A mente de Guido ligou todos os pontos mais rapidamente do que ele pensou ser capaz. Num estalo repentino, o incidente de um ano atrás passou a fazer sentido - embora a verdade fosse uma completa insanidade e algo que dificilmente poderia ser contado a qualquer um sem que o chamassem de louco. A misteriosa Silvie era a raposa que salvara sua vida naquela ocasião, quando o lobo monstruoso estava prestes a destroçá-lo e Guido tinha desistido de viver. A misteriosa Silvie afugentara o monstro quando ele tentou alcançá-los. A misteriosa Silvie curou e ajudou Guido em sua fuga. Sem pedir nada em troca, ela foi a pessoa que mais fez por ele e Guido sentiu - olhando fixamente para os olhos brilhantes da raposa - que não se importava com quem ou o que aquela garota era. Para ele, Silvie sempre seria sua salvadora.
Já o caçador pensava diferente. Todo o seu corpo estava tenso e rijo, em alerta. Jeor pouco sabia sobre Silvie, mas já sentia que tinha todos os motivos do mundo para não confiar nela - e agora, diante de tamanha revelação, a sensação se tornou uma certeza. A garota era uma criatura do bosque: perigosa, incerta, letal.
- Silvie, você... - Guido tentava colocar seus pensamentos em palavras, mas eles estavam acelerados demais para que sua boca acompanhasse.
A raposa vermelha baixou a cabeça ligeiramente e pareceu franzir o cenho de maneira assustadoramente humana. Jeor sacou uma faca das dobras de suas roupas e ergueu contra ela, mas, antes que pudesse atacar Silvie, Guido interpôs-se entre os dois, protegendo-a.
- O que está fazendo? - gritou, espantado, para o caçador.
Os olhos de Jeor estavam arregalados.
- Essa coisa vai nos matar!
- Não! - Guido sacudiu a cabeça, segurando o braço de Jeor com suas duas mãos finas e magras. - É ela. É Silvie. Não pode machucá-la!
Jeor trincou os dentes.
- Moleque, ela é um animal! É só uma questão de tempo até que nos ataque! - empurrou Guido, irado. - Esqueceu que estamos em uma droga de bosque enfeitiçado?
Guido abriu a boca para protestar em favor da amiga, mas foi a voz dela que interferiu.
- Não vou machucá-los - disse através da boca cheia de dentes pontiagudos, erguendo o focinho fino e comprido na direção dos dois. - Precisamos nos apressar e seguir nosso caminho até as cavernas.
Jeor baixou a faca e apontou o dedo indicador para a raposa, atônito.
- Você acabou de... de falar?
Silvie piscou os olhos de raposa, cujas pupilas eram ovais e hipnotizantes.
- Estava esperando que eu voasse? - resmungou ela, exalando sarcasmo. Então voltou seus olhos para Guido, que ainda a encarava do jeito que... bem, do jeito que se encara um ser humano que se transformou em uma raposa. - Guido...
Os olhos do garoto analisaram a raposa cuidadosamente, fascinados e incrédulos. Guido olhou profundamente nos olhos brilhantes dela e pareceu ver dentro deles a essência de Silvie, como se, de repente, todo o mistério sobre ela fosse disspado e só restasse sua alma pura e revelada na forma de raposa. Guido quase era capaz de ver dentro dela e de compreendê-la melhor, mas não entendia bem como algo assim era possível. Tinha tantas perguntas!
- Preciso tirar vocês dois daqui - a raposa agitou a cauda de um lado para o outro, olhando para Jeor e depois de volta para Guido. - Se partirmos agora, teremos chance de chegar ao lago quando anoitecer.
- Lago? - Jeor olhou ao redor deles, como se esperasse ver o tal lago de onde estavam.
- Quando chegarmos ao lago, quer dizer que estamos na metade do caminho - explicou a raposa. - Vamos, não temos tempo a perder - gesticulou com a cabeça vermelha, caminhando em seguida na direção de um emaranhado de arbustos.
A princípio, Guido e Jeor obviamente hesitaram. O choque de presenciar a transformação de Silvie numa criatura do Bosque de Antazes ainda os paralisava e as batidas de seus corações desaceleravam bem devagar. Trocaram um breve olhar que quase poderia ser considerado cordial e, dando um passo cauteloso de cada vez, seguiram a raposa mantendo uma distância segura do animal.
