Luas de Diamante (Volume 1) [...

By luasdediamante

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Katherine Randall tem lutado contra seus próprios fantasmas desde o dia em que foi morar com seu tio Maxwell... More

QUADRO DE AVISOS! (Atualização: 07/04/2024)
Cast
Prólogo
Parte 1 - Fagulhas
Capítulo I - Lua Nova
Capítulo II - Onírica
Capítulo III - Âmbar
Capítulo IV - Garoa
Capítulo V - Declínio
Capítulo VI - Rastros
Capítulo VII - Cinzas
Capítulo VIII - Promessas
Capítulo IX - Regressão
Parte 2 - Cadência
Capítulo X - Criaturas Noturnas
Capítulo XII - ...Uma Menina Perdida
Capítulo XIII - Umbra
Capítulo XIV - Torrente
Capítulo XV - Vidro Quebrado
Parte 3 - Zênite
Capítulo XVI - Justiceira
Capítulo XVII - Um Conto de Duas Luas
Capítulo XVIII - Ignição
Capítulo XIX - Cicatrizes
Capítulo XX - Reflexos
Capítulo XXI - Peçonha
Capítulo XXII - Weltschmerz
Capítulo XXIII - Maquiavel
Capítulo XXIV - Rainha Branca
Capítulo XXV - Fogo Anda Comigo
Epílogo
Carta de Despedida
Playlist

Capítulo XI - E no Princípio...

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By luasdediamante

Uma noite sem sonhos me conduziu até uma manhã embrulhada em bruma.

A primeira coisa que senti foi a ausência de qualquer incômodo prévio proveniente da noite passada. Os esparadrapos ainda estavam lá, mas a dor não passava de uma memória da qual eu não queria me recordar agora. À medida que meu olhar se ajustava a luminosidade do ambiente, notei o tom avermelhado da minha pele onde fui alvejada pelos estilhaços: um holofote escarlate em meio a uma imensidão pálida.

Os arredores se formavam lentamente em meu campo de visão, tomando a forma de móveis de madeira e paredes adornadas cuja totalidade eu não fui capaz de enxergar em meus delírios febris noite passada. Uma lareira entalhada abaixo de guache dando forma a natureza morta. Séries de adagas, tendo seu peso sustentado por pregos igualmente em série. Papéis de parede gastos. Um crânio de gado e um sino de vento, chacoalhando timidamente ante a brisa frígida de uma manhã sem Sol no sudoeste alemão. A sala de estar tinha cheiro de uma tarde bucólica, ou talvez outras pessoas pudessem chamar isso de um conforto rústico. Eu atribuía estranheza a tal sensação, principalmente pelo fato de tais elementos serem estrangeiros para mim. Os principais palcos sobre os quais vivi minha vida foram dias chuvosos em Seattle e a selva elétrica erguida em pedra e concreto novaiorquino. Longe do êxtase, eu relutava em aceitar o silêncio pelo o que ele era.

Me apoiei no encosto do sofá para me sentar, e imediatamente lidei com o choque de não estar sentindo todas as minhas articulações ardendo em brasa. Eu não conseguia dizer o que me causava mais estarrecimento: a ausência da dor ou a de pesadelos. Era como se eu precisasse me esforçar para lembrar da mata carbonizada e do inferno púrpuro. A esse ponto, as lembranças dos estilhaços cristalinos e da figura a nos perseguir na noite anterior eram mais nítidas do que o sonho recorrente que me atormentava desde que comecei a me entender por gente. Existia alguma explicação para isso? Será que... o simples fato de pisar nesse lugar desencadeou um tipo de resposta genética oculta em meu corpo?

Sacudindo a cabeça, disse para mim mesma que agora que eu estava aqui, eu não precisava mais correr atrás de respostas sozinha. Voltando para o mundo real mais uma vez, prestei atenção na mesa de centro diante de mim, sobre um tapete carmim que aparentava ter sido costurado à mão. Tine havia esquecido sua arma aqui na cabana, ao que tudo indicava. Parece que eu não fui a única que teve os neurônios fritos depois de uma experiência de quase morte. Arrisquei aproximar minha mão do objeto para analisá-lo com cuidado. Posso já ter tocado nos exemplares da coleção de seu pai antes, mas esta era diferente. Por baixo do aço, era como se algo zunisse, tal qual uma fonte de energia que se retroalimentava. Era isso o que Tine quis dizer quando falou que obteve uma melhoria?

