda em marcha atlética, cada vez mais atlética – sair novamente da rodoviária para procurar algum outro local para que pudesse jogar aquilo que estava dentro de si. O medo.

Saiu. Logo ao sair da rodoviária avistou uma pequena lanchonete, de fachada simples, com um toldo que possuía um rasgo do lado direito, paredes que pareciam ter sido pintadas há pouco, de um verde muito forte e brilhoso, óleo.

Via com os olhos mudos toda aquela falta de movimento. Mas um pequeno lhe chamou a atenção por ser diferente de tudo aquilo que conhecia em relação à figura feminina: uma mulher vestida de negro, dos pés (que calçavam botas longas, que pareciam couro, daqueles falsificados, plastificados, de intenso brilho, com grandes fivelas que fechavam um extenso zíper, solas grossas, como de Frank Einsteim) à cabeça (que era ornada de fortes cores, azul e vermelho, alguns fios coloridos em meio a uma vasta floresta de fios negros e finos, à altura da cintura). Calças negras que marcavam muito bem sua silhueta, e por cima uma saia bastante curta, negra, apertada. Uma blusa branca contrastava com toda essa escuridão, larga, e com um detalhado decote, por baixo, um sutiã negro marcava a faixa dos seios. Essa figura estava em frente à lanchonete, em uma parada de ônibus municipal.

Resolveu ir até a lanchonete para ver se arrumava um copo d'água e alguma informação que pudesse levá-la a obter o dinheiro que faltava para completar a sua viagem.

Sabia que tinha que sair logo daquela cidade, pensava que o pai poderia estar vasculhando os arredores à sua procura. Acreditava na coragem dele.

– O senhor pode me dar um copo de água, por favor?

Sem olhar para a cara da freguesa, o senhor barbudo, alto e com cara de "o que foi?" pegou um copo que estava encima do balcão, com o fundo sujo de café, passou rapidamente na água corrente, encheu-o de água da própria torneira e deu para Marcela.

– Obrigado.

– O senhor poderia me dar mais um pouquinho?

– Agora só comprando!

Se fez de surda, abaixou a cabeça e resolveu sentar.

– Pensa que o ponto de ônibus é aqui?

– Não, senhor!

– Pra sentar tem que comprar alguma coisa!

Ela maquinalmente olhou para o balcão e para o caixa, no primeiro havia alguns ovos coloridos, verdes, amarelos e vermelhos, algumas salsichas com molho e cebolas, ressecadas, dois pedaços de pizza que ela julgou serem se mussarela, mas tão velhos que o queijo já estava transparente, e uma coxa de frango tão pequena que parecia ter sido retirada de pintinho; no segundo viu alguns doces industrializados, paçocas, balas, drops.

– Pode ser uma teta-de-nega?

– Pode, né!

– Então me vê uma.

O barbudo, para provocar e descontar a compra insignificante, pegou o doce com a mão nua, dando uma pequena e proposital enfiada de dedo, rompendo a casca escura, que parecia ser chocolate, deixando na teta uma cicatriz cirúrgica.

Ela percebeu, mas nada disse, não queria confusão, afinal, estava em um lugar onde não conhecia as pessoas.

– Obrigado.

Em posse de seu ingresso para se sentar, apossou-se de uma pequena mesa que ficava do lado de fora da lanchonete. Sentou-se em uma cadeira enferrujada. Olhou o ambiente. Via caminhões passando e deixando rastros de nuvem, preta.

A figura singular que tinha visto da saída da rodoviária estava sentada na calçada, em frente à parada de ônibus. Era a única passageira em potencial.

O sol começava a queimar. E Marcela imaginava o calor que aquela mulher estaria sentindo, os pés deviam ferver, a cabeça devia latejar.

Em um momento a passageira percebeu a presença e a observação de Marcela. Olharam-se. Disfarçaram. Olharam-se. Disfarçaram. Olharam-se. Marcela de maneira assustada; quando percebia o olhar da passageira, fingia olhar para o outro lado, e assim se passaram alguns longos minutos, Marcela insistia em olhar de rabo-de-olho.

De repente Marcela notou que a passageira se levantou, e viu o vulto negro se aproximar.

– Oi.

– Oi!

– Também está esperando o "Vila Sacra"?

– Não, estou só sentada, descansando...

– Você não é daqui, é?

– Não!

– De onde é?

– De uma cidade aqui perto!

– Legal!

– Pelo jeito não veio para ficar nessa cidade de merda.

– Não, estou indo para São Paulo.

– Legal, também estou com planos para ir para São Paulo, mas antes preciso resolver alguns problemas.

– Hum.

– Posso sentar aí do seu lado? Esse filho da puta do italiano não deixa a gente sentar nas cadeiras. Sempre que aparece alguém e se senta para esperar o ônibus esse porra fala que tem que comprar alguma coisa. Até tenho dinheiro, mas quero que ele vá se foder, não vou dar dinheiro pra esse desgraçado.

– Isso é chato mesmo.

Ao mesmo tempo que falava, Marcela, disfarçadamente, olhava para alguns traços da moça. Tinha um piercing no lábio inferior e um na língua, e quando falava dava para ver uma bala de metal brilhando dentro da boca.

– Tem alguém te esperando lá em São Paulo, namorado, pai, mãe?

Marcela tentava mentir:

– Tem, meu namorado.

– Já sei, você está fugindo de casa e vai morar com o namorado, que seu pai odeia! Acertei?

Marcela, surpresa, percebeu que não devia ter mentido para despistar; sabia que em algum momento iria escorregar na história do namorado.

– Não, Não.

Tentava arrumar a situação dizendo que seu pai lhe dera o dinheiro necessário para viajar, mas não sabia que a passagem para São Paulo havia aumentado. E não havia jeito de conversar com o pai, não havia telefone em sua casa e não conhecia ninguém que o tinha.

– Caramba, como você vai fazer? Sem dinheiro para a passagem. Não pode ir nem voltar. Você está ferrada.

– Não sei, terei que arrumar um jeito rápido de conseguir dinheiro. Me faltam só 20 reais e 35 centavos, ou melhor, 20 reais e 85 centavos, pois aquele senhor me cobrou 50 centavos pelo doce.

– As coisas se arranjam.

– Nossa, estou nesse ponto há 30 minutos e nada desse maldito ônibus.

– Sempre demora assim?

– Não, é rapidinho.

– Por que você estava me olhando quando eu estava sentada ali na calçada?

– Ah, não sei.

Marcela ficou sem graça e tentou desconversar também.

– Nossa, mas esse sol está de rachar.

– É. Você gostou da minha roupa?

– Hum, é diferente. Lá na minha cidade as meninas não andam assim.

– Eu curto ser diferente.

– Percebi.

– Seu cabelo é bem.. bem... esquisito, preto com umas cores fortes.

– O seu também é legal. Simples, mas bem cuidado.

– Obrigada.

A passageira passou os dedos nos cabelos de Marcela.

– Nossa, lisinho. Que xampu você usa?

– Elsève.

Rapidamente a passageira se aproximou e cheirou os cabelos de Marcela, que se afastou.

– Calma. Só estou sentindo o cheiro, é muito bom.

Não havia mais cheiro algum no cabelo de Marcela e se houvesse seria de escapamento de caminhão.

– Você é muito bonita.

Marcela respondeu com o clichê "se eu não cuidar de mim quem vai cuidar?".

– É verdade.

Depois de alguns segundos sem que nenhuma das duas falasse algo, a passageira, como se tivesse tido uma idéia repentina, iupe! Disse: "já sei, vamos comigo até a minha casa, lá podemos pensar em alguma solução para o seu problema de dinheiro, e se quiser comer alguma coisa posso fazer pra você, gosta de macarrão? É o que sei fazer".

Marcela rapidamente respondeu que não precisaria se preocupar, ela mesma arrumaria alguma solução.

– Tudo bem, mas eu tenho alguns amigos que podem te ajudar, e até te emprestar dinheiro. Se eu tivesse 20 reais agora eu te daria, nem emprestava. Mas se você não quer, beleza!

Marcela pensou devagar e deduziu que nada de mal poderia acontecer a ela, pois aquela mulher parecia, mesmo diferente, ser uma boa pessoa.

– Tá bom, vamos!

– Legal.

Durante todo o trajeto, no ônibus, elas conversaram como se se conhecessem há longos anos. Marcela contou à passageira toda a sua verdadeira história. Acabou por alguns momentos derramando lágrimas.

– Não fica assim. Eu estou do seu lado.

– Entra.

– Licença.

Era um imenso corredor, repleto de portas, que iam do número 2 ao 34. E este era o seu. Pequeno, muito pequeno o quarto em que morava a passageira. Era como se estivesse de passagem, nada arrumado, tudo em malas e cabides improvisados.

– Nossa, você está de mudança?

– Hum, descobriu o meu segredo, eu não sou dessa maldita cidade, só vim para resolver alguns problemas pessoais. Mas, enfim, que tal um macarrão? É instantâneo, tudo bem?

Marcela respondeu que sim com um "ótimo". Com a fome que estava comeria sopa de pedras, desde que feitas com bastante tempero.

Como em um passe de mágicas o desejado macarrão estava pronto.

– Puts, só tem uma coisa. Não tenho talheres para nós duas. Prato aqui é luxo. Tenho um garfo e o macarrão na panela mesmo, pode ser?

Marcela, mesmo com um certo nojo aceitou a proposta da outra.

– Você prefere que eu coma primeiro e depois você ou você come primeiro?

Marcela ia responder que queria comer primeiro, mas percebeu que seria pedir demais, já que aquela mulher oferecera a casa e um prato de macarrão. Deixaria que a outra se servisse primeiro.

– Come você primeiro, vai. – disse a passageira – Eu já estou acostumada a dividir comida em panela, você, acho que não.

– É, tá bom!

Marcela começou a comer aquele macarrão vermelho de tanto tempero. Estava carregado de pimenta, mas mesmo assim comia como se devorasse a mais suculenta picanha ao ponto.

– Ah! Me dá um pouquinho, vai, você está comendo com tanta vontade.

Marcela ofereceu o garfo para a passageira, esta o pegou e deu uma bonita garfada no macarrão, colocando uma grande quantidade de comida na boca. Marcela percebera que o piercing era maior do que imaginava.

– Hum, que delícia. Fazer esse macarrão é fácil. Você sabe cozinhar?

– Mais ou menos, minha mãe sempre fez a comida lá em casa.

Após Marcela ter colocado uma pequena quantidade do almoço na boca, a passageira percebeu que havia um pequeno ponto de molho abaixo do lábio inferior de Marcela.

– Opa, deixa eu tirar.

Marcela deixou a passageira retirar o ponto com o dedo, colocando-o na própria boca. Achou nojento aquele gesto, mas, enfim, não conhecia aquela mulher, não sabia exatamente como se comportar naquela situação.

– É só molho.

– Toma, agora come você.

– Obrigada.

A passageira comeu de maneira educada. Sem deixar que o molho do macarrão escapasse da boca. Terminou rapidamente.

Marcela estava sentada na beira da cama, que estava desarrumada, no lugar onde batia o único feixe de luz do sol no pequeno quarto; como se obtivesse energia, procurava o ângulo mais quente, pois o resto do ambiente estava gelado e úmido.

A passageira em um movimento rápido sentou-se ao lado de Marcela.

– Então, precisamos pensar em algo para conseguir o seu dinheiro.

Marcela vê, no chão, uma revista em que trazia na capa "As mais incríveis Tattoos".

– Posso ver?

– Pode!

– Você gosta de tatuagens?

– Não sei, mais ou menos, acho que não teria coragem de fazer uma, ou se a fizesse seria bem pequenininha, no pé, ou na nuca, um lugar que desse para esconder.

– Esconder? Mas que preconceito é esse?

– Não é preconceito – Não soube como escapar da indagação.

– Mas olha isso!

Marcela começou a folhear a revista. Via tudo com atenção. Tatuagens enormes, que pegavam quase todo o corpo das modelos. E não só tatuagens: penduricalhos, brincos, argolas gigantes, ganchos presos ao corpo. Sentia arrepios quando via o corpo das pessoas furado, cheios de marcas, desenhos que às vezes não tinham formas definidas, ou que não eram reconhecíveis a ela.

– Olha essa, meu Deus! Que maravilha.

– Realmente é bonito.

– É, o desenho é bonito, mas não estou falando exatamente disso. Olha que corpo.

– Ah! Você está falando desse cara aqui? – Apontando para a página do lado.

– Não, dela. – Apontando com suas unhas negras.

– É, bonita. – Estranhando a observação da outra.

– Não! Olha isso. – A passageira passava as unhas por cima dos seios da modelo – Perfeita!

Marcela achou estranho o modo como falou a passageira sobre o corpo da fotografada. Sabia que as mulheres costumavam dizer sobre a beleza das outras, coisa que os homens não faziam. Por conta desse sábio conhecimento decidiu deixar passar o estranhamento.

– Mas um pouco magra. – Complementando a observação diz a passageira.

– Não acho magra.

– Ah, é sim!

– Parece com o meu corpo. E eu me acho magra. – diz a passageira levantando-se e se mostrando para Marcela – É bom porque não tenho banhas – a passageira se apertava – Não é verdade? Olha só, sente – Indicando o lugar exato onde queria ser tocada.

Marcela, envergonhada, colocou a mão no quadril de sua nova amiga. Rapidamente. E voltou à sua leitura fingida.

– Deixa eu ver você. Deixa, vai, levanta!

Marcela se levantou, envergonhada, deixando com que a passageira pegasse em sua cintura e a girasse como em detalhado exame.

– Você é muito bonita.

– Obrigada.

A passageira procurou, procurou e acabou achando uma pequena, quase imperceptível, visão do elástico da calcinha de Marcela.

– Hum! Calcinha vermelha? Está em busca de uma paixão? – Achou que o uso do ditado popular levaria a algo.

– Não. Tenho problemas demais para pensar nisso agora. Foi a primeira que achei antes de sair de casa. – Tentando escapar de toda aquela conversa.

– Eu estou à procura. – A passageira se levantou, desabotoou a calça, desceu-a até os joelhos e mostrou para Marcela a calcinha que usava. No movimento que fez para abaixar as calças, propositalmente desceu um pouco o elástico da calcinha, deixando à mostra parte dos pelos pubianos.

– Linda, não?

– É... bonita. – Marcela já com vontade de sair daquele lugar.

– Eu tive um namorado que adorava essa calcinha. Ele dizia que era provocante, ele gostava de tirá-la a dentadas, rápido. Ficava doidinho.

– Hum. – Marcela ainda de pé, assustada, ligeiramente encolhida, corcunda, com os braços cruzados.

– Você já teve algum namorado assim?

– Assim como?

– Que te deixasse louca?

– Sim.

– O que ele fazia pra te deixar louca?

Marcela pensou por alguns instantes e percebeu que não havia saída para aquela situação. Mas a resposta que o cérebro não deu a bexiga resolveu oferecer, uma vontade insuportável de ir ao banheiro.

– Preciso ir ao banheiro!

– Fica ali fora. – Disse desapontada a passageira, sentando-se devagar.

Assim que Marcela deixou o quarto em direção ao banheiro, o telefone celular da passageira resolveu dizer que estava ali para trabalhar, gritava como um vendedor de bijus, em um som monossílabo e intermitente.

– Porra, o que você quer, caralho?

– Agora não dá, estou numa situação complicada... Faz o seguinte, pega a moto e me pega aqui daqui há 40 minutos, tchau.

Sem chance de resposta, a passageira desligou rapidamente o telefone e o colocou novamente dentro da bolsa. Antes colocando-o em silencioso.

Depois de alguns longos minutos trancada no banheiro, Marcela saiu com os olhos vermelhos e úmidos.

– Já sei, tive uma idéia para conseguir o seu dinheiro. Mas não sei se você vai topar.

– Diz, topo qualquer coisa para sair daqui. – E para Marcela o "daqui" era desde a cidade, com medo do pai, até aquele pequeno quarto, que cada vez ia perdendo mais espaço, tornando-se menor.

– Vem cá! – A passageira pegou na cintura de Marcela e a deixou mais próxima.

– O que está fazendo?

– Calma, só quero beijar você, você precisa de dinheiro e eu quero sentir você. Eu te dou a grana que precisa e você me dá o que quero.

Marcela indignada afastou-se e se fechou em um canto do quarto, como se puxasse as paredes como cobertor, protegendo-se.

– Calma, Marcela. Ou você prefere um homem mal cheiroso, troglodita, forte, bêbado, pegando você a força e colocando dentro de você, com violência, uma coisa nojenta e doente? – Tentando fazer com que a figura de um homem grotesco fizesse com que a proposta se tornasse, ao menos, relevante.

– Não.

– Pelo menos você me conhece um pouco e sabe que eu não vou te machucar. Vou lhe tratar com muito carinho. Sou sua amiga. Sei de sua história, e é por isso que estou fazendo isso.

Marcela pensou no que a passageira dissera. E pôde imaginar um homem sujo a possuindo, machucando-a.

– Tudo bem, você me dá o que falta para a viagem, nos beijamos e depois eu saio, desapareço, tudo bem? – Dizia com os olhos levemente úmidos e com a boca trêmula.

– Tudo bem!

– Então dá.

A passageira pegou rapidamente sua bolsa, retirou a carteira e entregou-a a Marcela.

– Pode pegar, o que tiver aí é seu.

– Sério?

– Pegue logo.

Marcela abriu a carteira e entre muitos papeis velhos, fotos, pedaços de jornal achou 30 reais. Rapidamente pegou as notas, 10, 5, 5, 5, 5 e colocou-as em sua mala de roupas.

Ali se fez o prometido, no início, Marcela estava nervosa, tensa, dura... mas a passageira soube o que fazer para que a companheira por alguns instantes, pequenos e rápidos, esquecesse de toda aquela situação constrangedora.

Minutos após o contrato ser cumprido, Marcela pediu para a passageira levá-la de volta ao terminal rodoviário da cidade. E assim fizeram o caminho, naquele momento com mais conversa, amigável e otimista.

– Nossa, não vejo a hora, sair daqui e ir para São Paulo, quero logo que o ônibus chegue lá, será que demora muito?

– Não, Marcela. É rapidinho.

Chegaram logo à rodoviária e o tempo parecia passar mais rápido com a companhia da amiga.

Na entrada principal da rodoviária, Marcela se despediu de sua companheira.

– Tchau.

– Escuta, aqui está o meu telefone, se acontecer alguma coisa, por favor ligue, dou um jeito de te ajudar. Mas, por favor, não passe esse número para ninguém.

– Não, não passo.

O momento se fazia mais lento, os minutos se esticavam e os cabelos da passageira, para Marcela, pareciam mais negros, a pele mais branca, os lábios mais vermelhos, e os olhos eram quase verdes. Despediam-se. Longe.

– Adeus.

– Adeus.

Por um instante olhou para trás. Viu, indo para o ponto de ônibus, a passageira. Viu descer as escadas devagar, como se refletisse, acender um cigarro, atravessar a rua, também muito devagar, chegar próximo da lanchonete de paredes verdes, sentar-se na calçada, estática, aguardando, como se de lá nunca tivesse saído. Assim a passageira se tornou uma pintura, um quadro.

Marcela entrou eufórica na sala de bilhetes. Seu coração parecia querer conversar aos gritos com o cérebro, que parecia tomar banho de adrenalina.

– Por favor, uma passagem para São Paulo.

– Pois não.

– Para às 19 horas, senhora.

Marcela olhou para o relógio e ele gritava 18 horas.

– Ótimo.

Para Marcela o simples visto do atendente era uma assinatura de um senhor de escravos em uma carta de alforria. E como uma negra liberta Marcela beijou o bilhete três vezes. Foi sentar-se em um dos bancos de concreto de uma pequena sala que levava na entrada o nome de "sala de espera"; parecia mais um necrotério, de tanto cinza e falta de movimento.

Assim que se sentou sentiu uma sensação fria nas nádegas, como se sentasse em um imenso bloco de gelo. Estava cansada de tanta aventura e resolveu descansar um pouco, colocou sua bolsa na altura da cabeça, deixou-se deslizar um pouco no mármore, para que pudesse colocar a mala no encosto das costas, e lá se deixou levar pelo sono.

– Menina!

– O que foi? – Assustada.

– Que horas são?

– Sete e dez. – Disse a faxineira que tentava varrer debaixo dos pés de Marcela.

– Meu Deus, perdi o ônibus.

Marcela levantou-se rapidamente, puxando consigo sua mala e, sem percepção ainda da realidade, tropeçou na vassoura e beijou violentamente o chão. Sentiu gosto de sangue.

– Droga!

– Você está bem, menina?

– Me deixa em paz! – Já em desesperado choro deixou o chão e partiu em disparada para o modesto estacionamento.

Corria mais do que suas pernas suportavam. Dava saltos, passadas largas, como um felino atrás de sua presa, e dessa mesma maneira conseguiu prender as unhas no ônibus já em movimento. Fechou a mão com uma força descomunal, que naquele momento sem dúvida derrubaria a muralha da China, e disparou um soco de Mike Tyson na lateral do ônibus, só não mordeu o escapamento.

– Pára... – Gritou como um sinal de almoço operário, que tem por obrigação avisar ao trabalhador que o arroz e o feijão já estão na mesa. Todo o ar de seus pulmões foram jogados para fora em uma explosão de som. Todos os seus músculos ajudaram e se enrijeceram ao mesmo tempo no trabalho de gritar, e o eco se espalhou por toda a cidade.

O motorista não escutou o golpe na lateral do ônibus, mas escutou, ou sentiu, baixo o som do urro desesperado. Parou, esperou para ver pelo vidro da porta de quem se tratava. Por ser uma mulher, achou seguro e abriu as portas do navio negreiro para Marcela.

– Obrigado. – Já sem ar para proferir este simples vocábulo.

– Por nada.

Marcela fez um sinal para que o motorista esperasse até ela recuperar o fôlego.

– Vai para São Paulo?

– Não. Assis.

Marcela sentiu uma revolta intestinal, estomacal, cerebral, como se acumulasse uma pressão de Big Ben, como se abrigasse a maior bomba atômica do mundo dentro de si.

– Pára, pára, pára, pára, pára... abre, abre, abre, abre...

– Calma, mocinha.

– Vai logo, merda!

As portas, agora do inferno, abriram-se novamente, e Marcela começou de novo sua maratona, já sem forças, sem ar, com sede, sem pernas, sem garganta, tentou gritar, tentou andar, rastejava... tinha pela frente toda a pista que o ônibus andara.

– Meu Deus!

Chegou até a plataforma correta, lá estava o ônibus, com apenas metade dos passageiros.

– Oi, gracinha, está cansada? – Perguntou um homem que parecia ser o motorista.

Marcela não respondeu, porque não tinha fôlego para isso e também porque se respondesse seria com um "por que o senhor não vai para a puta que te pariu, seu desgraçado filho da puta?". Afinal, não queria arrumar confusão, podiam querer deixá-la na cidade ou, ainda pior, pedirem a sua identidade.

– Não fala, gracinha? Se acostume, porque esse ônibus sempre sai atrasado. E não reclame porque a gente pede para o atendente já avisar quem compra a passagem.

Marcela tentou buscar na memória algum flash em que o atendente tivesse a avisado do atraso habitual. Não achou. Enfim, entrou no transporte e merecidamente adormeceu.

Após 20 minutos o ônibus deixou a rodoviária.

Sonhou com a passageira, com o pai, com a mãe. Via-se perseguida por todos, até ser pega e apanhar até não sentir mais o seu corpo. Acordou assustada, e fora não via nada, um negro que aliviava e mostrava o reflexo do rosto cansado, da lágrima quente que descia silenciosa pelas maçãs. E olhando para si, reconhecendo-se, adormeceu novamente. Depois, em seu sonho, não era mais Marcela, era uma personagem da novela das oito, rica, bonita, dormindo abraçada com Fábio Assunção após uma noite de amor.

Acordava feliz, procurando o braço de seu amor de novela, achando somente o braço frio e rústico da própria poltrona, chorava novamente.

– Parada São Cristóvão. – Dizia o motorista, abrindo bruscamente a porta que dividia o comando, dos passageiros, com o objetivo de acordar a todos.

Marcela desembarcou ainda sentindo os resquícios do sono, dos sonhos, e com o rosto pegajoso, de lágrimas quase secas e de baba noturna.

O lugar era muito bem iluminado, uma rodoviária relativamente maior do que a que embarcara. Os ônibus já não paravam mais em modestos estacionamentos, e sim em vagas especiais, com uma plataforma superior para quem embarcava ou aguardava seu transporte. Além de alguns homens vestidos de amarelo, poucos, com carrinhos grandes para se colocar as malas, um garoto de colete preto com a inscrição táxi.

Logo em frente à sua plataforma via uma lanchonete bem diferente daquela em que havia o italiano que furava tetas-de-nega. O que mais chamou a atenção de Marcela foram algumas, várias, frutas, muito coloridas, que estavam em prateleiras à mostra, no alto. Podia sentir o gosto do caldo da manga, quando bem sugado, que escorre entre os dedos e pelo queixo, suculenta.

Resolveu descer do ônibus para tomar, quem sabe, um suco de manga, ou de abacaxi; na dúvida tomaria os dois. Pegou sua mochila e saiu do ônibus.

– Por favor, moço. Quanto é o suco de manga?

– Com água ou com leite? – Respondeu um atendente moço, bem apessoado e com um avental estilizado, marrom com letras douradas, e o final da letra "e" de "café" formava a fumacinha que saía da xícara da bebida bem quente. Marcela ficou um tempo abismada tentando entender o desenho.

Após a pergunta do atendente, a menina ouviu ao fundo a voz de sua mãe: "manga com leite é um veneno". E em um momento pensou que o homem do avental interessante estava na tentativa de envenená-la, ou fazendo uma brincadeira de mal gosto.

– Lógico que é com água.

O atendente deduziu que a garota respondera de tal maneira por conta da falta de dinheiro, pois o suco com água era 1,50, e com leite 2,00, uma diferença sensível aos bolsos desprevenidos.

Marcela começou a tomar o suco com o canudinho, mas este era tão fino que algumas partes da fruta, que foram mal batidas no liquidificador, tampavam o canal; até que resolveu retirar o sugador e tomar em enormes goles, deixando dois fios escorrerem pelos cantos da boca. Em um minutos já não havia mais manga, nem água.

Depois de pagar o produto, foi ao banheiro, pois parecia que a manga resolveu descer diretamente para o intestino, sem escalas.

Achou o sanitário e lá teve que pagar cinqüenta centavos para utilizá-lo. Pensou por que tudo nessa vida tinha que ser pago. Tinha, e ela pagava.

Ficou por volta de 15 minutos no banheiro. Sua barriga doía, como se houvesse um verme se enrolando e se desenrolando dentro de si, alimentando-se de fígado, pâncreas, rins e coração, como se resolvesse sair, e no meio do caminho voltasse. Prendia a respiração, ficava vermelha, rocha, azul, batia as mãos na divisória de mármore, batia a cabeça no botão da descarga, esticava as pernas, enrijecia todos os músculos do corpo, principalmente os intestinais. Mas nada saía. Após alguns minutos de luta árdua, sentiu como se o verme tivesse dormido. Aliviou-se, limpou-se e saiu do banheiro.

O tempo, enquanto estava em seu telecatch de sanitário, pareceu passar devagar – pois a dor prolonga os segundos – e estava tão preocupada em sair vencedora que esquecera da partida do ônibus. Lembrou dele quando estava girando a catraca na saída do sanitário.

Desta vez não precisou correr meia maratona para chegar à plataforma de embarque, pois o banheiro era ao lado de sua saída, bastou sair, com olhar desesperado, e transformá-lo em decepção, o ônibus saíra. Não queria saber há quanto tempo, bastava a ela a consciência de que já tinha ido.

Pensou logo que o motorista poderia ter sentido a falta dela, e esperado um pouco. Lembrou de seus professores, quando ia a excursões do colégio; sempre na hora de ir e vir, além das paradas, seus educadores procuravam um a um, faziam chamada para ver se todos estavam no veículo. Mas no fundo sabia que o motorista cumpria tempo, independente do número de passageiros, se um ou outro ficasse, o motorista não seria demitido.

Sentou-se e ficou durante muito tempo no chão, em frente à plataforma de embarque 15B, e imaginava por onde estaria passando o ônibus naquele momento. Abraçou a mochila e confundiu-se dentro de si.

– Menina! Ei!

– O que!

– Você está bem?

Com os olhos molhados respondeu que sim.

– O que aconteceu com você?

O homem era atencioso, além de muito bonito, de cabelos negros, pele muito branca, e barba por fazer, como um ator de novelas; daqueles mecânicos que se sujam milimetricamente de graxa, e estava com um blusão de couro, daqueles de galãs da década de sessenta, de um preto que a luz podia bater e refletir em seus bonitos olhos, também muito escuros.

Um sorriso cativante fez com que Marcela levantasse e explicasse toda a situação, poupando-o dos detalhes.

– Posso te pagar um lanche, um suco, você deve estar com fome.

Marcela lembrou-se de maneira odiosa do maldito suco. E em um momento rápido decidiu que daquele dia em diante só tomaria manga com leite.

– Nem me fale em suco. Quero um copo de água.

Ambos foram para a lanchonete, que Marcela já conhecia. Agora ela olhava o gentil atendente como um malfeitor, que envenenava fregueses.

O rapaz que parecia um ator de novelas levou Marcela para uma mesa e disse para que esperasse, pois ele iria providenciar uma garrafa d'água e algo para ele comer, pois estava vindo de longe, viajara de moto e não comera nada na noite passada.

Marcela olhou para um relógio velho que estava próximo à prateleira de frutas, ao lado de uma bonita e suculenta manga. Batia 1:25 da madrugada. E de tão desnorteada não estava cansada. O pequeno sono no ônibus valeu-lhe momentos de recarga.

O rapaz voltou com um grande sanduíche de presunto e queijo, um suco de manga com leite, o que fez com que Marcela ficasse mais tranqüila, e uma garrafa pequena de água, já aberta.

– Tome, menina.

– Obrigada.

Marcela tomou como passarinho, aos pequenos goles. E olhava o rapaz que a ajudava. Era realmente muito bonito, reparava em suas mãos e em sua boca, que tinha uma abertura grandiosa, pois comeu o lanche em dois minutos. O rapaz cativou a menina com a maneira que olhava. Como se buscasse algo, alguma reação, algum gesto. Ela, por alguns momentos sentia-se envergonhada, virava o rosto. Para ela o rapaz começava a tomar feições de galã de Hollywood.

Após algum tempo sentados naquele lugar, e Marcela olhando o rapaz fixamente, como em um sonho, começou a ver nebulosa as feições do galã, apaixonadamente via seu rosto se desfazer em tonturas e um instantâneo sono. Aos poucos tudo começava a girar.

– Você está bem? – Perguntou educadamente o rapaz.

– Não. Estou tonta, esquisita.

– Vamos tomar um ar lá fora.

Marcela aceitou a idéia do rapaz, afinal, ele era muito bonito, e o acompanhou até saírem da lanchonete. Após tomar um pouco de ar, Marcela sentiu-se melhor.

– Vamos andar um pouco para conversarmos. – O rapaz ia levando a menina, com uma conversa agradável e com palavras doces, para o estacionamento da rodoviária, que ficava do lado contrário ao das plataformas de embarque.

No caminho Marcela ficava mais tonta, mais fora de si, tudo girava, subia, descia, como se estivesse em um cruzeiro, seu horizonte aparecia e se perdia. Não demorou muito Marcela se desfez nos braços do rapaz. Nesse momento o tempo parou.

O relógio continuou a funcionar para Marcela quando acordou dentro de um caminhão de laranjas, com o sol ferindo violentamente o seu rosto e o corpo todo dolorido, principalmente as pernas, a bacia, e seu órgão genital. Ainda em processo de acordar, passou a mão entre as pernas e sentiu líquido, era vermelho. Quanto mais se mexia, mais sentia dores. O rosto estava queimado do sol forte e as laranjas machucavam-na quando se movimentava.

O caminhão balançava, sentia a terra tremer, e às vezes algumas laranjas caíam por sobre suas pernas, sua barriga, seu rosto. Levantou o rosto para olhar por sobre a lona que cobria grande parte da carga. Olhou.

Quando pôde ver o mundo fora passou por debaixo de um viaduto, assustou-se, voltou seu rosto para baixo. Tremia.

Em uma nova tentativa viu o que nunca vira na vida, ou melhor, somente pela TV. Uma selva acinzentada, prédios, pistas, viadutos, carros e motos, velocidade, mais velocidade, freada, buraco... Estava em plena Marginal do rio Tietê, viajando, sem querer, em um caminhão que levava um carregamento de laranjas. Tentava entender como havia parado ali, descobrir que horas eram, e qual era o caminho para casa. Não estava feliz e nem triste, apenas estava, como se não soubesse o próprio nome.

Esperou, pois era somente isso que poderia fazer. Ali ficou por mais 50 minutos; até que o caminhão saiu daquela imensa pista e adentrou por lugares estranhos, feios. E ia com uma velocidade que assustava a menina, pois parecia que a qualquer momento o caminhão viraria, ou bateria em algum semáforo ou placa. O motorista andava com aquele monstro como se andasse de bicicleta em uma feira livre.

Após curvas e laranjas atiradas ao rosto, entraram em uma grande avenida, e ali estacionaram. Marcela como submarino via o que acontecia a sua volta. Uma imensa fila de caminhões, homens esperando e jogando conversa fora, rudes, jogando baralho, aos gritos. "Truco, ladrão..."

Marcela sentiu uma sede perigosa; procurou sua mochila para ver se guardara um pouco daquela água que o rapaz bonito havia lhe comprado. Achou-se. A explicação para tudo estava naquela maldita garrafa, naquele maldito homem, naquela maldita dor entre as pernas, daquela maldita aventura, maldita vida; a mochila não havia mais. Resolveu esperar.

Tinha que sair dali sem que ninguém a visse, se não teria que explicar tudo novamente, ou poderia encontrar mais algum rapaz bonito que a amaldiçoaria. Esperou. Tinha medo.

O caminhão passou por um grande portão. Ao entrar Marcela viu um imenso relógio, que marcava 2:30. Após alguns solavancos, o caminhão parou. Marcela pôde, então, com calma observar o que acontecia ao seu redor.

O motorista havia saído e estava conversando com alguns homens dentro de um pequeno galpão. Tinha que sair aquele momento, pois, se não, ao descarregarem a mercadoria, iriam vê-la. Estava com medo. De suas pernas escorriam fios se sangue.

Conseguiu, retirando forças de onde não havia, pular a parede de madeira que a separava da liberdade desconhecida. Pulou, e como homem aranha desceu o arranha-céu de tábuas.

Machucada e ainda com leves tonturas conseguiu sair e caminhar, devagar, em direção a uma mulher que vendia café e pedaços de bolo para homens que, curiosamente, levavam carrinhos lotados de mercadorias, paredes de caixas de frutas, legumes e verduras. Tentou não demonstrar medo, desconhecimento ou qualquer emoção que a delatasse.

Lembrou-se de uma cena da novela, que assistira um dia antes de fugir, um capítulo em que mostrava, em tomada aérea, a Avenida Paulista, e dos comentários do pai: "Eita avenidão, bonito, né, filha, a Avenida Paulista, fica no centro de São Paulo, um monte de banco e outras coisas mais, lá tem tudo o que um ser humano precisa". Ecoava "lá tem tudo o que um ser humano precisa". Haveria de perguntar para aquela mulher como faria para chegar e essa avenida.

– Moça – com ar fingido -, estava indo para a Avenida Paulista e acabei me perdendo, como faço para chegar lá? É muito longe?

– Você está maluca, menina? – um sotaque nordestino carregado – Você está muito longe da Avenida Paulista, você vem de onde, do inferno, só pode ser; pra dizer que estava indo para lá e se perdeu, ou então não é desse mundo.

– Sou, sim, senhora, a senhora por favor pode me ajudar – já sem saber como fingir, pequenas lágrimas de desespero saltavam dos olhos, e sem saber onde estava implorou para a mulher.

– Por favor, me ajuda.

A nordestina, querendo ajudar e saber como aquela garota tinha ido parar naquele lugar fez todas as perguntas que encontrou em um pequeno repertório que guardava às sete chaves no cérebro.

– Senhora, é uma longa história – rapidamente Marcela teve uma luz de inspiração e formulou uma rápida mentira, que realmente convenceria aquela mulher.

– Estava indo para o serviço do meu pai, acabei me perdendo, sei que ele trabalha aqui perto, mas estou há muito tempo procurando, fui assaltada, agora quero ir para casa, moro na Avenida Paulista. Por favor, me ajuda, rápido.

– Primeiro: você não pode ficar andando aqui nesse lugar cheio de homem, eles nunca vêem mulher passar por aqui; já estão acostumados comigo, velha e feia, mas se acharem você... sai daqui rapidinho. Você sabe onde está?

– Não.

– Aqui é o CEAGESP, lugar aonde todo mundo vem comprar frutas, verduras e tudo o que é de feira. Ah! Seu pai deve trabalhar em alguma firma aqui perto, tem um monte, não é nos Correios?

Para encurtar a conversa para que a mulher explicasse logo o caminho, Marcela respondeu que sim.

– Mas quero ir para casa, na Avenida Paulista, por favor!

– Olha, vou te explicar como chega no Metrô, aí lá você pergunta que estação fica mais perto, não costumo ir para lá, vivo por aqui mesmo.

– Tudo bem.

– Primeiro você sai por aquele portão ali, está vendo? – apontando para a saída do portão em que havia o número 7 – vira à – fazendo um gesto com a mão de escrita, disfarçadamente. Marcela estava tão desesperada que não percebera a gafe – esquerda, pega essa avenida e vai embora, até chegar a um prédio bem grande, o prédio dos Correios, lá onde seu pai trabalha – Marcela nesse momento fez feição de entendida "Ah! É mesmo, é bem grande" – chegando no prédio entra à – novamente o gesto de mão – direita e vai embora, aí, quando chegar em uma avenida vira à – o gesto – esquerda, vai reto, reto, reto toda vida; vai chegar à estação de trem, Leopoldina, lá você entra e segue para a Barra Funda, lá é o Metrô.

– Obrigado, moça.

– Claudete.

– Ah!

– Claudete, esse é o meu nome.

