Luas de Diamante (Volume 1) [...

Par luasdediamante

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Katherine Randall tem lutado contra seus próprios fantasmas desde o dia em que foi morar com seu tio Maxwell... Plus

QUADRO DE AVISOS! (Atualização: 07/04/2024)
Cast
Prólogo
Parte 1 - Fagulhas
Capítulo I - Lua Nova
Capítulo II - Onírica
Capítulo III - Âmbar
Capítulo IV - Garoa
Capítulo V - Declínio
Capítulo VI - Rastros
Capítulo VII - Cinzas
Capítulo VIII - Promessas
Capítulo IX - Regressão
Parte 2 - Cadência
Capítulo X - Criaturas Noturnas
Capítulo XI - E no Princípio...
Capítulo XII - ...Uma Menina Perdida
Capítulo XIII - Umbra
Capítulo XIV - Torrente
Parte 3 - Zênite
Capítulo XVI - Justiceira
Capítulo XVII - Um Conto de Duas Luas
Capítulo XVIII - Ignição
Capítulo XIX - Cicatrizes
Capítulo XX - Reflexos
Capítulo XXI - Peçonha
Capítulo XXII - Weltschmerz
Capítulo XXIII - Maquiavel
Capítulo XXIV - Rainha Branca
Capítulo XXV - Fogo Anda Comigo
Epílogo
Carta de Despedida
Playlist

Capítulo XV - Vidro Quebrado

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Par luasdediamante

Clementine não parava de andar em círculos.

— Isso é o máximo que pode acontecer? – perguntou, novamente.

— Sim. O truque de mente é usado na maioria dos casos – disse Mark.

Ninguém vai mexer com a minha cabeça! – protestou – Ninguém!

— Talvez não seja necessário – Trevor deu seu opinião – A Ordem manteve relações com vários humanos ao longo da história, na maioria das vezes por trocas de favores. Você conseguiu ver o rosto daquele necromante. Isso pode ser útil, de alguma forma. Você é importante para eles. Para todos nós.

— Primeiro, eles precisam acreditar que os necromantes realmente voltaram – Mark abriu um livro encadernado, levantando um pouco de poeira ao ar – Todos acham que a caçada não deixou sobreviventes. Eles não podiam estar mais enganados.

— E como vamos provar isso? – eu perguntei.

— Descobrindo a identidade de pelo menos um integrante. 

— E como vamos fazer isso? – Tine revirou os olhos.

Mark enterrou o rosto nas mãos.

— É o que nos perguntamos há meses.

Estavam todos nervosos por conta da reunião. É claro. A decisão final do julgamento ainda não foi tomada. O destino de Tine é incerto. O meu destino é incerto. Parece que nossa única certeza é que Alistair exercerá a lei conforme suas vontades. Eu não sei o que minha família representa para o cenário jurídico da Ordem, e como minha natureza Avatar pode fazer com que me tratem de forma diferente. Uma coisa é certa: eu sou temida por Alistair e por Aurora.

Trevor tinha razão. Os superiores não sabem o que fazer comigo porque têm medo de mim. Medo de que eu fique louca e termine que nem Diana.

Eu não posso voltar para Manhattan. A polícia está atrás de mim, e não quero ser jogada no orfanato mais próximo para adoção, nem arrumar um lar temporário em algum projeto governamental. E também não vou ser tirada desse Segmento. Não posso perder as minhas duas vidas.

Todos já estavam com as roupas adequadas para o encontro. Aproveitei o curto intervalo que tínhamos para tomar um banho rápido e limpar o resto da fuligem em meu rosto. O banheiro ficava em uma pequena porta no fim da cozinha, discreto. Não fazia ideia de como o chuveiro funcionava sem eletricidade, mas vejo que não adiantaria nada questionar. É apenas mais uma das coisas que nunca entenderei, como por exemplo, o quarto abandonado do segundo andar. Quem dormiu naquele lugar? Imagino que tenham sido meus pais, mas não posso confirmar nada.

A iminente sensação de terror ainda assolava a parte de trás da minha cabeça, como o toque leve e frio de uma sombra me fazendo lembrar que nunca estarei realmente a salvo. Confesso que sentia leves tremores na espinha. Eu não queria admitir que a escuridão ainda estava presente.

Ela sempre fará parte de mim. Somente preciso aprender a controlá-la, mas a ideia de labaredas púrpuras me dava calafrios. Como posso compartilhar da alma de Lunaris, se tenho medo do meu próprio poder?

Edmund ergueu a cabeça subitamente, como se algo tivesse despertado sua atenção. Ele fechou o livro que folheava, apressadamente.

— Está na hora – anunciou, vestindo o manto sobre as costas.

O ambiente ao nosso redor ficava cada vez mais escuro. Me juntei a eles no centro da sala de estar, ao lado de Clementine. Era a mesma sensação que presenciei ontem de manhã, a caminho do banheiro da escola.

Meu corpo começou a pulsar, reagindo aos impulsos da magia circulando em volta da cabana. Desta vez, consegui impedir que meu braço se incinerasse involuntariamente. Tudo o que senti foi uma corrente elétrica.

Então isso era um raio trator. Um artifício utilizado para transportar feiticeiros e transgressores humanos para atenderem a uma reunião. Posso ter contido o impulso de explodir, mas o nervosismo era iminente.

Tine engoliu em seco ao meu lado. A última coisa que vi antes de sermos sugados pelo vórtice foi o reflexo de meu rosto em seus olhos.

•••

Vidro quebrado.

Este era o som da realidade se partindo quando transcendemos o espaço em uma espiral luminosa. Os gritos da minha primeira vez viajando em um fluxo de energia foram substituídos por um silêncio assustador. Estávamos em lugar nenhum, e ao mesmo tempo em todo lugar nos limites terrenos.

Um novo mundo surgiu diante de nossos olhos, como aquarela pingada em uma folha de papel. Lenta e gradativamente, até se completar. Estávamos de volta a câmara com padrões circulares entalhados de forma concêntrica no chão. Desta vez, a porta estava aberta, sendo guardada por dois feiticeiros encapuzados empunhando lanças. Aurora estava no centro, e sua expressão denunciava que já esperava por nossa chegada.

Todos se curvaram diante dela. Tine tentou imitá-los junto comigo, meio sem jeito. A governanta tratou nosso gesto de forma indiferente.

— É uma reunião privada, como devem saber. Não há necessidade de utilizar o auditório. Pelo contrário, temos um lugar melhor. Me sigam.

Do jeito que falava, parecia que estava guiando gados para o abate. Por que eu ainda estava esperando pelo melhor? Quais eram as chances?

