Luas de Diamante (Volume 1) [...

By luasdediamante

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Katherine Randall tem lutado contra seus próprios fantasmas desde o dia em que foi morar com seu tio Maxwell... More

QUADRO DE AVISOS! (Atualização: 07/04/2024)
Cast
Prólogo
Parte 1 - Fagulhas
Capítulo I - Lua Nova
Capítulo II - Onírica
Capítulo III - Âmbar
Capítulo IV - Garoa
Capítulo V - Declínio
Capítulo VI - Rastros
Capítulo VII - Cinzas
Capítulo VIII - Promessas
Capítulo IX - Regressão
Parte 2 - Cadência
Capítulo X - Criaturas Noturnas
Capítulo XI - E no Princípio...
Capítulo XII - ...Uma Menina Perdida
Capítulo XIII - Umbra
Capítulo XV - Vidro Quebrado
Parte 3 - Zênite
Capítulo XVI - Justiceira
Capítulo XVII - Um Conto de Duas Luas
Capítulo XVIII - Ignição
Capítulo XIX - Cicatrizes
Capítulo XX - Reflexos
Capítulo XXI - Peçonha
Capítulo XXII - Weltschmerz
Capítulo XXIII - Maquiavel
Capítulo XXIV - Rainha Branca
Capítulo XXV - Fogo Anda Comigo
Epílogo
Carta de Despedida
Playlist

Capítulo XIV - Torrente

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By luasdediamante

O canto de Gwen foi ficando cada vez mais baixo.

Estávamos de volta a ponte Gapstow, cercados de patos nadando nas águas ao redor do terreno baixo. Amanda havia colocado o gorro de volta, e também pegara uma jaqueta emprestada do armário de Mark, depois que a outra se transformou em farrapos fumegantes. Ela levou a mão até o bolso da calça jeans para pegar outra goma de mascar, mas soltou um grunhido de frustração quando se deu conta de que comeu tudo.

— O que achou? – esta foi minha tentativa desajeitada de conversar.

— O que achei da minha experiência de quase morte? – subimos a elevação de grama até o nível da ponte – Foi a maior ação que já tive em anos.

— Sei que não deixei boas primeiras impressões ontem de manhã, mas...

— Obrigado por nos ajudar. Blá, blá, blá, eu já sei. E não, eu não tô irritada com você ou com aquela loira platinada por terem mentido sobre serem feiticeiros, ou por você por ter mentido sobre o truque de mente, ou por qualquer mentira que disse nas últimas vinte e quatro horas. Mentir é o que adolescentes fazem. Deve se orgulhar por ser um ótimo mentiroso, e não bancar o nerd orgulhoso e filhinho da mamãe que nunca matou aula ou tirou uma nota vermelha.

— Eu não sou nerd.

— Claro que é. Eu conheço um nerd quando vejo um.

— Quantos nerds já conheceu? - fiz questão de perguntar.

— Você – ela disse.

Circulamos a extensão do lago, seguindo o trajeto da Center Drive de volta para a cidade. O movimento dos carros era assustadoramente intenso para uma manhã de sábado. Aposto que a escola estará vazia.

Nós dois paramos no cruzamento, esperando o sinal abrir.

— Esse é o fim? – perguntei, minhas palavras acompanhadas pelos murmúrios de pedestres – Ou ainda vai voltar? Entendo se não continuar.

— Nas condições atuais, eu estou mais atrapalhando do que ajudando.

— Isso não é verdade. Você entende dessas... coisas. E se não fosse pelo seu bracelete ou o que quer que isso seja, não sei como Katherine teria voltado ao normal. Você é importante. Todos nós somos. E não é porque somos...

— Humanos? – ela completou o pensamento – Humanos sem magia?

— Não precisamos do fogo para sermos fortes. Podemos ter nossos defeitos, mas nós sabemos resistir.

Ela desviou o olhar do trânsito distante, virando a cabeça para mim.

— Foi por isso que me ligou ontem à noite? Lori deve ter encontrado meu número em algum lugar da ficha. Você por acaso achou que eu fosse capaz de ajudar no caso de Katherine depois daquela explosão? Você me considerou como uma opção?

Por fim, o sinal verde apareceu.