Saiu rapidamente daquele lugar feio, com lixo transbordando de caçambas enormes. Antes de sair pôde ver algumas pessoas vasculhando esse lixo que, se olhasse mais de perto, perceberia não se tratar de algo totalmente não aproveitável, pois os comerciantes jogavam fora frutas simplesmente porque estavam com uma pequena mancha, ou um pequeno pedaço mais maduro ou batido. Pessoas viviam daquele lixo.

O andar se transformava de cooper à corrida de cem metros. Correu percorrendo um grande caminho de um estacionamento, onde havia uma extensa feira de flores; caminhões e mais caminhões cheios de flores.

No percurso pôde pensar que teria sido melhor se sua viagem para São Paulo tivesse sido em um caminhão daqueles, de rosas. Mas, e rapidamente, inferiu que rosas tinham espinhos. Pensou em margaridas.

Corria por um caminho de flores, e o número 7 ficava cada vez mais próximo. Até que chegou e pôde ver um mar, com duas correntes, uma lutando contra a outra, correntes de carros, rápidos, loucos, e as ondas não tinham o barulho de água, mas de buzinas, eram sujas, cinzas, ao invés da espuma branca uma fumaça negra, de dragões carregados de frutas, que passavam e deixavam seu cheiro de diesel queimado.

Atravessou a rua aos soluços e passos largos, e buscando mais segurança pisava somente nas faixas brancas de pedestre. Ouvia buzinas e homens gritando "gostosa". "ô lá em casa", "é a nora que mamãe pediu", "nunca te vi, mas sempre te amei". Ela sangrava. Assim atravessou não só a rua, mas grande parte da avenida Gastão Vidigal, até chegar ao prédio dos Correios, onde avistou uma enorme faixa com os dizeres "Greve dos Funcionários dos Correios". Não tinha muito a idéia do que seria uma greve, sabia somente que os trabalhadores ficavam em casa sem fazer nada, e pedindo coisas para o governo, como aumento de salário, benefícios. Ficavam assistindo à sessão da tarde, assim ouviu uma vez no jornal de sua cidade.

Logo em frente ao prédio havia uma Kombi adaptada à venda de cachorro-quente e sanduíches. Sentiu uma fome que começou a dar socos em seu estômago.

– Moço, quanto é o cachorro-quente?

– Pra você, princesa, é um real e cinqüenta.

– Faz um com muito de tudo, e coloca muito purê.

– Nossa, a princesinha está com fome mesmo, heim!

Ela fez que as palavras não seriam para ela e vasculhava com os olhos cada centímetro de calçada, olhava para o prédio, monstruoso, como aquele que só via na TV. Olhava para as poucas pessoas que passavam ao seu redor, olhava para a espátula que o homem cortava as salsichas, estava com uma grossa camada de gordura, constantemente queimada, e ele não limpava. Sentiu nojo, mas resolveu comer, sabia que era gordura, poderia valer de alguma coisa.

Sentia-se cansada. Sem perceber, dando alguns passos para trás, ia sentando no colo de um rapaz.

– Desculpe! – Após um toque.

– Fique à vontade.

Marcela comeu o seu cachorro-quente de maneira eufórica, parecia a ela um jantar de formatura; e com tal voracidade não mastigava, engolia em grandes bolas de sustento.

Havia atrás da barraca de lanches uma torneira, que não pertencia ao comerciante, porém este se apossava dela.

– Moço, eu posso limpar a minha perna ali naquela torneira? Por favor. – E mostrou a perna com um rastro vermelho.

– Pode sim, menina.

Ela pegou alguns guardanapos de papel, os umedeceu na água limpa e passou nas pernas, nos braços, no rosto, passou rapidamente pela sua genitália, estava sem calcinha, sentiu uma dor pontual, nos cabelos, ajeitando-os de maneira que os tivesse penteado.

O comerciante e o homem que estava sentado, também saboreando um gorduroso cachorro-quente, comentaram a situação da menina.

– Você está bem, menina? – Perguntou o cliente especial da barraca.

Para não alongar conversa e muito menos para não ter que explicar, ou mentir, Marcela pediu informação sobre como chegaria até a estação de trem. O homem explicou.

– Obrigado.

– Opá, a senhorita não vai pagar o lanche? – Perguntou o comerciante.

– Ai, meu Deus, moço... – Não achou explicação, só houve choro, muito choro, de descarrego, de humilhação. E após contar toda a sua trajetória, e ter percebido no comerciante uma boa alma, pediu para que ele a protegesse.

– Não sei o que fazer – disse o comerciante – Você não quer que ligue para os seus pais, e eu não posso levá-la comigo para casa. Se eu aparecer com você lá, minha mulher me mata. Vou pedir para o Joaquim – um amigo taxista – que te leve, ele mora aqui pertinho, você precisa de um banho e de comida de verdade.

Após a insistência do amigo, Joaquim levou Marcela, deu a ela duas semanas de estadia, bons banhos, boa comida, uma cama macia, um cobertor quente e, todas as noites, a novela das seis, das sete e das oito. A menina às vezes chorava de saudade de seus pais.

– Tio Jô – assim chamava Seu Joaquim do táxi, homem sem filhos e trabalhador – Amanhã mesmo volto para casa, quero pedir ao senhor o último favor, sei que já fez muito, mas preciso que me compre a passagem para que eu volte para minha cidade.

– Sim, filha.

– Duas horas depois Marcela estava em frente à estação Vila Madalena do Metrô, com 200 reais no bolso, um vestido novo, sandálias novas, cabelos muito bem arrumados, uma bolsa, que ganhara de Tio Jô – ele a pegara da esposa, às pressas, pois não tinha onde colocar os alimentos, frutas, salgadinhos, refrigerantes para a viagem – e um papel anotado: "Estação Vila Madalena, linha verde, ir sentido Alto do Ipiranga, descer na estação Paraíso, pegar trem sentido Tucuruvi e descer na estação Tietê. Lá procurar viação que leve até a cidade. – Insistiu em ir sozinha, não queria mais privar seu novo pai do trabalho.

E assim foi feliz, de volta para os seus.

– Próxima estação Sumaré.

Ela, sozinha no vagão, um instante antes da porta se fechar, já após o sinal, um homem colocou a mão entre as borrachas, as portas se abriram novamente, ele entrou. Era magro, era feio, tinha olhos vermelhos, tremia, tinha boca seca, não estava bêbado, chorava, chorava, tremia, era magro, era feio, tinha olhos que choravam sangue, a boca gritou, alto, via pessoas, tentou pegá-las, dava socos no ar, viu Marcela, dava socos, gritava, mordia, e o trem fazia barulho, os gritos de Marcela não eram ouvidos, o túnel roncava, gritou, o homem gritou, tinha olhos vermelhos, dava socos em Marcela, mordia, gritava... ... ... estrangulamento... ... ... O trem parou na estação Clínicas, o homem magro saiu correndo atrás de alguém.

Fora encontrada morta, sem documentos. Em sua bolsa encontraram, além de alimentos, que provavelmente teria roubado, camisinhas, sabonetes com inscrição de motéis, endereço de um night club – local onde ninguém falou sobre o caso – e alguns bombons. Só poderia ser uma prostituta.

*

Marcela me fazia mal, e mesmo tentando me limpar de toda a sujeira que lia durante o dia, alguns vultos vinham, às vezes, em minha lembrança.

Ainda em frente àquele corpo bonito, de Suzana Alves, decidi transar com ela, e naquela penumbra, naquela sauna era como se ela me tocasse. Com isso Marcela se foi.

Refazendo-me do momento de euforia, com as pernas ainda com os músculos estirados, sentado na privada, ouvi o telefone tocar. Enrolei-me rapidamente na toalha e saí em direção ao alarme.

Era a editora-chefe a fim de me pedir um favor, que obviamente não me daria lucro algum.

– Estou com um texto aqui que precisa sair na coluna sete, link Cidade, amanhã bem cedo, preciso que você trabalhe nele ainda hoje e me mande para que eu possa aprovar; dá para você fazer isso para mim?

– Você sabe que tem que dar, não é? – Respondi com ironia e uma rizadinha no final para enfatizá-la.

– Obrigado, você é um anjo.

Só se for dos infernos. Mais droga de texto para ler, copiar. Estava cansado de todo aquele trabalho, folhear um dicionário de idéias semelhantes, ficar apertando Ctrl + C, Ctrl + V, tirando o que não prestava, que geralmente era grande parte do texto, colocando outras, até inventando alguns trechos, dando maior dramaticidade à notícia, para que outra pessoa assinasse. Bem, por outro lado não seria tão interessante colocar o meu nome em textos que minha preguiça fazia parecer costurados e, além disso, cheios de tragédias urbanas.

Enfim, mais uma vez para o trabalho. Fui obrigado a esquecer o almoço. Para compensar e para me sentir mais livre, iniciei o trabalho sem qualquer roupa. Sentei-me para ler o texto que haviam me mandado.

Tratava-se de um músico, estudante do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, que, por ser pego com metade de um tijolo de cocaína, que pesava algumas gramas, foi preso como traficante.

Após a leitura atenta do pequeno texto, quase já uma notícia pequena, sem consistência, para a Internet, o que sobrou foi uma tira irônica e barata:

"Jovem músico, após proporcionar viagens musicais e auxiliar na composição de belas canções, hoje anima, com boa música, uma bala alojada na coluna e um bonito curativo no pé esquerdo, os companheiros da galera da cela 11, no 1º DP de São Paulo."

Seria lugar comum dizer que todo músico tem por hábito acender um cigarro de maconha, cheirar uma longa carreira de cocaína, ainda mais depois de ouvirmos histórias de astros do Rock. Quem nunca ouviu falar em Jim Morrison e sua carreira de cocaína em volta da banheira, em Janis Joplin e sua overdose de heroína; as histórias de Kate Richard, Kurt Coubain, Angus Yang, entre outros?

Após algumas reflexões sobre as drogas deu uma vontade louca de ouvir algo que me animasse um pouco, deixei o texto de lado, não sem antes mandar o outro trabalho para a editora, pois não queria mais naquele dia atender ao telefone.

Ainda nu peguei um antigo vinil do Def Leppard e comecei a escutar Photograph; fechei os olhos e ainda com o menino músico na cabeça comecei a imaginá-lo fazendo solos dentro de uma cela de cadeia, com uma guitarra cheia de pontas, vermelha. Ele com os outros presos, todos vestidos a caráter, calças de couro, cabelos longos, loiros, com uma fita colorida na cabeça, pedaços de panos pendurados no microfone, que de alguma maneira surgiu de repente, jogado por um carcereiro roqueiro, que se transformou, em um passe de mágicas, em uma fã enlouquecida, que mandava beijos, presos back in vocals em passos marcados, um preso baixista com a camisa aberta, outro bateirista de luvas e baquetas que iluminavam as pontas, e que por coincidência também tinha um braço só... Eu acabava de criar um vídeo-clipe para a MTV.

Para mim o que mais se aproximava da figura de um músico era um astro do Rock, com uma guitarra barulhenta, em agudos escandalosos, embora ouvisse e conhecesse todos os tipos de música. Bati de frente com uma dúvida que me deixou, como diziam os mais velhos, com a pulga atrás da orelha. Como estudava em um conservatório, imaginei que o rapaz manuseasse um instrumento de orquestra – a ignorância que tinha sobre conservatórios me dava essa imagem, assim, indagava sobre o instrumento que o rapaz da cocaína tocava.

Voltei ao texto que me foi enviado, estava tão mal formulado que parecia ter sido vomitado após uma bebedeira com cerveja quente. Era, sem dúvida, um trabalho porco de um jornalista preguiçoso, pois não havia o nome do garoto e a indicação do lugar estava marcada somente como CDMSP, tive que, obviamente, pesquisar para determinar o local de estudo do rapaz. Pelo menos havia o instrumento dele, tratava-se de uma flauta transversal. Eu não conseguia entender, não havia o nome do garoto, porém o magnífico jornalista nos apresentava uma flauta transversal.

*

A partir daí, e com o vinil rodando em falso, o flautista não era mais um roqueiro guitarrista maluco, mas sim o homem sério, que se vestia muito bem, que nos dias de apresentação estava sempre de smoking bem passado e arrumado pela mãe, que comparecia a todas as audições do garoto, com olhos molhados de emoção.

Era bem provável que este menino tivesse nascido em uma família de músicos ou, pelo contrário, era um garoto pobre que conseguiu, a muito custo, matricular-se em uma escola de música, e após um burocrático pedido de bolsa fora atendido e tornou-se um dos melhores alunos de seu grupo.

Em todos os últimos domingos do mês vinha ele, mais pai, mãe, irmãos, que eram em cinco, da mais longínqua periferia de São Paulo para a apresentação do rapaz na audição semanal da escola. Seus pais juntavam todos os trocados que conseguiam durante a semana para que no final dela todos pudessem ir prestigiar o garoto. E iam, e choravam. Todos da família apostavam as suas fichas no número no menino.

Como ele não tinha instrumento, no dia da fatalidade, um domingo, tinha que chegar mais cedo para poder pegar um emprestado da escola, e tinha que prepará-lo, limpá-lo com muito cuidado. Este não tinha um som como os instrumentos dos outros, pois era um dos mais usados, principalmente pelos alunos do primeiro período, que dos violinos arrebentavam as cordas, dos violoncelos quebravam as tarraxas de afinação e nas flautas babavam como cachorros raivosos.

Para o grande dia da audição de final de ano, quando todos os estudantes tocavam juntos, e todos os familiares estavam lá, e também boa parte da imprensa que se preocupava com a cultura na cidade, a mãe do garoto preparou um bonito café da manhã, com bastante leite, chocolate quente, pãozinho fresquinho e até algumas fatias de apresuntado, além de um grande pedaço de bolo de aniversário, do dia anterior, data em que o garoto fizera seus 18 anos. Ele e a família comeram com felicidade.

Às 6:35 da manhã estavam já todos prontos, e a caminho do ponto de ônibus, que ficava a cerca de cinco minutos de onde moravam. Embarcaram no coletivo Cidade A. E. Carvalho / Terminal Pedro II, chegando ao terminal de ônibus por volta das 8:00.

Como não tinham dinheiro para pegar o Metrô e viajarem duas estações, decidiram ir a pé, atravessando o centro da cidade até a rua Conselheiro Crispiniano.

A família, ao passar pelo cruzamento da rua Cel. Xavier de Toledo com a rua Barão de Itapetininga, parou em frente ao antigo prédio do Mappin, atual prédio das Casas Bahia. Para eles o paraíso, tudo o que queriam estava naquelas vitrines, a mãe via a cozinha que sempre pedira a Deus, o pai via ferramentas, tvs, dvds, peças de automóveis, e as crianças viam bonecas, carrinhos, armas de brinquedo e o garoto estava de olhos colados em alguns instrumentos populares, violões, cavaquinhos e pandeiros. (Tudo com 50 % de desconto, e em 48 vezes iguais)

Após apreciar os instrumentos, o menino olhava de maneira emocionada a fachada do Teatro Municipal de São Paulo, seus anjos e ninfas, leões e deuses que suspendiam e guardavam a magia do lugar. E com os lábios sem som pensou que um dia iria tocar naquele lugar.

O resto da família, já cansada de tanto olhar as vitrines da imensa loja, passou despercebida pelo monumental teatro que do alto os observava.

Caminharam pela rua Barão de Itapetininga, não muito conhecida pela mãe e pelas crianças, porém já velha amiga de seu José, o pai do garoto. O homem viera muito à rua atrás de trabalho, procurar de maneira desesperada algum cartaz que dissesse: precisa-se de pedreiro, eletricista ou ajudante de qualquer coisa. Geralmente achava algum trabalho provisório, que lhe rendesse algum trocado para sustentar a família por pelo menos dois ou três meses; depois disso, de volta à velha rua, quando um amigo não lhe indicava nada.

Em algumas situações de procura por emprego, quando não achava nada que se encaixasse em sua vasta experiência, sentava-se nos degraus do mesmo teatro que o seu filho sonhava tocar para um público distinto. Sentava-se nos degraus, que para ele serviam simplesmente como apoio para um breve descanso ou uma serrada no jornal amarelinho do parceiro desempregado ao lado.

Seu José já fizera de tudo na vida, levantou parede para gente rica, arrumou fiação de gente rica, e também ligou gato de gente muito pobre; e para estes sem cobrar nada. Já ajudou vizinhos a encher laje em troca de um saco de arroz, e também laje de gente rica em troca do mesmo benefício. Já vendeu pastel e cachorro quente na rua, este até lhe deu um bom sustento, e por um período relativamente longo, por volta de sete meses, até que uma fiscal resolveu pegar no seu pé, e lhe cobrar o ponto, mais do que José poderia lucrar; até matar bicho já fez, ficou conhecido durante algum tempo em seu bairro como a fera comedora de bicho, principalmente as crianças o apelidavam dessa maneira, era só precisar dar fim em gato, cachorro, ratos, baratas, passarinho, mosquitos, qualquer bicho; até que um dia foi contratado para acabar com um bicho malvado que andava por aí batendo na própria mulher, ganhou lá uns trezentos reais do amante para levar o bicho para o mato e dar um tiro na cabeça dele, recebeu a arma, o dinheiro e fez, fora enterrado como um cão, sem ao menos ser estatística. Depois disso não matou mais bicho algum.

Seu José não contara a ninguém o seu feito, e andava de consciência limpa e plena, pois com os trezentos reais levou toda a família, pela primeira vez, a uma pizzaria rodízio; nunca comera tanto, achava que um homem nunca poderia comer uma pizza sozinho, ele, naquela noite, comera quase três, num total de vinte e três pedaços e meio; nunca vira sua mulher tão satisfeita e com a barriga tão estufada, nem quando ficou grávida do mais graúdo; para os filhos então, olhava com alegria e acompanhado do sentimento de dever cumprido; por aquelas imagens e aquele sentimento mataria mais dois ou três bichos, pequenos, baratas talvez.

Assim que entraram na rua Conselheiro Crispiniano puderam perceber que havia uma movimentação voltada ao conservatório, pois a mãe logo apontou alguns meninos muito bem vestidos, e pessoas lindas, mulheres com muito laquê. Ela sempre sonhara em ter a sensação do peso do laquê; sempre se perguntou como aquele tipo de mulher conseguia andar, levar vento no rosto, sem que o cabelo sequer esboçasse movimento; queria ao menos uma vez na vida sentir o peso de um cabelo petrificado. Os dela também não se movimentavam com liberdade, mas não era laquê, era sabonete vagabundo e falta de bons cremes e bons xampus.

As crianças logo corriam na frente, alegres sem saber o porquê, simplesmente ficavam felizes quando viam mais gente, e ali estavam todas muito bem arrumadas, quase iguais.

Um calor infernal começava a brotar do cinza do chão e das paredes. Todos os alunos e alunas do conservatório tiravam seus paletós; o menino não podia fazê-lo, pois como crescera rapidamente, principalmente entre os dezesseis e dezoito anos, estava com a camisa muito apertada, com as mangas curtas e com a barra que não entrava, de modo algum, nas calças. Foi obrigado a ferver dentro daquele casaco escuro.

Logo encontrou Betinho, seu único amigo de turma, violinista, menino branco, mais baixo que o outro, astucioso, com seus dezessete anos, rico, com muitas e concentradas espinhas no rosto, principalmente nas bochechas, sem pai, ou melhor, sabia que nascera de alguém e até o conhecia, mas era como se fosse um estranho, o Dr. Alvarenga, colaborador em uma empresa transnacional. Betinho trazia consigo sua mãe, que logo impressionou muito a matriarca da família do flautista, pois trazia um enorme peso de laquê na cabeça, cabelos loiros, com ondas enormes, intocáveis pelo vento e indesmancháveis mesmo com o calor.

– Tudo bem, cara? – Disse Betinho com um cumprimento de mão bastante elaborado e demorado, visto e condenado pela mãe, que achou que seu filho tivesse aprendido tal gesto marginal em algum filme nacional sobre o Rio de Janeiro.

– Tudo bem! – Respondeu também nos mesmos gestos coreografados o flautista.

Logo Betinho puxou o amigo pela manga do paletó, levando-o rapidamente ao banheiro. Andaram por corredores bonitos e muito bem decorados para a festa de fim de ano.

Entraram no banheiro, Betinho primeiro, logo depois o garoto puxado com certa violência. Betinho se colocou na porta de uma das cabines e fez sinal para o amigo entrar também.

– Vem, cara! – De maneira ansiosa.

O amigo mulato já sabia o que iria acontecer, assim como acontecia todas as vezes que um evento importante estivesse pela frente, seu amigo procurava um lugar onde pudesse ficar tranqüilo e geralmente tinha o cuidado de chamar uma outra pessoa, na maioria das vezes o seu melhor amigo, para que este pudesse vigiar as saídas e as entradas.

– Cara, fica um pouco aqui na porta, por favor. É rapidinho. Se entrar alguém você faz um sinal, um assovio, uma batida na porta, um barulho qualquer com a garganta, sei lá, porra, você dá um jeito, beleza?

O flautista não gostava de sempre ser cúmplice de um ato que o condenava, pois já havia perdido amigos que se envolveram com essa brincadeira, era uma roleta-russa.

Depois de alguns segundos que Betinho entrou na cabine o outro ouviu uma aspiração forte e algo caindo no chão. Olhou por debaixo da porta e viu uma carteira e um cartão telefônico no chão.

– Porra, você deixou cair as coisas aí.

– Depois eu pego, dá um tempo, mané! – Respondeu Betinho de maneira silabada e como se estivesse em um momento de orgasmo.

– Merda, estou indo embora!

– Não, cara! – Betinho abriu a porta ainda em êxtase e irritado com o colega.

– Caralho, você não deixa eu curtir o barato, seu merda, você sabe que eu preciso de sua ajuda, acho que só você sabe que eu uso, e se eu não tiver um amigo para cuidar do ambiente estou fodido, ajuda aí.

– Só eu uma porra, muitos aqui sabem que você é afim dessa merda, alguns até compram de você, pensa que eu não vejo? Mas que caralho, você é um filho da puta. Eu já perdi muitos amigos pra essa vida de merda. Você é músico, não faz isso. Você tem chance na vida, tem dinheiro, tem o melhor instrumento que já vi, toca muito, pára, cara!

– Meu, dinheiro o caralho, instrumento, música, tudo é merda, só quero ficar na boa. Dá mais um tempo aí. Eu vou entrar lá mais um pouco. Fica aí!

O mulato, mesmo contra a vontade, ficou ali na porta da cabine por mais cinco minutos, ouvia gemidos, batidas na parede, chutes na porta, pigarros, até que ouviu a descarga, e ela não parava de funcionar.

– Porra, Betinho, o que está acontecendo?

– Vai tomar no cu. – Um grito abafado saiu de dentro da cabine.

O flautista forçou a porta e ela não destravou, pois além da trava habitual havia a própria perna de Betinho obstruindo a abertura.

– Porra, abre essa merda.

Forçou mais duas ou três vezes a porta da cabine, sem resposta de abertura, resolveu dar com a sola do sapato na fechadura. Assim a porta cedeu.

– Minha perna, seu filho da puta! – Betinho gritou com todo ar dos seus pulmões. – Porra, você quebrou a minha perna.

O flautista tocou em toda a extensão da perna de seu amigo para ver se realmente havia quebrado algo.

– Não quebrei nada, levanta. Levanta, cara! – Ajudando seu amigo a se levantar e ao mesmo tempo pegando a carteira e o cartão telefônico sujos de cocaína.

Levou Betinho à pia mais próxima, abriu a torneira rapidamente, encheu uma das mãos com água e jogou na face do amigo, enquanto este reclamava e xingava.

De tanto desespero, o mulato desceu a cabeça do amigo até a torneira, abrindo-a mais, para molhar toda a cabeça de Betinho, dar-lhe um banho na consciência. Este já sem forças se entregava ao propósito do amigo, e em lágrimas gritava:

– Estou melhor, cara, estou bem! Pára!

O flautista, ainda nervoso com toda a situação, pegou a cabeça do amigo e colocou de frente com um enorme espelho que ficava logo acima da pia.

– Olha, olha, abre os olhos, seu filho da puta. Olha pra você, você é um merda, você está se destruindo, seu merda, seu bosta.

Betinho, aos prantos repetia as palavras do amigo.

– Seu merda, seu bosta, eu sei, eu sou um merda, um bosta. Me ajuda, por favor.

Com um sentimento de culpa e de amizade Betinho se jogou nos braços de seu amigo, em soluços de choro, pedindo desculpas e reconhecendo o amigo.

– Eu vou te ajudar, cara! Mas para isso você precisa querer.

– Eu quero!

Após alguns minutos de choro e cumplicidade ambos se arrumaram novamente para sair e enfrentar fora uma multidão, principalmente pais, mães e câmeras.

O mulato ajudava o colega a se recompor, ajustava sua camisa, colocava-a para dentro da calça, reapertava o seu cinto, percebendo que cada vez mais o seu amigo emagrecia, a ponto de haver mais dois furos, feitos à tesoura, arrumava os seus cabelos, refazendo a risca de separação, deixando-a retíssima, molhava as mãos e as colocava nos cabelos de Betinho, descendo para o rosto, molhando-o e ao mesmo tempo levando as lágrimas.

– Coloque o sapato, Betinho.

No alvoroço e na emoção perdeu-se um sapato, o do pé direito, e como saci Betinho pulava e pedia para que seu amigo olhasse pelos cantos onde havia de esquecer o sapato.

– Como posso sair assim agora, cara!

– Calma, nós vamos achar!

– Porra, deve ter caído na privada e ido embora com a merda, com o pó, com tudo.

– Lógico que não, Betinho, quanto você calça?

– Quarenta.

– Nenhuma bosta é desse tamanho, fique tranqüilo, deve estar em algum canto, procure embaixo daqueles mictórios que eu vou procurar nas outras cabines.

Betinho havia deixado seu instrumento devidamente protegido dentro de um bonito estojo, revestido de veludo e com trancas especiais, dentro da cabine que usara para cheirar.

O mulato foi procurando, bem devagar, em todas as cabines.

– Caralho, essa merda não pode ter parado tão longe.

De fato não estava longe, estava debaixo do estojo em que Betinho guardava seu instrumento, e que chutara quase para trás do vaso sanitário em seu acesso de êxtase.

– Porra, está aqui, Betinho. Como que você deixa um instrumento desse atrás de uma privada. Você é brincadeira; se eu tivesse um instrumento desse iria tratá-lo como se cuida de uma Ferrari.

Ao pegar o sapato debaixo do estojo, e com o movimento, a tranca especial não funcionou e deixou à mostra a Ferrari. A tampa se abriu e fez com que o mulato visse de perto um Stradivarius de alto preço e de baixa estima.

Ao lado do incrível instrumento havia algo que o nosso menino não reconhecera na primeira vista. Algo escondido entre o tecido usado para limpar o instrumento antes e depois de ele ser usado e o veludo, estava dentro de um compartimento usado para, geralmente, se colocar algum conjunto de cordas, ou um diapason.

Pensou que de curioso morreu o gato, mas mesmo assim valia uma espiada, afinal, tinha que cuidar do amigo. Quando afastou a flanela amarela do objeto, percebeu que estava embrulhado, e embrulho como aquele já tinha visto principalmente na televisão, em alguns daqueles jornais sensacionalistas do canal sete.

Assemelhava-se a um pequeno tijolo, com aproximadamente meio palmo de cumprimento, todo mal revestido de uma fita plástica marrom, parecia ter sido embrulhado às pressas. Sabia que era cocaína.

Apanhou o embrulho como se pegasse um pequeno paralelepípedo, seu sangue correu pelas veias do braço com mais velocidade, saltaram, seus olhos fecharam de ódio, sua boca secou, e como se joga uma pedra em um pelotão de choque da polícia, nosso menino jogou o embrulho na cara do amigo.

– Seu filho da puta, desgraçado, quer ser ajudado, seu puto, sem vergonha, você é um filhinho de papai viciado, desonesto, fraco.

Betinho recebeu a pedrada de raiva em seu nariz, que de tão empinado deve ter partido o pacote, fazendo com que parte do pó fizesse uma nuvem mágica, e após o ataque, em meio à fumaça, veio um soco no peito, tapas na cara, murros nos braços e tapas na cabeça.

– Pára com isso, cara. Deixa eu falar!

– Não vai falar porra nenhuma, seu desgraçado. Eu não sou mais seu amigo. Eu não sou amigo de um fraco, de um viciado. Você sabe quantas pessoas já vi morrer por causa dessa merda? Sabe? Seu imbecil.

Betinho recebia as agressões sem revidá-las, até porque o mulato era sensivelmente mais forte que ele. E ao mesmo tempo em que era agredido tentava apanhar do ar o pó que estava em suspensão, aspirando muito forte para que a droga pudesse ir rápido para os seus pulmões. Caído, lambia o chão agarrado ao pequeno pacote de cocaína.

O mulato, já cansado de bater no amigo, e com um sentimento de decepção que o desencorajava de continuar, com lágrimas nos olhos e dentes serrados decidiu deixar o outro em paz em seu mundo branco.

– Acabou, seu merda!

Deixou Betinho caído, sem forças, camisa entreaberta, olhos sangrando, nariz dilacerado, corroído, lambendo e cheirando o chão. Só pôde ouvir o último grito do amigo antes de bater a porta do banheiro.

– Seu desgraçado!

O agressor saiu em choro, bateu a porta e logo percebeu que estava no pátio. Pensou em voltar, pensou em polícia, pensou, pensou, até que sentou em um banco que ficava atrás do palco. De onde, dali alguns momentos, apresentaria o recital de sua vida, ou pelo menos, por enquanto, o primeiro deles.

Em flash, imaginou alguém entrando no banheiro, vendo um rapaz completamente louco caído no chão, lambendo-o, gritando, tremendo. Essa pessoa certamente sairia correndo gritando socorro: "– Me ajudem, tem alguém machucado no banheiro, pelo amor de Deus!". Até que um segurança viria em socorro, abriria a porta do banheiro e viria o mesmo rapaz louco, olharia o chão, analisaria as tremedeiras do rapaz e chamaria a polícia, enquanto isso trancaria o banheiro para que o animal louco não atacasse nenhuma alma indefesa.

Chegou à conclusão que mesmo com raiva do amigo precisava ajudá-lo. Tinha a certeza que Betinho dependia dele, e de alguma maneira seria recompensado por ajudá-lo, seu lado fraternal dizia.

Decidiu voltar ao banheiro, e quando abriu a porta viu que seu amigo já não estava ali, imaginou as piores coisas que poderiam acontecer a um traficante de drogas, até que sua bondade fraternal o fez inverter os pensamentos e imaginou que alguém tivesse entrado, visto o rapaz machucado, e sem notar a coca do chão – o que seria impossível – o tivesse ajudado a levantar, molhado o seu rosto, ajeitado sua camisa, emprestado o ombro para que o rapaz chorasse um pouco, calçasse o pé descalço, tivesse feito um bonito laço em ambos os cadarços, tivesse molhado os cabelos do rapaz, refeito retíssima a risca do cabelo e dito: "– Agora sim você está bem, vá fazer aquilo que veio fazer, toque divinamente esta manhã.".

Depois de ter transferido os seus afazeres de cuidador a outro, voltou para a frente do palco, junto de sua família, que já o esperava ansiosa para o início do espetáculo.

Após conversar com os pais durante algum tempo, o menino foi chamado por um senhor de cabelos brancos e desajeitados, que só com um sinal fez com que o garoto ficasse pálido, aflito, pois sabia que estava perto do momento de mostrar tudo aquilo que aprendera durante razoável tempo naquela instituição.

Beijou pai, mãe, irmãos, olhou um momento para si e desejou-se boa sorte. Pensou em Betinho, perguntando para si mesmo sobre o amigo.

Havia na platéia, todos de pé, muitos familiares e câmeras. Por um momento reconhecera uma menina muito bonita da TV, não se recordava do canal, mas lembrou-se de seu rosto e principalmente de sua voz, uma voz de maritaca. Não tinha idéia de que bicho seria esse, mas no momento em que ouviu a menina na TV somente pôde comparar a sua voz a uma coisa que não conhecia, de tão estranha que era.

Após ter visto a maritaca pensou que poderia haver naquele lugar mais gente importante, quem sabe o prefeito, o governador, não sabia quem eram, mas esperava ali a presença do cargo em um senhor gordo e parcialmente calvo, essa era a imagem que tinha de um político, construída por alguns comentários do pai, que dizia sempre quando assistia ao Jornal Nacional: "– Bando de filhos da puta, enquanto falta carne na nossa mesa esses safados estão com a pança cheia.". Daí deduziu que todo político tinha de ser gordo.

E como achava que ali pudessem haver pessoas importantes, tentou um gesto que nunca tentara, lembrando-se mais uma vez de seu amigo, levantou a cabeça, empinou o nariz e estufou o peito, em um movimento rude e aristocrático. Com pose, em direção ao palco, acabou por não ver o chão e pisou com elegância na patinha de uma poodle que estava mijando, também elegantemente, em um canteiro de flores.

O mulato ficou pálido e só pôde pedir, humildemente, como sua mãe o ensinou, desculpas.

A mulher, dona da Pupi, assim o garoto ouviu o chamamento, não disse absolutamente nada. Não precisou, bastou de fato um olhar que percorreu cada centímetro do garoto, iniciando pelos cabelos pixaim, descendo pelos olhos de jabuticaba, desviando das espinhas no rosto, parando um segundo nos lábios grossos, pulando o queixo pequeno, descendo para a camisa um pouco suja no colarinho, pulando nos botões do jaleco um pouco pequeno para o rapaz, percebendo que estava faltando um deles, descendo à calça de sarja preta, um pouco desbotada, até os sapatos, estes sim brilhantes e muito bem engraxados, ofício que aprendera desde pequeno com o pai.

Abaixou a cabeça e decidiu ir definitivamente, sem olhar para os lados e principalmente sem pisar em ninguém, calmamente, até o palco.

Alojou-se detrás dele, com os outros colegas de orquestra. Até que pôde ver, em meio à confusão, Betinho sendo beijado, acariciado pela mãe. Não estava mais com os cabelos bagunçados, mas sim de cabelos lindos, ondulados. Não parecia aquele rapaz que há pouco estava deitado lambendo o chão. Estava novo e com um sorriso magnífico. Se perguntou quem o levantara, quem o arrumara, quem, quem, quem?

Betinho também o viu, mas era como não o visse, como se passasse os olhos por uma paisagem urbana sem perceber que uma das casas estava pegando fogo.

O palco estava sendo arrumado às pressas, pois algumas pessoas importantes que estavam ali já tinham feito ligações decisivas e determinado que o espetáculo tinha que começar. E assim se fez.

Depois de quinze minutos era tocada a primeira campainha avisando ao público que o show iria começar. Todos posicionados. O mulato suava da cabeça aos pés, olhava para os lados, para cima, via o sujeito gordo e parcialmente careca em uma tribuna construída ao lado do palco, via a menina-maritaca abaixo falando ao microfone. Procurava os seus, e em um ponto escuro, no longe da multidão pôde ver os olhos de seu pai, que brilhavam e tomavam banho em satisfação e orgulho. Por alguns momentos pôde se refugiar neles e não ouvia nada, não sentia ânsia, só o silêncio. Eram ele e o pai.

A segunda campainha o acordou e o colocou novamente no lugar onde estava, pôde ouvir de novo os ruídos, não pôde mais ver o pai, pois esse ponto se perdera na multidão, via somente pequenas câmeras fotográficas, mães mandando beijos, e pais gravando, com máquinas em punho, pôde sentir uma gota sair bem próxima do colarinho e percorrer toda a sua espinha, arrepiando-o, começou a sentir a boca seca, fome, ânsia, vontade de chorar, de rir, sentia.

Olhou para o lado e lá estava Betinho, tranqüilo e afinando pacientemente o seu instrumento. Até na maneira de afinar o instrumento Betinho conseguia ser aristocrático.

O senhor de cabelos brancos e despenteados subiu ao palco, e nesse momento ouviram-se palmas estéricas, assovios, gritos, toques de celulares, olas – Afinal, esse espetáculo era aberto ao público, principalmente àquele que bate palmas após o hino nacional.

O senhor dos cabelos de ninho, também um pouco assustado, pois achava que a apresentação seria somente para familiares, agradeceu aos três lados, com a batuta acima do nível da cabeça. Virou-se para os garotos, fazendo gestos que deveriam indicar: "– Vamos, meninos, vamos!". Até que em um momento solene a batuta foi batida três vezes no pedestal de partitura, que bambeava. Nesse instante todos se calaram, principalmente as afinações.

Começaram então os movimentos de Haydn – Herbert Von Karajan, uma Sinfonia em Lá maior, Adágio; que iniciou com um movimento leve de violinos. No início o garoto olhava o seu amigo que, de olhos fechado, não estava ali. E seus movimentos eram de uma ave robusta em pleno vôo. E nos momentos de êxtase era como se essa ave tivesse fugindo de um predador, movimentos rápidos de pura emoção.

Chegando próximo ao momento de execução do mulato, este, juntamente com os colegas de mesmo instrumento, levantou-se. Assim tornou a ver seu pai e iniciou a sua passagem olhando para o velho.

O mulato também tornava-se um pássaro, mas não em pleno vôo, e sim em uma cantoria caipira e muito bem afinada. E o conjunto era como se fosse um bando de pássaros que resolveram pousar no mesmo galho para conversar em melodias.

O flautista, diferente de Betinho, não tinha solo, mas era como se o tivesse, pois podia se ouvir somente a sua flauta, o seu espírito que saia por aquelas aberturas. Era um pouco desengonçado quando em momentos de êxtase o conjunto de flautas conversavam. Também não estava ali. Talvez estivesse em seu quarto, quando podia levar o instrumento da escola para casa, ou quando também não podia, pegava-o escondido, colocava-o na mochila e ia já imaginando como seria o seu dia de ensaio. No seu quarto, trancado, pois tinha vergonha de tocar na frente dos pais, podia fazer gestos, olhares, caretas, frente a uma platéia que sabia que estava atrás da porta, com os ouvidos colados nela.

No final do primeiro andamento, e após alguns segundos de silêncio, o garoto pôde ouvir a explosão de uma multidão que chorava; os mesmos gritos, mais altos, assovios mais alegres, palmas que machucavam as mãos e as olas com ondas que surfistas ficariam loucos para surfar.

Deu-se nesse mesmo ritmo as próximas músicas, todas muito bem ensaiadas que, a um ouvido não conhecedor, soariam como profissionais.

