O JORNALISTA

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[Contração... ... ... ... ...T r a n s b o r d a m e n t o]

... [cigarros]

"Estou mole... volta pra cama..."

...

"Me dá um cigarro."

Vou ver se ainda o vejo. Está dentro do carro. Vejo o farolete vermelho. Mais forte... mais fraco.

"Volta pra cama."

Temos que pensar em alguma coisa, antes que ele resolva entrar aqui. Ele sabe em que suíte estamos. Está olhando fixamente para a nossa janela.

"Senta aqui e me conta essa história... preciso entender tudo isso."

Tudo bem...

... [cigarros]

Tudo começou nesta segunda-feira.

[Longo silêncio... cigarros]

O gato fuçava no saco de lixo da cozinha provocando um barulho insuportável e intermitente de sacolas vagabundas de plástico, dessas de supermercado; quando se percebe que é tarde, pois pelas frestas da janela do quarto entrava aquela luz que já não é branca, limpa, clara, mas amarela de meio-dia. Decidi levantar-me.

Após a higiene matinal, que para mim não é tão estimulante, porque, afinal, é um pouco de água fria na cara, um pente que tenta desembaraçar os cabelos sem corte, em nós, e uma escova de dentes que teima em machucar a gengiva; sem contar a horrível sensação de ânsia quando a escova faz o trabalho de limpar a língua.

Tortura concluída, decidi descansar mais alguns minutos, fui me sentar, não mais com o desequilíbrio do sono; esticar-me, fui espreguiçar mais um pouco no sofá da sala. E esse processo era incômodo porque o móvel já estava com algumas décadas de vida e com partes do corpo quebradas; uma das costelas ficava saliente, e isso prejudicava bastante em contato com as minhas costas, mas, enfim, ali fiquei por mais trinta minutos.

Embaixo as buzinas me indicavam que a vida existia e era feita de movimento e de barulho. Ao meio dia alguém conseguia dormir a alguns metros da avenida Ipiranga? Era um andar alto, o oitavo, mas mesmo assim o eco se propagava entre as paredes do meu edifício e as do prédio do Bradesco, dando a sensação de um volume ainda maior.

O relógio mostrava nostalgicamente suas doze horas e quarenta minutos. Decidi então que, quando ele me indicasse às doze e cinqüenta eu iria fazer algo; não sei, um café, ir comprar o pão, ou até ir ao mercadinho – esse último de fato eu sabia que não iria fazer, pois era segunda-feira, e sempre sobra algo comestível do domingo ou do sábado; não precisaria ir a um local tão distante, e com filas tão longas para comprar somente alguns pães.

A padaria ficava no térreo do edifício, uma pequena panificadora. Não haveria problemas em descer rapidamente, ou até mesmo tomar um café em um dos dois coffes do prédio. Não, não queria ficar olhando para a cara do Zé, um balconista que nos momentos de minha bebedeira era um bom amigo, sabia escutar, mas conversar com ele sóbrio era o mesmo que falar com uma senhora de noventa anos após a missa de domingo, na porta de uma igreja. E também não queria que, como geralmente acontecia, algum turista chato me parasse no corredor, no elevador ou até mesmo interrompesse o meu café perguntando o que eu achava de morar em um prédio que tinha o seu próprio CEP, 01066-900, que possuía aproximadamente 2500 moradores em 1160 apartamentos, uma igreja, que antes fora cinema, um alfaiate, um fast-food chinês, quatro restaurantes, uma lavanderia, uma lanchonete, dez lojas de roupa e acessórios de moda, cinco cabeleireiros, uma imobiliária, uma relojoaria, dois cafés, uma vídeo-locadora, cinco telefones públicos, uma doceira, uma agência de turismo, uma papelaria, um despachante e uma vista maravilhosa de sua cobertura.

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