— Alguma coisa me diz que vamos nos dar bem – ela disse, atravessando.

E com isso, ela se misturou com as pessoas, tornando-se uma só com o caos da cidade que conheço tão bem.

•••

Não havia ninguém nos corredores.

Apesar de ser sábado e teoricamente não haver nenhuma aula hoje, existem atividades extracurriculares que os alunos podem fazer, como natação, futebol americano e dança, a categoria no qual líder de torcida está encaixada.

Confesso que não fazia a menor ideia do que se passava na cabeça de Lori nos últimos dias. Podemos estar no centro de todos os problemas, mas suas dificuldades não são menores que as nossas. Ela pode apenas ter presenciado o raio trator, mas somente isso foi um choque enorme. Agora, Charles e Rebecca se juntam à tempestade de dramas. Será que poderia piorar?

Amor não compreendido é uma das piores dores pelas quais alguém pode passar, mas ninguém morre de corações partidos. Não é algo que você veja nos noticiários ou nos jornais. Charles pode ser um idiota, e Rebecca uma sonsa que não vê o estrago que está causando a todos ao seu redor, mas ainda acredito que isso tudo possa ser resolvido. Um relacionamento firmado através de uma simples aposta não pode durar para sempre. Eu não dou um mês para todo esse teatro forjado acabar.

Peguei o celular para ver se ela havia mandado alguma mensagem, e tal distração me fez bater de cara com um morcego de papelão pendurado no teto. A decoração estava ótima. Por todo o lado, fitas laranjas e roxas em forma de teias de aranha, e fantasmas fluorescentes grudados em armários. Panfletos nas paredes continham informações do evento.

Ela realmente estava dando tudo de si para deixar a festa perfeita. Ninguém nunca quer fazer parte da montagem, e Lori assumiu essa função fixa há quatro anos atrás. Desde então, ela é responsável por pegar todas as caixas, onde estão as decorações e materiais feitos a mão pelos outros alunos. Este ano, o tema era Cemitério Assombrado, sucedendo os três anos anteriores com Floresta Assombrada, Casa Assombrada e Hospital Assombrado. Acho que o comitê de ideias precisa de pessoas novas.

O pátio externo que pegava o estacionamento e um jardim um pouco grande demais para uma escola já estava praticamente pronto. Das janelas do refeitório dava para ver abóboras, abóboras e mais abóboras, além de luzes artificiais, lápides feitas de papelão e jornal, e mesinhas onde vão ficar os doces, cujo sangue fora feito com gelatina e corantes.

Eu não devia estar ansioso para a festa, mas não podia impedir. Considerando a situação de Katherine e os outros, não sei se seria uma boa ideia. Elas podem precisar da minha ajuda, por incrível que pareça.

Mas eu vou comparecer. Por Lori. Ela precisa de alguém em quem se apoiar enquanto tenta vencer o próprio coração. É isso que amigos fazem. Percorri os corredores até o ginásio. Acima da quadra, além das telhas, uma fina camada de nuvens cobria o céu, garoando confortavelmente. Não estava chovendo muito, e nem pouco. Apenas o bastante.

Joguei minha mochila na arquibancada, tomando meu lugar em uma das fileiras mais altas. Alguns garotos do time já haviam chegado, substituindo o uniforme padrão vermelho, branco e amarelo por uma jaqueta básica monocromática para poderem se agasalhar neste clima.

Alguns minutos se passaram, e as garotas subiram. Reconheci Leah, a coordenadora das líderes de torcida, e as outras meninas com quem andava. Tenho quase certeza que se chamavam Winter, Clara, Shelly e Wanda. Atrás delas, a última da fila, estava Lori, o cabelo feito em um rabo de cavalo e uma bandana esportiva cobrindo a testa. Todas foram para o vestiário se trocar, mas ela se separou do grupo. Desci de onde estava para encontrá-la. Seu rosto era marcado por olheiras profundas.

— Eu falei que viria – disse, se encolhendo no casaco – Deixei sua bicicleta no estacionamento lá fora. Obrigada por tê-la me emprestado.

— É o mínimo que eu podia fazer depois de arrastar você por três quadras pra ver o que Tine aprontou. Foi tudo um grande mal-entendido.