Na última música, que não foi em um bis, embora após a apresentação o público insistisse em gritar por essa invenção dos shows de rock, Betinho fazia um belíssimo solo de grande dificuldade, por isso olhava atentamente para a mão esquerda, que prontamente respondia com agilidade aos comandos. Num instante de descanso entre uma passagem e a outra do solo, o mulato pôde perceber, do lado direito do palco, um homem que o deixou abismado, principalmente após a reação de Betinho ao vê-lo. Quando Betinho olhou aquele homem passou a tremer dos pés a cabeça, suar frio, o violino que segurava começou a tremer levemente. E o homem olhava, como se estivesse simplesmente assistindo ao espetáculo. Quando Betinho ia começar a quarta parte de seu solo, iniciou com a nota errada, perceptível a todos, principalmente ao maestro, que o olhou como quem olha uma aberração da natureza. Betinho estava irreconhecível, nunca errara uma só passagem quando estava em apresentações importantes. Desta vez errara quase todas as notas dessa parte do solo. As pessoas do público começaram a olhar umas para as outras, perguntando-se se a música realmente teria aquela parte que parecia mais com um vinil riscado e em rotação contrária, afinal, a maioria não conhecia música clássica, estavam acostumados com "segura o tchan, amarra o tchan, segura o tchan, tchan, tchan, tchan, tchan".

Betinho agüentou até a última nota, muito prolongada, enquanto os tambores rufavam, e todos os instrumentos estavam no volume mais alto. O mulato, mesmo esvaziando os pulmões, percebia cada reação do amigo. No final da última nota, Betinho largou seu instrumento, que caiu no chão e soltou uma das cordas; pulou por detrás do palco e só pôde correr, como uma lebre fugindo de uma raposa faminta.

O flautista também deixou o seu instrumento de lado, pousando-o com muito cuidado dentro de seu estojo, e correu em direção ao amigo, para o banheiro que visitara momentos antes.

– Ele vai me pegar, me ajuda, ele vai me pegar, me ajuda, me ajuda, me ajuda, ele vai me pegar. – Betinho só sabia repetir as mesmas frases, desesperado, suando, com os olhos esbugalhados e mãos muito frias.

– O que está acontecendo?

– Porra, vou te contar, mas não vem pra cima de mim. Esse filho da puta que está aí veio atrás de um lance que estou devendo pra gente dele.

– Quanto? A gente dá um jeito de arrumar.

– Você é retardado, como você vai arrumar essa puta grana. Peguei um lance de pó que deu um puta rolo com um pessoal aí. Consegui enrolar por algum tempo, mas agora o cara veio cobrar, tenho certeza que é ele. Me ajuda, cara, pelo amor de Deus. Vai lá e fala pra ele que eu fui embora, inventa alguma coisa, por favor.

– Beleza, então vamos juntos, cara, vamos enfrentar isso juntos, eu invento alguma coisa lá.

– Você é maluco, ele me mata e de brinde mata você também.

– Mata nada, vamos lá. – Transpirando medo.

– Vou até o palco pegar nossos instrumentos, rapidinho, e já volto, me espera aqui, não sai daqui de jeito nenhum. Você sabia que seu violino quebrou quando caiu no chão?

– Foda-se o violino, vai logo. – Betinho respondeu desesperado e já se encaixando ao lado do vaso sanitário, dentro de uma das cabines.

Como em uma São Silvestre, em seu sprint final, o mulato correu, sem olhar para os lados, somente para um ponto, fixo, o palco, pulou para cima dele como um atleta dos cem metros com barreira. Sem olhar para os amigos, que estavam quase felizes, a não ser pela gafe final, que se tivesse sido feita no início seria certamente imperceptível, apanhou o violino, enrolando a corda solta nas tarraxas de afinação e, sem jeito, conseguiu encaixar à força o violino no estojo, utilizou os fechos especiais, levantou e foi pegar a sua flauta. De maneira desengonçada pegou os dois estojos, pulou do palco e voltou ao encontro de seu amigo.

Entes de chegar ao seu destino, topou com a mãe de Betinho, nervosa perguntando o que tinha acontecido com seu filho e queria saber onde ele estava.

– Não sei, senhora, dá licença! – Empurrando a mulher.

Rapidamente chegou ao banheiro e antes mesmo de abrir a porta pôde ouvir gritos vindo de dentro.

– Seu filho da puta, cadê o bagulho, pensa que é assim, chegou, pegou e nada, fica tudo numa boa?

– Não, cara, não.

– Eu tinha o resto do pó.

– Cadê, filho da puta?

Nesse momento o flautista abriu a porta a fim de evitar o pior. Sabia que seria muito provável que o homem estivesse drogado e armado, conhecia, por isso achou melhor entrar com os dois estojos na altura do peito, quem sabe o protegeriam de um ataque.

Logo que abriu a porta viu um homem alto, vestido de preto, bastante magro, e que aos gritos apontava o dedo para Betinho. Como não dava para ver o garoto sentado ao lado do vaso sanitário, parecia que o homem discutia com a privada, ou com algo que estivesse dentro dela.

O mulato, bambeando como trigo no vento, conseguiu dar alguns passos em direção ao homem, com os estojos protegendo-o, olhando fixamente, sem ainda poder ver seu amigo.

– O que você quer, moleque?

– Só quero fazer xixi. – Conseguiu sussurrar uma resposta que para a ocasião julgou plausível, assim teria tempo de pensar em alguma coisa. E de tão baixa a resposta, Betinho não conseguiu perceber que se tratava do amigo.

Foi em direção ao primeiro mictório, virado sempre de frente para o homem, a passos lentos, tropeçando às vezes.

Estava tão nervoso que ao baixar o zíper da calça conseguiu quebrá-lo, impedindo que fosse totalmente aberto. A única solução era fingir que segurava o mijador e ainda que o balançava ao terminar a serviço. Mas no meio de sua bonita encenação, realmente veio-lhe uma vontade absurda de esvaziar a bexiga, e de tanto desespero não conseguiu segurar, mijou nas próprias pernas.

Enquanto se mijava, ouvia os tapas e os murros que o homem dava em Betinho, e também, para amedrontá-lo cada vez mais, socava a divisória de madeira, que tremia e criava um clima de extremo terror.

– É a última vez que vou perguntar, cadê o meu bagulho, seu filho da puta. – Assim que perguntou, o homem afastou o casaco e tirou do cinto um revólver, apontando-o para a cabeça do violinista.

Em um raro segundo de percepção, veio em Betinho a idéia de dizer que fora assaltado, mas se o fizesse teria que dizer quem o assaltou.

O homem pegou Betinho pelos cabelos e o levantou com fúria, fazendo com que o rapaz desse um pulo de tanto impulso. Retirou-o da cabine e o jogou no chão. Gritava: "– Cadê o bagulho?!".

– Eu tinha tudo pra te dar, estava tudo separadinho em meu estojo. Aí veio um filho da puta, roubou o meu dinheiro e o pó também. – Assim que pôde ver o mulato, Betinho rapidamente disse: "– Foi aquele filho da puta, ele está com o meu estojo e levou o meu bagulho.".

O flautista não teve tempo para pensar quando viu a arma mudando de alvo, da cabeça do seu amigo para os estojos que segurava. A sua crise de tremores fez com que os fechos especiais do estojo de Betinho se abrissem, abrindo assim a tampa, e deixando cair o violino, a flanela e o embrulho, já despedaçado, de cocaína.

Assim que viu o embrulho no chão, o menino, sabendo que não havia mais nem um segundo para explicações, pegou rapidamente o violino e o que restou do embrulho e correu.

– Vem aqui, seu filho da puta. – Gritou o homem, que também iniciou sua corria.

O garoto corria como um tigre, suas pernas longas e finas o ajudaram nessa empresa. Mas o homem também era magro e conseguia uma ótima velocidade.

Betinho, dentro do banheiro, antes de ficar inconsciente, só teve tempo de pegar os pequenos pedaços do tijolo de cocaína e colocá-los dentro do estojo do seu amigo, ao lado de sua flauta.

Os dois magricelas iniciaram uma perseguição pelos corredores da escola, e nesse ambiente o mulato tinha uma ligeira vantagem, pois conhecia cada sala, cada entrada escondida, cada escada. Depois de um rápido sobe e desce, passos e freadas em corredores, os dois se viram no meio da multidão.

O menino, por mais que estivesse desesperado, durante a sua corrida ainda pôde se preocupar em não empurrar ninguém, e principalmente em não pisar em ninguém. Passava em velocidade, sem fôlego ainda sussurrava um: "– Dá licença!". Já o homem magro não seguia regras de etiqueta, empurrava a todos que estavam em seu caminho, pisava nos pés, xingava, derrubava cachorrinhos de colo de madame. E, cada vez mais, se aproximava do menino educado. Por onde passavam deixavam uma onda de incógnitas, pessoas tentando entender o que estava acontecendo, alguns, quando viam o menino correr, mulatinho, logo pensavam em furto, depois que passava o homem magro pensavam que este era o assaltado. Tinham pena dele.

Saindo pela portaria do Conservatório, correram pela Conselheiro Crispiniano, tropeçando em vendedores ambulantes. O menino deixou um dos sapatos logo na esquina dessa rua, onde também deixou seu casado que, como era apertado, o impedia de movimentar seus braços e, conseqüentemente, suas pernas.

Quando chegaram à esquina da Barão de Itapetininga, o garoto percebeu vários grupos de pessoas, alguns repentistas, outros gritando muito alto o nome de Deus, exorcizando satanases. Pensou que seria um bom refúgio se envolver entre os espectadores de uma dessas concentrações, principalmente na do homem que pulava no interior de um aro de roda de bicicleta em chamas. O homem saltador estava atrasando o salto a todo momento, quando fazia que ia, não ia. O mulato então foi e tentou se esconder no meio da pequena concentração.

O homem que estava perseguindo parou entre três grupos, tinha certeza que o garoto estava em algum deles. A solução veio rapidamente, olhou para os lados, afim de verificar se ali havia algum policial ou qualquer coisa que a ele cheirasse como autoridade, e deu um tiro para o alto. O barulho fez com que o homem temente a Deus temesse e saísse correndo com a bíblia nas mãos gritando: "– É o fim dos tempos, meu Deus, me leva, é o chamado, me leva, me leva.". E este pedido se perdeu no corredor da Barão de Itapetininga. Os repentistas deixaram caixas de som e um chapeuzinho ainda cheio de moedas, saíram correndo, mas ainda fazendo seu improviso, gritando em rima: "Meu amigo Juvenal / não sei o que acontece / nessa terra de São Paulo / tem jagunço de nordeste". E o outro: "Meu amigo Juquinha / é tiro pra todo lado / se não morre de fome / morre furado". O homem do aro em chamas, no momento do tiro, não mais adiou o espetáculo e rapidamente pulou, passando aos gritos por dentro do aro, pena que não foi visto, pois sua platéia já havia desaparecido; aproveitou o impulso do salto e saiu correndo pelo Viaduto do Chá.

O homem deu o tiro e, como se tivesse vários olhos de lince, percebeu cada movimento, cara rosto assustado, até ver o menino, correndo corcunda, para que não fosse percebido, em velocidade para dentro da loja das Casas Bahia.

A multidão que estava na praça Ramos de Azevedo em poucos segundos se refugiou dentro das lojas da rua Barão de Itapetininga, Xavier de Toledo e Conselheiro Crispiniano. Os funcionários e os clientes que estavam no andar térreo do prédio do antigo Mappin subiram em direção aos andares superiores, pois de início sabiam que um louco tinha entrado com um revólver na loja e estava atirando para todos os lados. Depois descobriram que não era um revólver, mas sim uma metralhadora, que já tinha matado mais de dez pessoas; após isso, descobriram que não era só um homem, mas sim uma quadrilha, por volta de uns quinze homens, encapuzados; tinham matado já por volta de vinte pessoas e estavam com alguns reféns, e que o objetivo do bando era a parte administrativa da loja, onde, possivelmente guardavam o dinheiro.

A pequena multidão subia aos gritos pelas escadas rolantes e pelos elevadores, que propositalmente eram travados no meio do caminho, evitando contato com os bandidos. Se espremiam nas escadas, que por tanto peso pararam de funcionar. Mulheres caíam nas escadas de corrimão, algumas protegiam seus filhos, e qualquer homem suspeito que chegasse perto era rapidamente atacado com uma bolsada na cabeça.

O homem, que não era, definitivamente, parte de nenhuma quadrilha, pelo menos que estivesse ali, percebeu que tinha causado um caos que o atrapalharia bastante. Obviamente já teriam ligado para a polícia, ou pior, ela já estaria na rua ao lado. Mesmo assim decidiu continuar atrás do garoto.

O homem olhava o térreo da loja aparentemente vazio, às vezes cabeças brotavam, como alfaces, por detrás dos balcões.

– Cadê você, seu filho da puta, sei que está aí.

O menino, como achou que o homem não estava blefando, decidiu, em uma corrida de filme hollywoodiano, correr de detrás do balcão para o primeiro lance de escadas. Fez.

De rabo de olho o homem pôde perceber que alguém se movimentara, sem poder ainda determinar o que era, atirou no vulto. O que conseguiu acertar fora somente uma pilha de bonecos do Elmo, personagem de um programa infantil da TV Cultura. O tiro fez com que alguns bonecos caíssem no chão ligados, eles davam gargalhadas, se contorciam no chão de tanto dar risadas.

O homem foi em direção às escadas. Após chutar alguns bonecos, viu ainda as pernas do garoto subindo o segundo lance. E assim sucessivamente subiam. O homem atirava para cima, entre o vão dos dois lances de escadas, um que subia e outro que descia, na tentativa de acertar o garoto e poder, assim, pegar o que lhe pertencia.

Subiram dez andares. As pernas do menino já não agüentavam, estavam travadas de câimbras. Quando chegou ao décimo andar somente teve forças para se jogar atrás de uma estante e abaixar a cabeça na torcida para que o homem não o visse ali. Mas o atirador viu quando o garoto não subiu ao décimo primeiro, resolveu parar para procurá-lo.

Já não havia ninguém no andar, os populares estavam no último, o décimo quinto. Enquanto o homem subia, todas as pessoas, aos gritos, iam cada vez mais para o alto. Todos os compradores que estavam desde o primeiro até o décimo quarto andar sufocavam-se no último. Alguns homens se aventuravam na pontinha da escada tentando ver se alguém armado estava chegando. O desespero era tamanho que, algum tempo depois, assim que a polícia chegou, e não se ouviu mais falar em homens, alguns clientes jogaram extintores de incêndio em um pacato segurança da loja, que simplesmente estava subindo para avisar que o perigo havia passado, acabou em coma por algumas semanas.

No andar, ainda com a cabeça escondida de baixo da estante, o menino pôde ouvir quando o homem começou a chutar as prateleiras e a derrubar mercadorias.

– Seu desgraçado, vou pegar você, eu posso não sair daqui vivo, seu filho da puta, mas você também não sai. Eu vou te pegar.

O garoto, quando levantou a cabeça, percebeu que estava no andar de brinquedos, olhou para cima e viu a caixa de um jogo, pôde ler WAR, não sabia o que significava, mas observou com mais cuidado o desenho e viu que havia algumas figuras, bem pequenas, de canhões de guerra atirando, achou que fosse um sinal divino, pegou a caixa, com todo cuidado, para não fazer ruído, e em um momento de coragem jogou a caixa para cima. Tinha visto uma cena parecida em um filme que passara na Sessão da Tarde, um japonês, para fugir de três homens fortemente armados, com metralhadoras e revólveres, jogou um objeto no sentido contrário para o que desejava fugir, e assim que o bandido atirou no objeto, pensando ser o perseguido, o mocinho fugiu. Se saísse dali e conseguisse descer as escadas certamente estaria a salvo, pois correria para a estação de metrô ou para uma guarita de polícia.

Jogou. Mas o homem não deu a mínima atenção para a caixa, viu somente o menino sair de detrás da estante. Deu três tiros, um acertou o pé do garoto, que gritou com raiva.

Assim que os tiros foram dados, a polícia, com escudos e coletes, apareceu e deu voz de prisão. O garoto se escondera atrás de uma pilha de bonecos do Mickey – sabia que não estava protegido ali, pois eram bonecos de pelúcia, e um tiro atravessaria tudo aquilo como uma faca quente atravessa a margarina. Queria por alguns instantes ter perdido o fôlego no quinto andar, onde estavam os armários de cozinha, e aquelas mesas com tampão de granito. – O rapaz em um momento que durara horas pôde ver os olhos daquele homem, era magro e feio, tinha olhos grandes e esbugalhados, vermelhos.

O homem colocou a arma em alvo com a pilha de bonecos e gastou suas duas últimas balas antes de correr em direção a um corredor, que dava acesso a um outro pavilhão no mesmo andar. Um tiro abrigou-se na parede, e o outro na coluna do rapaz.

Como a polícia andava com cautela, mesmo detrás de um escudo que poderia proteger um boi, assim que passaram pelo corredor e tiveram vista ao outro pavilhão, que por sorte estava vazio, já não viram mais o homem, somente uma portinhola em seu movimento de abrir e fechar, pequena, de aproximadamente um metro quadrado; dava acesso a um pequeno elevador, que nos dias de maior movimento era usado para subir e descer mercadorias. Não se viu mais o homem.

O garoto, após levado para o hospital e estar fora de perigo, fora acusado de traficar drogas, vender para os alunos do Conservatório, e também para pequena porcentagem de usuários do centro da cidade, além de consumo próprio. Perdera sua vaga no conservatório. Perdera o contato com os pais, que nunca poderiam ter imaginado que o próprio filho pudesse se envolver com drogas, depois de toda a educação que recebera. Perdera os movimentos das pernas e hoje toca, com uma flauta feita de bambu, para os companheiros de crime.

*

Deixando algumas janelas do MSN piscando e sem mesmo clicar, providencialmente, na opção desligar o computador, dei um soco na lateral do notebook e como se uma pessoa deixasse a vida, o meu computador desligou, apagara para as tragédias. Ainda agarrado com o menino e também acompanhado de uma ânsia insuportável, corri para o banheiro, abri o chuveiro e joguei-me debaixo da água gelada, a falta de percepção era tão grande que vomitei em mim mesmo, até que a frieza da água veio me trazendo as sensações, e assim como o computador tinha deixado de pensar eu queria que meu cérebro também deixasse.

Olhei para baixo e vi ainda a playboy aberta, lembrei-me de Marcela, tinha ao mesmo tempo pena e ódio. Tinha vontade de estrangulá-la. Lembrei-me do menino que tocava flauta; maldito moleque, desgraçado. O menino e Marcela, Marcela e o menino, o menino e Marcela, em uma roda gigante. Nenhum deles me deixavam em paz. Olha a faca! Não tinha faca, pois se a tivesse acabaria com eles.

Fechei os olhos para ver se as imagens desapareciam e, pelo contrário, tornavam-se cada vez mais nítidas. A água caía forte na minha cabeça, gelada, e nos momentos em que eu abria os olhos, parecia estar enrolado em uma cortina translúcida, envolvido.

Após alguns minutos imerso em água gelada, quase sem poder sentir os dedos dos pés, saí do banho, ou melhor, do processo de lavagem, ou limpeza cerebral.

Coloquei cuecas brancas – havia de fato várias cores como opção, mas já que eu estava naquele momento limpo de maus pensamentos, não iria colocar uma de cor preta, ou vermelha – e um calção azul bastante velho, que quando peguei lembrei de meu pai, não porque era dele, mas sim porque se assemelhava ao calção azul que a seleção brasileira usou durante toda a década de sessenta, e ele gostava de futebol. Procurei no armário alguma camiseta regata, mas todas que eu tinha estavam para lavar, e eu tinha muitas, aproximadamente dez; estavam na montanha de roupa suja, ao lado da máquina de lavar. Achei uma camiseta vermelha que me agradava bastante, pois tinha a gola bastante larga e principalmente não tinha a maldita etiqueta, que no calor faz de propósito uma coçadeira insuportável. Mesmo sendo vermelha coloquei-a e me senti pronto para tomar um café bem forte, novamente desisti do almoço.

Mesmo o café estando um pouco frio, para disfarçar o gosto de velho tive que colocar três colheres cheias de açúcar, estava agradável.

Assim que me sentei à mesa o gato subiu nela, então comecei a acariciá-lo. Como eu não costumava ter essa atitude, o gato no início deixou-se acariciar oferecendo para mim um olhar de desconfiado, mas após algumas carícias ele se entregou completamente, virando-se de barriga para cima, ronronando.

Ao lado dele estava um livro, que eu começara a ler há alguns dias, e o tinha abandonado há esses mesmos dias. Peguei-o e procurei um marcador, não havia. Isso era indicação de que não lera nem a primeira página por inteiro. Ainda curioso e esperançoso procurei algumas indicações, rabiscos, círculos, setas, pois sempre quando lia uma obra costumava rabiscar o livro inteiro, cheio de círculos, sublinhados e principalmente setas para os cantos, e longas anotações, mas não havia nada disso.

Abri o livro e pude ler: "Ao dobrar a esquina, ele experimentou uma alucinação auditiva. Ouvia a voz da mulher: 'Na boca! Na boca!' Então não resistiu mais. Encostou-se numa parede. Uma dona de casa, que aparecera numa janela próxima, viu quando aquele homem puxou o revólver, introduziu o cano na boca e puxou o gatilho". Achei esquisito, fechei-o e vi a capa, branca escrita em vermelho: "A Vida como Ela é...". Pensei, realmente a vida como ela é. Naquele momento eu não precisava saber como a vida era, pois eu já sabia, tanto que ela vinha a todo momento me lembrar de como era crua, fria e amarga.

O livro deixei no mesmo lugar onde estava, e sabia que ali iria permanecer até o momento em que precisasse arrumar a cozinha e passar um pano na mesa, ele iria terminar os seus dias provavelmente dentro de uma gaveta, no escritório.

Como uma senhora pensei que precisava escapar um pouco da vida, deixá-la de canto, ler algo que me aflorasse o espírito de amor e esperança. Levantei-me e fui até o escritório novamente, lá encontrei na estante de livros uma obra que me ajudaria no intento.

Em voz alta falava cada verso: "Mas que amor de cachorrinha! / Mas que amor de cachorrinha! / Pode haver coisa no mundo / Mais branca, mais bonitinha / Do que a tua barriguinha / Crivada de mamiquinha? // Pode haver coisa no mundo / Mais travessa, mais tontinha / Que esse amor de cachorrinha / Quando vem fazer festinha / Remexendo a traseirinha?

Assim que li imaginei essa cachorrinha sendo atropelada por um caminhão de eixos intermináveis. E neste curto devaneio, após a passagem do caminhão, veio bem lentamente a imagem de um menino, branco e de boina, de bicicleta, com alguns jornais em sua bolsa, fazendo um barulho agradável de sinetas, como um entregador de jornais dos anos trinta.

O barulho das sinetas foram se tornando de agradáveis e antigas a modernas e irritantes, pude perceber, como se acordasse de uma sessão de hipnose, que o telefone queria louco a minha presença.

Rapidamente, e em marcha atlética, atendi ao telefone, pois não queria ouvir mais vezes o seu toque. Atendi propositalmente de maneira grosseira, para fazer perceber do outro lado que eu não estava muito para conversas – não costumava atender com "alô" porque nunca entendera esse código, geralmente atendia com um "oi" quando estava de bom humor, ou com o silêncio quando estava em um dos dias normais, afinal, quem ligava era que tinha que estabelecer o primeiro contato. Dependendo da voz do outro lado eu poderia ou não inventar uma mentira do tipo "ele não está", simplesmente desligar o telefone quando fosse um "eu poderia estar falando com o responsável pela residência?", sabia que era para vender ou pedir alguma coisa, ou até mesmo mostrar uma falsa gentileza se fosse Márcia. E era ela, mas desta vez já tinha atendido grosseiramente.

– Fala.

– Sou eu, amor.

– Oi, Márcia.

– Tudo bem?

– Tudo.

– Que bom, acabei de ler uma chamada sua no site, sobre uma prostituta que foi estrangulada no metrô. – Márcia sabia que o texto, essencialmente, não era meu, mas mesmo assim fazia questão de dizer que ele estava muito bom. Para evitar explicações ou mais um pedido para não comentar as chamadas; a partir de um momento não falei mais nada a não ser um "é".

– Como está passando a sua tarde? – Tentou puxar assunto para ver se eu deixava de ser monossilábico. Após alguns instantes um sentimento de obrigação me fez ser gentil.

– Estou passando bem, querida. – E realmente essa palavra "querida" saiu de mim sem que me machucasse, como se tivesse a certeza de que nos últimos anos Márcia fora a única coisa boa de minha vida, por isso merecia um tom amigável, mesmo que algumas vezes eu não conseguisse.

– Que bom, muito trabalho por aí? – Ela sabia que bastavam alguns comandos de copiar e colar, algumas modificações de palavras e muitos consertos para se fazer um pequeno texto para a Internet. Mesmo assim, e como se tornasse o meu trabalho menos humilhante, resolvi dizer que o dia estava pesado.

– Bastante.

– Saio do consultório hoje mais cedo, está afim de beber alguma coisa? Pode ser aí mesmo no Café Floresta. Tudo bem?

Após alguns instantes propositais, afim de não precisar dar desculpa alguma, esperando uma desistência dela, percebendo que eu não gostaria de em uma segunda-feira receber alguém praticamente no meu apartamento, resolvi responder. O Floresta ficava no térreo do meu edifício.

– Tudo bem, vamos sim. – Talvez ela precisasse conversar, ou até eu mesmo contar sobre o meu dia, sobre a minha excelente produção jornalística.

– Que bom, você se importa se eu convidar a Rê e o Claudinho?

Deu-me uma vontade de dizer: "– É lógico que sim, e você sabe que não gosto de apelidos com somente uma sílaba, ou no diminutivo, são de uma completa falta de criatividade, ainda mais quando do nome se escolhe logo a primeira sílaba. Rê, Rê, porra, porque não dizer Renata?. Rê é nome de animal de estimação, ou então é quando um homem com problemas vocais tem que indicar que o carro deve ir à ré. Não quero sair com a sua amiga superficial, cheia de papo sobre trabalho, apartamento novo, carro novo, cachorro novo, vestido novo, brincos novos. Nunca um assunto novo. E muito menos com o Claudinho, um playba que só sabe reclamar quando não encontra um estacionamento "adequado" para o seu carro novo, quando não encontra um computador "adequado", uma tecnologia de ponta para os trabalhos em sua empresa. Porra, que gente chata. E a propósito, porque tratá-lo como Claudinho, e não como Clá, seria mais "adequado", Rê e Clá, do tamanho de suas essências.".

– Tudo bem, querida, não me importo. – Este segundo "querida" definitivamente não saiu da mesma maneira que o primeiro. E ela, percebendo isso:

– Tem certeza?

– Tenho.

– Adoro quando você está de bom humor. Beijo. Até mais tarde. Às oito passo por aí, só dou um toque no celular, tudo bem? E posso usar a sua vaga?

– Tudo bem. – Evitando repetir o "até mais tarde", "às oito", "só um toque" e "vaga", escolhi somente um "tudo bem".

Estava muito confortável em meus trajes, mas com o futuro passeio de elevador fui obrigado a colocar roupas mais sociais, embora estivesse com uma vontade tremenda de descer do jeito que estava mesmo, só para ver a cara da Márcia, azeda por quase ver um mendigo, e por saber que seria de propósito; e principalmente ver a cara do Claudinho, com seus bonitos sapatos e bela camisa, tendo que apertar a mão de um quase desempregado.

Ia descer daquele jeito, quando me veio, ao invés da cara azeda de Márcia, um sorriso lindo e os olhos brilhantes quando da primeira vez que transamos. Decidi me arrumar.

Ainda eram sete e meia, e apenas em dez minutos eu conseguiria me arrumar. Acendi um cigarro e fui para a janela. De lá podia ter uma vista privilegiada da cidade, prédios que mais pareciam fogos de artifício, com janelas que acendiam e apagavam, em baixo via a avenida, nela, como se pulsassem, veias de mão dupla, glóbulos vermelhos indo em direção à rua da Consolação, à cabeça, e glóbulos brancos indo em direção à praça da República, ao coração. Não pude deixar de perceber algumas células cancerosas nesse imenso organismo, meninos, logo abaixo do prédio, pedindo esmolas, cheirando sacos e, de vez em quando, assaltando algumas pessoas mais velhas ou sozinhas.

Ás vezes algumas sirenes, de ambulância ou de polícia, mais daquela do que desta, mostrando que o trabalho da segunda geralmente não era feito com maestria.

Após alguns instantes observando e adorando aquelas imagens e aqueles sons, pude ouvir uma música, muito baixa, gradualmente aumentava seu volume. Aquele som era de fato parte da paisagem, seria composto para ela, cada agudo e cada grave se encaixavam no presente, em cada movimento de faróis, em cada intervalo de sirene, em cada acender e apagar de janelas. Tudo funcionava perfeitamente, como em um organismo, como em uma orquestra. O som da flauta inundava o cérebro. Conforme os agudos se tornavam mais agudos, os graves mais graves, toda a cidade acompanhava, em um compasso mais ardente, rápido, a cada instante mais rápido. E como se o maestro enlouquecesse, os músicos, carros, pessoas, luzes se desencontravam, ficavam loucos em plena rua. E no momento mais alto da viagem musical, vi o menino no palco tocando e olhando para o seu pai, depois em flashes tomava tiros, vários, até eu acordar com seu grito, que ecoava nos corredores de uma delegacia e entre os prédios do centro.

Quando me dei conta do tempo, imaginando que uma música geralmente dura entre quatro e cinco minutos, esta já tinha me pegado quarenta. Estive desligado da vida, ou tão ligado nela por um tempo que não seria perceptível, ou contado. Estava ainda vestido para a pelada.

Peguei o celular, que estava no quarto andar da estante de discos, e percebi que já tentava chamar a atenção, piscando uma luz verde, indicadora de mensagem. Selecionei ligações não atendidas e lá apareceram dezesseis provenientes do mesmo número, o de Márcia. Após isso a luz teimava em ficar acesa. Ainda faltava uma mensagem de voz.

"– Eu não sei porque ainda ligo para você, alguma coisa me dizia que iria fazer isso, desaparecer, como geralmente faz. Caso ainda queira tomar um café com a gente, estamos a poucos metros do seu apartamento, onde combinamos."

Nesta mensagem, de alguma maneira, pude perceber o que realmente Márcia sentia, decepção. Geralmente ela não se importava, ou parecia que não se importava, quando marcávamos algo só entre nós dois e eu não aparecia, mas fazia questão de me mostrar sua infelicidade quando estava acompanhada, e principalmente de Renata. De quem curiosamente consegui ouvir a voz no fundo da mensagem, após escutá-la por mais três vezes: "– Ele não presta, não sei ainda faz com ele. Você upgrade na vida.".

O relógio mostrava quase oito e vinte. Pensando mais nos dizeres de Renata durante a mensagem do que propriamente nos de Márcia decidi descer do jeito que estava mesmo.

Quando desci do elevador dei quase de nariz com Claudinho, que fora até a vitrine de uma revistaria ver se já havia chegado o seu último número da Quatro Rodas.

Aproveitei a deixa para fazer uma piada.

Já que sua Quatro Rodas não chegou, vamos à quatro solas tomar um café. – Aposto que ele deve ter pensado: " – à duas solas e duas patas, imbecil".

Para não deixar que somente eu fizesse uma piadinha, ele pensou por alguns instantes e a inspiração para a sua deixa veio do homem que estava na frente dele, eu.

– E esse calção "seleção brasileira"? A Márcia não me disse que você estaria vindo de uma pelada.

No instante tive que inventar uma desculpa que explicasse a vestimenta. Na realidade antes mesmo de toda essa situação, ainda no elevador, eu vinha pensando como iria explicar, principalmente para Márcia, o calção seleção brasileira e a camiseta de dormir, que vinha com algumas manchas de cândida.

Pensei em ir ao banheiro de uma das lojas, bem rapidinho, sem que ninguém visse. Lá jogaria um pouco de água na camiseta e no calção, simulando que algum cano tivesse estourado na minha cozinha. Iria de fato até fazer o gesto de espanto do momento em que estoura um cano. Sairia levemente molhado, principalmente os cabelos, não podia esquecer dos cabelos. Talvez até torcesse levemente um dedo, para dizer que na hora em que tentava arrumar o cano tinha torcido no movimento de tentar encaixar um tubo no outro. Seria uma boa desculpa para ir até a farmácia, comprar um analgésico, dizer para todos que a noite estava ótima, mas a dor de minha torção não me deixava em paz, precisaria subir para descansar de toda a aventura de trocar um cano estourado.

Fomos andando, sem trocar palavras. E eu percebia que, de vez em quando, Claudinho olhava de rabo de olho, principalmente para os meus pés. O que havia de errado com eles? Até perceber que o que chamava a atenção do rapaz era o barulho de arrastar os chinelos. Comecei a andar como se estivesse de saltos.

Na eternidade que durara o caminho do elevador até o café passamos em frente a uma Pet Shop, lugar onde, há quatro anos, comprara o meu gato de estimação, que cada dia tinha um nome, naquele era Alan Poe. Vi alguns gatos que se esfregavam, alguns mordiam uns as patas dos outros. Mas o que me chamou a atenção foi um que estava longe de todas essas brincadeiras. Somente olhava, observava com cuidado, e como a gaiola era bastante pequena, tentava prever em que canto os gatos brincalhões cairiam após um atacar o outro, assim ele poderia, sem rápidos movimentos, sair desse canto e não ser involuntariamente agredido.

Passei por toda a vitrine. E acredito que até o bichano percebeu que as minhas roupas não eram adequadas, pois olhou-me e não tirou mais os olhos, durante todo o tempo em que passei em frente à loja ele me olhou, até que já no final do ângulo pude ver um dos gatos grandes cair bem encima da cabeça do observador, que de tanto ter olhado para uma figura esquisita, acabou perdendo a noção do que acontecia ao seu redor.

Como eu andava mais devagar, prestando atenção no gato, Claudinho teve a iniciativa de se colocar do outro lado, para que eu definitivamente parasse de olhar para a loja.

– O que tanto você olha?

Se fosse um amigo talvez eu respondesse: "– Cara, o gato ficou olhando como babaca para mim e acabou tomando um golpe de arte marcial do outro. Vem ver, olha, é do caralho!".

Mas como era Claudinho eu disse: "– Nada.".

– Márcia vai ficar feliz quando ver que eu estou trazendo o marido dela. E por falar em marido, quando sai o casório?

Eu não tinha a mínima intimidade com o rapaz, mas ele sempre tentava puxar um assunto menos formal. Na realidade não havia motivos para que eu não gostasse dele. Talvez um pouco de inveja. Definitivamente não gostava do jeito dele, da voz dele, dos sapatos dele, da gravata dele, do modo de andar dele, da maneira que ele fazia a barba, deixando um corte perfeito e simétrico entre as curvas que passavam por cima das bochechas, eu nunca conseguira fazer aquilo, não gostava da noiva dele, embora a achasse gostosa, não gostava dos casos que ele me contava, não gostava do jeito que ele comia a estagiária – até isso ele deixou escapar em um momento em que achava que fôssemos amigos -, não gostava do carro dele, não gostava de vê-lo dirigindo, somente com um dedo no volante, como se o passageiro não soubesse o que é uma direção hidráulica, não gostava da maneira como ele escolhia um vinho, e todo o ritual de cheira, toma, roda, vê, cheira, toma, roda, vê, ainda mais eu, que costumava ir até o mercadinho e comprar o vinho São Tomé (R$ 4,00 a garrafa).

Após a pergunta já pudemos ver as meninas sentadas no café. E imaginando que até lá demoraríamos por volta de cinco segundos, resolvi não responder sobre o casório. E ele percebeu.

– Olha quem eu trouxe, meninas? – Já se sentando ao lado da namorada e dizendo: "– Não mereço um beijinho do meu anjinho?" – Beijaram-se com bitocas.

Assim que Márcia me viu, com o seu olhar de estilista de Milão varreu-me cada centímetro. Como um scanner observou cada detalhe, principalmente um pequeno furo no calção, lugar por onde enfiou o dedo, puxou e disse: "– Sente-se.".

Percebi que Márcia não gostara do que acabara de ver, por isso já tentei puxar assunto. Mas antes mesmo de eu abrir a boca ouvi, baixo e disfarçadamente: "– Recebeu minha mensagem? Onde estava que não atendia ao telefone, nem o de casa nem o celular? Por que está vestido dessa maneira?".

Pensei em dizer toda a história sobre o cano e o dedo torcido, mas de fato ela perceberia a mentira, pois eu achava que os psicólogos tinham o poder de descobrir o que as pessoas pensavam. Foi assim no dia que a conheci, falei o mínimo possível, principalmente após ela me dizer que era psicóloga. Eu já tinha mentido o bastante com o objetivo de levá-la para o meu apartamento. No início do nosso relacionamento, para ela eu não era jornalista, mas sim informante internacional, já tinha feito trabalhos na Argentina, México, Venezuela, Uruguai e até mesmo uma vez em Roma. E mesmo depois de ela ter dito que costumava assistir muito aos telejornais e nunca tinha me visto, decidi completar a mentira dizendo que era de um canal da TV a cabo, isso sem antes não deixar de perguntar se ela tinha acesso a esse tipo de TV. Depois de transarmos ela descobriu que eu era um jornalista de notas de roda pé.

Renata, com o objetivo de provocar, decidiu perguntar se eu estava com muito trabalho, principalmente agora que eu, por fazer meu próprio horário, julgava-me meu próprio chefe. E ainda terminou a indagação com a pergunta: "– É bom ser o seu próprio chefe, jornalista?".

Sem responder a pergunta e deixando um clima pesado na mesa, levantei o braço e disse: "– Raimundo, um capuccino!".

Depois disso, e como acontece geralmente quando se sai em casais, as duas mulheres – e aqui o caso fora mais grave, pois ambas eram psicólogas e amigas de infância – começaram uma longa discussão sobre os casos que estavam enfrentando. Mais preocupado com a espuma do meu café, com a qual eu brincava fazendo bonitos desenhos, como os de vapor de água, ouvia ainda de relance alguns comentários como: "– E aquele caso que o pai tem tara pela filha, eu fico com medo de atendê-lo.", "– Lembra-se quando aquele homem entrou no consultório, puxou o revólver e disse que se eu não expulsasse os fantasmas da cabeça dele ele me mataria? Ainda bem que deu tudo certo.".