O sol da tarde penetrava pelas claraboias, criando desenhos em forma de teias douradas no chão de mármore. Apesar de estar desconfortável a ponto de querer sair correndo daqui, não pude deixar de notar o quanto esse lugar era lindo. Aurora nos levou até uma sucessão de escadas em espiral, os guardas protegendo seus flancos. Daqui de cima, era possível ver os vitrais coloridos representando os Sete Deuses. Lunaris era retratada como uma bela mulher se erguendo de sombras e rodeada por diamantes, que brilhavam, assim como seus cabelos brancos fantasmagóricos e amorfos. Ela não parecia boa, e nem ruim, apenas ela mesma.

Meu coração palpitava ao admirar sua figura, como se estivesse admirando a beleza da minha própria criadora. Eu era fruto de sua alma.

Além das janelas enormes que certamente desbancavam o humilde painel de vidro do segundo andar da cabana, os campos verdes de Toscana se estendiam até onde os olhos podiam ver, a grama dançando uniformemente ao acalanto dos ventos. Tamanha imensidão me assustava.

Parei de contar quantos lances subimos quando ultrapassamos o quinto andar. Por fim, o teto não abrigava mais escadas, e sim o que parecia ser um grande disco entalhado em ouro. Aquilo prendeu meu olhar enquanto meus pés se moviam automaticamente para acompanhar o ritmo de Aurora. Eu nunca tinha sentido algo como isso antes. A magia daquela coisa era mais forte do que qualquer fogo lunar existente. O que é isso?

Não havia tempo para perguntas. Logo a nossa frente um grande arco se abria para duas portas duplas de madeira negra, que facilmente passavam dos cinco metros. Aurora bateu os adornos contra a superfície.

No instante em que as portas se abriram, senti que estava presenciando algo proibido. Todas minhas percepções se aguçaram com a visão.

O lugar era semelhante a câmara do raio trator em questão de estrutura, mas era pelo menos dez vezes maior, e todo o mármore fora substituído por obsidiana, ao que parecia. Uma enorme sucessão de tochas encontrava-se suspensa no teto em grandes candelabros, o fogo dançando de forma a criar a ilusão de que estávamos de baixo d'água, em um mar flamejante e azul. O ar pesado se intensificava a cada segundo.

No centro da sala, havia uma espécie de balcão encoberto de ornamentos brilhantes e pedras preciosas. Entre elas, três se destacavam, esculpidas ao redor do símbolo de uma meia-lua e uma brasa singular entalhada: ouro, jade e prata.

Aurora se colocou atrás do balcão, ao lado de Alistair, que sentia com as pontas dos dedos as joias suntuosas de sua coroa que repousava na superfície acolchoada por um tecido azul marinho. E foi aí que eu finalmente me dei conta. Esta era a sua sala. O aposento real do governante.

Uma terceira pessoa também estava presente. Melinda, com seu suéter branco e olhar transparente que não demonstrava fraqueza ou hesitação. A autoridade que possuía era tão grande que muitas vezes até me esquecia que ela não era sequer uma feiticeira. O silêncio reinou, e Edmund assumiu a liderança do discurso. Todos se curvaram, novamente.

— Senhor – disse o Líder para o governante, com um quê de preocupação.

Alistair não disse uma palavra. Ele nos analisava, como se buscasse as verdadeiras intenções de cada um de nós. Tine se encolheu, desconfortável, ao perceber que estava sendo julgada. Ela se sentia deslocada, sendo uma humana em meio a feiticeiros.

— Edmund – seus dedos se fecharam em um gesto calculista – Durante todos esses anos em que o conheço, devo confessar que este é seu maior feito. O problema, meu caro, é se devemos defini-lo como uma catástrofe de escala global ou um crime de negligência perante a lei suprema.

Ele engoliu em seco, mas continuou ouvindo em silêncio suas palavras.

— Quero acreditar que você é merecedor de sua posição. Eu realmente quero. Tem noção de quantos feiticeiros dariam suas vidas para proteger um lugar sagrado como aquele? O lugar onde estão as raízes de nossa história? O lugar onde homens do bem resistiram contra a tirania infernal e rasgaram os céus com as espadas da liberdade? Não me faça desistir de você. Agora, vamos resolver isso antes que seja tarde demais para todos.

Alistair desceu do balcão, colocando-se em frente a nós, exatamente sobre o ponto onde a luz convergia, formando um holofote natural.

— Suponho que tenhamos que finalizar o julgamento que fora interrompido por uma série de eventos infortúnios. O veredito será determinado ao final da sessão.

Ele estalou os dedos, e as tochas mais afastadas do centro se apagaram, diminuindo consideravelmente a iluminação da sala. A hora chegou.
Seguimos sua orientação quando gesticulou para que nos colocássemos.

— Katherine Randall – bradou, me fazendo tremer no lugar – A lenda que se tornou realidade. Todos lamentamos pela sua perda, mas estamos aqui para tratar de políticas. Não podemos deixá-la vagando livremente sem uma devida regulamentação. É um período conturbado. O ciclo lunar está chegando ao fim, e até que a lua nova se erga nos céus, devemos tomar cuidado com as instabilidades. E isso inclui a sua magia primordial.

Senti suas mãos deslizarem pela base do meu queixo e pela linha da mandíbula, o toque seguido por uma sensação elétrica e avassaladora.

— Entendo que não queira fazer mal a ninguém – nossos olhares se encontraram brevemente, mas o suficiente para me fazer dar um passo para trás – Mas tenho que cumprir meu dever para com o povo. Pela segurança de nossa raça e por tudo aquilo que lutamos. Tente ver por esse lado. Veja com os meus olhos.

Quando terminou seu discurso, se direcionou para Tine. Aurora esperava ansiosamente a decisão, sua testa franzida e seu rosto rígido.

— Clementine Howard. Eu não tinha conhecimento desse nome até ler sua ficha. Devo meus agradecimentos a Melinda, cuja dedicação ao trabalho nos ajudou a lidar com inúmeros transgressores da lei ao longo dos anos. Eu não sei o que te motivou. Eu não sei quais são os seus objetivos. E também não sei porque foi ajudada por alguém com sangue lunar. Pode ser apenas uma coincidência, mas trabalhamos com fatos. Exijo uma explicação acerca do roubo do receptáculo espectral e seu envolvimento com o segmento germânico. Abrigar foragidos da lei é um ato passível de punição.

Ela não disse nada. Tine nunca ficou tão apavorada assim. Ela sempre foi durona, e a última pessoa que arrumou uma briga com ela foi parar no pronto socorro com um braço quebrado. Em vez de retrucar, pediu ajuda silenciosamente para Trevor e os outros. Aurora se divertia.

— Não podemos tirar conclusões precipitadas – disse Mark – O roubo foi realizado na madrugada de quinta para sexta. Os poderes de Katherine ainda não foram despertados. As barreiras que protegiam a mansão não podem ter sido quebradas por uma feiticeira debilitada e uma humana! E o que ela faria com um artefato necromântico de décadas atrás? É mais do que certo que houve envolvimento de uma terceira pessoa.