Eu me lembrava dos entardeceres onde nós duas ficávamos lá, no sofá de sua casa, fitando o imponente armário de armas como se este se tratasse de uma torre inalcançável. Naquela época, a visão dos canos e cartuchos me dava calafrios, e eu não sabia dizer o porquê. Agora, quando paro para pensar, creio que eram um lembrete sobre a vida a qual Robert Howard se comprometera. Um homem a serviço não somente de seus próprios desejos e sonhos, mas também do dever de proteger aqueles que não são capazes de tal. Talvez o fato de eu ter perdido meu pai me fazia temer pela minha melhor amiga. A última coisa que eu queria era que ela também compartilhasse da dor excruciante da ausência.

A visão do pertence de Tine sobre a mesa fez com que eu me recordasse de que havia dado minha pedra para ela. Essa era sua garantia de que nos veríamos novamente, afinal de contas. O fato de que um oceano inteiro nos separava agora parecia de certa forma trivial. Ciente de que não haviam balas reais dentro da arma, eu a coloquei em meu bolso, cobrindo a parte do cabo que havia ficado de fora com a bainha da blusa limpa que agora vestia. Além do peso do metal, eu também sentia a tal vibração ígnea, responsável pelas explosões de prata sólida que incendiaram o céu germânico noite passada. Se não fosse por esse objeto, nós duas provavelmente estaríamos mortas.

De pé no centro da sala arejada, me dei conta de que a blusa do armário de Gwen que eu estava vestindo não era grossa o bastante para me proteger das lufadas frias vindo do lado de fora. Foi esse pensamento que me fez questionar se havia agasalhos sobrando por aqui. Eu perguntaria para alguém, mas não havia nenhum sinal de vida na cabana a não ser por eu mesma. O que feiticeiros faziam de manhã cedo, logo depois de acordar? Eles possuíam uma rotina? Nenhuma atividade em potencial me veio em mente, e talvez isso fosse decorrente do fato de que talvez, somente talvez, eles não fossem tão diferentes assim. Eu provavelmente estava pensando demais. Como estávamos em uma casa de campo no meio do nada, existem responsabilidades para com a terra e as plantações. Me perguntei se havia algum córrego por aqui, de onde pegavam água ou algo desse tipo. Sendo o suprassumo de uma típica garota da cidade, confesso que não sabia me portar agora que estava aqui, em um lar que tinha tudo para ser meu mas nunca tivera a oportunidade de concretizar essa vontade. Sei que parte de mim deveria estar entrando em pânico pelo simples motivo de me ver sozinha em meio a estranhos, mas nessa manhã gelada, havia lugar apenas para o familiar. Afinal, anos atrás, um homem e uma mulher caminharam sobre essas mesmas tábuas de madeira, e por mais que seus passos não acompanhassem mais os meus, nós estávamos agora compartilhando do mesmo chão.

George e Samantha já pisaram nesse lugar. Eles exploraram esse refúgio de madeira escura que os recebeu como um segundo lar, e devido a isso, me senti no direito de transitar livremente também. Deixando a sala de estar para trás, me atentei ao espaço atrás da divisa que um dos sofás impusera ao resto do térreo. Uma bancada separava o ambiente comunal de refeição em dois, na forma de uma sala de jantar cuja mesa fora posta sob um requintado candelabro e uma área de cozinha propriamente dita, ostentando uma geladeira e fogão funcionais. Aparentemente, eles também necessitavam de gás e preparavam comida da mesma forma que nós. Pude notar armários erguidos ao lado da coifa, e apenas o ato de me aproximar fez com que eu fosse arrebatada pelo aroma forte de grãos de café e um misto de ervas ainda desconhecidas para mim. O que quer que tenham me dado ontem que aliviou minha dor veio desses armários. Era bom saber disso. Caso eu quase seja morta mais uma vez, já estarei ciente do lugar ao qual precisaria ir.