O Claudinho, como que se assistisse ao jogo do Santos versus Corinthians, na Vila Belmiro, o Santos ganhando de goleada, vendo o Pelé fazer quatro gols, sendo um de bicicleta, o rapaz olhava para aquelas mulheres, querendo saber de cada detalhe. Talvez Márcia gostaria que eu fosse como ele.

A cada instante, as palavras das mulheres ficavam mais distantes, mais dispersas e sem sentido: "Quando... disse... entrou... falava... chorava... pagou... café... baixou... hospital... proposta...". E entre elas novamente a música que me embriagava, em movimentos bastante leves, compassos longos, se estendia o som da flauta e a imagem de menino que se fazia na espuma do café, preto como o mulatinho, gostoso como a música, bom...

A música ficava cada vez mais alta, mais alta, até me despertar do transe bastante assustado. O assunto na mesa de repente parou.

– Você ouviu isso? – Perguntei para Márcia, ela, com cara de assustada respondera com outra pergunta: "– Ouvi o que?".

– Vocês ouviram isso? – Virando-me para o casal. Os dois se olharam como se, por telepatia, conversassem: "– Esse cara é louco, maluco de pedra, um retardado.".

Até que Márcia, com um estopim que geralmente outras pessoas não tinham para me tirar de certas gafes, disse que talvez fosse o barulho de apito, que por sinal já estava incomodando; vinha de um garoto de rua que estava nas escadarias do edifício.

Claudinho, com o objetivo de fazer com que tudo terminasse em uma grande gargalhada perguntou: "– O que foi que você fumou hoje, heim?".

Olhando para Márcia, pedindo desculpas com as retinas, virei para Claudinho e disse: "– Seu babaca!".

– O que é isso? – Perguntou Márcia, não tão surpresa.

– Esse seu namorado que é um babaca, Márcia. Esse cara é um imbecil, vagabundo. – Levantando-se Renata.

– Calma, calma, gente! – Márcia, desanimada, tentava conter os ânimos.

Somente restou-me sair dali, sem pagar o café – no outro dia resolveria a dívida. – Fui em direção ao elevador, nervoso e sem olhar para trás, mas sabendo que Márcia estava na minha cola. Ao ver o elevador parado, à minha espera, decidi não ir por ele, mas sim pegar o sentido da escada, pois ainda ouvia aquele maldito apito. Sem pensar duas vezes, já no primeiro degrau peguei o menino pelo colarinho da camisa rasgada, tirei violentamente o apito de sua boca, joguei o aparelho no chão e pisei em cima. Ouvia agora o choro e os gritos do moleque.

– Pára, tio, parei, na boa, parei.

Eu subia as escadas de dois em dois degraus, não queria que Márcia me alcançasse, pois sabia que discutiríamos ali mesmo, e aos berros. Subi rapidamente até o primeiro andar, e assim que coloquei os pés no piso primeiro ouvi o primeiro passo de Márcia em baixo. Subia dizendo em seu volume normal de voz:

– Eu não acredito que você fez isso! Você machucou o menino! O que você tem, amor?

Assim que ela colocasse os pés no primeiro andar eu iria, sem dúvida, mandá-la para os quinto dos infernos. Dizer que não a amava mais e que até a odiava, mas a última palavra que ela disse fez-me esquecer tudo.

Quando me viu, à sua espera, ela, com os olhos cheios de lágrimas, veio ágil e já com os punhos fechados diretamente no meu peito, dando-me dois ou três socos e repetindo sempre a mesma pergunta: "– O que está acontecendo com você?".

Os socos poderia agüentar a noite inteira, mas não agüentei o choro, que em mim explodiu primeiro em um grito de angústia e medo, fazendo com que minhas pernas ficassem sem força, que tinha se transferido para os pulmões. Assim fui perdendo a altura, caindo até me ajoelhar.

A pergunta repetitiva de Márcia já não era ouvida, como se não tivesse ouvidos, como se estivesse dentro de uma caixa fechada, um silêncio que machucava. Sem movimentos não conseguia sequer levantar a cabeça. Abri os olhos e vi o chão coberto de pó branco.

A visão deu-me força para levantar a cabeça, olhar fixamente para os olhos de Márcia, que ainda repetia a mesma pergunta, ainda sem som, e eu disse: "– Você vê isso?" Ela, sem escutar e dando ainda socos molhados de lágrimas. "– Você vê isso? Cala boca, você vê isso? Você vê isso?".

– Vejo o que? Pelo amor de Deus, vejo o que?

– Isso? – Eu passava a mão pela superfície e ficava com as mãos cheias de pó, e na frente dos olhos dela fazia com que o pó levantasse em nuvens.

– Isso é droga. Eu não acredito! O que isso está fazendo aqui, isso é droga. – Eu tentava de todas as maneiras mostrar para ela que o chão e minha mão estavam tomados pela cocaína.

– Não tem nada no chão, amor.

– Não me chame de amor. Como você não vê isso? – Passava as duas mãos no chão e batia palmas, para fazer com que levantasse mais poeira branca.

Esse movimento fez com que o rosto de Márcia ficasse também coberto pelo pó.

– Não cheira isso, pára. Não faz isso, por favor. – Em desespero eu passava as mãos no rosto dela, com o objetivo de limpá-lo, mas a cada movimento seu rosto ficava mais e mais sujo de pó. Até que tirei a camiseta e passei em seu rosto, limpando-o completamente.

Ela passava também as mãos no chão, sujando-as de branco, e dizia: "– Não há nada aqui, está vendo, amor!".

– Não faça isso, não coloque as mãos nesse chão imundo, nessa porcaria.

Eu estava bastante tonto e confuso, via, como se estivesse bêbado, os objetos em duplo ou triplo focos.

Márcia levantou-me com jeito e carinho, com o objetivo de levar-me até a porta do elevador. Conseguiu, mas sem antes desviar de alguns lugares no chão, onde havia mais pó. Esperamos alguns minutos abraçados, até o elevador chegar ao andar. Estávamos abraçados fortemente. Ela chorava e ainda repetia, em sussurro: "o que você tem?".

Márcia, abrindo a porta com dificuldade, pois além da força que tinha que imprimir com o braço esquerdo para empurrar uma velha porta de madeira, também me servia de porto. No elevador ela me encostou à parede, do seu lado esquerdo. Estava eu apoiado com a cabeça, olhando para baixo, com medo de abrir os olhos. Virei para a esquerda e dei de cara comigo mesmo. A parede do fundo do elevador era um enorme espelho, pude me ver por inteiro, como há muito não fazia. Geralmente via-me somente pela metade, quando não como em uma foto três por quatro, no espelho minúsculo do banheiro de meu apartamento.

Além de poder me ver completamente, pude também ver Márcia. Como estava linda naquele dia. Parecia muito preocupada, triste, diferente de seu vestido, de um azul alegre e vibrante – percebia que ela começara a usar muito azul desde quando eu uma vez comentei que o azul realçava os seus olhos; nos raros dias em que eu estava com o espírito romântico, me utilizava até de alguns clichês, como "os olho são as janelas da alma", ela adorava isso – Era repleto de rendas nas pernas, fazendo com que a curiosidade se aguçasse para ver o que havia por detrás delas. Um tecido bastante fino por baixo, que colava em suas coxas, que tinham a medida certa. Um decote muito bem escolhido, deixando um pouco do seio à mostra, o bastante para dar vontade de beijá-los.

Naquela hora eu a via como se estivesse a observando no primeiro dia que a vi, numa estação do Metrô, sentada esperando o namorado. – Após isso todas as vezes que passava por essa estação fazia questão de descer para ficar olhando por alguns instantes aquele banco vazio. Depois de um tempo, após tê-la conhecido melhor, passei a não descer mais, e às vezes até esquecia o nome da estação. Olhando para ela, dentro do elevador, lembrei-me: estação Trianon-Masp.

*

Não era a minha estação de destino, mas desci uma depois de onde a avistei; rapidamente peguei o trem de volta para poder dar de cara com ela, na porta em que ficaria frente ao banco em que ela estava sentada.

Já quando o trem fora chegando na estação eu, esfregando o nariz no vidro, me esforçava para poder vê-la antes da parada, e quando a vi ela já estava com o namorado. Ou pelo menos era o que parecia, pois discutiam muito próximos.

Saí e me sentei ao lado, respeitando algumas cadeiras para a minha segurança, como se esperasse alguém. De rabo de olho percebi toda a conversa, pude vê-la representar uma mulher nervosa, histérica, que dizia em baixo tom e com algumas lágrimas que ele não podia ter feito aquilo com ela. – Depois fui saber que "aquilo" era ter se apaixonado por um homem, e após algumas conversas ouvi de seus lábios algo que me deixou intrigado, pois não entendia como uma mulher tão esclarecida poderia dizer aquilo: "– Se ele me trocasse por uma mulher! Isso é normal! Um homem trocar uma mulher por outra mulher! Por sexo e tal! Agora, por um homem, eu não acreditei!".

Ela o apontava com personalidade, ali eu percebera que ela era uma mulher que poderia dar muita dor de cabeça para um homem despreparado. Resolvi esperar um pouco para ver como aquele momento teria o seu desfecho.

Ele tentou abraçá-la como se aquele gesto pudesse servir de consolo ou pedido de desculpas. Ela, chorando, não pelo fato de ter perdido um namorado, mas por ter perdido a essência própria de mulher, sentindo-se, naquele momento, um ser assexuado. Derramava-se.

Somente após alguns minutos levantei-me. Observava tudo a alguns metros, com uma das pernas escorando o corpo, olhando de vez em quando e tentando, dependendo do ângulo, decifrar algumas palavras usando uma rudimentar técnica de leitura labial. "Porra, seu merda, não fiz, amanhã, não sei, não sei, não sei, por quê? Não desculpo, você me faz sentir, eu te amo" – as últimas me pareceram falsas, pois quando as pronunciou logo depois olhou para baixo.

Depois de passado alguns trens, e eu não ter entrado em nenhum, vi que o namorado dela percebeu que eu estava olhando demasiadamente – de fato, ficar parado em uma plataforma de estação do Metrô, ver passar alguns, praticamente vazios, e não entrar em nenhum é realmente suspeito, por mais que, supostamente, esperasse alguém.

Vi quando ela olhou para mim e pronunciou: "– Não, não o conheço!". No momento fiquei nervoso, esperando que talvez o namorado dela pudesse vir tomar satisfações, mas não o fez. Percebi que o rapaz ia cada vez mais se distanciando dela, como se quisesse sair logo dali.

Distanciou-se tanto que ela deu um grito: "– Vem aqui! Por que está indo cada vez mais longe, eu não mordo, cara! Já deveria saber disso! Eu não vou te beijar, eu não sou nenhum bicho, porra! Está com medo que eu te pegue a força! Eu não vou fazer isso, agora sei do que você gosta. Meu beijo não é bom? Diz? Meu beijo não é bom? Vamos ver então?".

Assim que ela repetiu pela segunda vez, e mais alto, veio como um raio em minha direção. Deu-me um beijo que durou alguns longos segundos, pegou a minha cabeça e forçou-a para baixo, alguns centímetros, enfiou com violência a língua na minha boca, procurando-me, e o encontro provocou uma troca de arrepios entre eu e ela. Pude sentir o seu coração no pulsar da língua, que era quente. Não só o beijo me deixou sensível, mas também o encontrão dos nossos corpos, o palpitar dos seus seios, a sua cintura fina e seus cabelos negros e longos, que tocavam as minhas mãos.

– Diz pra esse cara se o meu beijo não é bom?

Assim que olhamos, vimos que "esse cara" já era "aquele cara", não estava mais ali. Já havia entrado em um trem com destino à felicidade.

– Meu Deus, não acredito que aquele cachorro fez isso comigo!

– Calma, isso não é tão ruim, veja tudo pelo lado bom – aqui se fez um silêncio, parecia que os trens já não passavam, as pessoas já não andavam, era somente o barulho das engrenagens do meu cérebro funcionando em marcha rápida, aquecendo à procura de algum lado bom para que eu pudesse aliviar aquela raiva que ela sentia.

Não veio nada, nem mesmo um espirro de idéia, como naqueles filmes norte-americanos, que a menininha leva um chute do namorado, e o nerd da escola acaba sempre achando uma lado bom nisso e surpreendendo a menina, para no final, obviamente, ficar com ela. Ali não havia menininha, não havia nerd, não havia namorado com jaqueta de time de futebol, não havia arquibancada e chefes de torcida loiras, ninfetas; havia uma mulher atacada em sua sexualidade com os nervos que afloravam, um homem fugitivo que resolveu assumir um outro homem, trens que não paravam de chegar, pessoas curiosas que olhavam pelas janelas, e outro homem que estava arrumando uma maneira de arrumar tudo isso, e que só recebeu como idéia luminosa, depois de alguns segundos, uma frase: "a verdade é plenamente uma mentira repetida" – tinha ouvido há alguns dias em uma coletânea de músicas dos anos 80.

– O que você disse.

– Ah, nada! – Ela não iria entender, já que nem eu pude entender. Como um espirro aquela frase insana saiu involuntariamente.

– Mas é um filho da puta, não é? – Ela perguntou olhando para os meus olhos, fazendo referência ao namorado fujão.

– É.

– Estava indo para onde? – Perguntei, mesmo sabendo que ela não estava indo para lugar algum, afinal deviam ter marcado ali para conversarem. Talvez ela estivesse vindo de algum lugar. A pergunta estava errada, e mesmo antes de arrumá-la, respondeu-me: "Para lugar nenhum.".

– Vai para casa? – Perguntei mesmo sabendo que ela poderia achar que eu estava sendo intrometido e que eu pudesse ouvir: "Porra, recebe um beijo e já acha que pode ir perguntando tudo, quer uma cópia da chave do meu apartamento? Babaca!".

– Não, preciso beber alguma coisa, conhece algum lugar?

– Conheço.

– Poxa, desculpa, cara, o beijo, foi mal, foi em um momento de raiva, de insanidade.

Aproveitei o momento e a deixa para deixar de leve um agrado, como um comentário bem safado:

– Vou deixá-la sempre com raiva.

Ela claramente não gostou da investida, pois ficou quieta, apenas abaixou a cabeça e disse: "Mas foi mal mesmo! Você estava indo para algum lugar, eu te atrapalhei. Aí, pode seguir o seu caminho. Esquece que uma maluca como eu cruzou com ele.".

– Não, não, eu estava indo para casa mesmo, só vim resolver umas pendências de trabalho, tive que entregar alguns artigos para o jornal, sabe como é, trabalho é importante.

– Ah, você é jornalista?

Aqui entra a parte em que eu inventara jornais, revistas, canais de televisão, países para os quais viajei a trabalho.

Na realidade tinha ido a uma entrevista de emprego, daquelas em que percebemos claramente que não gostaram da gente: "qualquer coisa ligamos para você.".

– E você o que faz?

– Pode parecer um contra-senso, mas sou psicóloga. Um pouco louca, mas sou. – Aproveitei o instante para dar um sorriso reto.

– Então, estou indo para o meu apartamento, e lá no meu prédio tem um lugar bem legal para que você possa tomar alguma coisa.

Depois de tê-la facilmente convencido a ir até o bar sobre o qual comentei, fomos conversando sobre a minha astronômica carreira, até a estação Consolação. Propositalmente decidi levá-la a pé, em direção ao centro, para que pudéssemos descer toda a rua da Consolação, assim teríamos mais tempo de conversa, sem que outras pessoas pudessem ouvir – afinal, conversa de Metrô é quase uma palestra.

Durante o percurso fiquei sabendo que ela era recém formada e estava montando consultório com uma amiga da mesma turma de faculdade; que tinha se formado no Mackenzie; que estava namorando com o moço fujão há somente cinco meses; que tinha alguns irmãos; que morava em uma travessa da avenida Rebouças, e na mesma rua estava montando o seu negócio; que era filha de pai soteropolitano e mãe japonesa, família que, a muito custo – e isso ela fez questão de frisar – conseguiu criar os filhos apenas com um pequeno comércio de gênero alimentício japonês na Praça da Liberdade. Que estava passando por uma fase nova e de modificações em sua vida. Após alguns minutos já estávamos na portaria do meu prédio.

– Que legal, você mora no Copan? Esse prédio é um símbolo da cidade, eu li em uma revista que aqui há aproximadamente 2500 moradores, em apartamentos dos mais variados, uma igreja, que já foi cinema, alfaiate, fast-food chinês, restaurantes, lavanderia, lanchonete, lojas de roupa, cabeleireiros e até uma imobiliária.

Eu não queria cortá-la para dizer que moro ali há anos e sabia de cada comércio e de cada excentricidade daquele lugar, afinal, era o nosso primeiro encontro. Respondi com um "é" desanimado.

Nos sentamos em uma mesa para tomar uma cerveja. Tomamos uma, duas, três, depois da quarta começamos a conversar sobre fantasias sexuais. Descobri todas as que ela carregava no mais absoluto segredo. Eu contei algumas, e inventei outras que fariam ligação com o nosso momento, como por exemplo transar com uma mulher que eu conhecesse de maneira maluca e logo no primeiro dia a levasse para a cama. Aproveitando de seu ferimento de orgulho feminino, citei o namorado, depreciando-o, e falei sobre as coxas dela, que estavam a mostra, sobre seus cabelos, sua boca.

Nos beijamos e acabamos transando a tarde toda em meu apartamento. Após algumas vezes, cansados e querendo mais, nos apresentamos pelo nome; já que nos conhecemos, ou melhor, nos apresentamos com um beijo na boca.

*

Ela olhou para trás, eu, não querendo que ela percebesse que eu a estava contemplando, decidi virar o rosto e voltar a olhar para mim mesmo. Observei meus olhos fundos, manchados, algumas manchas brancas de coca nas bochechas e outras que pareciam sangue brotando das narinas.

– Não acredito que essa porra está saindo do meu nariz. Marta, é sangue, Marta!

– O que foi dessa vez, amor?

Eu passava as mãos em meu nariz, fazendo com que os meus dedos entrassem violentamente nas narinas e se molhassem de sangue. Mostrava a ela sem dizer palavra, mas como se perguntasse com os olhos o que estava acontecendo comigo. Ela somente dizia: "O que você tem?".

– Tenho sangue saindo pelo nariz, porra!

– Até agora não há nada saindo de seu nariz, mas se ficar esfregando as mãos com tanta violência no rosto aí sim não só terá sangue no nariz, mas também nos olhos, na boca, e até nas orelhas.

– Porra, Márcia!

Não pude controlar o choro, dentro de mim foi como se explodisse uma granada de desespero.

Ela, em um misto de sensibilidade, amor e pena, abraçou-me mais uma vez, dizendo baixo em meus ouvidos coisas relacionadas a tratamento, amor, determinação – um discurso de Associação para Recuperação de Viciados. – Ela estava convicta que eu era um viciado em drogas. Acredito que deve ter se lembrado de alguns episódios de minha vida, que em alguns momentos de alegria alcoólica eu os tinha contado, com ar de confidencialidade.

– Você vai procurar alguém, não vai? Me promete que você vai se cuidar. Eu amo você. Eu tenho um amigo que trata de pessoas com esse tipo de problema. Vou apresentá-lo para você. Você vai gostar dele, pode apostar.

– Com que tipo de problema? Drogas? Você está pensando que sou viciado?

Coloquei-a cara a cara comigo para que a mandasse embora, pedir para que não se preocupasse comigo e dizer que sabia cuidar de mim mesmo; talvez em um tom de ironia dizer que um banho gelado curaria tudo, se até ressaca de vinho tem o poder de curar.

Quando olhei em seus olhos, como se visse a sua alma, que no momento era branca, senti um desejo imenso de beijá-la, fiz com calor e ímpeto, desejando a cada segundo possuí-la, entrar desesperadamente nela.

Enquanto nos fazíamos uno, todo o pó desapareceu, o apito do menino da escada não era mais ouvido, principalmente o chão e o ambiente se tornaram outros, mais limpos e sensíveis, cada centímetro mais palpável.

Após alguns segundos de subida, Márcia, já rendida e vulnerável, deixava-se possuir; sutilmente esbarrou no botão de emergência, que por sorte não acionou nenhum tipo de alarme – só depois soubemos que o alarme, que necessariamente não precisa vir acompanhado de barulho, é mostrado somente na administração do condomínio -, assim ficamos com, pelo menos, trinta minutos para transbordarmos completamente.

Eu beijava Márcia como o fizera da primeira vez que transamos. Sentia sua boa mais sensível e molhada. Sua cintura, um pouco mais grossa, mas ainda inclinada, seus seios rigos e palpitantes, e suas pernas grossas e firmes.

Eu sabia exatamente os seus pontos fracos. Sabia que ela não tinha somente o ponto G – este eu ainda teimava em descobrir, até duvidava de sua existência – mas sim o ponto O (beijar a sua orelha era como acionar um comando de excitação instantânea, o ponto P, ela adorava quando se passava, levemente, a língua em toda a extensão de seu pescoço) o ponto C (também gostava quando estava de costas, que se passasse o peito por elas, principalmente quando perto de sua cintura) o ponto iC (tratava-se das partes internas da coxa, que nela eram super-sensíveis, gostava quando mordia de leve, descendo aos seus pés) sem contar nos pontos de praxe, nesses ela gostava que a língua se transformasse em um menino que brincasse durante muito tempo em um playground, balançando, escorregando, pulando, correndo em volta da caixa-de-areia. Ela adorava também, mesmo sabendo que talvez o seu companheiro não achasse tão interessante, bagunçar o penteado dele, puxar seus cabelos e, com força, direcionar a cabeça dele na direção para qual ela desejasse, mesmo que nesse movimento ela quase quebrasse o pescoço do rapaz.

No elevador todos estes pontos foram explorados, com amor e muita sensibilidade, ela, durante todo momento chorava baixo, mas não mais de preocupação, pois o que transbordava de seus olhos parecia prazer e amor.

Após alguns minutos de provocação, ela pediu para que eu a sentisse pelas costas. Ela forçava-me contra a parede do elevador, para que me sentisse por inteiro, a pressão que seu corpo exercia me dava um prazer enorme, sentia seus seios palpitarem com alegria e ritmo.

Eu não agüentava mais e precisava explodir, sentia que os músculos de Márcia estavam cada vez mais contraídos, apertando-me e me proporcionando um gosto que poucas vezes senti.

No momento da explosão em dueto minhas mãos, que antes pousavam em seus seios e os apertavam, foram involuntariamente para o seu pescoço, sentindo com os dedos o ar que passava rápido por sua garganta, o tato procurava não sabia o que, tatiavam, observavam, até que, após achar o quê, os dedos apertaram com toda a força que tinham.

Explodi dentro de Marcela, que explodiu comigo. E na medida que eu apertava o seu pescoço, sentia seus músculos me apertando cada vez mais. Ela se tornava virgem, cada vez mais casta. Meus olhos se tornaram loucos, vermelhos e raivosos. Não queria matar Márcia, mas queria matar Marcela. Era ela quem estava ali, gemendo e gozando comigo.

Como se expulsasse essa mulher de meus pensamentos, apertei cada vez mais seu pescoço, até que ela me expulsou de dentro de si. Não mais sentia passar por entre os dedos a corrente de ar. Quando me dei conta da realidade, Marcela estava deitada, com sangue em suas narinas, com a boca aberta e sem movimento algum.

– Tem alguém aí? – Era o síndico gritando pelo fosso do elevador. Eu podia perceber que a voz vinha de cima, como se ele tivesse gritando de uma das portas dos andares superiores ou da cobertura, pela porta de manutenção.

Resolvi não responder, pois, mesmo em desespero, tive um momento de razão e coloquei em prática o egoísmo intrínseco em todos os seres humanos: quem me ajudasse a sair dali logicamente iria perceber que eu assassinara Márcia. A não ser que eu pensasse rapidamente em alguma desculpa a fim de me absolver do que era lógico. "Assim que entrei no elevador vi Márcia já morta, fiquei tão desesperado que assim que fui travar o elevador, para que não fechasse a porta, esbarrei no botão de emergência". Achei de uma absurda falta de complexidade e resolvi simplesmente não responder.

– Acho que não tem ninguém lá embaixo. Chama a manutenção. Não estou conseguindo destravar. Coloca uma placa no térreo e liga o outro. Vou descer lá e tentar abrir a porta.

Assim que ouvi esta última informação tive a idéia de forçar a porta, afim de ver se estávamos em algum andar, torcendo para que não me aparecesse uma parede de concreto. Assim forcei até abrir meia porta. Percebi que estávamos entre o quarto e o quinto andar. Sorte que estávamos em um prédio antigo, em que não havia uma camada significativa de concreto entre os andares. Abaixo um vão de mais ou menos um metro para o quarto andar. Deitei-me e passei sem dificuldade. Puxei Márcia com muito cuidado, primeiro pelas pernas, até colocá-la nos meus ombros e subir até o meu andar, com cuidado, pé ante pé com medo de encontrar alguém nas escadas. Cheguei em meu apartamento após cinco minutos de subida.

Recebi resistência da porta, que teimava em não aceitar a chave, expulsando-a, como se não reconhecesse as preliminares, os códigos.

Em um momento de desespero, preocupando-me mais com um possível encontro de vizinhos, como com um "oi, vizinho, me acompanha em uma corrida", do que com a vida, ou morte, de Márcia; como um saco de arroz, depositei-a ao lado da porta, e com uma força que sabia de onde vinha, com um chute fiz abrir a porta; e com medo de que o barulho chamasse vizinhos logo peguei o pacote e entrei.

Depois de um chute no gato, que queria roçar nas minhas pernas, atrás de carinho, levei-a para a cama. Deite-a, nesse momento, com cuidado; procurei os sinais vitais. Eu não tinha a mínima idéia de onde procurá-los. Assim como via em filmes da Sessão da Tarde, peguei os pulsos, mas de tanto nervosismo eu sentia somente o palpitar de minhas próprias mãos, parecia haver um pequeno coração em cada ponta dos dedos. Fui ao pescoço, mas não sabia onde exatamente tinha que colocar os dedos para sentir o palpitar, coloquei-os onde havia as marcas vermelhas do sufocamento. Nada. Ainda atrás de algum sinal coloquei a mão em seu nariz para ver se sentia algum movimento de ar. Não podia sentir. Peguei um pequeno espelho que ficava na cabeceira de minha cama – estava sujo de cocaína – e o coloquei abaixo de suas narinas. Não embaçou.

Veio-me o choro. Não sabia exatamente o porquê, mas havia um fluxo que tinha que sair de mim naquele momento. Saiu de maneira lenta e ardente. E como última tentativa de busca por vida, deitei a cabeça no peito de Márcia, à procura de alguma música, mesmo que descompassada. Nada. Ali dormi um sono que durou horas, mas fora a sensação de piscar de olhos.

Acordei com a luz laranja queimando o rosto e com o barulho do telefone martelando os tímpanos com tanta força que parecia que eu estava dentro de uma britadeira. Acordei molhado, e logo, pelo cheiro, percebi se tratar de urina.

Logo lembrei-me do dia anterior, o elevador, o prazer, Márcia, morta. Virei-me várias vezes, procurei debaixo da cama, gritei à sua procura. Só me respondera um miado angustiado, febril, sem importância.

Levantei-me rapidamente, coloquei em alguns segundos as idéias no lugar e corri para o escritório, afim de interromper as marteladas do telefone.

– Alô, Alô, Alô. – Logo reconheci a voz da editora do site para o qual trabalhava. Voz áspera, constituída de nervos a flor da pele. Exitei em responder. Pensei até mesmo em imitar a voz de uma gravação: "Não estou no momento, favor deixar recado após o sinal". Logo desisti da idéia sabendo que não saberia imitar o sinal eletrônico.

– Pronto. – Respondi com a voz trêmula e rouca.

– Estou tentando falar contigo desde ontem à noite. Você desapareceu. O site está todo desatualizado. Porra, alô, alô, "alô", está me ouvindo? Um site precisa ter informação rápida, atualizada de hora em hora. O pessoal aqui está dependendo de alguns dos seus textos. Sua caixa está cheia de notícias, você não tem visto? Alô, alô, alô, "alô". Você tem uma hora pra me mandar pelo menos dois textos.

– Tudo bem! – Somente o que pude, ou consegui, responder, antes de desligar.

Rapidamente fui ao banheiro afim de jogar água fria no rosto e me limpar da urina. Logo estava com os cabelos também encharcados. Corria por todos os cômodos da casa. O gato teimava em se enroscar nas minhas pernas, e isso me fazia correr como um bêbado. Procurei por Márcia em cada canto, até chegar à janela, onde pude olhar para o céu, ficar cara-a-cara com a força da luz, e em meio ao movimento, às buzinas, às rizadas, às freadas, gritei e chorei feito um menino.

Senti durante alguns minutos o quente da luz, ouvi como nunca o barulho da cidade, deixei como nunca entrar pelas narinas o monóxido de carbono. Deu-me uma vontade incontrolável de pular, como um super-herói, sair voando por entre os prédios, ou sair correndo pelas ruas. Foi isso que fiz.

Desesperado descia as escadas, mas logo me recompus, engoli seco e parei de correr. Bati de frente com a família Pereira.

Joel estava ótimo, bela forma, contente, com um sorriso que não cabia em seu rosto. Subia ele, a mulher, que segurava com muito cuidado o seu primeiro neto – acredito que se chamava Ricardo, pois o tratavam como Riki -, atrás, com algumas sacolas – que pude perceber rapidamente se tratarem de lojas de roupas, pois eram elegantes, nas cores preta e dourado, bem espaçosas – vinham Ana com o marido e Cecília, a mais nova.

– Oh! Quem é vivo sempre sai para tomar sol. – Disse Joel fingindo uma surpresa italiana, afim de mostrar à família que se relacionava bem com os vizinhos, e que os tinha como amigos.

Pensei em me fazer de surdo, mas como estava a família inteira seria complicado depois arrumar alguma desculpa do tipo "estava com pressa" ou "era um caso de vida ou morte" – certamente teria que ouvir: "mas não tinha tempo para pelo menos cumprimentar?".

Decidi apenas acenar com a mão, evitando a voz rouca pelo grito que acabara de dar. Joel insistiu:

– Quem é vivo sempre sai para tomar sol.

– Graças a Deus. – Resolvi colocar Deus entre nós, pois havia mulheres e um bebê, e elas gostam que em alguns momentos do discurso seja lembrada a vontade Dele.

– Indo para uma caminhada matinal, ou melhor, vespertina?

Ia responder que não, mas aí teria que explicar. Para encurtar aquele longo cumprimento, que já estava se tornando uma entrevista, respondi que sim, descendo aos poucos os degraus.

Lembra-se do Ricardo? – Disse apontando para o genro.

Tive então certeza do nome do bebê. Rapidamente respondi que sim, mesmo sem me recordar do rapaz, estendendo a mão rapidamente para cumprimentá-lo, quando neste movimento percebi que minha mão direita estava suja de cocaína, e antes que o rapaz a visse, logo encolhi os dedos dizendo que estava pintando o apartamento e as mãos estavam sujas; depois percebendo que essa desculpa também explicaria as minhas roupas amassadas, sujas de pó branco. Disse que estava dando uma mão de látex na cozinha.

– Deve fazer um bom trabalho, porque não está sujo de tinta. – Disse arteiramente a esposa do funcionário público. Respondi somente com um meio sorriso.

Por último estava a filha mais nova, Cecília. Menina que chamava atenção pelas suas vestimentas, adorava as cores sem cores, sem vida. Tinha os cabelos negros, curtos, cortados de maneira desigual – acredito que ela mesma se aventurava com as tesouras e estiletes. – Tinha os olhos expressivos, também negros. Ela não trazia sacolas, e sim uma mochila machucada, com rasgos, remendos e silver tape. Olhou-me de baixo, e cumprimentou-me somente com um balançar de cabeça, respondi com a mesma educação.

– Vizinho, vou fazer uma comemoração para os mais chegados em meu apartamento hoje à noite. Boa música, boa comida e muita conversa. Quero que vá! – Enquanto falava eu podia imaginar a incrível festa, pessoas bem arrumadas, funcionários públicos, ternos, gravatas, óculos, sapatos bem engraxados, bigodes, muitos bigodes. Um apartamento muito bem decorado, predominantemente com a cor marrom. Como fundo musical Roberto Carlos e conversas sobre futebol ou fofocas sobre familiares.

Deixei-os sem responder se iria, somente com um "legal, tenho que ir, abraços"; restando aos outros um balançar de cabeça.

Saí do prédio sem cumprimentar o porteiro, mesmo percebendo que ele tinha me desejado um bom dia.

Andei pela Avenida Ipiranga sem saber as horas. Olhava para cima e o sol me gritava umas duas ou três. Márcia persistia em mim. As pernas me respondiam com uma energia que nunca tinham demonstrado. Comecei a andar sem destino. Andei pela Ipiranga e logo virei para a Avenida São Luís. Não respondia aos cumprimentos de comerciantes, e em marcha atlética logo entrei na Rua da Consolação, como que formando um triângulo, para logo depois entrar novamente na Avenida Ipiranga. A marcha atlética foi se transformando em cooper Me sentia exitado podia sentir o volume responder entre as pernas Corria Repeti este percurso umas quatro ou cinco vezes e mesmo sem mais fôlego para continuar as pernas pareciam elétricas Suado entrei três vezes no mesmo bar para pedir água Até que na terceira vez o copeiro me perguntou se eu estava sendo perseguido; como um detetive americano disse: "se não puder falar só pisca o olho, chamo a polícia". Achando aquela indagação absurda resolvi não responder e pedir mais água.

Quando passava pela quarta vez em frente ao meu edifício vi um homem parado em frente às escadas de ferro. Fumava e me olhava com atenção. Achei estranho, pois não era nada discreto, intimava-me e fumava o seu cigarro. Passei olhando firme, "se eu olhar também, sem pestanejar, com coragem, ele talvez olhe para outro lado, pare de me encarar". Não parou. Pé ante pé começou a se mover, cada vez mais rápido em minha direção. Resolvi uma vez mais percorrer o triângulo. Ainda na base deste resolvi despistar o observador. Na avenida São Luís avistei o letreiro quebrado e antigo de um teatro, com uma porta semi-aberta, enferrujada, somente como propaganda do espetáculo uma placa pequena, onde pude ler: "As mais gostosas – 5 real". O observador largara o cigarro e andava rápido na minha direção, desviando rapidamente dos passantes. Quando coloquei a mão por sobre a calça, na altura do bolso direito, percebi que tinha esquecido a carteira. Pesquisei nos outros bolsos e encontrei uma nota amassada de dez reais, logo passei as duas mãos no sentido horizontal para desamassá-la e entreguei a bilheteira, uma baiana gorda e baixa, cheia de espinhas na cara. "Tem trocado, senhor". "Não, está certo". Olhou-me assustada.

Entrei rapidamente. Mesmo sem saber o caminho, por instinto percorri dois corredores, procurando os caminhos mais largos. Por se tratar de um teatro pensei que todos os caminhos levassem a Roma, ou melhor, à platéia. Nos corredores encontrava mulheres feias, gordas, praticamente nuas, encostadas nas paredes cheias de mofo, um cheiro insuportável de cândida, além de montes de camisinhas jogadas nos cantos, principalmente na porta dos banheiros, de onde se podia ouvir gemidos e barulhos de bate-estaca.

Velhos conversavam com algumas das mulheres. Pareciam funcionários públicos em sua monotonia diária, alguns, percebia, tinham um certo grau de intimidade com as putas.

Cheguei ao final do corredor, onde havia uma cortina vinho, aveludada, com manchas escuras. No momento em que eu ia abri-las, já encaixando os dedos na fresta, um homem, de repente, saiu xingando "vagabunda!". Assustei-me e me encostei na parede para que o homem, em nervos, pudesse sair em paz. Assim que passou senti um cheiro forte de álcool.

Entrei com cuidado, pé ante pé, devagar e procurando alguma parede para me encostar e ir deslizando por ela. O ambiente estava escuro, fiquei algum momento parado, encostado à parede, afim de que a retina se acostumasse com a pequena claridade que vinha de um telão amarelado, acima do palco. Apresentavam um filme pornô. Dentro vi o espaço, um teatro tradicional, antigo, mal cuidado, com cadeiras escuras, de corino marrom, rasgado, muitos lugares, a frente um palco modificado, nele fora customizado uma plataforma que percorria toda a extensão da platéia, como essas que se colocam em shows de música, para que as estrelas possam percorrer com estilo e performance, ficando cada vez mais perto do público.

No vídeo logo reconheci algumas estrelas, por tê-las visto em algum e-mail recebido de colegas ou de alguns sites. Loiras, morenas, negras; e funcionários públicos e aposentados observavam. Os homens sentavam-se um longe do outro, respeitando o princípio básico dos banheiros masculinos – pelo menos dois a três metros de distância – ali, uma ou duas poltronas.

Nos cantos, encostadas nas paredes, prostitutas faziam a felicidade de alguns homens que podiam oferecer pouco mais que os cinco reais da entrada, recebiam todo tipo de sexo. Assim indo e vindo, os homens revezavam na utilização daquelas mulheres.

Acabei por esquecer do homem que entraria ali à minha procura. Quis me sentar para descansar as pernas que, naquele momento, reclamavam de tanto exercício. Sentei-me em uma das poltronas, respeitando três lugares de distância de um senhor, que dormia. Nos intervalos dos gemidos do vídeo, podia ouvir os roncos e pigarros do homem encolhido ao lado.

Achava muito interessante aquele processo quase industrial, entravam homens, sentavam-se sempre distantes um dos outros, as mulheres sabiam exatamente como chegar em determinados homens, alguns levantavam, outros voltavam do fundo do teatro, não se olhavam, e assim se dava o processo – não eram necessárias placas ou explicações.

Em um determinado momento, a luz que vinha do telão foi ficando gradualmente mais fraca, até desaparecer. Um som característico, de discos de vinil, rachado, com uma música da Madonna, veio preencher o ambiente: Like a virgin / Touched for the very first time / Like a virgin / When your heart beats (after first time, "With your heartbeat")

Next to mine. No palco luzes se acenderam no chão e somente um feixe acima iluminava, à maneira circense, a entrada de uma mulher.

Pequena como a sua vontade de estar ali, ela rebolava, se contorcia. Fez com que os homens que estavam quase adormecidos acordassem e se arrumassem em suas poltronas. Todos atentos. Alguns desencostavam de suas paredes e chegavam mais perto.

O senhor que estava ao meu lado acordou irritado; levantou-se e se encaminhou para a fileira de trás, onde pôde se acomodar e entrar novamente em seu sono.