À luz da manhã, o bosque quase poderia ser chamado de belo. Guido ficou impressionado ao ver o modo como os primeiros raios de sol pareciam acender as folhas verdes das árvores quando as tocavam, tornando tudo brilhante e vibrante, quase como num bosque normal. Não havia o cantar dos pássaros e os esquilos sacudindo os galhos, mas, naquele ínfimo momento, parecia haver paz ali. Guido sentiu paz. Enquanto caminhava ao lado do caçador, atrás da raposa, sentiu que estava fazendo a coisa certa e teve esperança. Desta vez, pensou ele, vou pedir que ela venha embora comigo. Mesmo que ela seja uma raposa mágica.
Os três caminharam por entre as árvores e folhagens durante certo tempo, até que, subitamente, a raposa parou. Guido e Jeor também pararam e olharam para ela, intrigados. A raposa ergueu o focinho e farejou algo diante deles. Então, virou-se e bateu com a cauda no chão, espalhando terra e folhas ao seu redor, que revelaram uma série de fios dourados tecidos numa rede enorme a menos de um palmo de distância do trio. Os fios dourados estavam entrelaçados aos troncos das árvores e, até então, invisíveis a olhos nus. Eram uma armadilha letal para caçadores desavisados, pois cortavam qualquer tipo de coisa que entrasse em contato com eles.
- Ouro da morte - sussurrou a raposa.
Guido e Jeor olharam para os fios.
- Ouro? - perguntou Jeor, interessado.
A raposa o encarou.
- Não o ouro que os humanos conhecem - ela explicou. - Isto aqui é enfeitiçado para parecer ouro, mas são lâminas iluminadas pela luz do sol. Se tivéssemos passado por aqui à noite, nunca teríamos visto.
- Nunca? - Jeor pareceu perplexo. - Nem jogando terra e folhas como você fez?
A raposa sacudiu a cabeça negativamente.
- Como sabia que isso estava aí? - perguntou Guido, olhando atentamente para os fios dourados.
- Senti o cheiro daquilo - a raposa gesticulou com o focinho na direção de algo a alguns metros a frente.
Guido e Jeor olharam para onde ela indicava e ambos recuaram ao ver, numa pequena vala logo abaixo dos fios, partes de corpos humanos mutilados em processo de decomposição. Guido curvou-se para o lado e vomitou sobre um arbusto. Jeor cerrou os punhos com força, sem conseguir tirar os olhos dos pedaços de gente. A raposa aguardou pacientemente até que ambos se sentissem melhor; já esparava aquele tipo de reação da parte dos dois.
- Vamos - ela disse, assim que Guido se levantou de cima do arbusto.
- Há... há mais dessas coisas por aí? - estremeceu Guido.
- Talvez - respondeu a raposa, fixando os olhos grandes nos dele. - Mas eu estarei alerta, então vocês não têm o que temer. Sigam-me e pisem exatamente onde eu pisar.
A raposa desviou do emaranhado de fios pela esquerda e o caçador e o garoto a seguiram em silêncio. Quando esse silêncio se tornou incômodo, Jeor foi o primeiro a quebrá-lo:
- Quem colocou aquelas armadilhas lá? - perguntou.
- O que o faz pensar que foram colocadas? - A raposa não diminuiu o ritmo da caminhada.
Jeor crispou os olhos e começou a dar passadas mais largas, para equiparar-se a ela. Guido ficou um pouco para trás.
- É óbvio - Jeor respondeu, fitando a raposa enquanto andavam.
Ela recusava-se a olhar para ele. Parecia misteriosa outra vez, o que dava-lhe um aspecto estranhamente humano.
- Há coisas aqui que vocês não entendem - a raposa suspirou. - É melhor que seja assim. Quando os humanos acreditam que sabem demais sobre alguma coisa, pensam ter o direito de controlá-la.
Jeor deu uma risada irônica.
- Fala sobre humanos como se fosse muito superior a nós.
- Não sou superior, sou mais velha - ela rebateu. - E sei do que estou falando, ao contrário de você.
- Não perde uma oportunidade de me rebaixar, não é, bola de pelos?