Além da cozinha e da copa, notei uma pequena área de serviço e uma despensa embutida em um armário relativamente largo. Ao lado da porta, a entrada para um banheiro simples, que carecia de um espelho. Aparentemente, era disso que consistia o térreo. Retornei para a sala de estar, encarando a escada para o segundo andar assim que adentrei o recinto. Se eu for mesmo ficar aqui, era esperado que eu passasse minhas noites dormindo em um quarto somente meu, e não no sofá da sala, pensei. Uma cabana desse tamanho certamente deveria ter acomodações o suficiente para cinco pessoas. Me coloquei a subir os degraus de madeira, e à medida que me aproximava do topo, o cheiro se tornava mais evidente: erva cidreira, oriundo de sachês colocados em pontos estratégicos do cômodo principal onde eu estava pisando agora.

O ambiente se desdobrava em uma espécie de biblioteca compacta mas ao mesmo tempo rica em livros e compêndios das mais variadas idades e gêneros. Se eu chegasse perto deles, a intensidade do cheiro de papel envelhecido se igualava ao aroma de erva cidreira. Em minha breve investigação do acervo, vi a presença de clássicos como Les Misérables, Don Juan, O Retrato de Dorian Gray e Os Sofrimentos do Jovem Werther, sendo este último o mais desgastado dentre os livros. Franzi o cenho, intrigada pela escolha da literatura. Deixando o catálogo de obras para trás, me virei para o centro da sala, onde uma grande mesa ia do limite das grades do corrimão da escada de onde vim até a grande janela de vidro que proporcionava uma ampla visão da floresta frígida lá fora. Sobre a mesa, estavam dispostos pequenos recipientes feitos à mão e velas apagadas. Eram sete no total; um conjunto de envoltórios compostos por galhos e pedras preciosas. Cada um deles possuía uma cor diferente, e a forma na qual estavam dispostos fez com que eu acreditasse que seguiam um padrão espacial. Isso era... algum tipo de altar? Imediatamente, me vi atraída pelo recipiente contendo lascas de lápis-lazúli, semelhantes a que eu possuía. Sem ao menos pensar, eu estendi a mão, fazendo com que chegasse perto das pedras ao estacioná-la no espaço vazio sobre elas. A sensação era semelhante a estática, quando esta se via presente na atmosfera ante o princípio de um extravasar.

O corredor que abrigava a grande janela estendia-se para ambos os lados. Era possível ver sequências de portas, sendo uma destas localizadas no terminal esquerdo. O fato de estar entreaberta me fez identificar que o espaço atrás dela tratava-se de um banheiro mais completo, equipado com tudo o que um apartamento de cidade grande possuía. Na extremidade oposta do corredor, notei a presença da estrutura de um alçapão. Imaginei que ao puxá-lo, uma escada retrátil conduziria para o sótão. O que será que guardavam lá em cima? Provavelmente não eram blusas de frio e casacos, logo, eu não estava interessada.

Era óbvio que os quartos ficavam aqui. Diante da sucessão de portas, me peguei ponderando. Não me sentia confortável invadindo a privacidade deles, então tentei ao máximo resistir ao impulso de ver o que se escondia atrás das soleiras. Edmund, Mark, Gwen e Trevor moravam aqui. Quatro pessoas. Porém, havia uma quinta porta. Era a que ficava mais próxima do alçapão, a superfície dispondo de uma camada fina de poeira, como se fosse limpa em curtos e regulares intervalos de tempo, contudo espaçados o suficiente para que tal acúmulo fosse possível. Ela não possuía uma maçaneta, sendo mantida fechada unicamente pela ação de um sistema de tranca improvisado que consistia em um pedaço de pano posto entre a madeira da porta e a parede. Deslizei meus dedos sobre a madeira empoeirada na esperança de sentir alguma coisa, mesmo sem saber ao certo o que eu imaginava que poderia ser. Imperceptível, o rangido de tábuas velhas se atritando preencheu meus ouvidos quando me vi retirando o pano e fazendo meu caminho para o interior do recinto sem ao menos pensar. Abri os olhos para o interior, me esforçando para enxergar algo na escuridão do quarto onde luz natural não penetrava.

O quarto englobava espectros cinzas, resultado da falta de iluminação devido ao armário colocado na frente da janela. Uma minúscula faixa de luz escapava por trás dele, incapaz de espantar o breu. Examinei o guarda roupa, revirando as gavetas parcialmente emperradas. Uma jaqueta preta que mais se assemelhava a um blazer chamou minha atenção, clamando para respirar ar fresco. A peça não aparentava estar suja e em condições precárias, mas precisei espanar a poeira do tecido mesmo assim, estalando-o contra o ar para me certificar de que não passaria o resto do dia espirrando. Coloquei o blazer por cima da blusa de Gwen que eu vestia, deixando que meus cabelos ainda despenteados caíssem por cima da peça. Me aproximei do espelho de parede, limpando o vidro para que eu pudesse me ver, o que acabou sendo um pouco difícil no escuro, mesmo com a porta aberta. As olheiras continuavam ali, meus olhos verdes se escondendo atrás de uma franja bagunçada. Podia ser apenas um truque de cores, mas eu parecia mais pálida do que nunca.