Dos bastidores entregaram uma jarra de água para a dançarina, que rebolou, se insinuou para eles, virou a bunda para o público e despejou a água sobre suas nádegas. Tudo isso dava um efeito mal feito, mas os homens gostavam, e me deu a impressão que estavam a espera disso, como o grand finale de um ritual exótico. Acredito que a conheciam, e aquele gesto fazia parte do contrato entre eles.

Toda molhada, ela caminhava com um glamour dolorido por sobre a plataforma. Rebolando e se oferecendo para os homens que estavam nas cadeiras mais próximas. Estes levantavam para passar as mãos nela, o que já fora, aparentemente, também cláusula contratual.

Assim que ela se apresentou e fez o combinado, saiu de cena, e junto com ela, em direção ao palco, alguns homens, que depois fui entender, ficavam logo à espera, atrás, para combinarem o programa.

E assim se sucedia, a cada apresentação de mulheres e trechos de filmes. A cada intervalo de vídeo uma voz de homem afeminada anunciava a entrada de um novo produto; sempre com o mesmo fundo musical:

– Agora a loira [You're so fine and you're mine / Make me strong, yeah you make me bold], deliciosa [Oh your love thawed out], Marcela! [Yeah, your love thawed out / What was scared and cold].

Era ela... maldita Marcela.

Junto com sua entrada no palco, ao lado, pelas cortinas aveludadas, por onde eu havia entrado, abriam caminho as mãos aneladas do homem observador, que instintivamente fez o mesmo percurso que eu, procurando uma parede e aguardando a retina se acostumar. Tanto aguardou que deu tempo de observarmos a dança sensual de Marcela.

Ela estava magnífica. Entrou de negro, cabelos ondulados, mais compridos do que de costume. Parecia mais velha também. O branco de sua pele contrastava com o negro da cinta, e essa mistura dava-me excitação.

Em alguns momentos olhava para o homem encostado à parede, que, acredito, também, esquecera de tudo durante os poucos minutos que durou a dança de Marcela.

Poderia dizer até que aquele momento foi atemporal, que durara alguns segundos, e ao mesmo tempo a eternidade. Ela vinha com um objeto vermelho nas mãos, uma fita ou um pedaço de corda. E fazia com que esse objeto viajasse e passasse por cada centímetro de seu corpo: no pescoço, nos seios, nos braços, na barriga, nas coxas e entre elas.

Fingindo-se em êxtase deitou-se no chão, e se debatia como se estivesse sendo possuída à força. Batia nas nádegas com o objeto. Pude perceber que para esse movimento aplicava muita força, pois havia vergões vermelhos em algumas partes do seu corpo.

A cada batida em suas nádegas meus músculos se tornavam mais enrijecidos, minhas mãos se fechavam e acompanhavam com força e vontade o movimento de alavanca. Podia bater em Marcela durante horas, e mordê-la durante horas, arrancar pedaços de suas nádegas, cuspi-los e arrancar mais. Entrar em Marcela com violência, machucando-a, ferindo-a profundamente.

Em um piscar de olhos Marcela transformara-se em Márcia. Lembrei repentinamente da mulher que dormira, morta, em meu apartamento, deixada na cama, de ter acordado e não tê-la encontrado mais, do grito, do encontro com o vizinho, das voltas pelo quarteirão, do homem ao lado – mais uma vez olhei para ele. Parecia hipnotizado. Veio também a idéia de aproveitar esse transe do outro e atacá-lo, deixá-lo ferido ou até mesmo morto. Com todo aquele barulho e com os homens loucos em Marcela nada perceberiam. Seria um maluco que fora morto por alguém, nunca se saberia quem, em um teatro trash do centro de São Paulo. Caso logo esquecido. Quem sabe essa notícia chegaria até mim; a reformularia com muito carinho... E Márcia.

Levantei-me e fui em direção ao homem. Inicialmente eu estava com o rosto fechado, com cara de felino, com olhos direcionados na presa, ia a passos largos; conforme andava perdia toda a coragem, pois começava a perceber que o homem não era pequeno, vestia preto e isso o deixava maior, com os cabelos mal cortados, orelhas grandes e mãos maiores ainda. Pude perceber suas botas com biqueira de aço. Fui cada vez mais devagar, com a cabeça baixa, olhos medrosos, passos curtos e tremidos, mãos abertas em posição de defesa. Passei lentamente na sua frente, à dois palmos de distância, como uma estátua ele só soube olhar para Marcela, contemplando-a, querendo-a.

Esperava que me pegasse pelo colarinho, me levasse para o fundo do teatro e lá acabasse com minha existência. Aí eu que seria o homem maluco que fora morto por alguém, nunca se saberia quem, em um teatro trash do centro de São Paulo. Caso logo esquecido... E Márcia.

Saí rapidamente do teatro, deixando a bilheteira novamente assustada. Sem olhar para trás corria movido pelo desespero de alguém já tê-la encontrado. O meu celular já não via há algumas horas; cheguei a procurá-lo nos bolsos. Corri pela avenida São Luís, virando como moto para a rua da Consolação. Homens, mulheres e principalmente senhoras assustavam-se com a corrida, verificando suas carteiras e segurando suas bolsas à altura do peito.

Passava rasante. Sem medo de esbarrar em alguém. Todo esse percurso fiz em poucos minutos. Subi as escadas de ferro rapidamente, pois davam um acesso mais rápido aos elevadores. Assim que cheguei para pegá-los, vi a pequena placa "quebrado" e na espera do outro já cinco senhoras com sacolas e poodles; conhecia algumas delas. Uma era a minha vizinha de baixo, que um dia me perguntara se eu dava festas todos os dias. Sem dúvida que durante todo o percurso até o seu andar me perguntaria se a festa de ontem fora boa. Resolvi ir de escadas, torcendo para que não encontrasse ninguém, ou se encontrasse que fosse um homem, menos Joel, assim bastaria um balançar de cabeça ou até mesmo um grunhido como boa tarde, sem precisar citar Deus ou comentar sobre o tempo.

Subi como um raio. Márcia havia de estar em algum lugar. Pensei em ligar para seu consultório. Assim que cheguei, mesmo sem ter avistado o gato, o que já me parecia estranho, fui direto ao meu escritório.

– Alô, Márcia. Como pode!

– Não, é Renata.

– A Márcia está aí?

– Não.

– Como não. Ela não foi pra aí hoje?

– Não.

– Caralho. Sua vagabunda, eu sei que ela está aí. Deixa eu falar com ela.

– Seu louco. Eu já disse que ela não está.

– Se você não me deixar falar com ela agora eu vou até aí e dou um jeito de encontrá-la, sua desgraçada.

– Não, não vem até aqui, seu maluco. Quero que me deixe em paz, se não eu ligo para o Cláudio...

– Aproveita e manda esse cara para o inferno...

– Aonde ela está? Diz!

– Ela, de madrugada, chegou em minha casa chorando, pediu para que eu a acompanhasse em sua casa para que pegasse algumas coisas, pois tinha que ir viajar. Não me explicou o motivo. O que você fez com ela, seu cachorro?

Deliguei.

Tentava colocar as idéias no lugar. Ela deve ter só desmaiado, depois de ter acordado deve ter ficado com medo e foi embora. Tive pena dela.

Tentei ligar para o seu celular, mas estava desligado. Deixei a seguinte mensagem: "Márcia, amor, não sei o que está acontecendo comigo. Me desculpe.". Poderia ter deixado pelo menos cinco horas de explicações e desculpas, mas só consegui dizer isso.

O gato havia desaparecido e se fazia um silêncio ensurdecedor. Saí pelo apartamento chamando pelo felino. Nada. Pensei que tivesse fugido em algum momento em que deixei a porta aberta. Fazia-me falta o animal tentando chamar a atenção, atrás de carinho ou de comida. Lembrei-me da comida dele, fui até a cozinha e lá havia dois potes vazios. A cozinha estava vazia. Era fim de tarde. O ar estava mais alaranjado. O cheiro estava alaranjado. Com a luzes apagadas deitei em meu sofá e fechei os olhos. Respirava fundo. O silêncio me machucava; até que não agüentei mais e fui até a área, abri rapidamente a porta que me dava a rua. A sensação foi de alívio. O silêncio fora vencido por um espectro indecifrável de barulho, de todos os tipos, alturas, intensidades, tons, notas. Os cheiros também limpavam o ar. Olhava para baixo, para cima, para baixo, para cima, para a direita, para a esquerda, para a direita, para a esquerda; e cada lado me proporcionava uma sensação frenética distinta. Resolvi dormir ali.

Cochilei durante alguns minutos. Não sonhei com nada. Acredito que o cérebro estava tão ocupado em diferenciar sons, cheiros que não teve tempo de trabalhar um sonho. Foi bom não ter sonhado. Acordei pensando ouvir o gato, mas fora uma sirene. Fumei um cigarro, outro e outro. Lembrei-me da voz: "Estou tentando falar contigo desde ontem. Você desapareceu. O site está todo desatualizado. Porra, alô, alô, "alô", está me ouvindo? Um site precisa ter informação rápida, atualizada de hora em hora. O pessoal aqui está dependendo de alguns dos seus textos. Sua caixa está cheia de notícias, você não tem visto? Alô, alô, alô, "alô". Você tem uma hora pra me mandar pelo menos dois textos".

Dois textos. Mesmo tendo passado mais de uma hora resolvi trabalhar somente em dois textos, pelo menos assim ela me deixaria em paz durante a noite.

Arrumei-me, ou melhor, desarrumei-me para trabalhar. Só de cuecas e na companhia de um café frio sentei-me em frente ao computador e verifiquei os e-mails. Havia em minha caixa mais ou menos trinta mensagens do jornal. Comecei a abrir os primeiros, e em todos estes havia gritos de procura com letras em caixa alta "AONDE VOCÊ ESTÁ?" "PRECISO QUE VEJA ESSE TEXTO ATÉ O MEIO-DIA", "VEJA ESSAS AGORA!", "VOCÊ SUMIU!". No primeiro havia pedidos razoavelmente educados. Para os últimos gritos de desespero e de quase demissão: "ESTOU MANDANDO AS REPORTAGENS PARA OUTROS, ASSIM NÃO DÁ!".

Realmente não dava. Ia abrindo os e-mails e olhando os nomes dos arquivos anexados. Iria trabalhar rapidamente em duas reportagens. Procurava algum título que me chamasse a atenção, quem sabe um bom título me levasse a um texto que não deixasse o trabalho tão desgastante. Também observava o tamanho dos arquivos. Então, um bom título e pouco texto para a leitura.

"Chacina em São Paulo, ordem de traficante parte de prisão no Interior", 34Kb, e "Grave acidente na Marginal do Tietê, vítima fatal um homem e uma criança", 19Kb. Ambos me chamaram a atenção.

O primeiro certamente foi escolhido pela curiosidade de saber onde teria acontecido o crime. O crime em si não me chamou a atenção, até porque costumava assistir aos noticiários da TV e estava acostumado a ouvir a palavra chacina. Assim que li Rua 7 de abril veio-me um interessante arrepio, como se estivesse no local do crime; praticamente estava, pois bastava-me andar alguns metros e poderia, se quisesse, ver as manchas de sangue na calçada. Por pouco não fui. Tive preguiça de colocar calças.

Esta reportagem falava sobre a morte de uma família de invasores (cadastrados do governo em um plano de moradia para a revitalização do centro de São Paulo), que tinham ocupado um antigo prédio da rua 7 de abril. Pai, 58 anos, mãe, 51 anos, filhos, 35, 29, 27, 24, 19, 14, 11, 11, 8.

*

Um homem entrou no prédio durante a madrugada, já sabendo o apartamento onde deveria procurar e quem deveria achar, Jonanderson Miguel Pires, o Pitoco, 19 anos, um dos filhos do sr. Mário e da sra. Cleusa Pires.

Pitoco fornecia algumas drogas baratas, como maconha e crack, nas imediações do centro, em prostíbulos, em antigos teatros e bingos que ainda funcionavam, bares e comércio. E estava em dívida com um dos grandes fornecedores da cidade, o traficante Azeitona, preso há dois anos e hoje na Penitenciária de Presidente Bernardes, de onde coordenava toda a logística das drogas em grande parte da cidade de São Paulo e também, de vez em quando, decidia sobre a vida de alguns devedores. Este foi o caso de Pitoco. Julgado à revelia; condenado à morte.

Bastou alguns telefonemas para dar as coordenadas do condenado para o carrasco, que deveria cumprir a tarefa com mestria, e sair de cena. A sangue frio, sem saber quem era realmente Pitoco, sozinho, atirara em onze pessoas. Segundo testemunhas, após o trabalho terminado, o assassino saiu em corrida, como louco, em gritos, pela velha portaria.

*

Após uma leitura atenta, que movida por uma curiosidade mórbida foi se tornando de desinteressante, obstinada, produzi a seguinte chamada:

"Carrasco, mandado por preso que coordenava envio de drogas e assassinatos, mata onze em prédio invadido no centro de São Paulo. Moradores têm medo de fazer retrato falado, e polícia não tem pistas do assassino."

Esta notícia realmente mexera comigo, não pelo número de mortos, nem mesmo por serem da mesma família, mas sim pela proximidade. Como desculpas a mim mesmo, decidi dar uma volta pelas redondezas. Sabia que iria direto, sem escalas, para a rua 7 de abril. Queria pelo menos passar em frente ao prédio. Sabia que muito próximo a numeração do local havia um bar – possivelmente tivesse sido ponto de venda de Pitoco – onde eu poderia parar para tomar uma coca-cola e contemplar por alguns minutos a fachada do edifício. Ainda em casa tentava me lembrar qual seria o prédio, pois conhecia muito bem aquela rua, havia muitas agências de bancos, por ventura a minha estava lá. Uma agência do Banco do Brasil. Podia aproveitar e sacar alguns trocados.

Como já estava bem escuro, e eu gostava dessa sensação, fui tateando pela cozinha, passei pelo interruptor, sem importuná-lo; pareceu que algo me enroscara nas pernas, pensei ser o gato. Era apenas um pano de chão que há meses confortava uma infiltração em uma das paredes.

Mesmo sentindo que estava esfriando, coloquei somente um short, chinelos e saí. Pela falta de banho e pelo embaraçado dos cabelos de fato eu poderia ser confundido com um daqueles moradores. Isso me preocupou. Mas mesmo assim saí, e não por tino jornalístico – "Irei me vestir como um dos moradores, entrar no prédio, tentar me infiltrar naquele meio, se possível até mesmo me passar como morador de rua, pedir abrigo, após ganhar confiança conversar com uma das testemunhas dos assassinatos, colher informações em busca da mais pura verdade. E enfim chegar até o assassino". – Não, somente para saciar uma vontade que não sabia de onde vinha.

Abri a porta com cuidado, para que o gato não saísse. Não saiu. Tranquei bem a porta. Dei duas voltas nas chaves. Elevador quebrado. O outro lá embaixo. Pelas escadas dei de cara com Madonna, a cadela de Cármen Oliveira Matias, artista plástica decadente. Uma senhora que já expora em grandes centros, no Brasil e fora dele – Interessante que depois que lhe disse, não me lembro há quanto tempo, que era jornalista, começou a me tratar de maneira muito agradável, convidando-me, sempre que me encontrava, para ver os seus trabalhos de pintura e instalações. Acredito que esperava uma nota de jornal sobre o seu magnífico trabalho, assim ela mesma o adjetivava. Certa vez fui, pensei que não estivesse perdendo tempo em ver uma obra de arte, entrei em seu vasto apartamento, um dos maiores do edifício, pois comprara o vizinho e os juntara, deixando um deles como seu espaço de trabalho. Arrependi-me no momento em que vi o seu principal trabalho, chamado "O Homem Nu". Tratava-se de um quadro de mais ou menos quarenta centímetros por dois metros, na vertical, todo negro e com somente uma mancha vermelha no que seria a altura da cabeça, se levássemos em consideração que aquilo representaria um homem nu. Disse-me: "magnífico, não?", só pude responder: "É". Depois desse dia nunca mais fui ao seu ateliê, mesmo sendo convidado pelo menos uma vez por semana. Pior do que isso, comecei a perceber que a arte não existe, ou tudo é arte. Assim que catarrava na pia, logo pela manhã, via que fazia arte, e observava o movimento da arte em direção ao ralo. Comecei a ver arte em tudo, e a que mais gostava era, sem dúvida, as formas dos vapores no banho. Isso sim era uma bela arte.

Peguei a cadela pela coleira, ela já me conhecia, e até gostava de mim, sempre que me via vinha lamber, e só parava quando Cármen vinha buscá-la. Acredito que Madonna via em mim um pedaço de carne, sabor gato.

– Oi, meu jornalista preferido, tudo bem? – Disse-me Cármen com um olhar aparentemente sincero.

– Tudo bem, Cármen, e você?

– Eu e Madonna estamos bem, não é Dona? – Respondeu-me com uma pergunta para a cadela, deixando tempo suficiente para que ela respondesse. Fingi engraçadinho e dei um sorriso reto.

Vai para onde? – Perguntou-me com tom de esposa. Fiquei profundamente irritado com tal indagação, e para não mandá-la para o inferno disse um seco "ali".

Ela, percebendo a pergunta sem hora, disse "legal, vou levar essas sacolas com matéria-prima para cima, tenho muito trabalho a fazer, geralmente faço arte à noite – senti, no momento, um olhar convidativo – Quando estiver com um tempinho suba até o meu apartamento. Um dos elevadores está quebrado".

– Vou sim. – Querendo dizer o contrário.

Sexualmente Cármen não era de se jogar fora, tinha um quadril muito bem feito, parecia descendente de espanhola, nariz robusto, pernas grossas, seios não tão fartos, barriga saliente. O que verdadeiramente me chamava atenção era sua maneira toda especial de rebolar, como tinha o quadril bastante métrico, e forçava um rebolar, ficava com movimentos exagerados, tornava-se sexy e engraçada ao mesmo tempo.

– Adeus.

– Tchauzinho.

Desci e dessa vez resolvi cumprimentar o porteiro, que deve ter me considerado um maluco. Sem me lembrar de seu nome o contato foi somente com um "boa noite", mas ele se lembrou do meu.

A noite estava gostosa e diferente dos dias normais. Ouvia um barulho atípico; conhecia todos; havia uma pequena obra nas calçadas da agência do Bradesco, em frente ao Edifício. Caminhei com segurança, passando por um grupo de meninos maltrapilhos, que cheiravam cola sentados em frente a mesma agência bancária. Tive pena e pensei em pagar um cachorro quente para cada um deles, pois sabia que não cheiravam para ficar loucos e amedrontar os passantes, mas sim para enganar o estômago da fome, o susto era a necessidade de serem percebidos.

Passei devagar por eles, um até me intimou: "que foi, tio. Dá um trocado aí pra gente comprar cola". Dei uma nota de dois reais. E tive a coragem de dizer "pela sua sinceridade". Realmente impressionou-me a sinceridade do rapaz, aposto que se ele tivesse dito que era para comprar comida eu não teria dado um centavo.

A noite estava tão agradável que decidi alongar o caminho – teimava em me enganar – até a rua 7 de abril passando principalmente pela praça da República e pelo Largo da Pólvora. Ambos os ambientes eram freqüentados por pessoas de uma desagradável amabilidade. Gostava de ver as putas e os mendigos. Todos sempre juntos, e na realidade mendicando, pedindo trocados. Certa vez por curiosidade perguntei a uma prostituta gorda e baixa quanto tinha que pagar pela diversão. Respondeu-me: dez reais. Sei que um prato feito no centro da cidade custa em média seis reais, mais um copo de suco ficaria em sete e cinqüenta. Levando em consideração que um mendigo geralmente recebe alguns restos de comida – alguns têm já um vasilhame próprio para isso, como potes de sorvete de dois litros -, duas vezes por dia, podemos dizer que comeriam a quantidade de dois pfs, mais o suco, isso daria quinze reais, mais alguns trocados que recebem no dia, terminariam com o saldo virtual de vinte reais. E eu duvido que uma prostituta daquelas faça mais de dois programas por dia.

Mas algumas prostitutas eram bonitas, meninas, sempre em grupos de duas ou três, corpos bem feitos, com exagero de maquiagem.

Qualquer mulher que parasse em uma das praças naquele horário seria certamente confundida com uma puta.

Eu gostava de ver algumas confusões, que geralmente acabavam em bolsadas e xingamentos "não sou puta", "vai se foder", "filho da puta". Sentava-me em um dos bancos da praça da República e de lá observava. As putas não gostavam que outras mulheres ficassem paradas esperando os namorados ou amantes. Tantos lugares para esperar, bocas de metrô sempre são uma boa escolha em ocasiões como esta. Mas as mulheres de moral insistiam, como se quisessem provar a honradez que tinham, um enfrentamento direto àquelas que não tinham caráter, e que não eram católicas.

Todas as vezes que eu passava pelo Largo da Pólvora, após observar o ambiente ia direto para a igreja, ver os bonitos vitrais, os mosaicos, as imagens de santos. Gostava de ficar algum tempo em frente a imagem de Jesus, após a paixão, nos braços de Maria. Aqueles ferimentos me davam a sensação de purificação, e assim que me sentia purificado saía. Ficava no máximo trinta minutos andando de lado a lado na igreja, não conseguia ficar mais, as imagens eram belas, mas o silêncio me machucava.

Saí da igreja e retomei o caminho afim de entrar na rua 7 de abril. Assim que a avistei, senti-me esquisito. A rua estava mais escura do que de costume, algumas luzes haviam sido quebradas. Logo tentei, como bom jornalista, juntar os fatos, mas não sou bom; simplesmente concluí que estavam queimadas, talvez por muito tempo de uso.

Passei pelas principais agências de bancos, Banco do Brasil, Unibanco, Itaú, Santander, Real. Adiante, a rua se tornou mais sinistra, muitos bares pequenos, mesas de sinuca, hotéis baratos, mais prostitutas nas portas destes, e muitos prédios antigos. Conferi o número. Não tive coragem de entrar. Como eu tinha imaginado, ficava bem em frente a um bar. Neste entrei e pedi, como o planejado, uma coca-cola. Mesmo de shorts e chinelos eu não parecia com as pessoas dali, e todos também percebiam isso, pois tornei-me o centro das atenções e comentários. Havia muitos nordestinos e a todo momento passavam na rua carrinhos lotados e seus respectivos catadores de papelão.

Tomava a coca-cola e coragem para entrar no prédio. Como um bom jornalista resolvi me infiltrar naquela gente para obter informação sobre o acontecido.

– Opá. Beleza? – Tentava imitar a maneira de falarem.

– Você é polícia ou o que? Aqui ninguém viu nada e não sabe de nada. Se eu fosse você ia embora. – Respondeu-me quem me pareceu ser o dono do estabelecimento, colocando todo o meu plano na descarga. Naquele momento percebi que poderia ser tudo, até polícia, menos um bom jornalista.

Não respondi, continuei tomando a minha coca-cola e observando o prédio. Antigo, com toda a fachada ferida, não havia mais cor, todo preto, com pedaços de laje prestes a cair em quem passava pela calçada. Todas as janelas abertas, estava calor, lâmpadas das cores mais variadas iluminavam cada apartamento, um vermelho, outro azul, outro verde, outro amarelo, outro roxo, e alguns brancos. Dois homens faziam a vez de porteiros, magros, mas fortes, baixos e vestidos com bermudas e regatas. Pensei em o que poderia dizer a eles assim que fosse entrar no prédio: "irei visitar uma avó", a mais usual – as avós geralmente aparecem em noventa por cento das desculpas, muitas nelas são mortas descaradamente e, às vezes, com requinte de crueldade -, ou "vim pegar um bagulho", parecia a mais razoável, mas cheia de preconceito, pois vi crianças, principalmente aquela que há minutos tinha me pedido dinheiro para comprar cola, entrando e saindo, homens que tinham cara de trabalhadores, vindo com suas marmitas vazias debaixo do braço.

Aproveitando do gás do refrigerante que, em uma generosa golada desceu rasgando a garganta, fui em frente, ao chegar próximo à portaria, já percebendo que os dois homens não tiravam os olhos de mim, decidi dar como pretexto um intermediário: "vim pegar um bagulho com a minha avó", foi o que consegui arrumar.

De fato sabiam que ali não se vendia bagulho algum e que eu não poderia, com essa minha cara de burguês, ter naquele prédio, ou melhor, naquelas condições, uma avó. Os dois se olharam e esboçaram uma risada sem jeito, senti-me constrangido e entrei.

Já no térreo via algumas mulheres conversando alto, negras que falavam sobre o marido de uma delas:

– Aí eu disse, filha da puta, eu mato você e essa desgraçada, vem ciscar no meu terreiro, corto a garganta dela.

Mais adiante uma cena que me deixou intrigado, uma velha sentada em uma cadeira castigada, com uma almofada para proteger de alguns pregos; contava para três crianças uma história. Aquela cena conseguiu me comover. Sem que pudessem perceber fiquei ali, encostado, fingindo acender um cigarro, afim de saber do assunto:

– Então as vizinhas brigavam pelo ovo, a galinha era de uma, mas essa galinha tinha botado no quintal da outra, que dava alimento pra galinha. De quem era o ovo? – Nesse momento as crianças diziam que era de ambas, e surgiam as mais inesperadas e originais soluções "podia pega o ovo e dá a gema pra uma e a clara pra outra", mas logo outra contra-argumentava "mas a gema é mais gostoso", logo vinham mais soluções "podia então fazer um omelete, fritá e as duas comê", todos concordavam. A velha dava gargalhadas. Gostei muito da última solução para o problema, um garoto disse: "era só mata a galinha e fazê ela assada, mata a fome de todo mundo". Acredito que a minha solução seria a mesma, e o ovo seria cozido dentro da galinha, no lugar de onde nunca devia ter saído.

Infelizmente não pude ficar de tocaia para ouvir o final da história, pois vi que os dois homens que estavam de guarda na portaria vinham em minha direção.

– Oh, rapaz, o que tu quer aqui?

Rapidamente tentei construir algo mais convincente do que a história sobre minha avó: "é que estou desempregado e preciso de um lugar pra ficar". Por sorte estava sem carteira ou qualquer pertence que provasse não ser um sem teto. "Estou lisinho, não tenho amigos por aqui". Percebi que o meu jeito de falar, as concordâncias davam uma certa estranheza e principalmente desconfiança aos guardas. "olha aqui, todo mundo aqui é do bem, gente trabalhadeira, e não tamo aqui porque escolhemo. Se quiser dormir aqui essa noite tu fique à vontade".

Pensei em ficar, mas logo desisti da idéia, tive medo de que algo me acontecesse, principalmente pelo fato de saber que na madrugada passada pessoas tinham morrido ali.

Afim de sondar o terreno fiz uma pergunta inicial: "vocês ficam de guarda a noite inteira?". Minha pergunta, e o tom burguês, fez com que os homens se defendessem: "ninguém é guarda aqui não, tá pensando o que? A gente fica aqui, cada dia é vez de um, porque os homem da polícia veio aqui com um documento mandando a gente saí. E a gente não sai, nem morto. Tanto teto aqui e tanta gente sem proteção. O senhor não concorda?". Engoli seco e respondi com a mais honesta culpa: "sim!".

Com a promessa de que iria voltar saí com a desculpa de arrumar algo para comer. Ainda na portaria ouvi a voz rouca do segundo homem, que até então não tinha dito palavra.

– Oh, senhor moço, minha mulé e as criança estão comendo. Olho pro cê e vejo que é boa gente. Quer comer um prato? – Senti bondade naquele homem, como há tempos não sentia dos mais íntimos amigos.

– Deve ter arroz, feijão e farinha, se isso lhe mata a fome se achegue.

Segui o homem com um sentimento misto de medo e coragem, observando cada centímetro daqueles corredores, tentando observar por entre as portas de cortinas, vendo os vultos que se amontoavam em cada câmara, ouvindo choro de bebê, choro de mulher, vendo muitas, muitas crianças, que me olhavam com desconfiança – sabiam que eu não pertencia àquele mundo – subimos escadas de madeira, que a cada degrau dava sinal de seu óbito. Subimos dois grandes lances.

– Aqui mais pra cima é mais jeitoso, o senhor não repara não. Maria faz uma comida muito boa. De vez em quando vem alguma gente bonita aqui trazer cesta básica. O senhor sabe como é, o que se ganha com biscate dá só para o feijão. O que o senhor faz?

Aquela pergunta me aterrorizou, "o que o senhor faz?", pensei: "Meu Deus, o que faço?". Esse verbo de ação veio como um trovão a mente, pensei em movimento, logo veio o quadro vertical de Cármen, negro e com sua mancha vermelha à altura da cabeça.

– Faço artesanato. Pulseirinhas. Colarzinhos. Anéis e até estatuetas – ao invés de esculturas, porque, afinal, quem faz artesanato não faz esculturas.

– Que bonito! – O homem gostou e achou diferente. – Nunca falei com um artista. – Julgava-me um artista. Normal. Se Cármen também o era.

Subimos já amigos. E lá nos esperava dona Maria, Belquior e Madalena, mulher e filhos de seu Tito – a quem, por falta de curiosidade, não perguntei o nome de batismo.

Apresentou-me errando a pronúncia de meu nome, achei bastante singular, pois nunca ninguém tinha dado tanta abertura às vogais daquela maneira. Não o corrigi. Conheci mulher e filhos.

As crianças de Tito estavam muito assustadas. Comiam com os olhos arregalados. Aquilo não poderia ser somente fome. Bem, eu não sabia, nunca tinha passado fome.

Dona Maria, educada a sua maneira, forçando um pouco o comportamento – definitivamente eu não tinha cara de sem teto – serviu-me em meio a desculpas.

– O senhor desculpa a gente.

– Não precisa pedir desculpa, mulé! – Disse Tito fingindo nervosismo.

– A gente não tem uma casa bonita, mas a comida é muito boa. – Disse Maria cheia de orgulho.

O prato onde tinha me servido era de alumínio, bastante judiado e com algumas marcas que eu não conseguia entender muito suas origens. Com vontade deitou sobre ele duas conchas de feijão, cuja cor era das mais saborosas, um marrom claro, chamativo, cheiroso. Logo depois três espumadeiras de arroz que pareciam ser cozidos um a um. Em cima alguns pedaços de carne, poucos, e muita cenoura e batatas, derramando generosamente algumas colheres de caldo, vermelho como sangue – aquele prato ganhava vida.

Há mais ou menos cinco anos eu não tinha à minha disposição um prato de comida como aquele. Vivia de pizzas amanhecidas, esfiras tortas, x-burger, x-bacon, x-salada (sem salada), x-tudo, x-frango, x-calabresa, lasanha pronta, feijoada pronta, marmitex de comida do dia anterior, sucos de caixinha, café amanhecido, pão francês...

Fez-se uma festa dentro de mim. A comida fez de minha boca um playground, e os feijões e arroz eram crianças que há muito tempo não brincavam. A língua era um escorregador e toda a alegria cobria o ambiente de um prazer imenso. Cada grão de arroz, batata, de cenoura eram fogos de artifício em festa de São João. Explodiam.

Fiquei alguns segundos sendo apenas a boca. A língua. Os dentes. A garganta e o estômago.

– Gostou, moço? – Perguntou-me Maria já sabendo a resposta, com os olhos brilhantes, orgulhosa.

– Gostoso! – Respondi propositalmente de maneira seca.

– Calma, moleque! – Tito disse áspero para um dos filhos, que comia em velocidade exagerada.

Com uma curiosidade mórbida perguntei o que havia com os meninos.

– Estão assustados, ontem morreu um amiguinho deles, Tiquinho, a gente chamava ele assim porque era mesmo um tiquinho de gente, bem pequenininho. Andava por aí, sem rumo. Os pai até tentava dá educação, mas sabe como é, moço, essa vida desengana. Foi toda a famia, pai, mãe, tudo os filho, acho que uns dez. Aqui no apartamento do lado. Eu num podia tá falando. Veio orde aqui pra gente ficá quieto, mas acho que o senhor é homem bom. Ontem mesmo esse menino estava pra lá e pra cá com um apito. Todo mundo dando pito, e ele num parava. A gente até reclamou com a mãe dele, sabe, aí saiu apitando pela rua. Dizem que até ralharam com ele aqui no prédio torto e saíram com ele de lá. E um dos irmãos foi morto lá na São Luís.

A partir daí a comida não passava da garganta. E o silêncio de instaurou no cubículo onde jantávamos. Veio-me uma ânsia insuportável, a comida que estava fazendo festa no estômago fez-se tristeza e transformara-se em lixo. Levantei-me rapidamente; com a boca de bueiro perguntei pelo banheiro. Indicou-me somente com o braço. Corri e chorei. Não sobrara um grão de arroz no estômago. O menino que brincava no playground quebrou as duas pernas e se fez chuva na noite de São João.

Sem jeito despedi-me da família. Agradeci à dona Maria pelo saboroso jantar e saí rapidamente, deixando para trás indagações, olhos de espanto e assustados.

Descia as escadas desesperado e querendo logo a rua. Um lance, dois lances, os rangidos que acompanhavam. Após descer o último lance de escadas vi ao fundo a luz amarela da calçada. As luzes coloridas e alegres feriam meus olhos, estavam imensamente mais intensas e quentes. Sentia queimar-me o rosto. Passava pelos apartamentos e as cortinas se agitavam com um vento inexistente. Dentro de cada câmara havia seres que gritavam, feixes de luz que mostravam sombras assustadoras. Homens selvagens machucando mulheres, e os gritos delas me ensurdeciam, putas com rostos deformados, sem um dos seios, sem uma das pernas ou braços, despindo-se e se oferecendo para mim. Vi de costas um menino que tocava flauta. Eu gritava com ele, agudo, agudo... som de motos frenéticas, pessoas dizendo "bom dia, vizinho", juízes, popeye, quadros, "tchauzinho, meu jornalista preferido". Apito.

Saí transtornado e tropeçando em um grupo de pessoas que estavam na portaria do edifício. Sem pedir desculpas andava pelas ruas e levava comigo quem estivesse na minha frente. Via minhas mãos sujas de cocaína, batia fortemente uma na outra, afim de limpá-las, e cada vez ficavam mais brancas. Lambia-as. Nada adiantava. Elas sangravam e doíam.

Desesperadamente queria o meu apartamento. Não sei como cheguei à portaria do meu prédio. Lembro-me de estar subindo as escadas, ter passado por pessoas que não tinham rosto, ter gritado. Não sabia qual era o meu andar, subia e descia escadas. Até escorregar em algo e acordar com barulho de porta de elevador, na porta do meu apartamento, com a boca seca e machucada.

– Ei, vizinho. Tudo bem? Acorda. Chame um médico, filha. O que ele tem, pai? Não sei. Deve ter chegado bêbado. Que caderno é esse. Não mexa, deve ser dele. Joga por baixo da porta.– Era a voz do maldito Joel. Antes mesmo de reconhecê-lo em fisionomia empurrei-o e gritei para que saísse. Sem forças levantei-me e tentei achar o buraco da fechadura.

A única palavra que eu sabia pronunciar era "sai". Tinha esquecido todo o vasto vocabulário de quem usava todos os dias o dicionário. Joel com o semblante assustado ainda disse: "você está maluco, precisa de ajuda". Já dentro de meu apartamento mais nada ouvi.

Olhei para o relógio e ele sussurrava sete e quinze. Olhei para os potes vazios do gato. Nenhum miado. Eu estava sujo e precisava urgentemente de água. Limpar-me por dentro e por fora.

A roupa tirei com violência, pois trazia-me o cheiro daquele menino. Não a deixei no cesto de roupas, mas sim em cima da mesa. Pensava em jogá-la no lixo ou doá-la. Não. Jogaria no lixo.

O chão estava gelado. Fora o tempo fechado e uma corrente de ar entrava pela janela. Corria por todo apartamento. Nele não havia portas; até porque se houvesse estariam sempre abertas, para que o gato pudesse transitar. Nenhum miado.

Passei pela sala, um cheiro estranho tomava o lugar. Como estava sentindo frio não me preocupei em procurar o foco. Roupas jogadas por cima das poltronas, pratos sujos e copos, um com café. A TV estava ligada, não sabia desde quando; sem som. Reconheci logo o desenho, Caverna do Dragão. Gostava muito de assistir a esse desenho quando menino.

Passei pela porta de meu quarto. Somente pude ver as riscas claras da janela e o lençol no chão. Fui devagar pelo corredor. Parei alguns segundos frente a uma planta, que agonizava. Chamou-me atenção ao ponto de me fazer voltar para a cozinha, pegar um copo sujo de café, enchê-lo d'água e dar de beber a ela. Pareceu-me que agradecia.

No banheiro, ainda na porta, deparei-me com a minha própria imagem, pois o espelho ficava voltado para a entrada. Durante alguns segundos me olhei, tentava entender aquela imagem, um pouco mais velha, com olheiras, um pouco mais magro também.

Como de costume, fechei a porta, o vitrô, coloquei o chuveiro na temperatura máxima e o liguei. Saía sempre a mesma ducha forte, fortíssima. Fechei um pouco, para que a água saísse mais quente. Não entrava logo naquele momento, deixava a água correr, em contato com o ar frio; da água saía um vapor bastante branco, cheiroso. Sentia o quente do vapor abrindo os poros e principalmente as vias respiratórias. Depois de algum momento respirava bem, fundo, pelo nariz e pela boca. Antes de entrar escovei os dentes, sentia minha boca suja. Fiz o mesmo processo três vezes. Assim que não pude mais me ver diante do espelho, nem mesmo uma sombra, e quando coloquei a mão a quatro ou cinco palmos frente ao nariz e nada enxerguei, abri mais o registro e mergulhei.

Fiquei ali por volta de uma hora. Fazia força para não pensar em nada. Tinha medo de meus pensamentos. Tinha medo de mim. Acho que era por isso que não gostava de me ver diante do espelho.

Ouvi o telefone, mas fiz questão de não atendê-lo. Tentaram uma, duas, três vezes. Não atendi. Não queria falar com nenhuma das pessoas que imaginei do outro lado da linha. "oi, meu amor", "preciso de texto", "como você está, filho", "seu maluco". Não queria ouvir ninguém, nem a mim mesmo. Realmente durante alguns minutos consegui não pensar em nada. Somente sentia. Ouvia. Cheirava. Tocava. Só.

Após enjoar-me de meus próprios sentidos, desliguei o chuveiro. Continuei não enxergando nada. Estava quente, então esperei a névoa baixar um pouco e assim que comecei a me ver novamente no espelho senti minha existência e procurei uma toalha. Tinha esquecido de pegá-la.