— Ela não é simplesmente uma feiticeira debilitada! – Aurora se levantou do balcão – Essa garota conseguiu quebrar um círculo no meio de um truque de mente. Ela se jogou em um fluxo de energia sem nenhum treinamento e conseguiu sobreviver até o outro lado. Nenhum de nós sabe do que ela é realmente capaz de fazer. Quem pode garantir que ela não quebrou as proteções?!

— Ela não conseguiu ultrapassar as fronteiras que envolvem nosso Segmento – Gwen me defendeu – Eu tive que abrir passagem para ela. Todos sabemos que as barreiras do casarão são muito mais fortes que as nossas. Se ela supostamente as ultrapassou, então porque não conseguiu passar pelas nossas proteções? Não faz sentido.

— Isso é irrelevante – retrucou, erguendo o tom de sua voz – Vocês estão sob a posse de uma Avatar e uma criminosa. A menos que nos apresentem um ótimo motivo para isso, temos todo direito de jogá-los nas masmorras. E posso garantir que nunca mais verão a luz do sol novamente.

Edmund tremeu, involuntariamente. Gwen e Mark apenas olharam para o chão. A verdade é que ninguém sabia o que fazer. O nosso destino já estava selado? Eles sabiam que isso aconteceria, que não teríamos salvação? Agora eu entendo o que Gwen disse sobre feiticeiros que abandonaram a Ordem. Alistair e Aurora fariam de tudo para exercer a lei, deixando coisas como compaixão e altruísmo de lado. Eles não eram nada mais que fantoches seguindo um livro velho de regras e doutrinas. Inteligentes eram os que escolhiam não serem manipulados. Eles eram livres.

Estávamos entre ditadores e tiranos. Sem voz. Sem o direito de sermos ouvidos por quem quer que seja encarregado pela balança divina da justiça. E, entre ditadores e tiranos, um garoto se colocou à frente.

E ele riu. Riu, como se não estivéssemos em uma situação de vida ou morte. Riu, como se finalmente sucumbisse à loucura de sua própria mente. Riu, como se soubesse a resposta para todos os nossos problemas.

E ele sabia.

— Me desculpem – Trevor colocou a mão na barriga, resistindo aos impulsos de gargalhar – É engraçado, sabem? Vocês se acham donos de toda a razão. Acham que só porque estão sentados em tronos chiques e vestindo roupas cobertas de joias preciosas, possuem direito sobre a vida do povo. O povo que vocês governam. O povo que lutou pela sua liberdade. Se me permitem dizer, vocês estão errados. Isso mesmo, errados! Sabem qual é a diferença entre vocês e Diana? Nenhuma, apenas que ela está morta! Querem saber a verdade? A grandiosa caçada não deu certo, e vocês não sabem disso porque são incapazes de olhar para o que está bem debaixo de seus malditos narizes! Existem praticantes de magia negra soltos pelo mundo. Existem necromantes que querem vingança na primeira oportunidade que encontrarem. E eles dariam de tudo para ver esse governo caindo aos pedaços. Como nós sabemos? Porque investigamos! Gastamos nosso tempo lutando pela sobrevivência da nossa espécie porque nos importamos com ela! Temos orgulho do fogo que corre em nossas veias, e se os homens que nos conduzem como um rebanho de ovelhas não moverão um dedo para nos defender, então nós moveremos montanhas!

O silêncio durou apenas um segundo.

O brilho das tochas acima de nós não era nada comparado ao clarão de luz quando todos invocaram suas armas. Alistair brandia uma enorme lança ornamentada, Aurora, um par de correntes retráteis de jade, e Melinda desembainhou uma espada de sua calça. Tine ergueu o revólver, seguida pelas nossas chamas dançando quando Trevor, Mark, Gwen e Edmund portaram seus respectivos armamentos. Assisti, aterrorizada, enquanto as duas partes sequer saiam do lugar. Ninguém queria dar o primeiro golpe.

Trevor desmaterializou sua lâmina, sendo banhado por uma chuva de faíscas azuis. Ele deu poucos passos para frente, o suficiente para a ponta da lança de Alistair ficar a centímetros de seu peito.

— A verdade dói, não é mesmo? – ele acariciou a superfície de metal – Vá em frente. Faça. Mais uma morte encoberta pela lei não irá fazer diferença nenhuma. Ninguém irá sentir minha falta. Vá em frente e acabe de uma vez por todas com o pouco de honra que ainda existe em você. Faça! Me mate de uma vez!

Edmund e os outros pararam de respirar. Meu coração disparou.

Com um grunhido final, Alistair recuou. Aurora e Melinda seguiram seu comando ao guardarem suas armas e voltarem para o balcão. Suspirei de alívio quando todos estavam de mãos vazias novamente.

Eu não acreditava em meus próprios olhos. E toda aquela história de que a investigação era algo secreto? Ele acabou de contar tudo para a Ordem só para nos proteger? E como sabia que isso daria certo? Eu lhe daria outro tapa se pudesse por ter feito algo tão idiota e descuidado.

— Não há nada que comprove que realmente existem necromantes que sobreviveram a caçada – Alistair afirmou, ignorando os comentários desagradavelmente honestos – E o que isso tem a ver com o roubo do artefato? Por que retomar as caçadas?

Trevor revirou os bolsos do sobretudo que vestia. De lá, tirou um dos cristais que Edmund e Gwen recolheram da floresta após o último ataque. Se ele trouxe isso, então quer dizer que já estava tudo planejado?

— Esse não é um cristal comum como os que usamos para armazenar magia, como uma reserva – ele girou o objeto carregado na mão – Isso é fruto de uma mutação. E acho que sabe muito bem como essas coisas funcionam, pois foi você que caçou centenas de necromantes e suas famílias. Deve ter sido o suficiente para saber que não só a mente sofre com os efeitos da magia lunar sombria, mas o corpo também. Esse cristal foi produzido por um necromante, o mesmo que obrigou Clementine a roubar um artefato de magia negra, o mesmo que encurralou ela e Katherine na floresta enquanto buscavam proteção em nosso segmento, e o mesmo que irá fazer nossa sociedade queimar novamente se não fizermos nada para detê-los! Não estamos falando de alguém. Se trata de um grupo!

Ele jogou a lasca no chão, pisoteando-a com toda a força que tinha. Estilhaços voaram, e a familiar névoa escapou, destoando de azul para roxo. A verdadeira essência da escuridão de Lunaris. Terror púrpura.