Abandonei meu reflexo antes que eu tivesse outra crise de imagem. No centro do quarto, uma cama de casal apresentava travesseiros em perfeito estado e lençóis milimetricamente ajustados ao colchão. Comparado com o estado que eu deixava meu quarto, isso aqui se assemelhava a um hotel. Ao lado da cama, um criado mudo visivelmente afetado pela ação do tempo acomodava um porta-retratos e outro daqueles recipientes de madeira da mesa da biblioteca, só que sem a presença de cristais. Eu peguei a fotografia com cuidado, sentindo a moldura frágil e desgastada. Era uma foto dos membros do segmento tirada na varanda externa. Mark foi o que mais mudou com o passar do tempo. Na ocasião retratada, seu cabelo estava muito mais longo e possuía uma barba mais rala do que a atual. Gwen, por outro lado, parecia não ter envelhecido sequer um dia. Trevor ainda era uma criança, procurando conforto ao se postar ao lado de Edmund, cujos tons grisalhos ainda não haviam terminado de se espalhar. O líder vestia um longo manto escuro por cima de um suéter que parecia ter sido feito a mão.

Quem havia tirado essa foto? Antes que eu pudesse pensar mais a respeito disso, fui arrancada de meu transe quando ouvi as tábuas do piso estalarem atrás de mim. Devolvi o objeto para o seu lugar num sobressalto, apenas para ver Trevor parado na soleira da porta, vestido como se tivesse acabado de voltar de um compromisso formal. Sua postura por baixo do casaco de lã e do cachecol era distante, como se estivesse colocando em prática seus esforços de permanecer o mais longe possível de mim. Ele estava honrando meu pedido? Afinal, fora essa a exigência implícita quando o deixei naquele beco depois do púrpuro se mostrar presente.

— Os outros estão te esperando – ele disse, sem ao menos olhar para mim – Você precisa saber como as coisas funcionam por aqui, agora que vai ficar com a gente depois de Nova York ter virado território restrito. Gwen se ofereceu para te instruir, e Edmund provavelmente falará sobre as regras que deve seguir.

— Eu... – o breve intervalo entre seu aviso e o tempo que meu cérebro levou para formular uma frase foi o suficiente para ele desaparecer no corredor, deixando para trás o som de passos descendo uma escada e um questionamento sobre que tipo de primeiras impressões eu havia deixado.

Depois do pequena janela de tempo necessária para me recompor dessa interação, quer dizer, se é que eu podia chamar assim, eu verifiquei meu celular, fechando a porta atrás de mim ao sair. Havia uma notificação de Tine com um anexo. Uma foto da passagem aérea de Penelope.

O avião iria pousar em Stuttgart. Tine prontamente me informou que ela também havia comprado um bilhete de trem para a cidade de Freiburg, ao sul. A cabana em que estávamos se localizava relativamente perto. Apoiei meus cotovelos no parapeito interior da janela fechada, e decidi ligar para John para dizer que eu estava viva. Sua voz desorientada e preocupada me atendeu após alguns instantes, e logo suspeitei que minha ligação o acordou. Era óbvio pelo jeito que ele soava como se estivesse bêbado e pela demora para responder minhas perguntas. Acabei esquecendo completamente que eu estava inúmeros fusos horários a sua frente. Ele contou o que aconteceu noite passada e como nós duas quase fizemos ele morrer do coração por não entrar em contato e tê-lo deixado pensar que o pior havia acontecido. É claro que tentei me desculpar, e por mais que ele tenha dito que estava tudo bem, eu sabia que no fundo, não estava. Agora, tudo o que eu podia fazer era me esforçar para não pisar na bola de novo.