Abri a porta e senti o vento gelado que vinha de fora me machucar. Gelava-me os ossos. Pensei em gritar pela toalha, mas não havia ninguém. Quando Márcia estava fazia-me sempre o favor de pegá-la.

– Márcia, por favor, amor, pegue a toalha para mim.

– Aonde está, amor.

– Na quarta gaveta do guarda-roupas.

Corri nu até o guarda-roupas. Mas corri com cuidado para não tropeçar no gato. Na gaveta não havia toalha. Irritei-me com a jornada e com o frio que me incomodava bastante, peguei a camiseta que deixei em cima da mesa e enxuguei-me com ela. Logo coloquei algumas roupas. Resolvi não colocar roupas sujas. Voltei encolhido até o guarda roupas e lá escolhi criteriosamente uma calça jeans velha, ainda bonita, que tinha um caimento bastante justo; uma camisa azul listrada na vertical, com alguns tons de laranja e amarelo. Cueca preta, meias brancas e botas pretas com elástico lateral, surradas.

Vesti-me como em um ritual. Em frente ao espelho gostava da transformação. Parecia que gradualmente não ia ficando tão magro, nem tão velho e nem tão feio. Ficava apresentável. Pela primeira vez resolvera usar o perfume que tinha ganhado de Márcia no dia do meu aniversário de 35 anos.

Não sabia porque estava me arrumando, talvez para mim mesmo. Sabia que naquele dia não iria sair de meu apartamento. Não queria. As botas rangiam enquanto eu andava, e percebia que em cada cômodo as botas emitiam sons diferentes, e assim passava por cada um deles. Uma. Duas. Três vezes.

Em uma das passadas pela cozinha vi no chão um caderno. Era um do tipo universitário, daqueles finos, com a capa preta, feita de plástico. Percebia que o plástico preto fora colocado propositalmente afim de cobrir uma imagem do Caribe, com corpos bonitos e dias claros e felizes.

Peguei o caderno com cuidado, não reconhecia aquele objeto. Abri com curiosidade, não havia nome na primeira página – onde deveria haver, pois lá diz: "nome", "endereço", "escola".

Folheei rapidamente observando a letra. Não era caprichosa, mas era, com certeza, de mulher, pois era redonda, e mesmo sendo escrita com rapidez era legível. Tinha um traço forte e levemente inclinada para a direita. Havia cores diferentes, muito uso de preto e vermelho, com algumas partes em azul de destaque, grifadas.

Assim que folheava podia rapidamente ler algumas palavras "sem", "pacato", "amiga", "escolher", "nada", "senti", "sorte", "mal". Até que parei aleatoriamente em uma das páginas e li maquinalmente:

"A sensação é pela pele, escura e machucada

Tocada de dor e de carma

sinestésica imobilidade

e nas sombras, você."

"sensação", "machucada", "imobilidade". Estas palavras não me pareciam tão distantes. De fato eu também as teria escolhido. Pareciam muito íntimas. Mas achei o poema feio, sem nexo. Mesmo que tenha ficado alguns bons minutos tentando entender aquelas combinações acabei desistindo. Fechei o caderno, joguei-o em cima da mesa e fui fazer um café.

Enquanto a água fervia eu voltei a observá-lo, mesmo que não quisesse. Ele gritava. Enquanto o café passava pelo coador ele gritava. E enquanto eu tomava o café ia novamente folheando o caderno.

Passei devagar por cada uma das folhas, tentando escolher alguma palavra que me chamasse a atenção. Passou de relance a palavra "sono", não sei o motivo, mas ela gritou, talvez porque não tivesse dormido muito bem nos últimos dois dias. Voltei procurando-a novamente, e agora li com mais cuidado:

"Tenho sono

durmo durante dias

dentro de mim."

Achei estes versos mais interessantes do que os outros, mais simplicidade e bastante sentimento. Desses eu gostei. Não entendi, mas gostei.

Folheei mais e mais. Voltei para a primeira página, passando cuidadosamente por todas elas. Li cada verso. Uma, duas vezes. Tentava entender tudo aquilo. Alguns poemas achava de uma complexidade sobrehumana, assim considerava-os chatos, com metáforas exageradas. Gostava dos mais simples, óbvios – se é que poemas são óbvios.

Durante algumas horas entrei naquele mundo complicado. O café, do qual tomei apenas um gole, esfriou, junto com ele a manhã. Isso me fez deixar o caderno pela metade e ir pegar rapidamente uma blusa.

Pela segunda vez fechei o caderno. Não sabia de quem era. E não sabia também como aquele caderno havia aparecido ali. Alguém propositalmente teria colocado por baixo da porta? Muito improvável, eu não gostava de ter contato com os vizinhos, e todos percebiam isso.

Lembrei-me da voz de Joel: "Ei, vizinho. Tudo bem? Acorda. Chame um médico, filha. O que ele tem, pai? Não sei. Deve ter chegado bêbado. Que caderno é esse. Não mexa, deve ser dele. Joga por baixo da porta.".

Pensei em ir até o seu apartamento e pedir informação, mas certamente ele não saberia me dizer e ainda alongaria a conversa, levando-a para assuntos que conviessem a ele. Não. Resolvi não ir.

Mais uma vez comecei a folhear, mas sem ler. Já estava íntimo de cada verso, como se eu naquele momento os reconhecesse completamente. Eram como se fossem meus.

Por desatenção não tinha visto a última página. Lá estava o nome – quem costuma colocar o nome na última folha do caderno? Logicamente a pessoa que o encontrar irá direto à primeira página, se não houver o nome, não haverá dono.

"Cecília Gomes Pereira". O nome não me era estranho. Tentava me lembrar. Tinha-o escutado há pouco tempo. "Esta é minha filha mais nova, Cecília". Lembrei-me perfeitamente de Joel ter apresentado toda a família um dia depois de eu ter chegado no prédio. Desceu sem vergonha com toda a família para se apresentar. Forçou a entrada, mas logo dei a desculpa de que tudo tinha de ser ainda arrumado e me despedi.

Como iria devolver o caderno? De fato não iria ao apartamento de Joel. Pensei em deixá-lo no corredor, aberto na última página, assim quem o encontrasse logo iria observar o nome, e logo devolveria. Cheguei a anotar, à caneta preta, o número do apartamento abaixo do nome. Assim teria a certeza de que seria devolvido.

Abri a porta de meu apartamento e o deixei aberto no primeiro degrau da escada de quem desce. Deixei-o como se tivesse caído, inclinado. Fechei a porta e fiquei observando pelo olho secreto. Fiquei ali durante trinta minutos, ninguém subia ou descia. O elevador infelizmente já havia sido arrumado. De repente um senhor subiu as escadas e parou em frente ao caderno. Olhou, olhou, olhou, subiu. Mais quinze minutos e nada. A senhora do apartamento da frente saiu para regar algumas samambaias. Regou e entrou.

Mas e se alguém pegasse, folheasse e quisesse se apoderar do que estava escrito ali. Aquele caderno também era meu. Eu teria escrito alguns versos.

O síndico subiu rapidamente as escadas e freou no caderno. Pegou-o, viu o nome e o reconheceu, ia subir quando abri a porta.

– Bom dia, seu Osvaldo, tudo bem?

– Vai se indo. – Era um homem mal humorado.

Me fiz de esquecido e antes de o homem esconder o objeto perguntei sobre um caderno assim, assim, assado, olhando diretamente para as suas mãos.

– Está aí. Cecília me emprestou o seu caderno para que eu fizesse algumas correções – Ele sabia que eu era jornalista.

– Ah! Sim, está aqui.

– Muito obrigado. – Fechei rapidamente a porta.

Eu não queria mais devolver o meu caderno. Resolvi guardá-lo dentro de uma gaveta, no armário da cozinha. Iria lê-lo novamente depois de alguns dias.

O telefone chorava. Deixei berrar. Fui até o escritório e fiquei observando o aparelho. Ao lado dele o notebook ligado, desde o dia anterior. Toquei no touch pad e abriu-me a tela em que estava trabalhando no dia anterior, uma reportagem que ainda não havia lido. Lembrei-me de minha editora gritando "dois textos". Havia mandado somente um. Sem dúvida era ela do outro lado da linha tentando falar.

O MSN piscava. Abri.

– Oi!

"Vale todo um harém a minha bela, Em fazer-me ditoso ela capricha... /Alvares de Azevedo". – Não havia nome, somente o verso e a indicação do autor. No lugar onde deveria haver uma foto, a imagem de um fantoche de palhaço, com um visual mórbido, esquisito. Verifiquei nos contatos do MSN, passando o mouse, o e-mail: "joana_darc1987@hotmail.com".

– qm eh?

– minha irman comento q viu vc e q tava cum cadernu preto eh o meu?

Era Cecília. Logo me veio a pergunta de quando e em que circunstância eu teria pegado o seu e-mail. Não me lembrei.

– sim – Mesmo tendo a vontade de dizer que o caderno que estava comigo era usado para minhas próprias anotações, não era o dela. Quem sabe se a conversa fosse mais pelas beiradas poderia convencê-la. Mas foi direta.

– pode me devolve?

– sim.

– q ora passo ai?

– qualquer hora.

– qndo voltar da facul passo.

– q horas? – Insisti no h.

– umas 5 hs.

– blz.

– brigada tchau.

(off)

– tchau. Dexo meu cel caso eu naum esteja aq. 792234343

(Vale todo um harém a minha bela, Em fazer-me ditoso ela capricha... /Alvares de Azevedo – está Offline. As mensagens enviadas serão entregues quando esse contato entrar)

Após a conversa rápida senti vontade de ler novamente, pela última vez, o caderno. Peguei-o na gaveta, sentei-me em minha mesa do escritório, abri um novo documento de Word e comecei a digitar os poemas, na ordem em que apareciam, mas modificando algumas licenças, trocando algumas palavras. Tornando-os definitivamente meus.

Nisso levei algumas horas, mas todas as vírgulas foram transcritas. Alguns versos aumentados, algumas rimas alteradas, mas a essência continuava ali.

Logo, e sem perceber, estava maquinalmente trabalhando em mais um texto para o site. Finalizei-o em mais ou menos quinze minutos, já o enviando para o jornal.

O relógio acordou às quatro e cinqüenta e dois. Senti-me como um grande despertador prestes a tocar as suas sirenes. Tocariam às cinco. Como nunca ficava bem vestido para trabalhar pensei estar de cuecas, ou até mesmo nu. Levantei-me assustado atrás de roupas, pois a dona dos meus versos chegaria em alguns instantes. Na preparação para despertar fiquei parado. Olhando-me no espelho e me achando bonito. Despertei exatamente às cinco horas, junto com a campainha. No primeiro toque eu estava ainda diante do espelho. No segundo eu estava andando pelo corredor. No terceiro eu corria pela cozinha, e no último eu abria desesperadamente os trincos da porta. Eram quatro.

– Oi!

– Oi! Tudo bem?

– Vim pegar o meu caderno.

– Um momentinho.

– Não quer entrar?

– Não. Por favor o caderno.

– Sim. – Deixei a porta aberta e fui rapidamente em direção à cozinha, abri como quem não quer abrir a gaveta que guardava o caderno. Não encontrei o que procurava.

– Estava aqui. Eu o coloquei aqui. – Falava alto.

– Ela, também à procura de si mesma, entrou e acompanhou-me no resgate. Tentávamos nos achar. Estávamos jogados em verso, em cima da mesa do escritório.

– Está aqui. – Ela o encontrou aberto em meio à bagunça, migalhas de pão, pacotes de cigarros, jornais e revistas velhos, cinzeiros sujos.

– Você leu o meu caderno? – Peguntou-me de cabeça baixa, repetindo a pergunta algumas vezes. Pareceu-me que sentia-se nua, escondendo suas vergonhas e sua alma. Por meio das palavras eu a tinha descoberto. Eu conhecia cada palmo daquela mulher. Cada centímetro de seus mais íntimos segredos e medos.

– Me desculpe... Acabei lendo... Mas não se preocupe... Eu não entendi.

– Eu não acredito. Você invadiu um espaço que não era seu. Desgraçado. Você não tinha o direito de me invadir.

– Eu não a invadi. Invadi a mim mesmo. Reconheci seus versos. Me vi em cada um deles. Confesso que a primeira vez que os li achei-os feios, mal acabados. Mas na segunda vez eles se mostraram mais. Na terceira eles eram meus. Você quem me invadiu. Você quem escreveu os meus versos. Você quem me escreveu.

– Filho da puta.

– Tenho sono / durmo durante dias / dentro de mim. – Eu repetia os versos. Uma. Duas. Três vezes.

– Isso é meu, pára. Pára, seu desgraçado. – Repetia e gradativamente chorava.

– Tenho sono / durmo durante dias / dentro de mim. – Em um momento o choro se fez calma, que se fez silêncio, que se fez olhar, que se fez passo, que se fez beijo.

Beijamo-nos arduamente. Via nela eu mesmo e acredito que ela via em mim um espelho. Beijava-me e ela se beijou. Na cozinha, em cima da mesa nos achamos novamente. Eu repetia os que conhecia e ela recitava o caderno inteiro, sem pular um verso se quer, mas os recitava com minhas modificações. Lembrava-me das alterações que fizera em seu texto, todas elas. Ela de fato não os conhecia, mas recitava-os, com emoção e vontade.

Meus sentidos eram amargamente descobertos. A dor era palpadamente provocada. A dor, naquele momento, era aproveitada como um prazer diferente. Sentia-a arder.

Transamos na cozinha, poeticamente. Prendia-a forte. Sentia-a fundo e podia ver a sua alma chorona. Em migalhas nos fizemos calma e transparência.

Rapidamente se deu todo esse processo. Eu poderia, sem dúvida, dizer que fora atemporal e transcendente. Só era assim com Márcia. Desta vez fora realmente rápido, no tempo de um haicai, mas fora intenso, dolorido, com cada sentido elevado ao máximo de sensibilidade. Cinco minutos, no máximo. Cada segundo sentido sem ao menos um momento de abstração.

Depois nada de conversa. Sentamo-nos à mesa, um de cada lado. Não nos olhávamos, nem nos tocávamos com os pés. Queríamos distância. Tínhamos nojo um do outro. Eu tinha a sensação que ter beijado um homem, e ela, creio, uma mulher. Havíamos nos beijado simultaneamente, com toda a ambigüidade que a língua pode expressar.

Antes tivera ido à porta já com o caderno nas mãos. Antes não tivera lido uma palavra do que ali estava. Seria melhor um "oi", "oi", "está aqui", "obrigado", "tchau".

E foi o que eu disse, como se pudesse voltar no tempo:

– Está aqui!

Ela, sem olhar para mim, simplesmente pegou o caderno e o colocou debaixo da coxa esquerda.

O silêncio se fez, durara não sei quanto, mas vimos, separados, a luz se apagar no apartamento. O claro que entrava pela porta da cozinha foi gradativamente se apagando, deixando escuro o rosto dela; apagando os seus braços. Era uma borracha para aquele desenho. Apagou-a completamente. Eu também apaguei dela.

Frente a frente não nos víamos. Eu senti medo de acender a luz. Ela era a presença de mim mesmo e se acendesse a luz me veria, e ela a si mesma.

Me fiz escuro.

– Quer que acenda a luz?

– Não!

– Isso não deveria ter acontecido.

– Não!

– Está com fome?

– Um pouco.

– Não tenho nada para lhe oferecer aqui.

Ela se levantou e me assustei com seu movimento repentino. Como nada enxergava protegi-me de um golpe qualquer, de algum objeto pontiagudo. Protegi minha cabeça.

Fez-se luz na cozinha. Ela bateu com força no interruptor, fazendo-o faiscar. Seu corpo ficara mais claro do que dantes. Suas coxas brancas e grossas eram como papel laminado; suas nádegas eram enormes. Redondas e balançavam quando andava. Seus pés eram também grandes e seu rosto estava sujo. Duas manchas negras escorriam em sua cara. Fez-me lembar Alice Cooper. As manchas iam dos olhos, manchando um pouco a testa, pois em uma tentativa de limpar as lágrimas ela deve ter esfregado todo o rosto, fazendo com que o negro passeasse para todas as partes, e chegavam aos cantos da boca, encontrando-se com o vermelho morto dos lábios. Seus pelos pubianos estavam como os de atrizes pornô da década de oitenta, bastante crescidos, formando um grande emaranhado de pêlos. Tudo isso completava uma figura fascinante.

– Estou me sentindo mal. Onde tem um banheiro? – Perguntou-me já com o vômito na garganta.

– No final do corredor, à esquerda.

Sem dizer palavra foi, levando consigo o caderno e suas roupas. Deixando de lado seu cinto de couro.

Pude perceber que corria pelo corredor. Eu, de vez em quando, me perdia em meu próprio apartamento. Ela chegou ao banheiro com uma facilidade impressionante.

Da cozinha eu podia ouvir os seus xingamentos e o barulho que fazia enquanto vomitava, mesmo que ela tenha aberto a torneira em sua última vazão, a fim de não deixar com que os seus ruídos fossem ouvidos. Peguei seu cinto e fui devagar em direção ao banheiro.

– Sou uma idiota do caralho. Filha da puta. Esse desgraçado me paga. Ele leu tudo. – Chorava em cima do caderno aberto.

Por entre o vão da porta coloquei o cinto e o segurei, até que ela pudesse ver.

– Obrigada.

Não respondi e voltei para a cozinha, a passos largos e feliz. Uma felicidade que não podia entender. Sentindo-me também culpado por algo que também não podia entender.

Vieram-me a mente algumas conseqüências daquele ato impensado: imagine o senhor Joel sabendo que a filha mais nova, uma moça, deixou-se possuir pelo anti-social do prédio? Vindo cobrar esclarecimentos, nervoso e com a família o segurando para não me quebrar a cara "parto-lhe a cara, seu maldito". Depois de algum tempo passaria por mim e não me cumprimentaria mais "Olá, vizinho. Não quer me acompanhar em uma corridinha?". Entendera naquele momento a felicidade que eu sentia.

Resolvi fazer algo para oferecer a ela. Pensei em chocolate, afinal, ela era uma menina; mas para que não me viessem dores à consciência, pensei em café, bem forte. Ela estava precisando, e eu também. Dentre a louça de dentro da pia peguei uma panela que me parecia razoavelmente limpa, despejei nela água e levei ao fogo. Na tentativa de acendê-lo, lembrei-me que há alguns anos não comprava gás. Joguei sem cuidado a panela novamente na pia e peguei no armário um copo de vidro, enchendo-o com a mesma água o coloquei no microondas. Dois minutos. Enquanto isso ia procurando o pó. Vasculhei como um garimpeiro empenhado cada compartimento do armário, indo parar debaixo da pia. Nada do pó. Tentei me recordar de quando tinha comprado o último pacote de café, chegando à conclusão de que comprara um há quase três meses. Na busca peguei um pacote velho de leite em pó, rapidamente misturei em um copo de água fria, batendo rapidamente; e para completar joguei uma colher de achocolatado. Deixei o copo em cima da mesa para que ela o visse.

Quando me dei por mim não ouvia mais a torneira, nem o barulho de comida passando pela contra-mão na garganta e muito menos os xingamentos.

Pensei em averiguar o que acontecia no banheiro, talvez tivesse desmaiado. Quando ia em direção a ele topei com a imagem da menina na porta da cozinha.

– Faz tempo que está aí?

– Algum.

– Você está bem agora?

– Acho que sim.

Era uma outra mulher. Sem mais aquela mancha no rosto. Com as coxas cobertas e com os peitos também escondidos. Abotoara a camisa até o último andar, fechando-se completamente com um cachecol em nó na garganta. Acho que não queria se sentir invadida novamente.

– Sente-se. Fiz para você. É chocolate.

– Sei.

– Toma um pouco, deve estar bom.

Não teve coragem de tomar. De fato eu também não teria. O leite estava escuro demais, e com pelotas brancas nas paredes do copo e outras boiando pela superfície. Achei nojento e joguei-o, sem cerimônia, pia adentro.

Ela achou engraçado. E pela primeira vez vi que tinha dentes levemente amarelos, mas bem feitos. Fumava.

– Você tem um sorriso bonito.

– Preciso de água. – Como sempre fazia para saciar a minha sede, peguei um copo no armário e enchi de água de torneira. Como se estivesse me servindo, abri bastante a torneira, fazendo com que a água batesse no fundo do copo e voltasse, transbordando e jogando líquido para todos os lados, fazendo desenhos de água. Isso me dava mais sede e também uma sensação de fartura.

– Não tem filtrada?

Bebi a água e respondi sem muito interesse: "não".

Ela cuidadosamente pegou o copo de minhas mãos, abriu lentamente a torneira e como se estivesse se servindo de cerveja, com o copo inclinado deixou escorrer o fio de água pela lateral, olhando com cautela a cor da liquidez, enchendo o recipiente.

Bebeu lenta, não para saborear, como eu fazia, mas para sentir a textura e a limpidez.

– Não te ofereço nada para comer porque não cozinho, compro tudo pronto.

– Eu não quero nada, vou jantar em casa. E não te chamo porque... – acho que pensou em algo que não fosse ofensivo – ...não o conheço direito.

Como podia dizer que não me conhecia direito sendo que alguns minutos antes ela tinha conhecido a minha alma?

Vestindo-me eu disse que iria descer para comer um cachorro quente, o que geralmente fazia a qualquer hora do dia, pois matava rapidamente a fome e era barato. Comia dois ou três.

– Quer vir comigo? – Convidando somente por educação. Na realidade eu queria ficar sozinho. Não gostava de comer acompanhado.

– Sim! – Resposta que me deixou transparentemente surpreso.

Abri a porta e deixei-a ir à frente. Depois de alguns minutos, o elevador social passou por nós, subindo. Nele algumas rizadas. Desceu e nos pegou sozinho.

Abri a porta e fiz sinal para ela entrar. Não me agradeceu pelo gesto. Dentro se fez quieta e olhávamos hipnotizados para o painel que marcava os andares, até que o "T" nos despertou. 8........7......6......5.....4....3...2..1. T.

Ela saiu rapidamente, sem deixar que eu educadamente abrisse a porta. Andava diante de mim uns dois passos. Emparelhei. Percebi que ela não queria companhia, ou se queria, teria de ser uma companhia que respeitasse alguns metros de segurança.

Perguntou-me, em uma das suas únicas falas do caminho, onde iríamos comer o tal cachorro-quente. Respondi que comia sempre em uma perua que estacionava bem em frente ao Edifício Itália.

– Quer o que? – Falei.

– Um cachorro-quente talvez? – Achamos graça. E pela segunda vez pude ver o seu sorriso.

– Como quer o seu? Eu como sempre o mesmo, com duas salsichas, bastante molho vinagrete, ervilhas, milho, queijo ralado, queijo cheddar, queijo catupiry, bastante catchup, mostarda, maionese no pão francês. Isso é muito importante, o pão francês. Imagine tudo isso dentro de um pão mole como o pão de cachorro-quente? É um desastre. Você precisa ir controlando o peso, comendo por cima, até que o pão, molhado, com o peso não consegue mais segurar as salsichas e abre na parte de baixo. Você acaba comento o pão com as coisas e deixando as salsichas para serem comidas sozinhas. No pão francês não. Você pode dar mordidas bem grandes, mas deve sempre bloquear com o dedo indicador a passagem da salsicha pelo outro lado. O pão francês é forte.

Ela achava graça de todas as besteiras que eu dizia. Para provocar-me pediu um cachorro-quente idêntico ao meu. Comemos juntos. Eu ia mostrando a ela como se devia comer um cachorro-quente daquele tamanho. Ela se divertia, deixava cair algumas partes dele, pelotas de purê de batatas, alguns grãos de milho e ervilha, molhos, vinagrete, a salsicha em um momento quase pulou para fora do pão. Coloquei o dedo indicador e a ajudei a conter a carne.

Ríamos como duas crianças assistindo a desenhos, ou vendo um palhaço de circo. Ríamos das nossas próprias palhaçadas.

Há alguns anos eu não me divertia tanto acompanhado de alguém. Geralmente dava algumas rizadas quando assistia a programas de comédia na TV, acompanhado de um pedaço de pizza e refrigerante bastante caramelizado.

Junto algumas latinhas de cerveja, ao todo devem ter sido umas oito ou nove. Eu era forte para bebidas, mas percebi que ela não. Já na sua quarta latinha estava com as bochechas vermelhas, e com os olhos levemente fechados. Contou-me sobre sua faculdade, seus amigos, os professores que odiava, as amigas que odiava – Ela odiava bastante gente.

Quando falou do pai em alguns momentos se emocionou. Eu conhecera naquele momento uma face de Joel que não conhecia e que de fato nunca teria conhecido se não fosse ela. Mas mesmo sabendo de algumas bondades que tenha feito, Joel ainda me irritava.

Falou da irmã, que era uma moça honesta e muito bem casada com um homem maravilhoso, igualmente honesto, mesmo percebendo um tom irônico no testemunho. Falou durante alguns longos minutos sobre a sua família; até que surgiu o nome do namorado, Ângelo. Mas falava dele com um tom bastante ameno, como se falasse de um bom e velho amigo, e não percebia ironia nenhuma. Se conheciam desde criança, até que em determinado momento resolveram namorar e experimentar: o sexo, as drogas, a faculdade.

Ângelo era uma muleta que ela usava sempre que precisava. Em um momento inoportuno, quando ela me descrevia como fora uma fuga heróica de um motel, pois não tinham dinheiro para pagar, seu namorado ligou no celular.

– Oi, An.

– Estou com um amigo. – Nesse momento me senti bastardamente importante. Quando falou "amigo" olhou para mim.

– Eu sei. Não subo tarde. Sei que tenho que descansar.

– Também. Tchau.

Nos intervalos de silêncio, enquanto ele dizia alguma coisa, eu tentava imaginar, com uma voz grossa, o que ele a dizia: "Liguei para a sua casa e sua mãe me disse que não estava, mas já tinha chegado da faculdade. Onde está?", "Meu amor, você deve estar muito cansada, fez uma prova difícil hoje. Não fique aí por muito tempo. Você precisa descasar.", "Eu te amo", "Tchau".

Percebi que ela tinha dois pais.

Seus olhos não brilhavam, seus gestos não ficavam nervosos. Simplesmente atendeu ao telefone e falou como falaria com seu pai. Ou melhor, acredito que com este ficaria um pouco mais nervosa.

Ela, um pouco mais à vontade, perguntava sobre a minha vida, com o que trabalhava, onde moravam os meus pais, se tinha namorada, o que gostava de ler, para onde gostava de ir. Nenhuma dessas perguntas foi respondida, de alguma maneira eu conseguia escapar delas, sempre sobrepondo alguma outra que indagava sobre algo que ela gostava de falar, assim ela esquecia as perguntas que me fazia. Caminhamos nessa conversa durante uma hora e meia.

Com os olhos já bastante pequenos e com a voz falhada e um pouco rouca disse-me que tinha que ir embora, pois no dia seguinte teria aula logo pela manhã.

– Foi bom ter conversado contigo. Há muito tempo não dava tanta gargalhada. Embora não pareça, você é divertido.

Eu iria dizer a mesma coisa, mas fiz questão de falar pouco.

– Para mim foi bom também.

– Qualquer dia nos cruzamos nas escadas, se o elevador quebrar novamente.

– É.

Nos despedimos sem contato físico – mesmo que eu tenha tido vontade de beijá-la – e sem comentários sobre o que havia ocorrido há alguns minutos em meu apartamento. Seguiu com passos largos e firmes, sem olhar para trás.

Fiquei observando até o momento que não mais a vi, desapareceu por detrás de pessoas. Logo perguntei ao comerciante de guloseimas quantas horas eram.

– Oito e trinta e cinco. – Respondeu-me sem tirar os olhos das calabresas que fritava na chapa; tentei entender como ele tinha deduzido as horas, talvez tivesse acabado de ver. Paguei o consumo e a vontade de voltar para o meu apartamento havia desaparecido.

Fui em sentido contrário. Saí pela avenida Ipiranga, atravessando faixas de pedestres. Acendi um cigarro. A noite estava fria e um vento gelado iluminava mais a chama da boca. Fechei a blusa e apertei o passo. Resolvi me sentar em algum banco da praça da República. Após dar uma volta por ela, o que deve ter durado alguns longos minutos, sentei-me próximo à entrada da estação do Metrô. Observava as pessoas entrarem e saírem apressadas. Encontros. Brigas. Desencontros. Choro. Rizadas. Pequenos Assaltos. Mulheres que seguravam firmemente as bolsas. Taxistas. "truco, ladrão". Motoqueiros com malas gigantes e mais pacotes pendurados no guidon. Policiais que contavam piadas e gargalhavam. Vendedores. Muitos vendedores clandestinos. "brilha quando aperta", "olha a chuva, guarda chuva, cinquinho", "CD, DVD, MP3, um por cinco, três por dez", "cartão telefônico e recarga de celular, tim, vivo, claro", "brilha chuva cinquinho mp3 claro", "aperta chuva CD telefônico vivo". "quando chuva DVD chuva tim chuva". Começava a garoar.

Deixava chover em mim. Sentia os pingos pequenos tocarem os meus cabelos, o vento como mãos os lavava. Tocavam-me o rosto com leveza. Deixei encharcar a cara e as gotas desciam da testa para o pescoço. Levantei-me e ia voltar para o meu edifício. As pessoas corriam e entravam no buraco do metrô, eram tatus, escondiam-se da água e protegiam-se com sacolas, malas, blusas, jornais.

Vi atravessar a rua passos que eu já conhecia; era aquele mesmo homem que me seguira até o teatro. Levantei-me rapidamente, afim de que não me visse; fui em direção a algumas árvores que estavam detrás de mim. Subi no canteiro e de lá observei.

Era mesmo o mesmo homem. Parecia nervoso. Encostou em uma das muretas da escada que levava ao Metrô, acendeu um cigarro e mesmo na chuva fina fazia brilhar a ponta do dedo. Ao contrário das outras pessoas, não tentava se proteger dos pingos. Parecia refletir. O cigarro foi queimado por inteiro, e depois dele veio mais um. A cena se repetiu por quatro vezes. A garoa, implacável, muito fina, molhava-o por inteiro.

Seus cabelos eram movimentados pelo vento e a luz batia em sua cabeça mostrando amplas falhas. Vi quando tirou de um dos bolsos uma arma. Protegendo-a da garoa e em um movimento muito rápido colocou duas ou três balas nela, guardando-a novamente na parte de trás do cinto.

Após isso lá se foram mais dois cigarros, caminhando até uma banca de jornal, que ficava bem em frente às escadas do Metrô, observou algumas manchetes de jornais e algumas revistas de fofoca, rapidamente folheou uma Sexy.

Em um movimento rápido, sem que observasse quem estava ao seu lado veio em minha direção. Assustei-me e resolvi sair dali. Vinha como no dia anterior, quando entrei no teatro da São Luís. Seguíamos sentido rua Bento Freitas. Gradativamente eu acelerava, ele imitava. – Ele não podia estar me seguindo. No dia anterior tudo bem, mas naquele momento ele não tinha me visto. – Pensei em mudar o percurso, virei para fazer o outro lado do retângulo, virou comigo, entrei na praça, nos amaranhados e pequenas pontes, ele entrou também pelos amaranhados e pequenas pontes. – O jeito era mergulhar no lago sujo e travar uma luta até a morte. Não o fiz. – Saí do emaranhado, saiu junto. Tentei arriscar e parar em uma outra banca de jornal, como se visse algumas manchetes, como qualquer transeunte. Sabia que se parasse ele me pegaria, mas logo veio à mente que se quisesse realmente me pegar já tinha feito, se quisesse atirar já tinha feito, se quisesse matar já tinha feito. Parei. Parou um pouco atrás. Acendeu mais um cigarro. – Não era possível aquilo.

Tomei coragem e fui em sua direção, rapidamente. Corríamos em rota de colisão. Levantei a blusa para que não me reconhecesse. Passei olhando para ele. Não tinha face. Era escuro. Assustei-me e corri, passando pela diagonal da praça, tropeçando em mendigos e ouvindo gritos de putas. Corri e sem olhar para os lados atravessei a avenida, entrando em desespero pela rua Barão de Itapetininga, percorrendo toda a sua extensão, com os olhos de jaguar, adiante. Não precisava vê-lo, sentia a sua presença a cada esquina. Quando cruzei a rua Conselheiro Crispiniano na esquina vi a figura do mulato, em uma cadeira de rodas, de flauta em punho, não a tocava, com força batia com o instrumento em sua cabeça, deformando-a; da boca saia um som agudo, de notas musicais, de solo em uma ária, agudo arranhado, mórbido. Não parei. Corri..........

Cruzei pelas Casas Bahia e aumentei a velocidade pela rua Cel. Xavier de Toledo. Como as calçadas estavam ainda com alguns camelôs, que desfaziam seu local de trabalho, fui pela rua. Não pelos cantos, mas pelo meio dela. Ouvi buzinas loucas, homens gritando, mulheres estéricas. Freadas frenéticas. Corria. Corria em desespero. E ele estava atrás de mim. Entrei na Rua da Consolação e logo virei na São Luís. Na esquina parei e me encostei em uma porta de ferro, de uma casa de vídeos fechada. Ali resolvi esperar por ele. Pegá-lo pelo pescoço e ali mesmo cometer um assassinato.

Tive medo. Corri mais. Ele estava muito próximo. Pela São Luís corria a São Silvestre, a via crucis. Chegando à porta do teatro entrei e fiquei observando por uma das frestas da porta de aço, que estava à meia extensão. Encostado na parede vi o momento em que ele parou de correr, retirou a arma da cintura e disferiu, em minha direção, três tiros, não senti nenhuma perfuração. Seria impossível senti-las, pois eu estava bem protegido atrás de uma parede de concreto. Cheguei a apertar meu peito, pernas e braços a procura de algum sangramento. Nada.

Atirara para que? Em que? Porque gastaria balas somente para me assustar? Depois de passado o primeiro susto veio o pior, vi, ainda caindo, um homem que aparentava ser muito jovem, moreno, nordestino, pequeno traficante de drogas, "Carrasco, mandado por preso que coordenava envio de drogas e assassinatos, mata onze em prédio invadido no centro de São Paulo. Moradores têm medo de fazer retrato falado, e polícia não tem pistas do assassino.". Como não encontrara Pitoco no apartamento de sua família, saíra a sua procura e o encontrou na Avenida São Luís, matando-o com três tiros. Lembrei-me de Tito: "Dizem que até ralharam com ele aqui no prédio torto e saíram com ele de lá. E um dos irmãos foi morto lá na São Luís.".

Apavorou-me o fato de presenciar um assassinato sobre o qual tinha sido informado um dia antes. Como aquilo poderia acontecer?

Com o objetivo de esconder-me daquele homem, pois certamente eu seria o próximo a receber alguns tiros, entrei novamente no teatro. As mesmas putas, o mesmo corredor, o mesmo cheiro, as mesmas discussões, os mesmos gemidos. A mesma cortina com manchas. Abri-as novamente. Dentro uma imagem que não podia crer. O homem que acabara de matar Pitoco estava lá observando Marcela, que ainda se insinuava.

Tomei coragem e passei novamente pela sua frente. – Se não me viu da primeira vez, obviamente não iria me ver. – E não viu, como se estivesse de olhos fechados. Na primeira vez não vi seu rosto, não tive coragem de olhar. Mas desta tomei-me de uma coragem de cão e olhei. Não vi. Sem face. Era escuro.

Como se o tempo tivesse congelado, tudo estava da mesma maneira, sem uma modificação sequer. Tudo no mesmo lugar, a música no mesmo acorde, o gemido no mesmo tom. Resolvi sentar-me e tomar o lugar do dia anterior. De lá vi a continuidade do tempo.

Observava aquele homem com medo, angústia e curiosidade. Tentava entendê-lo. Tentava achar nele traços de mim. Tentava achar nela traços de mim, embora já a conhecesse profundamente. Mas a ele não. Era um porão escuro, uma escada onde não se podiam ver os degraus, que eram desiguais. Um porão onde se escondem objetos mais íntimos. Era escuro. Imprevisível tanque de guerra que avança sobre uma massa humana, despejando seu peso e estraçalhando ossos. Um zumbi sugador de cérebros. Era escuro. Era um homem sem alma. Um homem sem vida. Um homem animal. Um homem sem face. Um homem sem homem.

Era casado? Teria filhos? Amante? Amor? Quantos mais matara? Era feliz?

*

– Pai, me dá aquele doce ali?

– Dou, filho.

– Quanto é aquele doce?

– Um e setenta e cinco.

– Só quero o pãozinho mesmo.

– Pai, cadê o doce?

– Filho, vê se entende, amanhã o papai compra.

Na padaria o choro estridente da criança, que por causa do doce se fazia monstro e se jogava no chão debatendo braços e pernas. O pai, envergonhado, somente fez pegar o pequeno pelo braço e levantá-lo. A platéia ria por dentro e indignava-se por fora. Levou a criança levantada para fora da padaria e na calçada viu-se uma conversa amigável, até que o menino parasse de chorar.

– Porra, pai, só pão com manteiga. – Falava em tom interrogatório a mais velha.

– O que eu posso fazer?

– Sei lá, é foda não ter um presunto, queijo, chocolate. Que merda de vida. – A menina saiu da mesa em xingamentos e com um choro enrustido, que fora soltar ao telefone, com o namorado; que logo a levaria daquele lugar para um pior.

O homem saía sem destino, andava pelas ruas. Um cigarro. Dois cigarros. Três. Quatro.

– Me vê um cigarro solto. – Mexeu nos bolsos para procurar as moedas que vieram como troco do pão, contou 1,25. Sabia que não daria para um maço. Pagou um real por cinco cigarros. Colocando-os no bolso da camisa.

Naquela noite fora os cinco, fumados em cima da laje, sobre os meninos e a esposa, que dormiam amontoados em um cômodo. Dali podia ver os esqueletos da parede, sem reboco, e a luz que vinha dos espaços não preenchidos por cimento. Luzes sem lustres. Silêncio. Quando não um choro de bebê... ...longe. Eco. Um homem andava pela rua chutando uma garrafa de plástico. Cachorros latiam. Era madrugada.

Percebeu que a esposa se levantou; havia luz no corredor, que era iluminado pelo claro que vinha do vitrô da cozinha. Deduziu que talvez ela estivesse com fome. Estava grávida. Ele sentiu saudade e por pouco não desceu para ver se ela precisava de alguma coisa, se não podia ajudar em algum desejo fora de hora. Mas logo chegou à conclusão que ela não podia ter o luxo de desejos.