Melinda deixou escapar uma exclamação. Ela trabalhava com pergaminhos e artefatos, mas aposto que nunca viu magia negra de perto. É um choque de realidade enorme, tanto para ela quanto para mim. Aurora ficou em silêncio enquanto Alistair erguia o olhar lentamente para Trevor.

Essa foi a gota d'água. O necessário para fazê-los abrirem os olhos para a verdade. Mas, e agora? Colocar meses de investigação em jogo somente para provar algo que já sabíamos? O que iremos fazer depois?

Ao que parecia, Trevor tinha tudo sob controle.

— Sei o que está pensando – ele chutou os restos do cristal – É uma calamidade. Algo que deve ser mantido trancado a sete chaves. Seria uma pena se todos descobrissem que a gloriosa caçada fracassou. Que seu exército majestoso falhou em sua única missão. O que o povo pensaria de seu governante ao descobrir que não está seguro? Podemos saber ao sair por essa porta. Ou podemos tornar disso o nosso segredinho. Ninguém saberá do novo escândalo encoberto pela Ordem, por uma condição.

— Quem você acha que é para...

— Basta! – Alistair interrompeu Aurora assim que ela elevou a voz. Ele respirava ofegante, num conflito interno entre honra e lei Vejo que criou este garoto para ser um diplomata rigoroso. O que vocês querem? Qual é a proposta?!

Eu conseguia notar a fúria queimando em sua expressão. Ninguém desafiava o governante supremo e sua imbatível autoridade. Seria essa a primeira vez que o descendente de Alder Hartmann fora contestado?

— Deixe-nos terminar a nossa investigação – dizia Trevor, andando em círculos no meio da sala – As coisas estão caminhando para a reta final. Tudo o que precisamos é de uma semana. Não sabe se somos competentes o suficiente para abrigar uma Avatar? Então deixe-nos provar. Deixe-nos provar que somos capazes de deter os necromantes.

Ele ficou em silêncio, observando o crepitar das tochas.

— Vocês dizem que praticantes de magia negra estão à solta – disse, por fim – Que eles usaram uma humana para adquirir um dos artefatos mais perigosos que nossa sociedade possui. Vocês não sabem o que eles vão fazer com isso, e nem por quantos membros esse grupo é composto. Estão assinando a própria sentença de morte. Não irei permitir tamanho descuido e irresponsabilidade.

— Nós temos o bastante – confirmou Mark, decidido.

Notei que seu queixo apontava para mim. Alistair fixou novamente seus olhares âmbar em minha pessoa. Levei um instante para entender.

Eles estão apostando tudo em mim.

Eles acreditam que posso ajudá-los a resolver o caso. Que meus poderes são o suficiente para derrotar a ameaça iminente. Mas parece que esqueceram de um detalhe. O que poderá acontecer caso eu perca o controle das minhas chamas? Não posso arriscar me perder novamente, ainda mais no meio de um possível confronto. Como farei para resistir?

— É de nosso conhecimento que a graça divina seja uma grande aliada no combate contra a escuridão do outro lado da Lua – Alistair ponderou, rigidamente – Mas não podemos deixá-los partirem em uma missão formal antes de sabermos com o que estamos realmente lidando.

Em um flash, ele girou, estendendo o braço em um arco amplo ao materializar uma espada de prata refinada. Melinda e Aurora se postaram ao seu lado, criando um semicírculo em nossa volta. Edmund e os outros fizeram o mesmo, parecendo entender o que se desenrolava. Com a formação completa, eu estava dentro de uma arena improvisada com ele.

Mark, amargamente, retirou uma lâmina de ferro do seu cinto e a arremessou para mim. O metal atingiu o chão com um baque, e vi meu reflexo apavorado na superfície lisa. Me abaixei para pegá-la. Era pesada.

— A fúria lunar é incontrolável, gloriosa e livre. Ela pode e deve ser capaz de derrotar facilmente um feiticeiro de elite. Eu, Alistair Hartmann, governante supremo da Ordem, quinto de meu nome, herdeiro de Alder Hartmann, o Lorde das Brasas, desafio você, Katherine Randall, a encarnação de Lunaris e filha de George e Samantha, a um confronto legítimo. Me faça cair sob o seu queimar e prove que é capaz de desempenhar a tarefa à qual foi designada. Caso perca, temo que terei que cancelar a investida organizada e assumir pessoalmente o caso, além de aplicar punições de acordo com as leis inflingidas por essa movimentação paralela – ele girou a espada em sua mão, como se fosse parte de seu braço – Não acredito que seus agora conterrâneos do Segmento Germânico reagirão bem ao fato de terem seus direitos cassados por conta de uma falha sua. 

Ele entrou em posição, empunhando a arma atrás da cabeça, pronto para desferir um corte vertical. Senti que todo o mundo se encolhia até não sobrar mais nada a não ser nós dois. No que diabos eu fui me meter?

Trevor expôs todo o plano para poder garantir que eu e Clementine ficássemos a salvo. E agora eu tinha que derrotar o governante supremo em um desafio para provar que sou capaz de controlar meus poderes e não colocar todos em risco. Se eu vencer, vamos continuar sozinhos em nossa jornada contra os necromantes, desde que fiquemos em silêncio. Se eu perder, Deus sabe lá o que ele e os superiores irão fazer comigo. Edmund e os outros serão julgados, e o segmento será tomado. Eu tentava acreditar que conseguiria, mas as batidas aceleradas do meu coração abafavam quaisquer pensamentos, sejam eles positivos ou negativos.

O jogo estava ao nosso favor. Agora, nós éramos os peões.

Arrisquei olhar para Clementine. Ela arfava, respirando com dificuldade. Eu não consigo imaginar o quão difícil é para ela. Eu faço parte desse mundo, e sentia como se estivesse no meio de completos estranhos.

Trevor me desejou boa sorte com o olhar. Ele tinha medo.

Alistair demonstrava uma expressão focada, quase viciosa. Apesar de não parecer, sinto que ele devia estar se divertindo. Dois dias foram o suficiente para eu entender que ele gostava de jogos. A lei não lhe significava nada, a não ser algo que podia modelar como bem quiser. Se possuía poder suficiente para encarcerar todos os componentes do segmento germânico, por que cedeu à chantagem de Trevor? Ele queria brincar junto conosco. Entrar no jogo, virá-lo, e mostrar quem é que está no comando.

Ele queria nos lembrar que não somos nada.

Sinto que vou sentir prazer em chutar seu rostinho perfeito.

Aurora se colocou atrás dele, fechando os olhos e guiando os dedos das mãos em um ritmo quase robótico. Os círculos no chão se iluminaram, levantando momentaneamente uma parede invisível. Aproximei minha mão da superfície, o envoltório sólido me fazendo engolir em seco.

Estávamos presos, e só haverá um vencedor.

