ELISE (amostra)

By RodrigoPaulino

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"Se você pudesse apagar qualquer elemento do seu passado, o que você apagaria?" Elise perdeu sua família e tu... More

Prólogo
Capítulo 02 - Tia
Capítulo 03 - Escolha

Capítulo 01 - Kairós

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By RodrigoPaulino

Em desespero, Elise despertou em sua cama. Arfando como se tivesse finalizado uma maratona, ela estava encharcada de suor depois de mais uma noite sonhando com o fatídico dia de cinco anos atrás, quando perdeu toda a sua família. Seus olhos, como sempre, estavam igualmente marejados de lágrimas.

Eu deveria ir a um psicólogo, pensou, sem se dar conta de que não tinha dinheiro para tal.

Ainda deitada, Elise vislumbrou a foto sobre o criado mudo ao lado. Todos, exceto ela, morreram naquele terrível acidente automobilístico: seu pai, sua mãe e seu irmão mais novo, à época com apenas doze anos de idade. O maldito responsável pelo acidente foi inocentado, sob alegação de que o ocorrido foi uma "infelicidade".

Uma infelicidade criada por velocidade acima do permitido depois de cinco latas de cerveja, segundo seus péssimos advogados apuraram. Provas nunca encontradas.

Erguendo-se da cama e se livrando dos lençóis úmidos graças ao terrível pesadelo, Elise se pôs sentada sobre o colchão e ficou por alguns instantes olhando para o nada. Com alguma dificuldade, se levantou e caminhou para fora do quarto, rumo ao banheiro.

Essa... sou eu? Elise pensou ao se contemplar no espelho. Cinco anos mudaram a jovem, naquele momento com vinte e cinco de idade. Os cabelos negros estavam quebradiços, os olhos castanhos estavam adornados com imensas olheiras e seus lábios rachados de tão ressecados.

Desde quando fiquei tão descuidada? Fez uma pergunta para si, mas já sabia a resposta: desde o acidente, ela abandonou quase tudo.

- Elise! - uma voz nasalada soou do andar inferior da casa - Está atrasada!

- Ok, tia Mirtes! Estou indo.

Elise se arrumou ignorando a pressa que sua tia impunha e desceu para o café da manhã. A mesa dispunha de uma refeição simples para as duas moradoras da casa, com pães, margarina e café.

- Quanto tempo pretende ficar sem fazer nada? - Mirtes ralhou - Está trabalhando na minha loja do posto, mas poderia estar em um lugar muito melhor. Mas você...

- Por favor, tia! - Elise tentou interromper antes que aquele diálogo se tornasse insuportável - Vamos parar com esse assunto!

Mirtes deu um resmungo quase inaudível, e voltou a se concentrar no desjejum. Com uma pressa tardia, Elise, com o pão na boca, acenou para sua tia, se despedindo e saindo do velho sobrado, correndo rumo ao ponto de ônibus.

O bairro onde Elise e Mirtes viviam ficava em Rio Pequeno, na periferia da cidade, distante cerca de uma hora de ônibus do bairro da Luz, no centro, onde ficava o posto de combustível onde a loja que sua tia assumiu gastando o restante da pensão de seu falecido marido estava instalada. Elise pegou o veículo lotado, como geralmente ele ficava às segundas-feiras, e viajou em pé por todo o trajeto até desembarcar próximo ao local de trabalho.

- Bom dia, "Senhora do Caos"! - um sujeito na porta de uma loja no caminho a abordou.

Que mala... Esse sujeito por volta dos trinta anos de idade era um dos funcionários de uma loja de sapatos próxima e, coincidentemente, ex-colega de trabalho de Elise. O apelido pejorativo que ela recebeu veio depois de reagir à cantada de um cliente mais abusado, quando Elise literalmente instaurou o caos, fazendo um escândalo e quase agredindo o sujeito. Não à toa, ela foi demitida no dia seguinte. E não houve choro que demovesse seu patrão para que não a mandasse embora.

- Bom dia, Nivaldo - Elise lhe respondeu com um sorriso amarelo, e ele retribuiu com um aceno e outro sorriso, mas cínico.

Ao chegar no posto, seu colega do turno anterior, um rotundo e fora de forma jovem da mesma idade que ela, a aguardava do lado de fora da loja, com cara de poucos amigos.

- Só porque é sobrinha da dona você acha que pode chegar na hora que quiser? - ele disparou, indignado - Eu tenho compromisso depois daqui!

- Foi mal, Serginho! - Elise desculpou-se - Peguei um trânsito terrível.

Serginho não engoliu a desculpa esfarrapada da colega, mas como estava atrasado para a aula da faculdade não se esforçou para retrucar.

- Já fiz o fechamento de caixa - ele disse, enquanto colocava sua mochila nas costas - Vê se trabalha direito!

A vontade de Elise era de estender o dedo do meio para Serginho, mas não o fez. Ao invés, fez o que costumeiramente fazia quando o estresse a atingia: entrar no banheiro, chorar e se confrontar no espelho.

Merda de vida! Gritou por dentro.

Depois de alguns instantes, ela retornou ao balcão. Uma vez que o horário era pouco movimentado, Elise ficou a mexer em seu celular e, de vez em quando, a fitar a televisão, na qual passava um monótono programa de culinária.

Que saco...

Fora um ou outro surto esporádico de clientes, o movimento continuou fraco até o horário de saída, por volta das seis da noite. Mirtes chegaria em breve para cuidar da loja até Serginho assumir à meia-noite e Elise poderia voltar para casa.