A mulher voltou a dormir. Ela sabia que o marido estava logo acima, fumando o seu cigarro. O que fazia quase todas as noites desde que se casaram. Ela nunca entendera o prazer que ele sentia em estar lá em cima, mas respeitava a sua vontade. Sabia que depois de algumas horas ele desceria e viria deitar ao seu lado. Mesmo que não encostasse nela, estaria ali.

Nesse dia ele dormiu depois de tentar fazer amor com a mulher, sendo logo recusado, com a desculpa de "vai acordar os meninos".

Ele acordava sempre mais cedo para ir à padaria comprar alguns pãezinhos e, quando possível, um litro de leite C. A mulher acordava logo depois e rápido se arrumava para o trabalho. Ele não fazia café, sabia que a mulher, assim que se arrumasse, o faria.

Tomavam café juntos. O marido não costumava se sentar à mesa, ficava de pé ao lado da pia, e nela acomodava o copo e o pão. Diferente da esposa, gostava de comer o pão com muita manteiga, em duas metades, dobradas. Gostava de ver o creme salgado sair pelas pontas, por isso mordia bem no meio do pão, quando não o molhava no café. Não tomava leite.

Ela gostava do pão com pouca manteiga, primeiro cortava-o em fatias, depois, a medida que comia, ia passando margarina nas próximas. Não conversavam durante o café.

Quando o relógio mostrava seis e meia era hora da mulher acordar os filhos para irem à escola, que ficava a bons cinco quilômetros dali. Era a mais próxima que arrumaram. Afinal, estavam ali há pouco tempo, a mãe ainda não tinha tido tempo de verificar se em alguma escola mais próxima havia vagas.

O pai, afim de evitar que os filhos pedissem dinheiro, sabia que às quinze para as sete teria que estar no banheiro, e lá ficava por cinco minutos, ou mais, até que os filhos saíssem.

Tinha quarenta e sete anos e há sete estava desempregado. Fora trabalhador da construção civil em São Paulo. Trabalhara em muitos empreendimentos importantes na cidade. No período de labuta adorava ver, aos domingos, junto da família, os comerciais de apartamentos, dos empreendimentos nos quais estava trabalhando: "vem ver esse, nesse eu reboquei a fachada do terceiro até o sétimo andar", e toda a família, orgulhosa, via mais um prédio feito pelo pai.

No ano em que fez quarenta tornou-se imprestável. Sem dúvida que havia ainda naqueles braços muita força e naquele cérebro muita coordenação e sabedoria para erguer quilômetros de andares.

Sete anos depois não conseguia mais assistir TV aos domingos. A casa envelhecera com ele, a mulher e os filhos também. Tornou-se de herói, um enfeite de sofá. Tinha tempo o suficiente para fumar mais de três cartelas de cigarros por dia.

Com seus contratos de trabalho, na época, vinham novos amigos, alguns churrascos, saídas para prostíbulos baratos, jogos de cartas, conversas, cantadas para as gostosas que passavam na rua "oh, lá em casa", "oh, gostosa!", "oh, neném!", "é a nora que mamãe pediu a Deus", novas amizades e tudo de novo em um lugar diferente.

Sua mulher saía às sete, com os filhos, e só voltava doze horas depois, com algumas compras ou sobras. Era copeira de um hospital no centro de São Paulo. Consigo geralmente trazia algumas peças de carne, alguns doces em calda, alguns salgadinhos, que certamente iriam para o lixo.

Batia o cartão de ponto às oito e meia, saía às seis. Como o trajeto era doloroso, ônibus, trem e metrô, e ainda levando mais um menino no ventre, andava devagar e com cuidado, para que não batessem em sua barriga.

– Senhor, não estou me sentindo muito bem, o senhor poderia me dar o lugar?

Às vezes ela percebia que a pessoa sentada, assim que a via, fingia pegar em um sono profundo. Tinha vergonha de acordar o soneca.

O marido ficava em casa, passava o dia em algumas andanças, casas de vizinhos, uma birita no bar, alguns passos pelas ruas, de chinelas e bermuda. Gostava mesmo era da laje, de lá podia ver as vizinhas estenderem a roupa, os meninos jogando bola na rua, quando não descia para dar alguns chutes; gostava de sentir o sol queimar sua cara, seus ombros, gostava das marcas que a regata deixava. Ficava barrigudo e não conseguia correr tanto como corria quando chegava do trabalho e pegava o final da pelada. Gostava de jogar rua contra rua, a sua sempre perdia, mas ele não ligava, gostava era de chutar a bola no gol, imaginava-se um Pelé.

Sempre, após o almoço, ia ao bar do Maneco, que ficava à duas quadras dali. Descia com a barriga cheia afim de completar o banquete com uma birita forte, que descia rasgando sua garganta e, por fim, acomodava os alimentos no estômago, ajudando na digestão.

Gradualmente tornava-se um homem sem posses. Aos poucos tornava-se menos pai, menos marido, menos vizinho, menos centroavante, menos homem.

Um dia, depois de almoçar e a caminho do bar encontrou, passando de carro – um automóvel bastante modesto, azul metálico, não tão metálico – um velho amigo. Fora seu vizinho, mudara-se do bairro há dois anos. Trabalharam juntos em algumas obras. Um carro cheio de gente, a sua gente. Apresentou mulher e filhos, muito bem nutridos. Tinha uma mulher bonita. Já a conhecia e lembrava-se que faltava a ela um dos dentes perceptíveis. Estava com o dente. Sua filha já estava bem crescida, bastante jeitosa. Não pôde deixar de perceber que já tinha seios bonitos e pernas bem feitas. O filho já era um homem, desceu do carro já com barbas e sapatos. Ia para o trabalho.

O homem de chinelos fez-lhe a sala ali mesmo, no meio da rua. Falaram sobre suas vidas; a que tinha dado certo, e a que não tinha dado tão certo assim. Marcaram de se encontrar no final de semana. O homem de regata tinha vergonha da família. Sua mulher tinha todos os dentes, mas eram feios, seus filhos, mal os conhecia. Falou que ia sozinho, pois a mulher já tinha horário marcado no salão de beleza e os filhos iam estudar na casa de alguns amigos. – Pensou logo em desculpas que apresentariam, indiretamente, uma família de bons costumes, uma mulher bonita e filhos educados.

Seu amigo percebeu claramente as intenções do outro. Via no homem de chinelos enorme mau jeito e vergonha; por isso fez marcarem um encontro sozinhos.

– No bar do Maneco, sábado, heim!

– Pó deixa!

– Abraço pra família.

– Outro.

Nas duas noites posteriores não conseguiu dormir. Passou-as na laje; não queria se deitar ao lado de sua mulher, que era feia, e de seus filhos, que eram estranhos.

O dia de sábado se fez com o homem sentado em um banco de tijolos, antigo companheiro, pois já almoçara em um banco de tijolos, jogara cartas em um banco de tijolos, bebera com os amigos em uma roda feita de banco de tijolos...

A noite inteira pensou no que falaria para seu amigo. Certamente mentiria, contaria com orgulho sobre sua bonita família, sobre seu emprego, poderia ser até chefe. Inventaria um novo empreendimento, fora da cidade, e falaria que fora promovido pelo belo trabalho que andava desempenhando. Que tinha uma amante linda, loira. Que sua filha estava para casar com um homem honesto e trabalhador e que seus filhos queriam ser doutores.

Depois de ter traçado uma conversa sem chances de deslize, resolveu não ir. Resolveu trancar-se em casa e quando o amigo estivesse cansado de esperar iria embora e nunca mais o procuraria. Tinham combinado às três horas da tarde. Estava com uma tranqüilidade falsa. Quando o relógio gritou três e meia veio a idéia mortal de que o amigo poderia não ir embora; poderia se irritar e vir até sua casa. O amigo seria atendido por uma mulher feia, veria seus dentes podres.

Correu desesperado para o bar do Maneco, deixando uma das chinelas pelo caminho. Encontrou o amigo subindo a rua.

– Ia buscar você. Esqueceu que combinamos?

– Olha, acabei esquecendo. – Disse desajeitado e sem fôlego.

– Veio tão rápido que esqueceu do chinelo?

– É, não queria deixar você esperando mais. – Deixou o outro chinelo ali mesmo.

– Uma pinguinha no Maneco, como combinamos. – Disse rapidamente, antes que o amigo dissesse que queria conhecer a mulher e os filhos.

– Maneco, manda duas aqui, daquela, heim!

O homem descalço contou sobre sua família, seus filhos, seu novo emprego, seu sucesso. Falou tudo sem ao menos gaguejar. Durante duas horas construiu o seu monólogo, dera até mesmo o endereço do novo empreendimento do qual era mestre-de-obras. Seu amigo ouvia com animação. Maneco já havia servido mais de seis daquela boa pinguinha. O homem de sucesso já travava a língua, mas sustentava a sua bonita história de vida.

Seu amigo falou um pouco também sobre a sua família e fez uma escala bastante longa em alguns pequenos problemas que tinha, como por exemplo uma mulher bonita que era sua amante e que não o deixava mais em paz, mesmo depois de ele tê-la espancado.

O trava-línguas ouvia seu amigo reclamar da amante e de outros problemas pequenos, insignificantes; até que olhando para aquele homem não agüentou e explodiu.

– Você é um filho da puta. Desgraçado. Foda-se todos os seus problemas. Você não sabe o que é a vida, cara. Eu não tenho amante, eu não tenho família, eu não tenho emprego. Ou melhor, desgraçado acho que sou eu. Você é sortudo.

– Sortudo! – Gritava.

– Sortudo! – Repetia para todos do bar.

– Sortudo! Esse homem tem família, tem amante, tem tudo, gente.

– Vamos sair daqui! – O amigo, um pouco menos bêbado, deixou uma nota de vinte reais encima do balcão, pegou no braço do homem enérgico e o levou para o carro.

– Me solta, homem de sorte. – Não tinha forças para recusar o movimento que o levou para dentro do automóvel. Saíram como fugitivos.

O trava-línguas logo estava dormindo. Fora levado pelo amigo para a casa deste. Lá foi muito bem acomodado, tomou um café forte e um banho de ferver miolos. Sentia-se envergonhado e pedia a todo momento desculpas para o camarada.

Depois de estar novamente em si, e trancados em um dos quartos, que pertencia a um dos filhos do bom amigo, falou sobre sua falta de vida. Chorou como menino e tornou seu amigo o pai e confidente.

Alguns dias depois, o amigo conhecera a família do ajudado, sua mulher, seus filhos e principalmente sua laje. Lá em cima os dois conversavam durante horas. Um começava a fazer parte do mundo do outro.

Alguns meses depois, o amigo desaparecera. A cada final de semana era esperado, e não vinha. Ligaram para sua casa, ninguém estava. Foram até lá. Ninguém estava. Perguntaram a vizinhos sobre o sumiço. Ninguém sabia.

– Há alguns meses o pessoal aqui viu a família sair com malas, desesperados. Entraram no carro e nunca mais vimos. Até vieram procurar eles, perguntaram pra gente, e falamos o que estou falando pra você. Alguns homens depois invadiram a casa, mexeram tudo lá dentro e foram embora.

O homem tornou-se interrogação e fora pensar na laje. Lá as idéias geralmente vinham. Mas nada veio. Pensou em cada segundo que esteve com seu amigo, desde o primeiro encontro até a última visita. Nada lhe vinha como estranho ou suspeito. O trabalho da lembrança o incomodava, nunca precisara deduzir nada. Não estava acostumado a esse exercício.

– Alô.

– Alô, quem é.

– Sou eu, Raimundo. Não fala pra ninguém que sou eu. Você precisa me ajudar. Tem um pessoal aí atrás de mim. Sabe que quando você precisou eu te ajudei. Preciso de ajuda agora. Vou te dar um endereço, pelo amor de Deus, vá até lá pegar uma coisa. Lá eu encontro você. Não conta pra ninguém, nem pra sua mulher. Você vai? Pode confiar em mim.

– Diz o que está acontecendo?

– Não posso falar muito tempo. Amanhã, às duas da tarde você precisa estar no planetário do parque do Ibirapuera. Pegue um táxi. Arruma dinheiro com alguém, lá vou te pagar, pede pra te levar até o planetário do parque. Lá você vai comprar um ingresso, custa cinco conto, vai entrar como se fosse visita. Eu te acho lá. Por favor, vai.

Antes mesmo que respondesse, o amigo desligou.

– Quem era? – Perguntou a mulher, com um olhar de reprovação.

– Um amigo.

Assim que rosnou para a mulher resolveu ir para o local onde costumava refletir, ou pelo menos para não pensar em nada. Era o que precisava. Olhava para o céu e tentava olhar para si mesmo, atrás de respostas. Mas mal sabia as perguntas. Por momentos resolvia que iria ajudar, logo depois desistia. Acreditava que estava em dívida com ele, afinal lhe ajudara principalmente com as finanças.

– Vou!

– Não, não vou!

Levantou-se no outro dia um pouco mais tarde. No horário em que deveria estar no banheiro estava despertando. Isso fez com que não conseguisse escapar do pedido do filho: "Pai, me dá um real". Levantou-se e pegou o dinheiro na carteirinha de Deputado Federal, entregando três notas de dois reais, uma para cada filho; iam para a escola.

O capital tinha sido dado pelo seu amigo, que pouco antes de desaparecer tinha lhe emprestado o dinheiro da água, da luz, do aluguel e da compra do mês; e esta não fizera, decidiu guardar o dinheiro para alguma eventualidade.

Juntamente com o pedido dos filhos e a visão das notas dadas pelo amigo veio a decisão. Iria ajudá-lo. Às duas horas estaria nesse tal de planetário.

Ouvira falar algumas vezes desse lugar, principalmente pela boca dos filhos. Tentava se lembrar qual deles havia ido em excursão com a escola. Como foi de graça, deixou ir.

Acreditava ser um lugar com cientistas malucos falando difícil sobre os planetas, os satélites e as órbitas. O que lhe dava receio não era muito ajudar o amigo, mas sim o lugar onde este tinha escolhido para o encontro. Poderia ter escolhido algum lugar mais perto, o Parque Vila-Lobos, por exemplo, era do ladinho de casa.

Pensou logo que o amigo estava encrencado com alguma dívida de jogo. Ou até mesmo não teria dado jeito no caso da amante que tivera arranjado. Sendo uma coisa ou outra ajudaria o amigo.

Assim que a mulher se foi para o trabalho ele pegou quatro notas de cinqüenta, que guardava para emergências, e saiu. Exatamente à uma hora chegou ao ponto de táxi que havia bem em frente ao supermercado onde costumava comprar os produtos de primeira necessidade. Um dos taxistas achou esquisito aquele homem que nunca pegara um táxi na vida, vivia de carona em lotação, ali, prestes a alugar um carro.

– Quanto é pra me levar até o Ibirapuera?

– Que lugar do Ibirapuera?

– Para o parque mesmo.

– É longe em chefia, temos que atravessar a cidade. – Já pensando em tomar vantagem do caminho, escolher o percurso mais l-o-n-g-o.

– Quanto é? – Perguntou novamente, sem deixar muito tempo para que o taxista pensasse.

– Olha, com o taxímetro ligado deve dar uns sessenta reais, mas aí levamos a desvantagem se pegarmos algum trânsito. Aí isso pode chegar a uns oitenta, noventa reais. – O taxista sabia que aquele homem se tivesse pegado táxi uma vez na vida teria sido muito, por isso jogou a suposição para as alturas. Na realidade, com o taxímetro ligado, e mesmo com algum trânsito, se fossem por algum caminho alternativo, teria que cobrar, no máximo, quarenta e cinco reais.

– Podemos ir com o taxímetro desligado e fecho em cinqüenta e cinco, tudo bem? É pegar ou largar – Essa expressão geralmente é decisiva.

– Tudo bem, vamos.

Pela falta de experiência, sentou-se no banco da frente. Mas não queria conversa. Estava nervoso.

– O patrão vai fazer uma caminhada? Por que tão longe? – Com interrogações maléficas o taxista provocava o passageiro.

– Não, vou resolver um problema. – Foi taxativo.

– Se for causa de dinheiro e precise de ajuda conheço um pessoal bom.

Sem saber do que o taxista falava resolveu responder só com um "hum" bastante curto e fechado.

O caminho foi feito em vinte e cinco minutos. Pegaram as vias milagrosamente tranqüilas. Assim que o carro entrou no parque o passageiro se surpreendeu com a robustez daquele lugar, com o ar, com as pessoas bonitas, com as bicicletas. O que mais lhe chamou a atenção foram mesmo as bicicletas, de um, dois, ou até mesmo três lugares. Tentava entender como as pessoas conseguiam se equilibrar naquilo. Via algumas pranchas sendo puxadas por cachorros. Passaram por um bonito lago, onde pôde ver alguns pássaros, que não soube dizer a espécie; além de uma bonita fonte, que jogava água para cima fazendo um desenho, como se pulsasse, como se fosse o coração daquele corpo natural.

Depois de uma viagem com silêncio mortal saíram de maneira involuntária algumas palavras de sua boca: "esse lugar é bonito, grande". Motivo para que o taxista desembestasse a falar. Mas o passageiro nada ouvia, queria era sentir aquele ar, andar de bicicleta, de três lugares, e ele se tornaria tão grande que os ocuparia sem o maior esforço.

E falando o motorista parou o automóvel em frente ao planetário.

– É aqui? – Perguntou o passageiro.

– Sim, fica ali, naquela bola. São cinqüenta e cinco reais.

Sentindo-se lesado pagou o taxista. Pensou que se viesse de ônibus economizaria aquele dinheiro.

Como sempre construíra formas retas, aquela curvatura do teto lhe chamou logo a atenção. Gostou da forma e ficou alguns minutos tentando entender como se chegara àquilo. Pôde enxergar o processo de construção de maneiras diferentes, obtendo o mesmo resultado.

Desceu a rampa em direção à bilheteria. Como não costumava ir em cinemas ou teatros não sabia como se comportar na compra de um ingresso. Não sabia se pedira "ingresso", "passagem", "convite", "bilhete", "passe".

Sem mesmo perguntar resolveu entrar em uma fila e esperar. Muitas crianças estavam ali. Algumas pessoas que falavam uma língua estranha, cheia de "esses" e "erres". Mulheres muito bonitas e com roupas que achava um pouco escandalosas.

– Quanto é a entrada?

– Paga meia, inteira ou aposentado. – Disse a atendente.

Ele não sabia o que responder. Sabia que aposentado não era; e não gostou de ser confundido com um. Não sabia o que era meia entrada. Rapidamente, como precisava de uma resposta, veio-lhe à mente que meia entrada só poderia ser para meia pessoa, uma criança. Certamente a bilheteira achou que ele estaria comprando uma entrada para seu filho pequeno, que imaginou ser alguma daquelas crianças.

– Entrada inteira, vim sozinho. – Respondeu com um sorriso de canto.

Com o ingresso nas mãos não sabia muito o que fazer. Viu um carrinho de pipocas e resolveu comprar um saco, da doce e dos grandes. Sentiu-se uma criança saboreando um doce do tamanho do mundo.

Procurou seu amigo algumas vezes. Olhava para os lados a todo momento. Voltou para a fila e lá ficou quieto, olhando para dentro daquele lugar estranho tentando entendê-lo através dos vidros. As portas foram abertas. Logo na entrada deparou-se com algumas maquetes sobre sistema solar e lembrou-se vagamente de ter aprendido algo sobre aquilo na escola. Reconheceu o Sol, mas confundiu Júpiter com a Terra.

As crianças se concentraram na porta principal, que após alguns minutos se abriu. Ficou indeciso se entrava ou não. Respirou fundo, tomou a coragem que não tinha e entrou. Um lugar gigante, redondo, que não tinha teto de tão imenso. Poltronas pretas e confortáveis e um objeto de formato indecifrável no centro. Algo parecido, para ele, com um mosquito gigante, cheio de olhos e patas. E esse mosquito se movia de tempos em tempos, parecia que ia estender suas asas e sair voando pelo teto sem fim.

Sentou-se na primeira poltrona que viu, logo perto da saída de emergência. Pensou logo que se algo acontecesse poderia sair primeiro que todo mundo. E até mesmo puxar alguma criança com ele.

Assim que todos se acomodaram veio uma voz, que parecia ser a do mosquito, mas era mesmo do homem que estava dentro dele, como aquelas vozes de circo. "respeitável público.". Mas essa era menos lúdica. "Senhoras e senhores, o planetário municipal de São Paulo apresenta...".

Procurava o amigo. Pensou que se tinham fechado as portas e as cortinas não entraria mais ninguém. Pensou em levantar-se e gritar por ele. Não o fez.

Após um curto período de silêncio olhava para o teto, imitando o movimento dos estudantes. Viu quando o cinza, que parecia nublado, começou a se tornar tarde, e viu a tarde transformar-se em noite. Tudo isso em apenas um ou dois minutos. E ao mesmo tempo que estava fascinado com o céu, não conseguia tirar por muito tempo os olhos do mosquito gigante, que se movimentava graciosamente. Girava a sua cabeça, levantava as suas patas. Acreditou que o "grand finale" seria o mosquito sair pelos ares e desaparecer em meio ao Universo, e viraria a "constelação do mosquito".

Aquele ambiente, quando tornou-se, definitivamente, noite, mostrou ao espectador que era amigo dos mais conhecidos. O homem fez de sua poltrona um tijolo, fez aparecer entre os dedos um cigarro, fez olhar para o céu com a fidelidade de um cão. Tragava profundamente seu cigarro e jogava a fumaça para cima. Estava, à noite, sentado em sua laje, procurando-se.

"Assim é o céu de São Paulo" falava o locutor com uma tonicidade de grande expectativa. Lembrou-se do locutor do circo, este espetáculo conhecia muito bem, morou, quando criança, ao lado de um dos grandes. No momento em que o homem dizia "RRRespeitável público", quando a linda mulher já estava nas alturas, prestes a se soltar e servir de pêndulo, "este é o incrível momento. Ela irá em direção ao outro lado e não há redes de proteção".

"Como seria se não houvesse poluição? Vamos mostrar!". Naquele momento a simples noite de sua laje se tornou, com um fundo musical de Carmina Burana, um mar de estrelas. Então encontrou o que tanto procurava durante anos: céu que explodiu em brilho. O homem se encontrava em cada ponto de luz.

Escutou com muita atenção todas as explicações, assim poderia, durante a sua madrugada, tentar achar também as constelações e as principais estrelas, ou até mesmo alguns planetas. Acabou também por descobrir que aquele planeta que tinha apontado na maquete não era a terra, esta era muito menor, quase imperceptível.

Pensou que, assim que terminasse, o seu amigo já estaria lá fora esperando por ele. Iriam até um bar qualquer. Achava que ali perto deveria haver algum. Iriam beber, dançar, cantar, e dar uma volta pela lagoa. Ele iria falar sobre o resultado da ajuda financeira que o amigo lhe dera. Queria ouvir as histórias do companheiro e principalmente alguma explicação sobre o repentino desaparecimento.

Final do espetáculo. O homem saiu com tonturas, provocadas pelos faixes de luz e por ficar durante muito tempo com a cabeça voltada para cima. Isso também lhe deu uma leve dor no pescoço.

Esperou para que os estudantes saíssem, assim podia acompanhá-los até a saída mais próxima. Foi. Assim que saiu da sala que não tinha teto procurou por todos os lados o amigo. Foi rapidamente ao banheiro e assim que entrou em um reservado foi abordado por um homem que vinha de boné vermelho, óculos escuros e blusão azul. No momento em que ia fechar a porta este homem impediu o movimento.

– Deixa eu entrar. – Disse com voz nervosa.

– Ei, espera aí. Tem gente. Já tô saindo. – Pensou se tratar primeiramente de um assalto; mas em um banheiro seria pouco provável; depois, por alguns rápidos instantes, pensou se tratar de um gay querendo se divertir.

– Sou eu. – Retirando rapidamente o boné e os óculos, fazendo-se reconhecer.

O homem assustado deixou o amigo entrar e fechou rapidamente a porta. Alguns usuários logo perceberam, mas nada falaram; a não ser um senhor que resmungou para que ouvissem "em que mundo estamos!".

– Por que está aqui desse jeito? Está se escondendo de alguém? E o que é isso no seu olho e na sua boca? – Perguntou observando duas manchas escuras, uma ao redor do olho direito e outra entre o queixo e o lado direito da boca.

– Eu não posso te explicar agora. Aqui está o dinheiro que você deve ter gastado para vir até aqui. E, escuta bem, pelo amor de Deus. Preciso que me faça um favor de irmão. – tirou da mochila jeans um pacote grande, desengonçado, embrulhado com papel de presente com figuras de rosas. – Você precisa sair daqui rápido, pegar outro táxi e ir até a Morro do Urubu, na zona leste, na Vila Prudente. Logo na entrada da favela, pela avenida Dianópolis, vai ter um cara te esperando em uma perua branca, na frente de um bar chamado Birita. É só parar o caro e entregar isso aqui para ele. Ele já sabe quem você é. Se você não levar isso agora eles vão atrás de você também. Pelo amor de Deus. – Seus olhos estavam úmidos e com olheiras profundas. Sentiu desespero no amigo e mesmo sem pedir mais explicações pegou o embrulho, colocou novamente na mochila, despediu-se e saiu; enquanto o homem do olho roxo desmoronou a chorar no reservado.

Saiu do banheiro sem mais vontade de usá-lo. Abriu a porta com tamanho desespero que quase levou consigo um senhor que ia entrando.

Com a mochila nas costas o homem das estrelas saiu em disparada pela rua Antônio de Queiroga, encontrando um pouco à frente um ponto de táxi.

Respirando fundo, afim de retomar o fôlego, e não perguntando antecipadamente o preço, até porque naquele momento estava somente pensando em salvar o amigo do que quer que fosse, pediu para que o levasse para o Morro do Urubu, na Vila Prudente.

O taxista logo se assustou e disse que não se arriscaria a levá-lo tão longe e para lugar tão perigoso.

– Quem é o senhor e o que quer em um lugar como aquele?

– Não sou ninguém e não quero nada. Só chegar lá o mais rápido possível. Quanto é?

– Me desculpe, mas não vou levar.

– Isso paga? – Tirou do bolso um maço generoso de dinheiro que o amigo tinha lhe dado para pagar as despesas imediatas. Tirou dele três notas de cem e as colocou frente ao motorista.

– Sim, isso paga. Mas te largo lá e venho embora. E, aliás, não o conheço e o senhor nunca pegou táxi comigo. Tudo bem?

– Tudo bem. Vamos logo.

– Só preciso avisar uma coisinha para um amigo. – Viu quando o taxista se aproximou de uma roda de dominó, repleta de outros taxistas; chamou um de lado e conversou durante uns quinze segundos, deixando na sua mão uma das notas dadas pelo passageiro desesperado.

Quando o passageiro ia entrar no primeiro caro da fila, que julgou ser o do homem, foi impedido por ele.

– Não, não, vamos com outro carro. Este daqui, por favor. Quer que coloque a mochila no porta malas? – Apontava para um dos carros que estava no final da fila, provavelmente daquele outro taxista, que, por questão de segurança e amizade, o alugou.

O passageiro recusou a viagem da mala longe de si. Queria durante o caminho verificar do que se tratava o embrulho. Logo que o motorista pisou fundo, a pedido desesperado do outro, foi aberta a mochila, escondido para que o taxista não visse nada pelo espelho retrovisor.

Aberto o presente, havia nele pacotes de droga, muitos e dos mais variados tamanhos, em pó, em pedra, em mato, em pílulas.

O passageiro nunca tinha visto tamanha quantidade de drogas. As únicas que conhecia intimamente e fazia uso era o tabaco e o álcool, mas sabia que com essas dificilmente teria problemas com a polícia. Tentou esconder a mochila. Suava frio. Pediu para que o taxista ligasse o ar condicionado. Já estava ligado. Tentou puxar conversa com o motorista.

– Olha, não me leva a mal. Só estou te levando por causa da grana. Não vamos conversar sobre nada. Eu não te conheço e se acontecer alguma coisa eu te peguei na rua e estou te levando para o centro da cidade. Não quero saber quem é o senhor e nem o que leva nessa mochila; de onde vem e muito menos o seu nome; como não quero que o senhor saiba nada sobre mim. Não o conheço e nem o senhor me conhece. E assim ficamos. Tudo bem?

– Tudo. – Respondeu sem ter ouvido muitas palavras.

Foram pela Vinte e Três de Maio, um pouco congestionada, fazendo algumas costuras pelo centro logo pegaram a avenida dos Estados, livre. Há trinta minutos da saída já estavam passando pela Henry Ford e chegando à avenida Dianópolis. Um lugar bastante singular, com calçadas de meio metro e sobrados que tinham o segundo ou terceiro andar maior que o térreo, por isso transbordavam por cima das calçadas. Mulheres e crianças nas ruas. Algumas carcaças de automóveis, queimados ou desmanchados. Muitos, muitos bares.

Assim que o taxista informou ao passageiro que estavam entrando na avenida desejada, este pediu para que fossem bem devagar. O motorista então, e para evitar um buzinaço, ligou o pisca alerta e, como se estivesse com um dos pneus furado, andou a passos de bêbado.

– Deve ser ali. Tem uma perua. Passa bem devagar pra ver se o bar se chama Birita.

– Tudo bem.

Viram o bar, Birita, viram a perua branca, que não se tratava realmente de uma perua, era parte dela, somente o esqueleto, sem portas ou eixos.

Assim que o táxi emparelhou com a perua, saíram dela três homens armados e descarregaram seus brinquedos no passageiro e no taxista.

...

"Pai". Ouvia em eco e com muita dor de cabeça.

– Pai! Você está bem?

– Filho? É você? – Atordoado e vendo somente em borrões, após alguns minutos reconheceu o filho, que explicou ao pai que este estivera ali, em coma, durante quatro semanas. Também dizendo em quais circunstâncias o pai fora achado.

– Acharam alguma coisa comigo?

– Muito dinheiro.

– Só isso?

– Sim. E deveriam achar mais alguma coisa?

– Não, filho.

Conversaram durante algum tempo. O pai sentia muito sono. Às vezes cochilava rapidamente, depois voltava a falar. Perguntou sobre seus outros filhos e sobre a mulher. O mais velho informou, com medo da reação do pai, a nova moradia da família. Estavam em um abrigo arranjado pela polícia. "Eles daqui a pouco virão aqui para falar com o senhor, sempre ficam uns dois policiais aí fora". Disse que a mãe estava sempre nervosa e ela costumava dizer que seu marido havia morrido para ela. "Ela acha que você está metido com bandidagem. Não quer te ver mais.".

– Onde vocês estão? – Perguntou o pai, quase fechando os olhos de sono.

– Em uma casa pequena, em Ferraz de Vasconcelos. E sempre fica algum carro lá pra olhar a gente.

Sentiu sono e dormiu profundamente.

Algumas horas depois acordou e viu o filho arrumando algumas roupas em uma mala. Ainda sem a visita da mulher, soube pelo filho que o amigo que o ajudara tanto estava morto. Não souberam explicar muito bem as circunstâncias.

Duas semanas depois deixava o hospital junto do filho, que o levou para a nova casa. Em uma viatura de polícia chegaram ao extremo leste da grande São Paulo.

A casa onde a família fora alojada era definitivamente pequena, apenas um cômodo e não havia laje. Fora construída com material barato e fora coberta somente com um forro de madeira e telhas que tremias com o vento.

O reencontro com a mulher fora difícil, frio. Explicou tudo o que sabia sobre o dia em que fora baleado. Falou detalhadamente sobre o amigo. Negou qualquer contato com drogas. Falou que não sabia o que havia dentro da mochila. A mulher não acreditou no discurso, mesmo emotivo e aparentemente sincero.

A mulher acusou o marido de ter se deixado envolver com pessoas que não prestavam. Ele defendia o amigo, tetando apresentar argumentos como "ele me ajudou", "ele me deu dinheiro para comprar o que a gente precisava", "ele conversava comigo sem me julgar". Ela rapidamente rebatia todos eles "ele te levou para o inferno", "ele te deu dinheiro sujo", "ele tinha o dedo imundo".

Assim levaram algumas semanas em discussões que pareciam intermináveis. Fora quase sincero como a mulher, com os filhos e principalmente com a polícia; desta tinha verdadeiro medo.

A mulher, em uma das brigas, não obedeceu a recomendação de um dos investigadores que cuidavam do caso, que dizia para não contar ao marido sobre as constantes ameaças que a família sofria, principalmente por intermédio do filho mais velho. Disse para o marido que o filho estava sendo ameaçado, que antes de serem mandados para lá, e ser obrigada a deixar o trabalho, fora ameaçada diversas vezes por homens que não conhecia.

Certa vez fora pega à força quando passava por uma rua do centro e levada para dentro de um automóvel. "Dentro do carro alguns homens me perguntaram sobre alguma coisa que estaria com você e que era deles." Não sabia o que responder. O filho era ameaçado pelo celular e por alguns novos conhecidos da escola.

O homem tomou coragem e a partir daquele momento resolveu que ia dar um basta em tudo. Procurar os seus acusadores e explicar que tinha caído em uma cilada. Não o fez.

Em uma segunda feira, na espera de o filho chegar em casa, o homem desconfiado deixou passar as horas. O filho não chegou naquele dia, nem no próximo. Na quarta-feira o filho fora encontrado todo machucado e desacordado em uma das linhas do trem da CPTM, na zona oeste.

Com a explicação do filho, que dava a cada evento uma facada no pai, soubera que fora torturado e solto para dar um recado ao homem devedor. Que este estava em dívida e logo teria que pagar. Em uma conversa a sós com o pai, o filho disse hora e endereço para que o homem pudesse saber o montante da dívida.

Um escritório na rua Barão de Itapetininga. Bonito, muito bem decorado, com fachada de agência de empregos. Tinha até uma bonita porta de vidros escuros, o que mais chamou a atenção do devedor.

Procurava pelo senhor Adalberto. Fora acompanhado a um escritório no final do corredor e apresentado a um senhor muito bem arrumado. Este não tinha gravatas, mas usava sapatos que brilhavam como diamantes, e tinha barbas muito bem feitas, que cobriam perfeitamente suas bochechas.

O homem dos sapatos brilhantes pediu para que o outro se sentasse. Sentiu que a poltrona era muito bem feita, de couro legítimo. Ele conhecia couro. Rangia quando pressionado. Mas a tensão não deixou com que o devedor se acomodasse para discutir sobre negócios; o que lhe foi proposto.

– Já sei quem é o senhor – falava com extrema calma, educação, e sem tirar os olhos dos olhos do outro -, sei sobre todos da sua família. Conheci seus amigos. O senhor perdeu algo que não lhe pertencia. Acabou, ingenuamente, caindo em uma tocaia, como dizem pessoas como o senhor. Agora temos, ou melhor, o senhor tem que recuperar a carga. Caso isso não seja feito, não sobrará ninguém da sua família para contar a sua história. O senhor já matou alguém?

Não conseguia responder, pois viera em sua mente os familiares mortos. Pensou em se levantar e se atracar com o outro, pegá-lo pelos colarinhos e matá-lo ali mesmo. Matando ou não aquele homem, se não aceitasse o negócio, perderia sua família. Antes de responder, suado, teve vergonha de si quando pensou que não seria de mal negócio perder a família.

– Não!

– Pois para tudo há uma primeira vez. O senhor vai procurar algumas pessoas e resolver algumas pendências. Um rapaz que está com parte do que me pertence, chama-se Roberto Magalhães, conhecido como Betinho. Um playboy que acha que pode me passar para trás. Comprava de mim, mas virou a casaca. O senhor me entende? Resolveu ter mais lucro e começou a comprar do concorrente, que coincidentemente aplicou aquela peça no senhor e no seu amigo taxista. Um homem chamado Joel Pereira, funcionário público, trabalha com documentos, pai de família, morador do centro da cidade, comprava para mandar para fora do país junto com algumas documentações do Estado, coisa fina. Também ficou sabendo de novas ofertas no mercado, acabou trocando de fornecedor. E também um tal de Pitoco, que ficou com a última leva que me pertencia, esse é peixe pequeno. Pode comê-lo com vinagre, se é que o senhor me entende.

O desesperado ouvia com muita atenção: pegando, em convulsão, um pequeno bilhete que tinha que ser decorado ali, com os nomes completos, endereços, lugares que freqüentavam, e ainda algumas dicas de como chegar sem criar alarde. Decorou mal decorado.

– Depois disso o senhor deixa a minha família em paz. Pelo amor de Deus.

– Acredito que sim. – Deixando transparecer um sorriso incrédulo.

– Você tem quatro dias para resolver essas pendências. Agora o senhor será levado. E vá com tranqüilidade. Receberá algumas coordenadas adicionais etc.

Não sabia o que era etc. Depois fora entender que seriam arma, munição e droga para consumo próprio. Nunca usara coisas parecidas; mas pela família, e mais pela própria vida, saiu determinado a cumprir com sua obrigação. Recebeu os objetos de homens rudes e de tamanho sobrenatural. "Essa é boa, acaba com o cabra só com um tiro", "acho que esse número é suficiente", "quando uso isso, isso me dá muita coragem, mataria um exército", ouvia enquanto recebia respectivamente a arma, a munição e um pacote médio, do tamanho de uma carteira, de cocaína.

Chegou em casa com uma fisionomia que não lhe era comum. Cumprimentou um guarda que estava na viatura, em frente a casa. Entrou e olhou para a mulher com medo e para os filhos com amor. No único cômodo da casa pegou uma mochila, encheu-a com roupas, como se fosse para um velório pegou as mais escuras e novas. Sem se despedir da mulher, da filha e do mais novo saiu, chamando o mais velho para fora.

– Vou resolver tudo de uma vez por todas. Cuide da sua mãe e de seus irmãos.

Mesmo acreditando não ser suspeito de coisa alguma, aproveitou-se de uma distração do guarda, enquanto este fazia algumas palavras cruzadas e ouvia a freqüência FM, e saiu escondido.

Na mochila algumas roupas, droga, a arma que recebera e pouca coragem. Entrou em um ônibus com destino ao Terminal D. Pedro II. Sentou-se logo no primeiro banco, daqueles que são reservados para idosos, deficientes e grávidas. Julgou-se grávido de uma dor e um desespero que logo teria de nascer.