— Todos estão bem, pelo menos. É isso o que importa.

Charles ainda não havia chegado, e nenhum sinal de Rebecca. Talvez eu estivesse me preocupando demais. Eu estou tão empenhado em confortar Lori que esqueço das coisas ao meu redor. O julgamento será no pico da tarde, e o veredito pode mudar a vida de Katherine e Clementine drasticamente. Eu não sei como Tine lidará com a família a respeito disso.

Nunca pensei que romances escolares seriam tão complicados de resolver quanto desmascarar e confrontar um grupo de praticantes de magia negra. Eu disse que daria um jeito, que tudo ficaria bem, mas como eu faria isso? Amor não é uma escolha. Não escolhemos por quem as borboletas em nossos estômagos voam sem rumo e direção.

— Você está bem? – subitamente, ela perguntou, inclinando-se para mim.

Você já sabe a resposta.

Me lembro de nossa conversa na cafeteria da biblioteca. Quando a vi sentada naquela mesa, eu sabia que alguma coisa estava errada, e ela também sabia que acontecera algo comigo.

O ruído estridente de um apito tomou conta da quadra assim que abri a boca para responder. Os garotos abriram caminho para a treinadora Chelsea, que não parou de soprar o instrumento até chegar na marcação central. Ela era uma senhora mais velha que a maioria das mães ou até avós dos alunos, mas conseguia correr mais rápido que muitos adolescentes e está em ótima forma física. Alguns acreditam que o segredo de sua saúde e longevidade é comer carne humana, principalmente de alunos preguiçosos que não participam de suas aulas para poderem vagabundear por aí.

— O primeiro turno será dos meninos! – ela ordenou, a voz firme como um general de guerra – Não quero saber de brigas ou casais se agarrando. Esperem até a festa de amanhã para fazerem isso, mas tratem de limpar a bagunça. Nada de socos, chutes, arranhar e morder.

A treinadora se retirou, caminhando pela extensão da quadra como se estivesse sobre um tapete vermelho, acenando para Lori ao passar por nós. As duas eram bastante próximas, o que na maioria das vezes não acontece em relações de alunos com professores. Chelsea foi a responsável por fazê-la se apaixonar por esportes. Eu já a vi jogando futebol e basquete antes, e posso dizer que é tão boa nisso quanto é na pirâmide.

Lori encontrava felicidade em estrelas e piruetas. A forma como seu corpo ganhava vida ao criar sua própria dança era o bastante para levá-la ao topo. Ao mesmo tempo em que incontáveis pares de olhos a observavam, estava sozinha, deixando ser levada em seu próprio espetáculo.

Ela era uma artista, e não precisava de telas ou palavras para expressar o que pensava. As outras garotas podiam passar semanas ensaiando coreografias, mas Lorine Watson precisava apenas dar ouvidos ao seu próprio corpo e seguir o seu ritmo. Ela tinha um talento inato e grandioso.

— Não sei se vou participar do treino hoje – ela confessou, assim que uma legião de meninas saiu do vestiário, vestidas com os casacos e calças esportivas da educação física – O jogo contra a outra escola é só mês que vem. Eu ainda tenho tempo de sobra.

— Isso vai ser importante. Mais um troféu no hall nunca é demais.

— Nós vencemos o West College nas finais por vinte e sete anos consecutivos. Uma escultura de argila pintada com tinta dourada não fará diferença nenhuma, e não há problema se eu faltar apenas hoje. Tenho que me dedicar a arrumação. O pátio externo está pronto, mas ainda faltam muitos detalhes importantes.

— Aposto que você não aguenta mais ver morcegos de papelão.

E aconteceu. Os primeiros passos na escada foram seguidos por gritos dos meninos do time e garotas torcedoras.

Charles e Rebecca.

A cena se desenrolou exatamente como um filme de colegial clichê. Era como se tudo estivesse em câmera lenta quando ela tirou seus óculos escuros e o beijou. O tumulto se intensificou, e os músculos de Lori ficaram rígidos como uma pedra. Todos correram até o casal, bombardeando-os de perguntas acerca de tudo que aconteceu ontem no corredor na festa no apartamento.