Depois de eu ter pedido desculpas umas quatro ou cinco vezes, a ligação finalmente chegou ao fim, com nós dois prometendo que manteríamos uns aos outros informados. Desci as escadas para a porta da frente, abraçando o ar frio e a neblina duradoura do lado de fora. Apesar do sol marcando presença, estava congelando, o suficiente para me fazer encolher em torno de meus braços. Gwen estava em uma região de campo aberto próxima da entrada para a trilha da floresta, onde um caminho feito com pedras levava para uma plantação cujas fileiras ostentavam largas abóboras crescendo entre estacas e terra úmida.

Quando me vi perto o suficiente para que ela notasse a minha presença, a mulher virou a cabeça para a minha direção, gesticulando com o olhar para que eu me aproximasse. Gwen segurava um facão, realizando movimentos de serra para separar o caule grosso do fruto. Atrás dela, um carrinho de mão guardava três abóboras recém-colhidas. Será que eles plantavam todo o seu alimento nessas terras? Imagino que parte dos mantimentos da cozinha venha da cidade que Mark havia comentado, que ficava apenas a alguns quilômetros daqui.

— Você dormiu como uma pedra, garota. São nove da manhã.

— Continua cedo pra mim – eu disse, ao mesmo tempo em que ela me lançou um olhar de reprovação inofensivo seguido de um sorriso de canto de lábio.

Adolescentes – Gwen murmurou, e logo me deu um facão reserva que estava em uma capa de couro em sua cinta – Já que está de pé, pode me ajudar com isso. Vamos ter legumes ao vapor para o almoço hoje. Corte as folhas também. Elas vão ser usadas no refogado.

— Então você prepara a comida por aqui? – perguntei, enquanto me agachava para começar o trabalho.

Dessa vez, o sorriso de canto de lábio metamorfoseou-se em uma risada seca.

— Eu? Não, garota. Não mais. Cheguei a me aventurar na cozinha, mas agora é Mark quem assumiu as rédeas. Ele se transforma em um ditador quando coloca o avental, e não aceita que ninguém sequer entre lá enquanto está ocupado com as panelas e o forno.

A imagem mental de Mark assumindo a forma de um tirano culinário impaciente e meticuloso me divertiu, por alguma razão. Era uma breve brisa de frescor inocente que logo foi soprada para longe, assim como as folhas e o resto da garoa. Esse pensamento foi substituído por uma impaciência de minha parte, que manifestou-se através de uma única pergunta.

— Você conheceu a minha mãe? Samantha. Você falou dela ontem.

E o semblante de Gwen nublou, tal qual o firmamento acima de nós que ousava desabar. Observei esforços para encontrar as palavras certas; uma tecelã sondando sua tapeçaria para traçar o ponto-cruz com precisão e não deixar nenhuma ponta solta.

— Uma mulher formidável. Ela não tinha medo de andar até o topo do céu noturno caso seus sonhos se encontrassem acima das nuvens – dissera Gwen, solene – Não existia nada nesse mundo que Samantha não pudesse alcançar se ela quisesse. Isso explica ela ter se unido a um homem cujos talentos e ambições equiparavam-se aos dela.

Era difícil explicar a sensação de ouvir de outra pessoa além de Maxwell fatos sobre os meus pais, considerando que, durante toda a minha vida, ele era o único que os conhecia. Se existiam parentes nossos por parte de mãe, ou até mesmo do lado de George da família, eu não estava ciente disso. Eu me perguntava se a escolha de meus pais de abdicar desse mundo e de tudo que diz respeito aos feiticeiros também significava que eles tiveram que romper com seus pais e familiares. Se sim, por que eles escolheriam fazer isso por mim? Eu era merecedora disso?

— Dawson e Randall – continuou ela, enquanto o anfiteatro de minhas pálpebras derramava aquarela em um retrato de uma mulher e um homem que eu já não conhecia mais – A terra se abria por onde eles andavam. Seus pais, garota, eram uma força da natureza.

Eu pensei em terremotos e em sua potência sem alardes. Eles não fazem anúncios e nem distinções. Mas não. Samantha e George eram maremoto. Sua chegada em minha vida foi repentina e brusca, assim como a partida. Não me lembro do que veio antes deles, mas quando foram embora, me obriguei a montar com os estilhaços um belo quadro de vidro arruinado. Eu o mantinha numa sala de estar que eu mesma construí, embora não fosse capaz de ver formas definidas ao olhar para ele. As silhuetas fugiram, embora a estática de Seattle e o cheiro de café da manhã permanecessem. No fim das contas, eu dizia que era apenas disso que eu precisava.