A raposa parou e encarou o caçador, mostrando os dentes. Ele também parou, nada contente. Guido aproximou-se dos dois e interpôs-se entre eles, temendo que fossem começar a brigar mais uma vez. Embora Jeor fosse grande e cheio de músculos, não seria bom provocar Silvie agora que ela estava em sua forma animal e tinha garras e presas.
- Ei, podemos continuar? - Guido perguntou quase gritando, olhando para um e depois para o outro. Lembrava-se do tom de voz incisivo que sua mãe usava quando tentava apartar as brigas entre seus irmãos e tentou imitá-la.
Jeor e a raposa, no entanto, não pareciam nada intimidados pelo garoto magricela. Olharam feio um para o outro durante alguns segundos e decidiram, quase ao mesmo tempo, seguir a jornada sem mais conversas paralelas. A partir de então, a raposa só falava com Guido e Jeor não falava com ninguém. O sol estava quase no topo do céu quando a raposa parou mais uma vez e farejou outra armadilha. Guido e Jeor ficaram alertas no instante em que ela parou de caminhar e começaram a olhar ao redor, buscando algum sinal de corpos mutilados ou de massacres. Jeor sacou uma faca de seu cinto e Guido encolheu os ombros. Silvie estava certa quando disse que eles não sobreviveriam muito tempo naquele lugar.
- Ali - rosnou a raposa, apontando com o focinho para uma grande poça de lama a quase dois metros de distância de onde pararam.
Era a poça mais nojenta que Guido havia visto em toda a sua vida - e ele já vira muitas coisas desagradáveis na fazenda de sua família. Era grande, marrom e borbulhava, como uma das sopas de restos que o pai de Guido costumava fazer quando faltava comida em casa. O cheiro era quase imperceptível, mas não era nada bom. Era larga como uma piscina, mas não parecia funda, e estava cercada por uma folhagem que quase a camuflava. Mais uma vez, se não fosse pelo faro apurado da raposa, eles teriam sujado os pés naquela nojeira.
- Qual o problema? - Jeor resmungou com escárnio. - Não quer sujar as patas na lama, raposinha?
Ela rosnou para ele.
- Pare de me chamar assim.
- Não podemos pisar, Silvie? - Guido perguntou.
Ouvir o nome humano chamou a atenção da raposa para Guido. Ela pareceu sorrir ao ser chamada daquele jeito, se é que raposas encantadas são capazes de sorrir.
- Não, não podemos - ela respondeu, olhando para a poça. - É uma poça de lama que corrói tudo o que é vivo. Ela vai machucá-los irreversivelmente.
Jeor franziu a testa rígida.
- O que vai acontecer se pisarmos, perderemos nossos pés?
- Sim - a raposa respondeu categoricamente, agitando as orelhas pontudas.
O caçador arregalou os olhos, sem conseguiur disfarçar a surpresa.
- Muito bem - ele apoiou as mãos nos quadris. - É só desviar e seguir em frente.
A raposa revirou os olhos e se aproximou de Guido.
- Onde há poças como essa, há cipós-forca ao redor, nas árvores. Esses cipós agarram corpos de seres de sangue quente e os entrangulam até a morte - ela alertou, piscando os olhos para o garoto. - Teremos que atravessar a poça para escapar deles. É o único jeito.
- Atravessar a poça? - Guido engoliu em seco.
- Ficou maluca? - exclamou o caçador.
- Há uma maneira - a raposar rosnou para os dois. - Precisamos de pedras. Se jogarmos algumas pedras grandes sobre a poça, podemos pisar nelas e atravessar.
- Isso é ridículo - o caçador sacudiu a cabeça -, as pedras vão afundar!
A raposa regougou alto na direção dele, irritada com a petulância do caçador em insistir que sabia mais do que ela sobre as leis do bosque. Ele a fazia lembrar por que sentia tanta repulsa de seres humanos e suas manias de grandeza.
- Faça o que eu digo, caçador! - a raposa mostrou-lhe os dentes. - A não ser que se julgue incapaz de carregar algumas pedras.