E pensar que enquanto Katherine e Clementine arriscavam suas vidas ao desbravar a Floresta Negra, os dois transformavam um acordo em uma promessa. Uma promessa que partiu um coração em pedaços.

Rebecca se desvencilhou da multidão, guiando seu cachorrinho até onde nós estávamos. Ela nos olhou de cima a baixo, crítica e com um ar afrontoso.

— Você é a única que consegue tornar um Cemitério Assustador em algo adequado para festas – disse, abrindo um sorriso – Meus parabéns.

Lorine correspondeu, tentando ao máximo fazer com que seus olhos não encontrassem os de Charles. Eu entendia porque ela gostava tanto dele. Apesar de quase nunca mais terem tido uma conversa de verdade depois que se afastaram quando a nona série começou, o rosto do atleta era um convite para explorar o que agora assumiu um véu de mistério. Ela não sabia mais o que havia por trás do garoto perfeito do time de futebol, não quando ele havia se transformado em uma pessoa completamente diferente e, de certa forma, inatingível. E, por mais idealizada que essa história seja, ninguém sabia o seu final, a não ser os dois.

A líder de torcida e a estrela. Duas almas completamente opostas e ao mesmo tempo tão próximas; o máximo que um olhar inocente e apaixonado pode representar sem denunciar o desejo de ser correspondido. Lori não estava pronta para mergulhar nessa realidade.

— Obrigada – ela pegou sua bolsa, dando passos apressados até o vestiário feminino, em um claro esforço para evitar Rebecca.

— Qual é o problema da sua amiga?

Deixei ela falando sozinha. Eu não me importava para onde iria, apenas queria ficar longe deles. Sei que ela não fazia por mal, e cada tentativa sua de parecer mais perdidamente apaixonada era para alimentar seus próprios desejos de ser o centro das atenções. Isto era óbvio.

Não consigo enxergar futuro em relações superficiais. Charles não a ama, e ela não sente nada por ele além da necessidade de posse. Isso não se chama amor, e sim uma disputa sem vencedores, pois no final, não sobrará nada além de memórias de algo que nunca sequer existiu.

Amor se trata de conversas sem fim, onde o assunto sempre se transforma em coisas cada vez mais inacreditáveis e inalcançáveis, momentos em que você pode se entregar completamente pois haverá alguém para te segurar quando cair. Mãos dadas, abraços e lábios se tocando são atos vazios se não existem sentimentos por trás da intenção.

Charles estava dando um tiro no escuro enquanto o que procurava estava bem na sua frente. Não o conheço muito, mas sei que sua família é do interior, e veio para a cidade grande para poder perseguir a carreira de atleta. Exatamente como Lori, tirando o fato dos pais dela morarem em Nova Jersey. Eles possuíam o poder para conquistarem o mundo juntos.

Infelizmente, o universo nunca funciona da forma que queremos. De volta para onde estávamos, ele fora se trocar para poder se juntar ao time, enquanto Rebecca desaparecia em um dos corredores ao longe. Alguém sentou do meu lado no banco. Lori. Ela havia retornado.

— Eu não consigo – sua voz era um lamento sem esperança.

E não há nada de errado com isso.

Estas eram as verdadeiras palavras impronunciáveis. A verdade absoluta.

Está tudo bem não conseguir.

O dia estava cinza. Cinza e chuvoso. A combinação perfeita para arruinar os planos de alguém. Mas, diferente de todos, eu gostava do nublado.

Não estou falando do tempo em que o céu se abre em uma torrente furiosa de relâmpagos e tempestades, mas do equilíbrio perfeito, quando não está bom, e nem ruim. A melancolia me traz sonhos de mares calmos.

Minha mãe sempre dizia que a paixão pelas águas é algo da família, que passou de geração em geração, transformando jovens sonhadores em desbravadores com sede do desconhecido que exploraram o mundo em busca da realização. Talvez seja por isso que só consigo dormir com a visão do Rio East sob a ponte do Brooklyn. Os mares me trazem paz e conforto.

O que despertava esse sentimento em Lori? Sonhos onde Charles a guiava pela pista de dança, seu vestido rodopiando sob luzes estonteantes enquanto traçava seu caminho pelos belíssimos cabelos ruivos?