— Ela e meu pai... eles moravam aqui?

Gwen ajeitou a gola do casaco que vestia que arriscava cair, ao mesmo tempo em que ergui uma das abóboras cujo caule arranquei até o carrinho onde as outras estavam. A esse ponto, os movimentos de serra que eu fazia com o facão eram quase automáticos.

— Sim. Não foi por muito tempo, mas pareceu uma eternidade – respondeu Gwen, olhos negros grandes e melancólicos – Os dois faziam parte de comunidades na América do Norte, onde não existem Segmentos. O nosso foi o primeiro que integraram, e isso já adultos. Não é tão raro assim que feiticeiros nunca façam parte de instituições. Se afiliar a Segmentos pode até mesmo ser considerado um luxo, dado toda a papelada. No caso deles, foi um arranjo.

— Um arranjo? Como assim?

— O pedido de residência nunca foi protocolado. Para a Ordem, eles nunca estiveram aqui, pois não existe nenhum documento que prove isso. Foi... uma época difícil. Não havia tempo para perder com burocracia e trâmites que ao todo levariam meses ou até mais.

Mais abóboras postas no carrinho. Gwen fez um gesto para que eu parasse, e a entreguei o facão antes dela se agaixar para serrar o caule do último fruto.

— Eu sempre imaginei como seria o dia em que finalmente conheceria esse mundo – confessou Gwen – Seus pais tiveram os seus motivos para manter tudo guardado de você, e o irmão de George cumpriu a promessa que fez de honrar o desejo deles. É claro, estou feliz por finalmente estar aqui, mas nenhum de nós queria que tivesse sido desse jeito. Digo por todos quando falo que esperamos que esse lugar se torne um lar para você, assim como foi para eles dois.

— Vou ficar bem – eu menti, acreditando que isso poderia se transformar em uma verdade caso eu falasse em voz alta vezes o suficiente – Só queria que... as coisas desacelerassem um pouco. Sinto que o dia de ontem ainda não acabou, e que não dormi horas o suficiente.

A mulher colocou a última abóbora no carrinho, limpando a testa com as costas da mão. Pelo olhar de Gwen, pude sentir que ela faria de tudo para tornar essa transição menos dolorosa.

— Só não consigo parar de pensar... por que isso tudo foi mantido em segredo? – indaguei, ainda querendo uma resposta – Quer dizer, se ainda estivessem aqui comigo... eles continuariam mentindo para mim, mesmo depois de eu ter feito dezoito? Eu simplesmente nunca seria apresentada a esse mundo? Eu só queria entender a necessidade disso tudo.

— Não ache que o seu caso é único. Vários feiticeiros optam por abandonar a nossa sociedade ao construir uma família, escolhendo a aparente segurança mundana para criar lares longe da chama da Ordem – disse ela, mas algo em sua explicação parecia simples demais – Feiticeiros renegados, como eles são chamados, muitas vezes têm filhos que se casam com humanos. Assim, nossa genética é difundida, e descendentes são gerados. Esse é o nome que dão a mestiços de feiticeiros com humanos.

— Eu não entendo. Feiticeiros abdicando disso tudo... como alguém conseguiria abandonar essa vida? Eu sei que meus pais trabalhavam para nos sustentar, mas entre ter um emprego normal e uma vida normal e tudo isso aqui... – gesticulei com os braços, numa tentativa de englobar toda a área da cabana e dos campos – Não sei. Para mim, a escolha parece bem óbvia.

Gwen riu, parecendo achar a pergunta engraçada.

— Como todo governo existente, existe corrupção na Ordem, escondida nas entranhas de todo aquele mármore frio. Há aqueles que preferem viver sob as leis humanas e abandonar o fogo e o aço do que se sujeitar ao código de uma sociedade cujo líder não atende certas demandas.

Tudo o que Gwen falava fazia sentido, mas mesmo assim, não conseguia me desfazer da inquietação. A mesma sensação que tive no Central Park com Tine, quando questionamos a razão por trás de todo esse circo que durou uma década. Meus pais não somente abdicaram a Ordem. Eles se esforçaram ativamente para ocultar toda e qualquer evidência de que esse mundo existia e que nossa família fazia parte dele, tanto que Maxwell se desdobrou para manter a falácia viva por todo esse tempo, mesmo eles não estando mais aqui.