Empunhei a lâmina, colocando-a à minha frente da forma que eu achava ser adequada. Como diabos se usa uma espada? A única coisa que sei fazer é controlar o fogo lunar, e nem isso eu faço direito. Mark observava meus movimentos com seu olhar crítico e analista. Ele deveria estar pensando que estamos condenados. Bem, não o culpo por esperar o óbvio.

Melinda fez um sinal, indicando o começo do confronto. Tine gritava palavras de motivação, lutando contra o medo interno. Alistair avançou, cortando o ar em inúmeras estocadas. Consegui bloquear as duas primeiras, o metal quase escapando das minhas mãos. Quando sua espada desceu, me joguei para o lado, rolando no chão. Tentei investir contra ele, mas fui impedida por um ataque frontal. A parte plana se chocou contra meu braço, seguida por uma explosão direcionada quando a lâmina fora energizada. O impulso percorreu meu corpo, me lançando para longe.

Não conseguia dizer se o que fora levantado ao ar era poeira ou cinzas. Um trajeto fora formado no chão em forma de trilhas fumegantes. Edmund e Gwen estavam paralisados, e os outros nem sequer olhavam. Respirei fundo, e segurando o cabo com as duas mãos, deixei que a espada guiasse meus movimentos. Avancei em disparada, rodopiando em círculos e tentando achar uma brecha. Ele desviava de todos os cortes, e quando finalmente desferi o golpe perfeito, metal se chocou contra metal.

Travamos um embate de força, e faíscas começaram a surgir. Usei de toda minha concentração para manter meus pés firmes enquanto tentava superá-lo. Um grito escapou quando meus pulsos incendiaram, o fogo se alastrando por toda a extensão dos braços até a lâmina, que reluziu ao ser imbuída por magia. A expressão de Alistair vacilou por um instante, o suficiente para fazê-lo perder a firmeza quando o calor o engoliu em uma torrente flamejante. Sua espada foi arremessada para longe, se desmaterializando ao atingir ao chão. Aurora arregalou os olhos.

A sensação familiar voltara. Era como se uma fogueira queimasse dentro de mim, alimentando minhas veias com fogo ardente. Na noite do ocorrido na mansão, isso não passava de um simples calafrio. Agora, mesmo que eu não tenha muita experiência, estava muito mais forte.

Não tive tempo de comemorar. Alistair chamou por sua lança, e, quase instintivamente, larguei minha espada no chão. O gesto foi seguido pelo tom surpreso de Mark e Tine perguntando o que eu estava fazendo.

Deixe as chamas queimarem.

Bolas de fogo encontravam o metal, misturando-se à atmosfera ao serem cortadas pelo aço. Eu já não sentia mais o meu corpo, nem o chão sob meus pés ou sequer o cansaço humano. Eu era fogo. Calor. Liberdade.

A mortal que recebera a graça divina.

Alistair se tornou mais cuidadoso quando percebeu que eu realmente estava dando o meu melhor. Nem consigo imaginar quantos anos de treinamento ele teve, e mesmo assim, via o medo de falhar escondido nas entrelinhas marcadas por traços firmes e proeminentes.

Com um brado, ele partiu ao ataque. Rápido demais para reagir, e forte demais para bloquear. Todo o ar foi o expulso dos meus pulmões quando fui golpeada diretamente. Quando tentei levantar, outra explosão me atingiu. A dor me consumia por dentro, não algo físico, mas espiritual.

Protegi a cabeça com os braços, esperando pelo pior. Eu não conseguiria ficar de pé a tempo. O som do aço cortando o ar foi a última coisa que ouvi antes um clarão engolfar minhas mãos. Em vez de me atingir, a lança se chocou contra o inimaginável escudo ígneo criado por acidente.

Uma exclamação silenciosa, e dois olhares surpresos. O bastante para eu me desvencilhar de sua mercê e recuar até um dos extremos do campo de batalha. Eu não vou conseguir vencê-lo em um embate direto.

Trevor saberia o que fazer. Ele não tinha nenhum plano quando descemos naquele porão e tudo deu errado. Somente agiu por instinto.

É isso que eu estou fazendo de errado? Pensando demais? Não é algo que consigo controlar. Analisar demais as coisas e traçar estratégias até mesmo para as tarefas mais simples é o que faço de melhor. Mas o que aconteceria se eu agisse pelo outro lado? É isso que feiticeiros fazem?

Eu sei a resposta. É claro que sim. Eu sou um deles.

A questão não é o que Edmund, Mark, Trevor ou Gwen fariam, mas sim o que Katherine faria? O que eu faria para provar que sou capaz de reivindicar minha própria história? Como irei provar que sou forte o suficiente para vencer os meus próprios fantasmas e derrotar os dos outros?

É simples. Sobrevivendo.

Eu sobrevivi durante todo esse tempo. Posso ter tropeçado em um milhão de pedras no meio do caminho, e ter pensando incontáveis vezes que não há outra saída a não ser desistir. Mas eu estou aqui. Não posso dizer que consegui chegar até o final da estrada, mas afirmo com toda a certeza que estou lutando, por mais que seja difícil. Eu continuo aqui.

Não sou forte por ser uma feiticeira. Não sou forte pelo fato de abrigar a alma de uma Deusa atemporal em meu ser. Eu sou forte por estar viva. Eu sou forte por ter acordado mais um dia, e continuar respirando.

E não vou deixar que ninguém diga o contrário.

Dessa vez, eu não ataquei. Apenas desviei de seus golpes, me esforçando para me manter longe do alcance da ponta de sua lança. Mark deu um passo para frente, vibrando. Eu tenho que conseguir. Eu preciso.

Notei que quando Alistair riscava o chão com o metal, pequenas faíscas escapavam e desapareciam na superfície de obsidiana. Os círculos luminosos reagiam, expelindo pequenas partículas de fogo. Se eu pudesse...

Iniciei uma corrida assim que ele realizou movimentos mais agressivos, não se importando em se chocar contra a barreira desde que tenha desferido um golpe poderoso. Os segundos que levava para se recuperar do choque eram o suficiente para eu me abaixar e sentir a pedra fria em minhas mãos. Isso deve ter o mesmo princípio que a conexão que realizei com o bracelete de Amanda na catedral de Freiburg. Visualizei os padrões circulares entalhados, criando um laço invisível entre minha mente e o desenho formado. Interrompi o processo assim que ele investiu novamente.

Outra cambalhota, e ambas as palmas viradas para o chão. Agora, o fraco elo se tornara uma corrente elétrica. Eu quase conseguia ouvir o fluxo de energia que corria pela sala. A tensão se mostrou quando Edmund revelou estar maravilhado. Esta era a minha única chance.

Meus pés se encontravam no centro, e eu esperava pelo momento ideal. Abri os braços, sinalizando para que me acertasse em cheio. Meus lábios se curvaram em um sorriso debochado quando testemunhei a ira distorcendo sua expressão. Ele se postou, a lança sobre o ombro.