Eu nunca saberei. Mas ela tinha a necessidade de ser amada. Todos precisam disso. Amor. Amor entre amigos, familiares, ou por alguém que repentinamente se torna parte de sua vida. Ele possui o poder de remendar uma alma despedaçada, ou de estilhaçá-la para todo o sempre.

•••

O treino não foi lá essas coisas.

Durante todo o tempo em que ficamos em silêncio na arquibancada ouvindo o som das gotas de chuva caindo sobre a estrutura do teto, o maior destaque foi a entrada de Luke e Everest. Na verdade, seu nome é Anthony, mas todos o chamam assim por quase chegar nos dois metros de altura. Desisti de tentar entender alguma coisa nos primeiros quatro minutos. Meus conhecimentos sobre futebol se comparam facilmente a uma criança tentando resolver equações de segundo grau. Por outro lado, os gritos histéricos das garotas da torcida confirmavam que estava tudo correndo bem. Wanda saltitava no lugar, seus pompons balançando.

E a estrela apareceu. Van Hart, camisa 31. Tommy e Zack lhe deram tapas nas costas para cumprimentá-lo, e o capitão Tyrone gritou em conjunto com o resto do time. É claro. Todos idolatravam o menino de ouro.

Entre empurrões, socos, cabeçadas e um sangramento nasal, o grupo de Charles acertou a primeira marcação. Um novo record de tempo.

Ainda bem que Chelsea não estava aqui para ver isso. E ainda bem que os uniformes tradicionais de futebol americano não são utilizados. Nem imagino as tragédias que um capacete de metal pode proporcionar ao ser utilizado por brutamontes com hormônios pipocando a flor da pele.

Rebecca estava sentada em uma rodinha com a turma das populares com sobrenomes chiques. Ela filmava o jogo com seu celular de última geração, fazendo comentários com as amigas e dando risadinhas. Os óculos escuros repousavam sobre o cabelo caindo em cascata, bem em cima do xale com textura de onça que deve ter custado mais que a minha casa.

Mais arremessos. Mais marcações. Mais gritos. E quando a bola atravessou a faixa pela última vez, o apito soou novamente. Eles saíram da quadra, e a treinadora sinalizou para as meninas da torcida entrarem. Wanda foi a primeira delas a se levantar, seguida pelas amigas.

Lori estava paralisada ao meu lado.

— Você tem certeza que não vai... 

E num súbito despertar, ela saltou a extensão dos degraus que nos separavam do piso, marchando pela arquibancada com passos firmes e decididos até a fila das garotas. Rebecca observou seu trajeto com Charles ao seu lado, calculistas.

As líderes estavam prestes a entrar em formação após o discurso motivador de Shelly quando todas perceberam o fogo ardendo atrás dos olhos de Lori. Todos no ginásio fitavam sua postura irremediável quando removeu os tênis de corrida com os próprios pés, a pele tocando as tábuas frias do chão, como uma bailarina em seu lar. Despindo-se do casaco, o tecido de lã cinza caiu atrás de si, revelando braços esguios e magros, que não a desapontavam quando precisava sustentar seu peso durante uma estrela.

O colete e a saia convencional da equipe das líderes lhe conferiam um ar profissional. Agora, Lorine era uma atleta entrando em campo.

Hematomas e calos nos pés e nas mãos denunciavam anos de esforço para assumir a frente, mas alguns pareciam recentes. Ela treinara de madrugada, depois de encerrar a ligação? Então por que não queria participar do ensaio geral hoje? Só pelo fato de Charles e Rebecca estarem aqui também?

No final, nada disso importava.

Ela estava aqui agora.

Lori era a única que vestia o uniforme, inapropriado para as condições climáticas do dia. Mas ela não se importava com o frio. Os tremores não eram o suficiente para fazê-la desistir. Respirou fundo. Uma única palavra. Um grito de guerra.

— Jaguars!

O resto das líderes gritaram o nome do time, em conjunto. Um coro começou a se formar, e os pompons e hastes de fitas ganharam vida.
Os garotos se juntaram a elas, empurrando uns aos outros para ganharem a atenção que desejavam. Charles deixou um sorriso sem jeito escapar, e Rebecca puxou a gola de sua camisa, levando-o até ela.