As coisas nunca são tão simples assim. Eu aprendi isso da pior forma possível.

— Esse não foi o motivo pelo qual meus pais deserdaram – eu insisti, imutável.

Ela apenas fechou sua expressão, forçando-se a voltar sua atenção para o carrinho.

— Essa colheita rendeu. Vê? Frescas e encorpadas. Vamos levar isso para dentro.

Cruzei os braços em um gesto de desconforto, mas não a pressionei mais. Eu a acompanhei de volta para a varanda externa da porta da frente até o momento em que Gwen se voltou para as árvores atrás de nós depois de um farfalhar ter preenchido o silêncio matutino. Edmund, Mark e Trevor emergiram em meio a um mar de neblina, embrulhados em mantos negros colocados sobre os ombros. O líder carregava alguns rolos de pergaminho debaixo do braço, enquanto os outros dois portavam nada além de uma postura rígida que se recusava a dobrar ante a friaca.

— Parece que alguém já acordou – disse Edmund, ao se aproximar de nós duas. Após me cumprimentar com o olhar, virou-se para Gwen – Fizemos uma geral no perímetro. A barreira continua intacta. Bem, é melhor entrarmos. Há muito para discutirmos hoje.

Pensei em perguntar o que ele queria dizer com isso, mas a tensão recém-instaurada entre os moradores dessa cabana não tardou em denunciar o que estava por vir. Engolir em seco foi minha única reação enquanto, ao lado de Trevor e em completo silêncio, esperei que todos entrassem. Pensei ter notado em minha visão periférica um par de olhos cobalto me fitando de soslaio, mas qualquer confirmação desfez-se em neblina quando eles se tornaram invisíveis ao adentrarmos a sala de estar carente de iluminação. Não foi necessário acionar o interruptor, uma vez que Gwen liderou o caminho até o segundo andar. Enquanto subíamos, Mark descarregava o carrinho de abóboras na cozinha. Eu ouvia sussurros desconexos sendo trocados entre a mulher e Edmund, que também não tardaram em se perder na calmaria.

Em questão de minutos, estávamos todos sentados na longa mesa de centro entre as duas estantes do acervo do Segmento, em meio aos ornamentos dispostos na madeira e ao mosaico cinza estendendo-se sobre a mata através da vidraça retangular. Mark já havia se juntado a nós, trazendo consigo uma bandeja com xícaras, uma garrafa térmica contendo o que pensei ser café e uma cesta de pães frescos. Fui imediatamente arrebatada pelo cheiro, mas apesar disso, eu não sentia fome. A antecipação sufocava qualquer outro manifesto vindo de meu ser.

— Então – a esse ponto, eu já estava sem paciência – Vão falar alguma coisa?

— Seus ferimentos estão melhores? – Mark quis saber – Aquilo foi sério. Muitos feiticeiros sequer teriam sobrevivido ao envenenamento arterial.

Gwen logo virou-se para ele, lançando um olhar de repreensão pela escolha de palavras.

— Vou ficar bem. O pior já passou – eu garanti – Agora, se eu vou mesmo ficar aqui, é bom algum de vocês começar a abrir a boca. Ontem, eu passei o dia inteiro implorando por explicações que nunca vieram. Eu não vou passar por isso de novo.

Eu poderia dizer que fiquei surpresa com meu tom assertivo, mas a verdade é que a esse ponto, depois de ter passado pela Ordem, por uma experiência de quase morte e por uma viagem intercontinental, parecia que minha ansiedade social havia sido desligada momentaneamente.

— Seus pais eram feiticeiros habilidosos e respeitados na comunidade, e que escolheram criá-la na sombra da omissão por uma razão – disse Edmund, me lembrando mais uma vez do fato que me atormentou nas últimas vinte e quatro horas – Mas isso não importa mais. Eu irei fazer apenas duas perguntas, e pense bem antes de respondê-las. O direito à verdade pertence a você, mas as suas consequências também. Não terá como voltar atrás.

Eu assenti com a cabeça, sentindo o peso em meu peito mais proeminente do que nunca.

— O que você quer saber?

Minha resposta veio sem rédeas ou cerimônias.

— Tudo. Me conte tudo.

As linhas de expressão de Edmund se estreitaram. Esse era o ponto de não retorno.

— E está preparada para ouvir?