A exaltação e o furor incontrolável do fogo se libertou quando agarrei o cabo de sua arma e a forcei para baixo, fincando sua ponta no maior círculo que delimitava o meio da arena. Minha percepção dos arredores explodiu quando os limites da barreira foram quebrados, transformando tudo em um grande borrão azul e quente. Gritei o mais alto que pude, mas não de dor. O fervor da batalha era caloroso, e me fez ter coragem suficiente para retirar a lança da pedra e erguê-la em direção ao teto.

As labaredas convergiram para a lâmina, reunindo cada vez mais luz. Alistair e todos os outros presentes na sala cobriam o rosto para se protegerem de tamanho esplendor. Tudo o que fiz foi desferir um único golpe. Um golpe capaz de fazer o governante supremo de nossa sociedade sucumbir perante o poder que via à sua frente. A lança se desintegrou em minhas mãos, o fulgor encolhendo gradativamente até desaparecer.

Alistair não foi o único a cair.

Primeiro, os espasmos. Depois, o choque. Mesmo no chão, ele assistiu enquanto eu me rendia quando meu próprio fogo se voltou contra mim.

Estava acontecendo tudo novamente. Eu me via de novo no porão, minha consciência dando gritos ao vazio para tentar resistir. Quanto mais eu usava meus poderes, mais a tentação aumentava. Mais difícil era ter controle sobre o divino, e mais perto eu ficava de acabar como Diana.

Do canto do olho, vi Trevor e Edmund correndo para a arena.

— Não! – supliquei, os sintomas da crescente escuridão modificando levemente minha voz – Apenas... fiquem... longe... de mim!

Trevor fechou os punhos, provavelmente querendo gritar comigo. Ele não o fez, sabendo que somente pioraria a situação. Mark afastou os dois, e todos eles ficaram imóveis. Melinda e Aurora recuaram, quase não acreditando no que viam. Magia negra. Pura. Diante dos seus olhos.

Eu sabia no que Alistair pensava. Preciso dar um fim nessa garota antes que mate todos nessa sala. Ela irá sair do controle. Ela irá se perder.

Lutar contra as chamas púrpuras era algo indescritível. Meu próprio corpo não me obedecia, agindo como um vulcão prestes a liberar sua desastrosa erupção. Era como tentar apagar um incêndio com um copo.

Meus pés se esforçavam ao máximo para sustentarem toda a energia fluindo por mim. Pequenos impulsos elétricos surgiam entre todo o calor, espalhando o efeito vertiginoso quando você sente que está caindo ao tentar dormir. Eu sabia que a qualquer momento minha lucidez seria desligada, me transformando em um animal guiado por instintos. E, quando isso acontecesse, não seria apenas o meu fim, e sim o de todos.

Em meio à crescente nuvem agonizante, chamei pelas únicas pessoas a quem confio minha vida e tudo o que eu fui, sou e sempre serei.

Meus pais.

Desde as primeiras noites das quais já não me recordo mais, eles eram a âncora que me puxava de volta para o conforto da realidade onde não existem monstros debaixo da cama. Seus braços eram o lugar em que deixava de pensar na mulher deformada me perseguindo na floresta em chamas para apenas sentir o aroma de flores de Samantha. Clareei minha mente, esquecendo que estava no meio de um combate valendo vidas.

Deixei que minha única visão fosse o formato de seus rostos. Lisos e delicados, com uma pontada de rigidez na curva dos olhos e traços selvagens e ao mesmo tempo belíssimos que definiam todos os Randall.

As histórias fantásticas que George contava quando me colocava para dormir ganhavam vida em imagens coloridas, enquanto sua voz melodiosa preenchia meus ouvidos como um acalanto. Eu arfava enquanto corria para segui-los até a luz no fim do túnel, para fugir de minha própria prisão. Era tão brilhante e quente. Antes que meus olhos mortais pudessem enxergar o que havia do outro lado, minha percepção se realocou.

Não tinha me dado conta das gotas de suor escorrendo pela minha testa. As labaredas se retraíam, contraindo-se em espirais e ficando cada vez menores. O roxo se tornava mais claro, transformando-se novamente no azul verdadeiro. O último filamento púrpuro retorceu-se em agonia na ponta de meu dedo indicador antes de finalmente desaparecer.

Caí de joelhos, minhas palmas novamente tocando o chão frio. Não conseguia mais sentir a energia da sala, nem a minha própria e nem a dos outros feiticeiros ao meu redor. Meus sentidos não funcionavam.

Eu consegui. Eu consegui me livrar da magia lunar sombria.
Aurora assistia horrorizada enquanto Tine e os outros me ajudavam a levantar. Me apoiei em Mark e Trevor, ainda tentando me orientar à medida que minha visão parava de girar. Alistair já estava de pé, e se encontrava sem palavras. Ele odiava o fato de ver que eu sou capaz.

Lentamente, ergueu as mãos para bater palmas. O estalo fora de ritmo era mais um aditivo constrangedor à toda a situação em que estávamos. Apesar de ter recebido um golpe direto e altamente concentrado, ele não demonstrava nenhuma fraqueza além de mancar com a perna esquerda e alguns arranhões quase invisíveis no rosto. Por outro lado, eu havia ferido algo mais valioso que qualquer aspecto físico: o seu ego.

Como um governante inabalável que não aceita ser contestado se sente quando é derrotado em uma batalha por uma simples garota?

Ele abria a boca para a falar, mas parecia ser incapaz de emitir um simples ruído. Ainda não processara a derrota. Eu não tinha ideia do tipo de rivalidade existente entre Alistair e Edmund, mas sabia que ela se tornara mais forte do que nunca, e eu posso ter sido responsável por isso.
- Um juramento é um juramento - disse, amargamente - Vocês têm uma semana para apresentarem provas concretas. Caso contrário, a Legião irá assumir o caso. Situações drásticas exigem medidas igualmente drásticas.

Finalmente, deu a volta para retornar ao balcão, mas não antes de parar bem ao meu lado e colocar em palavras sua investida mais forte.

— Pode ter vencido uma batalha, mas não sabe como são as coisas quando sua vida está em jogo. Lá fora, quando tiver que lutar e o fogo começar a queimar, desejará nunca ter pisado fora das barreiras.

E com isso, fomos dispensados.

Fomos acompanhados até a câmara por Natasha, que esperava atrás das grandes portas junto com dois guardas. Tive dificuldade em descer as escadas, me apoiando nos corrimões polidos encostados na parede.

O vitral de Lunaris continuava lá, refletindo junto com os outros seis um arco-íris proveniente da luz solar. Não sei por que, mas sentia que conhecia melhor toda a sua imensidão divina e incompreensível depois de usar tanto meus poderes e quase ser possuída duas vezes no mesmo dia.