Quando me dei conta, era tarde demais. Eu havia me misturado a multidão, gritando o mais alto possível que minha incapacidade social permitia. Lorine estava radiante. A equipe fazia um bem enorme para ela.

Chelsea apareceu de fininho na escada para ver o que estava acontecendo. Aposto que nunca viu tanta animação em anos de serviço. Leah já não estava mais na frente. Ela deixou que seu posto fosse tomado por Lori. A música começou a tocar quando Tommy acionou a caixa de som atrás da arquibancada. Shelly e Winter assumiram as bases, passos fortes e braços estendidos. As duas estavam de lado, acompanhadas por Clara e Wanda. O show verdadeiro começou quando as fitas começaram a rodopiar, criando arcos coloridos entre movimentos sincronizados. Leah, Cassidy e Beatrice saltaram, desaparecendo em meio aos pompons amarelos e vermelhos. Ivana e Jessica entraram, rítmicas. Com a base pronta, havia chegado a hora.

As bases e o centro recuaram para Lori assumir o topo. Seu sorriso estava tão puro e sincero que era capaz de iluminar a noite mais escura. Ela estava feliz. Por hora, toda a tristeza havia desaparecido. Ela estava onde pertencia, onde sempre pertenceu. Na quadra, em seu trono.

A pirâmide se formou, uma peça perfeita de arquitetura. Todos ao redor bateram palmas, inclusive Chelsea, que vibrava de orgulho das garotas que depositava tanta fé. Este era o espírito dos Jaguars. Indomável.

E então aconteceu.

Um flash laranja foi a única visão capturada por meu par de olhos míopes quando a bola de futebol acertou Jessica em cheio na barriga. Ela se desequilibrou, desabando sobre os ombros de Shelly e Winter. Era como dominós se chocando uns contra os outros quando todas as meninas caíram em um baque no chão de madeira. Lori gritou ao se virar, sustentando todo o peso do corpo com as mãos expostas. Rebecca entrou em pânico, cobrindo a boca. O arremesso veio de sua direção, e todos tinham noção disso. Ela e Charles estavam brincando com a bola enquanto a pirâmide se formava.

— Meu Deus, me desculpem! – disse, com a voz carregada de culpa e temor genuíno – Eu não consegui agarrar! Eu sinto muito, eu sinto muito!

Ninguém deu atenção ao seu pedido.

O time dos garotos veio correndo para ajudar as garotas, e a treinadora se apressou para buscar gelo. Senti que a Terra parou de girar quando vi Lori encolhida, cobrindo o pulso direito com a manga do casaco que jogara no chão. Ela estava no topo. Se não fosse pelo tapete para a segurança das meninas, eu não queria nem imaginar o que podia ter acontecido. Olhei de soslaio para Rebecca e Charles ao fundo do ginásio. Ela estava de braços cruzados, e parecia gritar com ele. Rebecca parecia querer que ele assumisse a culpa, provavelmente dizendo que arremessara a bola forte demais para ela conseguir segurar.

— O seu pulso – perguntei, me agachando ao seu lado – O que foi?!

Lori afastou o tecido. A pele estava vermelha, marcada por uma ferida superficial. Meu pavor de sangue fez meu estômago revirar levemente.

— Não é nada demais – ela assegurou ao notar meu desespero – Eu só preciso de um curativo.

Ao nosso redor, todas já se levantaram. Notei que elas olhavam ao nosso redor procurando algo, ou melhor, alguém. Rebecca havia sumido. Quando perguntei a mim mesmo onde seu bichinho de estimação estava, vi que alguém se abaixou para pegar os tênis de Lori para entregar a ela. Alguém que vestia uma jaqueta esportiva vermelha e parecia decepcionado.

— Charl... – ela se recompôs, envergonhada e confusa – Obrigada.

— Desculpe por tudo isso – sua voz era levemente rouca e carregada de sotaque do interior – Ela não está tendo um bom dia. Você precisa ver esse ferimento. Vou te levar para a...

— Acho que não preciso ir para a enfermaria –  retrucou, rapidamente.

— Tem certeza? Isso pode... – ele foi interrompido por um jogador do time o chamando para se juntar aos outros garotos – Eu... preciso ir. Até mais.