Quando faltava cerca de cinco minutos para seu horário de saída, Mirtes chegou.

- Deixei comida na geladeira - sua tia lhe disse, num jeito quase robótico, sem sequer olhar para Elise.

Elise foi embora sem dizer nada, rumo ao ponto de ônibus. A comida na geladeira não estava em seus planos. Quando o ônibus que pegou se aproximou da boate Passionate, na Cidade Jardim, a qual ela frequentava com certa regularidade, Elise não titubeou e desembarcou. Ao entrar, um rosto conhecido já a esperava.

- Olá, doçura! - o barman a cumprimentou, como sempre fazia, quando ela se sentou ao balcão - O que será hoje?

- Cuba libre - respondeu.

Era seu coquetel preferido, e sempre requisitado quando estava amargurada. O barman talvez não soubesse o exato motivo, mas tinha uma vaga ideia.

- Segunda-feira difícil?

Elise não respondeu e ficou a olhar para o seu redor. A Passionate não estava muito cheia, até porque estava bem longe do final de semana.

- Aqui está - o barman serviu-lhe depois de alguns poucos minutos e passou a atender outros clientes.

Elise ficou a encarar o copo. Ainda estava tentando engolir as lágrimas primeiro antes de encarar o coquetel à sua frente.

- Posso me sentar ao seu lado? - um sujeito de uns trinta e poucos anos trajando um terno elegante, com cabelos arrepiados com gel e uma barba despojada por fazer a abordou.

- O local é público - Elise respondeu de forma pouco gentil.

A falta de cortesia de Elise aparentemente não intimidou o sujeito, que requisitou um Blood Mary. Mal fez seu pedido e voltou-se para ela novamente.

- As lágrimas deixam a Coca Cola da sua bebida menos doce - ele comentou.

Essa cantada é criativa, Elise pensou, levemente irritada. Mas não estou com saco para isso.

Assim que pensou em se levantar, o sujeito a interpelou.

- Se você pudesse apagar qualquer elemento do seu passado, o que você apagaria?

Elise encarou o sujeito com um olhar gélido. Deve estar de brincadeira... Ele, porém, parecia estar falando sério, mesmo sob uma pergunta tão hipotética e absurda.

- Por que eu mudaria alguma coisa?

- Suas lágrimas me dizem o contrário... Elise.

Elise ficou em choque. Como ele sabe meu nome? Ela olhou ao redor à procura de alguém conhecido. Ninguém no Passionate a conhecia pelo nome, inclusive os sujeitos que tentavam cantá-la - e que eram expulsos por um olhar frio de dar inveja a Jack Frost.

- Deve estar se perguntando como a conheço - acertadamente, o sujeito deduziu - Eu estava justamente procurando por você.

Elise fez uma careta de desconfiança. Frente àquela expressão facial, o sujeito deslizou pelo balcão um aparelho prateado que lhe lembrava um smartphone.

- Dê uma olhada.

Elise pegou o aparelho prateado. À vista comum, era como um celular qualquer, com exceção do fabricante desconhecido. "Kairós", leu na traseira. Desbloqueou a tela, que exibia um aplicativo similar a uma agenda.

- Estou olhando. E o que isso tem de especial?

O sujeito se aproximou e tocou uma área da tela tátil que abriu uma seção com o título "Manual Rápido" e apontou alguns tópicos para Elise.

«Como usar:»
«1. Informe no campo de descrição o que deseja apagar.»
«2. No campo de data e hora, informe o momento em que o que deseja deve ser apagado.»
«3. Conecte ao aparelho fones auriculares. Em seguida, coloque-os em seus dois ouvidos.»
«4. Toque no botão "Salvar".»
«5. A alteração ocorrerá em até quinze minutos. O elemento desaparecerá daquele exato instante do tempo, sem deixar rastros.»
«6. A sincronização do seu cérebro com as alterações será feita através dos fones auriculares. O tempo total de sincronização pode variar, dependendo da alteração desejada.»

Elise fitou o sujeito, bastante incrédula, e ele também estava a olhando, olho no olho, impressionantemente sério e convicto.

Se isso é uma pegadinha, o cara é um excelente ator.

- Sei que parece mentira, mas funciona - o sujeito ressaltou - Se está com dúvidas, posso deixar com você no modo de testes, com o qual você pode fazer algumas mudanças pequenas.

Tudo aquilo era difícil de engolir. No entanto, se fosse uma pegadinha, deveria ao menos se divertir. Talvez eu até vire um meme... Elise, então, suspirou, vencida.

- Certo, vou ficar com ele.

O sujeito abriu um sorriso, o que fez com que Elise percebesse que ele era consideravelmente bonito, acima da média. Ele pegou gentilmente da mão de Elise o Kairós e ativou um link dentro do aplicativo de agenda.

- Antes que você ative o aparelho para o modo completo, leia o "Manual Detalhado" - ele explicou enquanto se levantava do balcão. Em seguida, sacou um cartão de visita do bolso do terno e o entregou à Elise - Se tiver dúvidas, me manda uma mensagem ou me liga usando o próprio Kairós.

Elise olhou para o cartão, que continha apenas um QR Code e um nome: "Chron".

Nome estranho... se é que é um nome.

Em seguida, guardou o aparelho e o cartão em sua bolsa. Havia, porém, uma última pergunta que queria fazer antes de deixá-lo ir.

- Quanto isso vai me custar?

Mas Chron já não estava mais lá.

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