Durante todo o caminho pensou na família, principalmente na mulher, que lhe fizera tão mal, mas certamente sentiria saudade se não a visse mais. A perda dos filhos talvez não suportasse. Pensava em como iria abordar aquelas pessoas que certamente não teriam medo dele. Por alguns instantes veio-lhe o desejo de se matar, mas logo desistiu.

Já no terminal embarcou em outro ônibus, para que o levasse ao Largo do Paissandu, lá conhecia um pequeno hotel que poderia servir de guarita, e nele ninguém desconfiaria de nada. Alojou-se na rua do Seminário, Hotel Paissandu.

Pediu a suíte no andar mais alto que tivessem, assim poderia, nas noites que iria perder, ao menos olhar as estrelas. Instalou-se no quarto 513, no quinto andar. Entrou no quarto, que era pequeno, mas muito bem ajeitado; com espelhos em todos os lugares, até o teto contava com eles; dando uma sensação de amplitude. Gostou deles, achava-os chique por sempre vê-los nos quartos de madames nas novela.

Logo foi pesquisar o banheiro. Se abrisse os braços ainda faltaria espaço para alongar-se. Sentou-se por alguns instantes no vaso sanitário, olhou novamente o ambiente. Era limpo, com sabonete, sachês de shampoo e dois pares de sandálias de plástico. Mesmo de sapatos verificou, colocando os pés ao lado, se elas serviriam.

No quarto, olhou pela janela e não gostou do que viu, a inclinação do vidro impedia a vista para o alto, mas abaixo ficou fascinado com a movimentação das pessoas. Eram bonecos que se moviam com rapidez, pôde até perceber um batedor de carteiras trabalhando. Era rápido, logo sumia pela esquina do largo.

Deitou-se na cama, para ver se era confortável. Era. Entrou em conflito com os controles do balcão. Ligou o som querendo ligar a TV. Depois ligou a TV querendo ligar o ar condicionado. Acabou por ficar com tudo ligado. Passeou pelos canais da TV. Era a cabo; pois logo no primeiro canal ouviu "Depuis la fin du XIIe siècle, les bâtiments du Louvre dominent le coeur de Paris ; situés aux limites de la ville, ils ont été peu à peu rattrapés par elle puis englobés en son centre. Dans le même temps, la sombre forteresse des débuts effectuait sa mutation pour devenir la résidence modernisée d'un François Ier puis le somptueux palais du Roi-Soleil. C'est l'histoire de cet édifice et du musée qui à partir de 1793 en a occupé les salles que nous vous proposons d'explorer.". Tentou entender algumas palavras como "siècle", "limites", "à partir", "vous"; mas sem conseguir achar ligação entre elas resolveu trocar de canal. Mexeu na pequena alavanca no balcão e isso fez com que a TV começasse e gritar. Voltou a alavanca e mexeu na que estava do lado. Passou pelos conhecidos, no primeiro passava um desenho de uma família de ursinhos, no outro um programa de notícias que falava sobre o assassinato de uma criança. Não achou interessante. Logo depois a sessão da tarde, com um filme que ele logo reconheceu: uma menina caía em um poço abandonado, e durante todo o filme os bombeiros e a polícia tentavam tirá-la. Trocou. Um programa para mulheres. Outro para mulheres. Outro para mulheres. Um para homens: "Oh, yes, fuck my pussy, baby". Assustou-se, há tempos não assistia a um filme pornô e há mais tempo ainda não fazia amor com sua esposa. Isso lhe dava más lembranças. Resolveu voltar para o filme da menina do poço, mesmo sabendo que esta seria salva.

Lembrou-se de seu objetivo e saltou da cama. Puxou a mochila e dela começou a retirar suas roupas, dobrando-as de maneira rudimentar, a arma que tinha recebido para executar o trabalho e o saquinho branco. Já tinha visto em filmes os resultados de se aspirar aquilo. Lembrou-se principalmente de um filme hollywoodiano, em que um homem, para obter coragem para matar a sua esposa, cheirou cocaína; como se tratava de um filme americano, e tudo neles é mostrado de maneira exagerada, o personagem cheirou alguns bons centímetros da droga. Como não tinha achado dentro de sua mochila também coragem, para fazer o que precisava sem a ajuda de algo, resolveu fazer o mesmo que o personagem do filme.

Sentou-se à mesa, pequena, que ficava ao lado da porta. Era de vidro. Abriu o saquinho, que era do tamanho de um punho fechado de uma mulher. Desfez o nó bem feito. Não sabia manusear aquela substância frágil. Nervoso respirava fundo, levando assim algumas pequenas nuvens para longe da fila, tendo que arrumá-la constantemente. Pensou em si, na família e no "isso te dá coragem, muita coragem, mataria um exército" e aspirou, tampando uma das narinas, pois vira no filme que era assim que se fazia.

Sentiu arrepio e coceira, depois de alguns segundos sentiu arder as narinas, e essa ardência percorreu lentamente todo o canal respiratório. Deitou-se novamente, assustado com as sensações que nunca havia sentido. Ardência em todo o percurso, subindo para a testa e tomando toda a cabeça. Depois levando a uma moleza e sensação de leveza, depois uma rigidez involuntária dos músculos e tremedeira, não o deixando permanecer deitado. Queria movimento e lembrou-se perfeitamente do papel que havia decorado, como em uma fotografia. Veio-lhe flashes da família e do céu, daquele que via em sua laje. Podia pegar as estrelas. Via a constelação do mosquito.

Descartou uma idéia rápida de banho, queria andar e mexer os músculos, poderia correr vários quilômetros com a energia que estava guardada nele. Gritou. Gritou novamente. Pegou sua jaqueta, a arma e saiu.

Andou pelo centro por algumas horas. Passava algumas vezes pelas mesmas ruas. Ia pelas mais largas, pois nelas o caminho era mais claro, julgava-os mais seguros. Parou no Largo do Paissandu após dar algumas voltas pelo jardim central. Alguns camelôs percebiam a companhia nada comum; viam o homem andar com o pescoço esticado, como se encarasse um adversário em um ringue de luta livre. Seriamente passaria por cima de alguém que cruzasse seu caminho. Sentia seus braços fortes, seus músculos com mais fibra, suas veias dilatadas. Também suas vistas, que enxergavam longe, definidamente, e perto, poderia ver tão bem que veria além. Uma mulher passava devagar, olhando para o homem incomum, para ele, ela passava correndo. O tempo não era comum, estava acelerado. Sua cabeça estava quente e sentia vontade de batê-la em algum lugar; parou em frente a uma árvore, encostando a testa nela e a pressionando sem cuidado. Sentiu um fio de sangue escorrer da testa em direção ao queixo, passando pelo olho direito. Longos minutos ficou abraçado à árvore. Os trabalhadores passavam. Com o rosto vermelho voltou para o hotel e já no quarto, ainda com suas roupas, desabou na cama e, com a porta do quarto semi-aberta, sonhou com um céu sem estrelas.

Na manhã seguinte, após retirar com a unha a faixa de sangue que lhe partia a cara em duas, foi em direção a rua Conselheiro Crispiniano em busca de sua primeira apreensão e assassinato. Lembrou-se do que teve de decorar "Betinho, domingo, audição no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, 9 horas, entrega de droga.". Após mais uma carreira da droga, mais generosa, foi.

Via as pessoas passarem rapidamente. Como lince olhava para o final da rua. Ganhava todas as sensações, ouvia mais, sentia mais, cheirava mais, olhava mais. Tinha uma percepção da cidade que jamais tivera, via as almas.

No seu destino, procurava em meio a multidão o garoto, mas ali havia muitos iguais – os adolescentes são muitos parecidos – Perguntou para o que parecia ser um dos funcionários, vestia-se de maneira engraçada, com um cachecol todo colorido, em listras; era branco e baixinho, mexia em um grande controle, parecido com uma mesa, de onde entravam e saíam infinitos cabos. Ali este homem tinha o controle de tudo, aumentava e diminuía os sons, deixando-os mais graves ou mais agudos. O homem de cachecol apontou, pelo nome que conhecia, Betinho, o menino que iria iniciar a nova música, com um solo de violino. Olhou-o e resolveu esperar do lado direito do palco, em distância mediana. Viu quando o menino entrou em desespero logo depois de olhar em sua direção. Ambos assustaram-se e se reconheceram. O menino já havia sido avisado que seria cobrado e pagaria pela quebra do contrato.

Foi em direção ao menino, que havia corrido para dentro do Conservatório, que mais parecia uma escola pública. O homem correu e viu que dois garotos entraram no banheiro. Esperou até que saíssem de lá para pegá-los. Daria um tiro no negrinho e levaria consigo o branquelo. O mulato saiu. Esperou que o outro o seguisse. Nada. Resolveu entrar e resolver as coisas ali mesmo.

Entrou no banheiro e encontrou o menino todo encolhido ao lado de um vaso sanitário. Ambos estavam com muito medo. O homem tremia dos pés à cabeça. Sua boca estava seca e seu nariz escorria. Resolveu dar um tiro na cabeça do menino; mas assim não resolveria o problema, não sabia se a mercadoria estava ou não ali.

Quando o menino o viu sentiu um frio que o percorreu por toda a espinha, resultando em um grito.

– Seu filho da puta, cadê o bagulho, pensa que é assim, chegou, pegou e nada, fica tudo numa boa? – O homem, com os músculos rijos e o cérebro em explosão, personificou o mais perigoso traficante, mesmo com algumas falhas na entonação e desafinando em alguns pontos.

– Não, cara, não. Eu tinha o resto do pó.

– Cadê, filho da puta?

Sentiu a presença de alguém. Era o outro menino.

– O que você quer, moleque.

– Só quero fazer xixi.

O homem, fora de si, voltou-se novamente para o branquelo e para ele direcionava gritos e tapas, dando, afim de assustá-lo mais, murros fortes na divisória de madeira.

– É a última vez que vou perguntar, cadê o meu bagulho, seu filho da puta? – Irritando-se sobremaneira e retirando da cinta o revólver, ia usá-lo pela primeira vez. Sua boca estava seca. Apontou-o em direção à cabeça do menino. Seus olhos ferviam. Pegou o menino pelos cabelos e o levantou, jogando-o com força para o chão.

– Eu tinha tudo pra te dar, estava tudo separadinho em meu estojo. Aí veio um filho da puta, roubou o meu dinheiro e o pó também. Foi aquele filho da puta, ele está com o meu estojo e levou o bagulho.

O homem olhou com atenção e raiva para o mulato, mudando de alvo. Viu quando um dos estojos do garoto abriu e dele caiu o que procurava. O menino rapidamente pegou o material e correu.

– Vem aqui seu filho da puta.

Os dois saíram em disparada. O menino conhecia muito bem o lugar. Subia e descia as escadas como um raio. O homem o seguia sem o perder de vista. Suas pernas doíam. O atirador passava entre as pessoas como se ali não houvesse ninguém. Mirou somente o garoto e em sua direção corria, levando quem estivesse em seu caminho.

Saíram pela portaria, seguindo a Conselheiro Crispiniano. Passavam por sobre mercadorias de camelôs; quando não derrubavam algumas barracas. Na esquina da Barão de Itapetininga o menino deixou um dos sapatos e o casaco, o homem não entendia aquele movimento. Viu quando o menino foi propositalmente em direção à concentração de pessoas, que viam um espetáculo de rua qualquer.

Perdeu-o de vista e resolveu esperar. Sua boca estava seca. Observou obstinadamente cada grupo de pessoas, e sabia que em algum desses o menino se escondia. Deu um tiro para o alto. Todos começaram a correr desesperadamente. O homem pôde observar, tornando-se o centro de tudo, todos os movimentos, até que viu o menino corcunda indo em direção a Casas Bahia.

Entrou na loja e observou todo o andar térreo, vazio. Via algumas pequenas cabeças que às vezes se mostravam por sobre as prateleiras. Algumas mulheres gritavam. Seus olhos ferviam. Parado observava. Sabia que o menino estava ali.

Viu quando o garoto correu corajosamente em direção às escadas. Atirou em direção à sombra. Correram em direção às escadas e o homem atirava nos resquícios do menino. Atirou pelo vão das escadas. Subiu devagar os dez andares da loja. O prédio estava vazio, ou se houvesse gente certamente estaria escondida. No décimo andar o homem chutava as prateleiras e derrubava mercadorias afim de encontrar o mulato.

– Seu desgraçado, vou pegar você, eu posso não sair daqui vivo, seu filho da puta, mas você também não sai. Eu vou te pegar.

Alguns objetos eram jogados para cima, afim de chamar a atenção do atirador. De um lado voavam bonecos e do outro, em um flash, o menino, como um rato de seu esconderijo. Ouviram-se três tiros. Um deles acertou um dos pés do rapaz, que gritou.

O homem escutou vindo das escadas voz de prisão, policiais estavam já prontos para invadir o andar. Sabia que o menino estava detrás de uma pilha de brinquedos, monecos do Mickey, atirou suas duas últimas balas e correu em direção ao outro pavimento. Desesperado, pois sabia que se fosse pego certamente seria morto, resolveu se utilizar de um pequeno elevador de mercadorias, que o levou em segurança para o subsolo do prédio, assim dando fácil acesso ao térreo, e à rua.

Como alternativa de fuga, resolveu descer as escadarias do metrô. Embarcando em um trem sem que soubesse o destino. Na estação Sé desceu desesperado. Embarcando na linha azul, descendo na estação Paraíso, pois o nome lhe chamou a atenção. Desembarcou na estação Sumaré, seus olhos ferviam. Saiu pelas catracas e subiu as escadas afim de escapar, mas logo nas catracas viu policiais. Seu cérebro fervia. Desceu novamente as escadas com pressa, com passos que pulavam dois degraus. Passou novamente pela catraca, mesmo sem ter passagem, forçou-a de tal maneira que ela destravou. Assustados, os passageiros ficavam estáticos enquanto aquele homem passava feito um raio por entre eles. Em zigue-zague passou pelos obstáculos que tentavam fechar o seu caminho na escada rolante. Ouviu o apito que indicava o fechamento das portas do trem; e isso funcionou como sinal para o sprint final. Durante o percurso não via pessoas, somente os movimentos. Marcas, borrões que se movimentavam ligeiramente para todas as direções. Correu e colocou as mãos entre as borrachas da porta, afim de impedir seu fechamento.

As portas se abriram novamente. Sentia todo o seu corpo tremer. Via pessoas, ou pelo menos as sobras delas, que eram grandes e assustadoras. Assustou-se com uma e tentou pegá-la, tentou socá-la, sufocá-la, era a sua mulher. Tentou matar a sombra da mulher. Sentia a boca seca. O choro veio-lhe como tufão e invadiu todos os sentidos, tampou-lhe os ouvidos e as narinas, mas abriu-lhe a garganta para que viesse com o choro um grito que lhe fez tremer os lábios. Rouco como uma buzina de caminhão.

E como um caminhão de dez eixos foi para cima da sombra de mulher, era a sua mulher. Estrangulava-a sem medo de que alguém o impedisse, e quando não sentia mais sinais vitais se soltou dela.

Na estação seguinte saltou e correu como se estivesse querendo alcançar alguém, ou como se estivesse em uma prova de rapidez; subiu com cuidado e, percebendo que não havia policiamento algum, a não ser alguns urubus que olhavam seriamente para os passantes de catraca, saiu como se estivesse indo, com a marmita na cinta, bater o cartão de ponto. Para a sua sorte, havia uma parada de ônibus frente à estação, com o dedo em riste fez sinal, era o "Terminal Pedro II" – Em São Paulo todos os ônibus levam ao Terminal Pedro II.

Cansado chegou ao hotel e lá teve um sono de príncipe, com o ar quente forte nos pés, após um banho.

No outro dia não quis almoçar. Fez uso de mais um punhado de cocaína, perfilado em três carreiras. Aspirou-as com vontade. Deitava-se por alguns instantes, até começar a sentir os efeitos da droga, que vinham do cérebro e se espalhavam por todo o corpo, como se o ligasse em voltagem 220. Assim que não mais conseguia ficar imóvel na cama, pois a eletricidade o fazia se mexer cada vez mais rápido, levantava-se aos pulos. Levantou-se, pegou a arma que estava em cima do balcão, colocou-a na cinta e saiu rapidamente. Desceu as escadas do hotel de cabeça baixa, assim ninguém poderia ver os seus olhos, que começavam a ferver.

Foi em direção ao Edifício Copan. Chegando logo perguntou pelo morador do apartamento 98. O porteiro logo se referiu ao senhor Joel, sem deixar de deitar para este alguns elogios. Um homem bondoso e com uma família linda. Agradeceu a informação e pediu se podia entrar para beber alguma coisa na cafeteria. "Fique à vontade". Entrou e conseguiu chegar ao primeiro lance de escadas. Subiu rapidamente, de cabeça baixa, com os olhos em chamas e com as veias saltadas. Parou em frente ao apartamento 89. Ainda olhou para verificar se era mesmo o número que o porteiro dissera. Confirmou e resolveu não bater, sentou-se nos degraus de quem sobe e lá ficou, por bons minutos, em tremedeira e com o nariz escorrendo. Ouvindo barulho nas escadas encostou-se na parede. Viu-me entrar carregando Márcia nos braços. Deduziu que era o senhor Joel, mas pelo estado que ambos estavam, eu e Márcia, resolveu esperar que eu saísse sozinho. Esperou ali durante horas. Até que resolveu bater. Bateu. Bateu. Nada. Pensou em arrombar a porta, mas logo encontrou com o síndico, que achara aquela figura estranha e resolveu perguntar por quem procurava. O homem não respondeu e desceu.

Do bolso, já no andar térreo do edifício, tirou um pequeno papelote, deitou a cocaína na carteira e, no canto direito das escadarias, inspirou mais duas carreiras pequenas. Saiu louco e sentindo se queimar por dentro. Foi sentido a sua 7 de abril; lá resolvera a pendência, pensado ter fritado o peixe pequeno, após fritar alguns da mesma espécie; mas logo descobriu que não o fizera. Durante a noite, após abastecer-se de coragem, encontrou Pitoco na avenida São Luís.

No outro dia, após uma noite conturbada de sono, sonhara com a mulher e com os filhos, tinha que resolver mais um problema; voltar a algumas pendências com Joel, o último. Pediu uma pizza brotinho com coca-cola, depois abasteceu o cérebro de substância branca e voltou à portaria do edifício Copan. Resolveu esperar um pouco, assim não transpareceria nervosismo, subiria com a desculpa de tomar mais um café. Seus olhos ferviam. De repente vira Joel passar na sua frente e virar a esquina. Resolveu esperar um pouco para não levantar suspeita, até que percebeu que o mesmo homem passou novamente. Sabia que não iria contar com a mesma sorte novamente e resolveu segui-lo. O homem percebeu e apertou o passo, passaram pela mesma esquina algumas vezes. Cruzaram a avenida São Luís, passando pela rua da Consolação, avenida Ipiranga, novamente avenida São Luís.

Pensou que propositalmente o homem entrara em um teatro, o mesmo que Pitoco freqüentava para distribuir sua mercadoria com discrição. Seguiu-o com cautela e entrou na casa de espetáculos já com a mão na cinta. A coincidência entre o lugar usado por Pitoco e a fuga de Joel só poderia ser a certeza de que estava atrás da pessoa certa.

Vasculhou o corredor sujo, o ambiente o incomodava sobremaneira, pois respirava como ninguém, ouvia como ninguém, sentia como ninguém. Seguia a sombra de Joel. Viu-o passar pelas cortinas, que eram sujas. Esperou alguns instantes para entrar. Logo acabaria com a tocaia, dando pelo menos dois tiros no devedor, vasculhando seus bolsos e saindo dali antes que chamassem a polícia.

Afastou as cortinas e logo recebeu um golpe de luz que o cegou completamente. Um som que o ensurdeceu. Entrou e esperou ao lado, para não dar de encontro com alguém, até que suas retinas acostumassem, e demoraram. Quando conseguiu discernir os objetos viu o palco e fileiras de poltronas, homens sentados e mulheres que transitavam, viu Joel, assustado e o encarando, olhou para o palco e viu uma mulher linda, que se desmanchava em curvas e pernas e bunda.

*

Antes mesmo que ele se virasse novamente levantei-me e fui para o fundo do teatro. Lá escutava, além dos sons de música e vídeo, gemidos e gritos de mulheres, agachadas, encostadas nas paredes, violentas.

E as paredes tinham cores, roxa, rosa, que se transformavam em azul e depois em preto. Muitas sombras nas paredes, no chão e luzes coloridas. O som transformava-se em eco em imagem poluída, líquida. Enquanto isso o observador me procurava, incessante no mar de poltronas. Os homens olhavam como se nada estivesse acontecendo. Ninguém se levantou para me ajudar. Retirou sua arma da cinta e deu um tiro para o alto. Marcela foi a primeira que correu, deixando pra trás uma das pernas.

Os homens que estavam perto de mim, na parte de trás, não correram, estavam preocupados com sua satisfação. As calças arreadas impediam o movimento rápido.

Os gritos do homem louco se misturavam aos batuques da música e aos gemidos do vídeo. Tornavam-se uma só sensação.

Consegui chegar até o banheiro, pois me foi a solução primeira, afinal, ele ficava à direita, nos fundos da platéia. Assim que entrei percebi que muitos homens já ocupavam os reservador, alguns acompanhados por putas, e até mesmo por outros homens.

Na cabine onde bati a lotação já estava esgotada, vi, por baixo, doze pés. Dez de sapatos, dos mais variados tipos, e dois de sandálias femininas.

Restou-me entrar nos velhos gabinetes que seguravam as pias. Eram sujos, as pias estavam repletas de rachaduras, isso fazia com que goteiras se formassem por cima da minha cabeça. De repente tudo ficou quieto. Eu estava em desespero. Tremia. Senti-me um prisioneiro de guerra, sabia que uma das torturas era colocar um homem debaixo de uma goteira, intermitente, imobilizando sua cabeça, durante dias, semanas, meses. Além de perfurar, feri-lo, a água o deixava louco. Para mim alguns poucos minutos duraram a guerra dos cem anos.

– Filho da puta, sei que você está aí. – Ao mesmo tempo que ouvia os gritos do homem, podia perceber que os que se escondiam começaram a sair, e saíam sem medo ou desconfiança. "O que foi isso?" ouvia.

Naquele momento, depois de uma tranqüilidade enganosa, tive a certeza de que o homem havia ido embora. Talvez tivesse desistido de procurar o homem errado. E assim que saí do esconderijo dei de olhos com ele, que deixou de bolinar uma puta loira e veio em minha direção. Ele era a puta.

Pude empurrá-lo e sair do banheiro, pelo menos esse foi o objetivo, mas logo à porta todos aqueles homens tentavam me segurar. E ele era a puta, que veio em minha direção e começou a me provocar. Tentou tirar as minhas calças. Era Marcela, sem uma das pernas e sem um dos braços. Seus ajudantes seguravam as minhas mãos e meus pés. Ela se esfregou em mim. Eu estava nu. Ela estava nua. Ele era a puta. Todos olhavam com olhos obscenos. Eram somente olhos, não eram bocas ou ouvidos. Ela cheirava mal. Não eram olhos, nem boca, nem ouvidos.

Depois de retirar toda a energia que havia dentro de mim, ela fumou um cigarro.

Depois de alguns minutos refiz-me e voltei a olhar aquele homem, estava ainda parado olhando Marcela no palco, que naquele momento já estava sem uma das pernas, sem um dos braços, e sem um dos peitos, mostrava sua bunda, quase a esfregava na cara daqueles homens, até que uma das nádegas caiu.

Depois de Marcela ter se desfeito ele virou seu rosto, agora com face, e era de tristeza, em minha direção. Antes mesmo que ele pegasse a arma para resolver a pendência com Joel saí em disparada. Dei a volta pelo palco, sabia que ele iria me seguir, e foi isso que fez. Ouvi alguns gritos da platéia, igual os que ouvia quando as mulheres tiravam a roupa. Após o círculo no palco saí pelo mesmo corredor que entrei. Trombei com uma das putas que queria passar, acompanhada de seu cliente. "Desculpe".

Aquele corredor me parecia muito mais longo do que da primeira vez. Quilométrico. A luz se fez depois de longos passos de desespero. Saí e era noite clara, como todas elas, cheias de faróis, semáforos, neons, maquilagem, óculos, jaquetas de couro, vidros fumê, espelhos.

Corria em direção ao meu edifício, passando novamente pelo vendedor de cachorro-quentes. Estava cheio de fregueses. Moto-boys conversavam e comiam, velhos conversavam e comiam. Meninos de rua conversavam e não comiam, cheiravam cola, assoviavam, forte. Buzinas eram solos de flauta, agudos, que perfuravam... e apitos.

Corria, sempre acompanhado de perto pelo observador. Corri mais. Desesperado cheguei à portaria do meu edifício. Olhei para trás e ele não estava mais lá. Talvez tivesse cansado ou desistido. Eu era mais novo do que ele, certamente. Teria se cansado, mas logo estaria a minha procura. Logo estaria batendo na minha porta. Naquele momento não tinha mais para onde fugir, até mesmo em meu apartamento eu estava correndo riscos.

Pensei em sair dali e ir para a casa de algum amigo. Mas poderia ser seguido, colocaria a vida dos outros também em perigo. Pensei rapidamente em ir à polícia, mas senti-me culpado pela morte de Pitoco e de Tiquinho, certamente me fariam um interrogatório "o menino, antes de morrer, foi ameaçado pelo senhor.", "o senhor viu o exato momento da morte de Pitoco". Do jeito que se dá a investigação policial por aqui teriam que arrumar um laranja, e eu seria uma muito bem exprimida.

Pensei naquela menina que me conhecia como um espelho, que tinha escrito os meus versos. Mas não poderia subir até o seu apartamento, pois logo ela também estaria sendo perseguida.

Resolvi subir rapidamente para o meu apartamento, pegar uma mala ou alguma sacola, encher de roupas, as primeiras que encontrasse, do outro lado da rua, pegar algum dinheiro, documentos, descer, correr até a garagem, pegar o carro e ir o mais longe que pudesse, até onde permitisse a gasolina.

Fiz. Desta vez subi pelo elevador, pois sabia que poderia topar com o homem nas escadas, ou com qualquer outra pessoa.

O elevador demorou mais do que era de costume, a música parecia em um compasso mais lento, mais grave. Do térreo até o meu andar o veículo deve ter parado pelo menos seis vezes. E todos que eu não queria encontrar pelas escadas entraram no elevador.

Todos conversavam em uma velocidade frenética, como se tivessem mudado a rotação de suas vozes. Chegou um momento que não os reconhecia mais. Todos eram um. Todos haviam se transformado em uma megafone gigante.

"Com licença". Saí quase os derrubando e recebendo resmungos. Acendi a luz do andar com cuidado, ele poderia estar me esperando, e certamente estaria...

Rapidamente procurei as chaves nos bolsos da calça. Não as encontrei. Com um só chute abri a porta, trancando-a por dentro com todos os tipos de trincos que possuía, se pudesse a pregaria e lacraria em concreto.

Nada podia entrar ali. A voz do telefone gritava assustadoramente. Coloquei-me no vão entre a cama e o guarda-roupas. Ali ficava sempre o abajur, que naquela hora não sabia onde fora parar. Eu era o abajur. Assim que sentei-me senti algo debaixo de mim. O quarto estava escuro. Eram pêlos. O gato dormia. Peguei-o e fiz carinho. Ele miava angustiado. Queria me lamber. Eu não deixava.

Ouvi batidas na porta, com força. Com certeza era ele. Pensei em levantar-me, pegar uma faca ou qualquer outro objeto cortante, abrir a porta e enfrentá-lo. Não o fiz.

O eco vinha como monstro da cozinha, fazia vibrar as portas do guarda-roupas e os vidros das portas da estante. Tomei coragem para ir ao menos à porta. Olharia pelo olho secreto e, se fosse ele, ligaria para a polícia. O telefone gritava.

Olhei através da porta e vi Cecília, que vinha na hora certa para me salvar. Rapidamente liberei os trincos, que davam a real sensação de morar em uma cela de penitenciária, e puxei-a para dentro.

– Cecília, me ajuda, ele está atrás de mim.

– Ele quem?

– Não tenho tempo para te explicar. Vamos, tenho que pegar algumas coisas, roupas, cigarros, dinheiro, documentos.

Ela me acompanhou até o quarto afim de me ajudar.

– Me ajude, não fique aí parada.

– Calças, camisetas, vou colocar esses tênis, documentos, cigarros, caralho! Os cigarros, chaves do carro, porra perdi as chaves do carro, me ajuda, vê se está na cozinha, achou?

– O gato! – Peguei o felino, que tentava se enlaçar entre as minhas pernas. – Leve o gato para mim, segure firme, mesmo que ele tente fugir.

Puxei-a comigo, sem mesmo perguntar se precisava de algo, mas já tinha em mente que poderíamos comprar depois o que ela necessitasse. Não fez objeção, simplesmente acompanhou-me com lealdade. Eu sabia que não poderia ser de outro jeito.

Deu-me a idéia de irmos de elevador, assim haveria pouca possibilidade de encontrarmos alguém indesejável. Resolvi acatar, pois essa seria também a minha idéia.

Descemos, e me pareceu que a descida foi mais tranqüila, a música estava em seu compasso normal e não paramos nenhuma vez. Ela fez-me confidências. Estava pensando já há algum tempo em sair de casa.

Chegamos ao estacionamento e entramos no carro. Assim que passei a cancela vi que ele me observava, fumando, de dentro de um chevete azul metálico. Assim que saí, veio em minha direção. Resolvi não acelerar o carro, até mesmo por conselho de minha companheira. Queria ver do que aquele homem era capaz. Ainda acreditava que não começaria a atirar em minha direção, poderia acertar muitos inocentes. Era pai de família.

Eu estava certo, não deu sequer um tiro. Dirigia e fumava. Em todos os momentos que eu olhava para o retrovisor lá estava ele. Uma mancha azul com um farolete vermelho dentro. Mais forte nas tragadas. E o farolete era seu olho, era a sua boca.

Seguia-me... Por alguns momentos eu diminuía a velocidade para ver se ele emparelhava. Nada. Somente acompanhava, no mesmo fluxo, parecia estar sendo guinchado por mim. Assim que o semáforo fechava, mesmo que houvesse lugar nas faixas ao lado, ele teimava em parar atrás de mim.

– O que esse cara quer? É louco! – Cecília não respondia. E o gato, em seu colo, recebia carinho.

Assim que entrei na avenida Rebouças lembrei-me de Márcia, que morava em uma das transversais. Olhei para o gato, podia levá-lo até ela. Certamente Márcia cuidaria dele para mim. Aproveitando também que ela morava duas quadras de uma delegacia de polícia, resolvi passar rapidamente e pedir para que cuidasse do bichano.

Acelerei. Ele me acompanhou. Acelerei mais. Ele me acompanhou. 60, 70, 80, 90. Entrei, sem sinalizar, à direita. Ele não teve reflexo para me acompanhar na curva, seguiu reto.

O meu carro acompanhou-me no pé, que já estava no assoalho. Fiz uma rotatória cantando pneus e parei em frente ao sobrado em que Márcia morava. Peguei o gato das mãos de Cecília e rapidamente saltei do automóvel, quase ainda em movimento.

– Oi!

– Essas horas, você é maluco! – Disse-me espantada.

– Não, não sou maluco. Não posso explicar agora. Estou saindo de viagem e não sei quando volto. Entrei em uma merda ai. Tenho que sumir. Se alguém te procurar diz que não me viu mais. Tudo bem?

Apavorada disse que sim. Estava pronta para dormir, desceu de roupão.

– Cuide do meu gato, por favor. – Entreguei-o a ela, recomendando cautela.

– Esse gato está morto, fedendo, está duro de pedra, seu louco!

Saí.

Voltei para o carro no mesmo pé que saí. No caminho, atravessando a rua, vi estacionado o chevete azul e o farolete vermelho dentro dele

Voltei para a Rebouças e de lá fomos em cruzeiro sentido Marginal do Rio Pinheiros. Nesta via pude acelerar, sabia que meu carro era de fato mais potente do que aquele chevete. 90, 100, 110, 120, 130, 140... Ele estava colado. Eu tentava entender como aquilo acontecia. Cecília estava calada, parecia em transe.

Desisti de ser 007 e fui pela pista da direita, mantendo os razoáveis 70 quilômetros por hora.

Li "Saída Castelo Branco, 4 quilômetros". Nesse momento Cecília saiu do transe e disse "é isso, vamos para o interior, quanto você tem de gasolina", "meio tanque", "vamos até onde der". Assim íamos até onde a gasolina nos permitisse. Certamente essa seria também a minha idéia.

Assim que pegamos a Castelo Branco o observador nos seguiu mais a distância. Com cuidado. A noite era clara, sem mais buzinas, luzes, espelhos, jaquetas, neons, flautas, pó...

– Posso ligar o rádio.

– Pode. Se importa se eu dormir um pouco?

– Não. Pode dormir. Abaixe o banco.

– Ele ainda está atrás da gente? – Perguntou bocejando.

– Sim. – Respondi de maneira automática.

Liguei o rádio em uma estação que costumava ouvir. "I am the son / And the heir / Of a shynees that criminally vulgar / Am son heir / Of nothing particular // You shut your mouth / How can tou say / I go about things the wrong way / I am human and i need to be loved / Just like everybody else does..."

– Adoro essa música. – Ela me disse de olhos fechados.

"There's a club, if you'd like to go / You could meet somebody who really loves you..."

– Também gosto muito dela. Tem um ambiente sombrio. O teclado é como se fosse a cidade, os barulhos dela. A bateria são os homens, que andam em ritmo...

"So you go, and you stand on your own / And you leave on your own / And you go home, and you cry..."

– Parece a chuva. – Disse-me quase dormindo.

– Lágrimas. – Respondi.

"And you want to die."

– Como a morte. – Disse-me se virando, afim de se ajeitar no banco.

Passei as mãos nos seus cabelos, eram finos e bagunçados. Sentia os seus cabelos e via, pelo retrovisor, o farolete atrás de mim. Pensei em acelerar até o carro não mais responder e jogá-lo para fora da estrada, em direção às inúmeras árvores que ali passavam e riam da gente.

Comecei a pisar cada vez mais, o velocímetro respondia rapidamente, passando de seus três quartos. O volante tremia e o carro parecia perder estabilidade. As luzes passavam rápido. Ele ainda estava atrás de mim e além do cigarro, que naquele momento parecia mais aceso, seus olhos eram duas bolas de fogo. Chegou muito perto a ponto de encostar no meu carro, perdi a traseira por alguns instantes. Olhei para Cecília, que ainda dormia, inocente. Retirei o pé do acelerador e deixei o automóvel perder sozinho sua potência. Agradeci pela presença dela ali; acredito que se ela não estivesse faria o que tinha planejado; acabaria colado em uma das árvores.

O painel mostrava que o tanque reserva estava sendo usado. O mostrador indicava quatro litros, assim, poderia percorrer no máximo sessenta quilômetros. Fiquei assustado. Nos arredores não havia cidade, não havia pessoas para as quais gritar, das quais não poderia me esconder atrás. De fato se acabasse a gasolina ali o homem não pensaria duas vezes em acabar comigo e com Cecília.

"Sorocaba – 43 km". Deduzi que seria a próxima cidade. Não podia arriscar ficar sem gasolina. O carro não estava regulado, na realidade iria levá-lo a um mecânico na próxima semana, quando aparecesse dinheiro.

Iluminada e fora dos padrões, uma placa de madeira, de tamanho razoável, tomei as pistas da direita e fui mais devagar. "Próxima entrada – Pousada Campo Alegre – 11 Km". Sem pensar duas vezes entrei na estradinha irregular. Nela fui seguindo as placas, cada vez mais a pista ia se fechando, do asfalto parti para a terra larga e batida, desta para a terra estreita e pedregosa, até arriscar entrar com o carro em uma trilha, que parecia nos engolir. Ao longe vi luz, que me parecia elétrica, pois era constante. Passei por um arco de madeira, muito bem feito, todo enfeitado com flores e animais empalhados. Uma placa com letras estilizadas me falava "Bem-Vindos".

Era um casarão, com fartas janelas, um campinho de futebol em frente, um pequeno estacionamento. Um lugar que contava com uma boa estrutura. Definitivamente aquela estrada era deixada daquele jeito propositalmente, para que desse a sensação de que a família que ali entrasse estaria fazendo parte da natureza. A tática realmente dava certo.

Olhei para o retrovisor e não havia mais os olhos de fogo, nem mesmo um farolete fraco. Havia o escuro. Arrisquei-me e entrei para o estacionamento, parando o carro em uma vaga para deficientes físicos, pois era a mais próxima da porta principal da pousada.

Antes de desligar o carro chamei Cecília "Cecília, Cecília, acorda, chegamos".

– Chegamos aonde, estávamos indo para algum lugar?

– Não, mas acabou a gasolina, entrei em uma pousada. Ele sumiu. Vamos entrar e descansar um pouco. Tenho que pensar em alguma saída. Vamos.

Entramos na pousada sem as malas. A recepcionista estranhou, uma senhora de uns quarenta anos, gorda e baixa, com um coque e muito bem vestida.

– Posso ajudar?

– Sim, pode. Preciso de um quarto só para esta noite. De um bom sono e banho. Amanhã pela manhã sigo viagem.

– Tudo bem. – Respondeu desconfiada. – Tenho uma suíte aqui na parte da frente, tem janela para o campo, o senhor viu que temos um campo de futebol? E para o estacionamento.

– Sim, vi.

– Já que é somente esta noite o senhor poderia me acertar a diária? Fica em quarenta e sete reais pela suíte.

Achei barato, afinal, estava acompanhado. Não achou?

"Sim, realmente um preço bem agradável. O resto eu sei, transamos e agora estamos aqui... juntos."

– Sim. Preciso de um banho. Veja se ele ainda está aí.

– Sim. Está fumando.

– Desgraçado.

– Você vem comigo? Preciso de um banho.

– Não, estou muito cansada. Depois eu vou.

– Tudo bem.

– Que horas são?

– Quatro da manhã.

[após o banho...]

– Preciso dormir um pouco.

– Eu também.

[toque do celular]

– Essa hora, quem te liga agora?

– Não é ninguém, somente uma mensagem...

["Torpedo – Lúcio, desculpe, não deu para passar aí para pegar o caderno, depois combinamos, Cecília."]

– Está tudo bem... vamos dormir.

– Boa noite, Cecília.

– Boa noite.

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