Quando todos nós formamos um círculo dentro do cubículo de mármore, Natasha fez uma reverência silenciosa, voltando apressadamente para o corredor principal. As portas fecharam, e fomos transportados de volta para o segmento na mesma espiral reluzente. Ninguém estava comemorando a minha vitória. Afinal, tínhamos muito trabalho a fazer.

Nunca pensei que ficaria feliz em estar de volta à sala de estar rústica com incensos queimando em cada móvel presente no local. Caí sobre o sofá, respirando normalmente pela primeira vez desde que saímos.

Mark quebrou o silêncio ao confrontar Trevor diretamente.

— Pelos nove infernos, com o que você estava na cabeça?! – todo seu desespero por fim explodiu – Tem sorte de termos saído com vida depois de seu infame discurso. Pode apostar que tudo só vai ficar pior daqui para a frente. Se ainda acredita que vai ser o sucessor da liderança do Segmento...

Seus lamentos se reduziram a um suspiro quando se viu sem palavras. Esse é o problema. Não tínhamos o que fazer. Se não fosse por Trevor, o combate não teria acontecido, e eles seriam forçados a abandonarem Clementine. A me abandonarem. Não existe certo ou errado quando você faz algo para proteger alguém. Independente de tudo, ele confiava na minha capacidade de poder ajudá-los contra os necromantes.

As pilhas de livros continuavam dispostas desorganizadamente na mesa de centro e sobre o tapete no chão. As cópias mais importantes foram colocadas em um espaço isolado perto da lareira. Não encontramos nada até agora, porque não sabemos o que procurar. Trevor se sentou ao meu lado, quase como se pudesse ler a minha mente. Seu olhar preocupado evidenciava que estava na hora de finalmente contar a verdade.

Meus dedos ainda tremiam um pouquinho, o suficiente para disfarçar e não atrair olhares suspeitos, mas ele percebera, como sempre.

Sua boca se moveu, e identifiquei as palavras: não podemos esperar até que seja tarde demais.

Então ele realmente havia mudado de ideia. Contar para os outros sobre Diana seria a melhor opção, mesmo que não tivéssemos certeza? Se isso for verdade, o próximo passo deles seria roubar os pergaminhos de Melinda, e depois ir atrás de mim para acabar com tudo. Não sabemos se eles podem quebrar as barreiras da floresta, afinal, foram eles que devem ter aberto passagem para nós entrarmos na mansão aquele dia. Se não fizermos nada, ficaremos despreparados para qualquer potencial ataque.

Eu não aguentava mais me sentir incapaz, a presa fugindo do predador. Tine lidou com toda essa pressão sozinha por uma semana inteira, mantendo em segredo a ameaça que recebia do homem encapuzado. Ela quer se vingar. Todos nós queremos, e não temos como fazer isso se não acabarmos com o problema pela raiz. Estava mais do que na hora.

Todos se voltaram para nós quando nos levantamos. Trevor contou o que acontecera quando estávamos no lago Moosweiher, quando o impacto da possessão ainda estava forte o suficiente para exibir sintomas físicos. Assumi a liderança da conversa a fim de explicar minha teoria sobre Diana. Eu não sonhei com ela por todo esse tempo simplesmente por que nós duas somos Avatares de Lunaris. Ela queria encontrar uma ponte para o mundo mortal, e eu era essa ponte. Por meio de sonhos, ela me assombrava o suficiente para adquirir controle sobre mim assim que as visões permeavam minha mente. Por que os necromantes estão atrás de mim desde meu nascimento? Por que eles se arriscariam tanto para acabar com uma família de feiticeiros se não fosse pela minha condição especial? Eles querem reafirmar o domínio da magia lunar sombria no mundo, e há forma melhor do que revivendo a primeira Avatar que sucumbiu aos sussurros malignos do lado escuro da prata?

À medida que avançávamos, as expressões dos três mudavam. Tine nem sabia quem era Diana, mas aposto que essa primeira impressão a deixou apavorada. Confesso que não tinha certeza se eles realmente aceitariam, mas definitivamente não esperava que Edmund concordasse.

— Como eu suspeitava... – lamentou, vagamente. Ter um medo confirmado deve ser pior do que receber uma surpresa – É a única explicação plausível para tudo o que está acontecendo. O roubo. Os movimentos suspeitos. A criação do ligamento que encontraram no porão em Freiburg.

Trevor inclinara a cabeça, confuso.

— O último ciclo lunar que antecede a Lua nova já começou há algum tempo – explicou Gwen, percebendo-se do que se tratava antes mesmo dele continuar o raciocínio – Um zênite do último ciclo. O período onde o lado obscuro da magia se mostra mais dominante em nosso plano. É o oposto de um zênite do primeiro ciclo, quando a prata lunar se torna mais pura e energizada. É o momento ideal para realizar ritos necromânticos.

— O ligamento fora montado com antecedência – disse Edmund, pensativo – O que quer dizer que a assinatura mágica de Penelope também fora plantada com antecedência no porão. Isso fez com que vocês fossem até lá para poderem ativar o selo e desencadear a possessão. Quem quer que tenha sido a mente por trás disso tudo, ele tem observado sua família.

Engoli em seco, fingindo que não sentia medo.

— Então onde está Penelope? Se conseguiram a assinatura dela, então ela foi capturada? Ainda temos pelo menos alguma chance?

— Quando foi a última vez que viu Penelope? – perguntou Tine

— Eu... não lembro... – as palavras soaram estranhas.

Essa é a verdade. Eu não lembro da última vez que me vi cara a cara com ela. Foi há seis meses atrás, ou um ano? Era quase como se eu não conseguisse me lembrar de seu rosto. Maxwell comparecia a tantas reuniões de trabalho que me pergunto se ele também manteve contato com a esposa, ou se suas conversas não passavam de rápidas ligações. Eu nunca parei para pensar por esse lado. Eu nunca percebi.

Penelope nunca esteve presente. Até as visitas semestrais que costumava fazer não aconteceram mais esse ano. E se ela estiver sendo mantida refém durante todo esse tempo sem que eu tenha me dado conta? Sem que Maxwell tenha se dado conta? E se for mesmo verdade, como ela conseguiu comprar duas passagens para Stuttgart junto com o vizinho?

Algo nessa história não estava nem um pouco certo.

— Então é verdade? – insisti em perguntar – Diana pode mesmo ser trazida de volta dos mortos? E por que algum necromante não fez isso antes?

— Por que eles estavam esperando por um milagre – respondeu Edmund, analista – E agora ele está aqui, bem na nossa frente. A magia dentro de você é capaz de fazer os céus arderem e o inferno congelar. Em mãos erradas, resgatar uma alma perdida será tão fácil quanto contar até três.