Jeor ergueu o queixo arrogante e passou uma das mãos pelos cabelos louros sujos. Estufou o peito e andou até a maior das pedras rodeada por arbustos. Arregaçou as mangas da camisa até os cotovelos e abaixou-se, agarrando a pedra com os braços grossos e levantando-a com pouca dificuldade. Então virou-se e olhou para a raposa da maneira mais arrogante possível antes de jogar a pedra na poça de lama com todas as suas forças. Um pouco de lama respingou sobre arbustos próximos à poça e os corroeu tão rápido que Guido foi o único a ver o que acontecia. O garoto sentiu o coração bater mais forte, com medo e terror espalhando-se por seu corpo. Aquele era apenas o início da jornada dos três em busca da saída do bosque e já haviam se deparado com sérias ameaças de morte. Que outros desafios os aguardavam adiante? Que outras armadilhas e monstros o Bosque Sangrento preparava para eles?
Para a surpresa do soberbo Jeor, a grande pedra boiou bem no meio da poça, imune ao ácido que corroía seres vivos e formou o apoio perfeito para que atravessassem.
- Mais uma - pediu a raposa, sentando-se sobre duas patas.
O caçador revirou os olhos e buscou outra pedra, dessa vez um pouco menos pesada e mais larga. Lançou sobre a poça e ela também boiou. Jeor olhou para a raposa e sorriu.
- Primeiro as damas de quatro patas - ele gesticulou para a poça com uma das mãos.
A raposa se levantou e caminhou até a beira da poça. Quando estava prestes a saltar, Guido gritou:
- Espere!
Jeor e a raposa olharam para trás. O garoto parecia aflito.
- Como... como tem certeza de que vai dar certo? - a voz dele tremia de medo. - E se você cair? Jamais sairemos daqui sem você, Silvie.
A raposa suspirou e pareceu sorrir para o garoto assustado. Ele a fazia lembrar por que sentia tanta compaixão pelos raros seres humanos gentis.
- Confie em mim - ela pediu, ainda sorrindo como uma raposa.
E saltou. Majestosa e graciosamente, a raposa pulou as duas pedras e atravessou a poça. Jeor ficou atônito e Guido fascinado. Ela fez com que tudo parecesse tão rápido e fácil que o garoto quase acreditava que era capaz de saltar sobre as pedras com a mesma facilidade.
- Minha vez - Jeor colocou-se na beira da poça e respirou fundo.
Flexionou os joelhos e pulou sobre a primeira pedra. Quase perdeu o equilíbrio, mas manteve-se de pé sobre a pedra vacilante. Abriu os dois braços para equilibrar-se melhor e flexionou os joelhos mais uma vez antes de saltar para a segunda pedra. Mal aterrissou e já saltou para o outro lado da poça, juntando-se à raposa em segurança. Respirou fundo, aliviado, e virou-se para olhar para Guido.
O garoto deu dois passos adiante e olhou para a lama grossa e nojenta que borbulhava, ansiosa para engoli-lo. Sua respiração ficou acelerada e ele olhou para Jeor e para a raposa do outro lado.
- Vem, moleque - chamou o caçador, agitando uma das mãos. - Rápido!
- Eu... - Guido estremeceu - eu não...
- Você consegue!
Guido respirou fundo e, imitando o caçador, flexionou os joelhos e saltou. Quase explodiu de alívio quando seus pés alcaçaram a primeira pedra e até mesmo foi capaz de sorrir. Jeor vibrou e incentivou-o a continuar. Guido visou a segunda pedra e saltou, mais uma vez tendo sucesso ao alcançá-la também. Jeor aplaudiu. Guido gargalhou e, incentivado pelo caçador e pela raposa, preparou-se para o terceiro e último salto na direção da margem.
Contudo, no exato momento em que flexionou as pernas para saltar, uma das bolhas da poça estourou perto demais da pedra e a sacudiu, fazendo com que Guido perdesse completamente o equilíbrio. O garoto gritou e agitou os braços em completo desespero, procurando qualquer coisa na qual pudesse se agarrar para não cair. O caçador estendeu-lhe a mão, mas o corpo de Guido pendeu para trás e ele caiu de costas na poça de lama borbulhante e nojenta, que era mais densa e mais funda do que o garoto poderia imaginar.
Viu a luz do dia desaparecer diante de seus olhos e os gritos de Jeor e da raposa ficarem distantes. Foi engolido.