Fomos deixados sozinhos no tapete.
Ela calçou o tênis, e ao concluir o último nó, olhou para si mesma. Não para suas mãos machucadas, e certamente não para o casaco surrado. Lori olhava para a garota insegura que vivia dentro dela. A garota que se despedaçava sozinha quando os holofotes não estavam acesos sobre ela. Essa garota estava atormentada por uma descoberta: ela tinha medo. 

Medo de ser amada.

•••

A sala de espera da enfermaria era o mais próximo que a escola conseguia chegar de um sistema de ventilação socialmente aceitável. O ar frio escapava por debaixo da porta, criando um corredor gelado entre as cadeiras desconfortáveis e infestadas de cupins. Lori entrou para ser atendida após Ivana e Winter terem saído. As duas conversavam sobre garotos, como se tivessem esquecido completamente do que Rebecca fez.

Eu queria acreditar que aquilo não foi por mal. Que os dois realmente estavam jogando e ela não conseguiu agarrar a bola. Mesmo assim, a força não teria sido suficiente para derrubar Jessica. A verdade é que Rebecca quer fazer de tudo para arruinar a vida de Lori como líder da comissão. Brittany Bridget-Louise assumiu esse cargo em sua época, e foi responsável por inúmeras propagandas e merchans, inclusive fora do país. Rebecca quer seguir os mesmos passos que a mãe, mas em vez de dar o seu melhor, ela quer tirar o seu maior obstáculo do caminho.

A hierarquia é algo que levei um tempo para entender. Existem várias funções, como a equipe de seleção, líder geral e coordenadora. O grupinho de Shelly fazia todo o processo de seleção para ingressar novas garotas, enquanto Leah coordenava os treinos e novos movimentos para a formação da pirâmide. Lori era a líder geral, tomando conta de toda a burocracia dos campeonatos, além de ser o topo da pirâmide e quem sempre tomava a frente nas apresentações, sob a tutela e comandos de Leah.

A mais nova Bridget-Louise possui todos os holofotes voltados para si nos corredores e salas de aula, acompanhada pela sua própria colmeia de sobrenomes influentes como Tanner, Carter, Preston e Bradford. Além de notas altas, roupas caras e elogios por todos os lados, ela também quer ser a rainha da quadra. Mas Rebecca está longe de entender o verdadeiro significado dos jogos. Quando se está competindo, seja ao arremessar uma bola ou saltar e rodopiar entre fitas, você não está fazendo isso por si mesmo. Quando se está na quadra, o seu coração bate ao lado de todos.

Ela não queria ferir ninguém, e sim ser ouvida. Por todo esse tempo, ela procurou alguma forma de ser admitida entre as líderes. A aposta que os meninos do time fizeram com Charles desencadeou uma sequência de eventos desastrosos que nos levam até o agora. A garota popular sem talentos para esportes aceita ser o par do garoto que é a estrela do time. Os dois começam a sair, e se tornam inseparáveis. Ela sentirá a incessante necessidade de vê-lo ganhar. Ela irá querer torcer por ele, vibrar por ele, ir até o topo por ele. E ninguém poderá impedir, pois o amor não pode ser impedido. Ninguém pode impedir dois adolescentes de se amarem.

Charles nunca teve alguém para chamar de sua. Durante todos esses anos, sua única e verdadeira paixão fora o futebol. Tudo isso não passa de um jogo que está sendo jogado pelos dois lados. Rebecca quer realizar seu sonho de ser uma líder, e ele quer ser amado, independentemente de como e por quem. Eles estão perdidos, querendo se completar.

Isso está ficando cada vez mais difícil.

Katherine e os outros podem vencer suas lutas com fogo, mas este é um combate em que não existem armas. Tudo o que podemos fazer é esperar que o melhor aconteça.

Não sei por quanto tempo fiquei sentado. A chuva aumentou, criando formas irreconhecíveis na janela através do deslizar das gotas. Não me lembro de Lori ter saído da sala de enfermaria, tampouco de sua cabeça repousando em meu ombro enquanto lágrimas silenciosas formavam uma cascata em seu rosto. Estávamos sozinhos na sala de espera. Apenas nós dois, num dia cinza e chuvoso.

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