— Ter o poder entre a vida e a morte é uma dádiva que qualquer um mataria para possuir – comentou Trevor – Esse grupo fará de tudo para capturar você. E só os Deuses sabem o que eles vão fazer depois disso...

— Eu estou longe de conseguir reviver alguém – confirmei o óbvio, apesar de uma crescente dúvida – Certo, eu consegui conter as chamas roxas durante a luta. É um começo. Mas eu não sou capaz de ressuscitar Diana.

— Você não precisa ser – as palavras de Gwen continham pena – Tudo o que precisam é de sua energia vital. Dentro de um círculo, quando não puder mais se mover ou respirar, o fogo sagrado irá agir por conta própria.

Silêncio. Todos pareciam extremamente convencidos. Isso definitivamente não era o que eu esperava quando decidimos contar sobre uma princesa renegada que pretende voltar para terminar o que começara.

— Vocês já sabiam, não é? – meu olhar acusativo percorria por todos presentes na sala – Vocês já sabiam que esse era o plano deles desde o início. Antes mesmo de nós chegarmos aqui. Antes mesmo disso tudo começar.

Clementine se colocou ao meu lado, incrédula, enquanto todos pareciam se encolher sobre o próprio corpo, com medo de falar a verdade.

— Vocês sabiam que não poderiam lidar com isso sozinhos. Por isso foram atrás de mim, e não ficaram surpresos quando aparecemos no meio da noite. Estou certa? Vamos lá! Digam que eu estou errada! Digam que foram vocês que por alguma magia estranha me deram aquela pedra a partir de um sonho! Digam que foram vocês que colocaram aquele gato para nos levar até a ponte Gapstow! O que mais sabem sobre mim? Sobre nós?

Trevor foi o primeiro a quebrar o silêncio.

— Nós tínhamos nossas suspeitas sobre Diana, mas não podíamos confirmar nada – disse, elaborando lentamente a frase – E pensamos que descobriria alguma forma de chegar até nós depois do que aconteceu. Os laços familiares que te ligam a esse lugar são mais fortes do que pensa. Tudo não passou de um conjunto de fatores que contribuiu para chegar onde está agora. Você deve ter materializado a pedra inconscientemente enquanto sonhava, do mesmo jeito que fazemos com espadas. Mas... de que gato está falando? E como ele levou as duas até onde o portal estava?

— Nós... nós o encontramos pela primeira vez na mansão – explicou Tine, me deixando respirar por um momento – E depois quando voltei para Katherine depois da explosão, ele começou a me seguir pelas ruas, como se estivesse atrás de alguém. Depois que nos reunimos, ele saiu correndo pela cidade e nos levou até a ponte. Acho que sabem o que houve depois.

— A mansão Williams? – indagou Edmund – O encontraram lá dentro?

Tine confirmou com a cabeça. Ele apenas se virou, colocando a mão sobre a testa enquanto se afastava. No que ele estava pensando? E por que toda menção a esse lugar o deixava desconfortável? Trevor também não parecia saber, a julgar pela confusão estampada em seu rosto.

— Se não fosse por ele, não teríamos chegado até aqui – afirmei, por mais que a ideia de um angorá preto ter me guiado até o meu destino me fizesse questionar o pouco de sanidade que eu ainda tinha – Existe alguma explicação para isso ou nós duas quebramos a barreira da loucura?

— Alguns animais desenvolvem percepções místicas quando convivem junto com feiticeiros – disse Gwen – Mas isso é mais notável em tribos de xamãs lunares, não em áreas urbanas, ainda mais em Nova York.

— Vocês provavelmente deram sorte em encontrar um animal guardião perdido em Manhattan – Mark deu sua opinião – Temos mais coisas com o que nos preocupar, se já tiver terminado de nos acusar.

Assenti, ciente de que estava vermelha. É incrível como consigo transformar situações simples em um escândalo. Lá fora, o Sol estava em seu ponto mais alto, criando sombras nos quadros e adornos na parede.

Tine olhava pela janela, pensativa.

— Eu tenho que voltar para casa – ela disse, com os ombros caídos – Minha mãe vai ficar louca se eu não aparecer até o fim da tarde. Enquanto isso, vou tentar fazer algo para ajudar. Posso encontrar alguma coisa relacionada com Penelope e Joshua nas fichas e no computador da delegacia.

Resisti ao desejo de perguntar como ela entraria lá sem ser vista, mas não havia necessidade. Clementine Howard sempre conseguia o que queria, e não era um pai autoritário que a impediria de acessar alguns arquivos estúpidos. Me despedi com um longo abraço, e Mark a guiou para fora. Era estranho estar sozinha de novo, mas dessa vez eu estava confiante. Pela primeira vez me sentia confortável com Trevor e os outros.

Isso se chama progresso? Ou apenas aceitação?

Quando todos estavam reunidos novamente, a primeira coisa que Edmund fez foi subir para procurar um livro sobre zênites e ciclos lunares.

Animais guardiões e ciclos mágicos. Quantas coisas existiam nesse mundo e eu não sabia? Aposto que nunca saberei a resposta. Pelo menos, agora temos um objetivo: impedir que o grupo complete o ritual. Retirei meu telefone do bolso, mandando uma rápida mensagem para Tine. Disse para ficar de olho em Amanda e procurar por John caso precise de ajuda.

Se eles atacarem, podemos reagir rápido o suficiente para criar uma armadilha. Não sei se ela será capaz de pará-los com um revólver energizado, mas certamente irá atrasá-los. É tudo o que precisamos. Tempo.

Não podemos deixar os necromantes pegarem os pergaminhos. Se eles conseguirem, uma investida ao segmento pode acontecer a qualquer momento, e não teríamos como nos defender sem nenhum preparo.

Será que durante todo esse tempo, nos meus sonhos, Diana queria mostrar que iria voltar? A floresta em que me perseguia é a mesma floresta em que estamos agora. E se tudo não passar de um presságio?

Ela se comunicava comigo. Sonhos, visões, ou pressentimentos e súbitos calafrios em minha espinha. A Avatar renegada sempre estava ao meu lado, mesmo quando me via sozinha. Ela conhece toda a minha vida.

E se eu fosse atrás dela em meus sonhos, e não o contrário? E se ao invés de fugir, deixasse ela tocar minha alma? Eu nunca pensei em fazer isso. É claro. As pessoas têm medo de enfrentar seus pesadelos. Mas, dessa forma, quais segredos sobre ela e sobre os necromantes eu descobriria? Assim, eu entenderia melhor quem foi, ou quem é de verdade?

Só há um jeito de saber.

— Ei – eu me virei para Gwendolyn, pensativa – Nós podemos conversar?

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