Gesticulei que sim, mas aparentemente isso não foi o bastante. Ele queria ouvir de mim.

— Eu estou – disse, mordendo o lábio – Eu quero a verdade.

Longe de casa, mas perto do que outrora fora um lar. Foi ali, debaixo do canto dos verdilhões, onde a realidade viu-se suspensa apenas por um momento. Uma história recebeu o sopro da vida, e ela se desdobrava diante de olhos febris que ansiavam pela resolução.

— Existem lendas sobre o começo de tudo. Singularidades sendo moldadas a partir do simples desejo da existência – Gwen começara o seu conto – Elas falam de fulgor e vazio. Do desabrochar violento e do descanso. Alguns os chamariam de forças. Outros, de deuses. Os primeiros feiticeiros os viam como um homem batizado em brasa celeste e uma dama esculpida em prata lunar. Dia e noite. Vida e antimatéria. Chame como quiser, mas eles receberam nomes.

— Solaris e Lunaris – continuou Mark – O primórdio, e também o que existe no fim. É dito que eles criaram a Terra e os mundos acima e abaixo dela, e para regê-los, também deram origem aos cinco lordes da natureza. São eles que compõem os Sete. O nosso dogma-mor.

— Avalon é o imperador dos mares. Telluran, o guardião da terra – dizia Edmund – Asterys e Aelia olham pelas estrelas e pelo vento, respectivamente. Já Ignitia deu nome a cada erupção e mostra-se no magma de seu próprio reino. A ela foi dado o trono de Asphodel.

— Asphodel? – eu repeti, inconscientemente.

— O reino abaixo – esclareceu Gwen – Um mosaico escarlate erguido em basalto e cinerárias. Alguns textos afirmam se tratar do destino final daqueles que partem, mas não existe uma crença estabelecida acerca do lugar. Certos feiticeiros o veem como uma alegoria. Bruxos podem ter opiniões diferentes. De qualquer forma, Asphodel é tido como um polo negativo, atuando como metade da força que permite a existência desse plano.

— Então isso seria... a versão dos feiticeiros de um mundo infernal?

— É uma simplificação rasa – Trevor falou pela primeira vez desde que começamos – O conceito de inferno carrega por si só a ideia de punição. Julgamento e penitência são coisas triviais para os Sete. Asphodel não é diferente da Terra, assim como não é diferente de Hiraeth.

Fui pega de surpresa pelo seu tom incisivo. Bom, pelo menos ele estava falando comigo.

— Hiraeth. Deixe eu adivinhar. O reino acima?

Edmund assentiu, olhos distantes ofuscados pelo jogo de sombra do recinto.

— Os mitos irlandeses o chamam de Terra da Eterna Juventude – disse o líder, enquanto se levantava para retirar da estante atrás de si um tomo com capa de couro envelhecido e de páginas amareladas – É um mundo que recebeu vários nomes, tanto por feiticeiros quanto por humanos que presenciaram vislumbres seus. Éden. Elísio. Faerie. Álfheim. Enquanto Asphodel é o polo negativo, Hiraeth assume a face positiva, e se o reino de Ignitia não é comparável ao inferno, esse lugar também está longe de ser o paraíso.

Ele abriu o livro diante de mim, mostrando um desenho à tinta do que inicialmente pensei se tratar de um astrolábio, mas logo me dei conta de que os três círculos alinhados na verdade representavam os três mundos. A Terra se encontrava no meio, suspensa entre mares e um tapete de estrelas. Sob as águas, eu via a imagem de desfiladeiros onde a lava irrigava as matas ao invés da chuva. Ao longe, a figura de um trono firmava-se entre rochedos de pedra negra. Já na outra ponta do desenho, um conglomerado de árvores, montanhas e castelos capturou minha atenção. Imaginei que os filamentos contorcidos que foram pintados acima das construções eram nuvens, mas a grossura do traço e a forma como arrastava-se pela folha conjurou em minha mente a imagem de auroras boreais. Um fulgor caleidoscópico.

— Mas... mas como isso tudo funciona? – a ideia de mundos novos fazia minha cabeça girar – Quem escreveu sobre todas essas coisas? Tudo não passa de alegorias, ou... ou isso tudo...

— Existe? – indagou Trevor, me fitando através da mesa – Não existem registros atuais sobre esses locais, se é isso que está se perguntando. Mas, de noite, quando Vênus e Marte se mostram no céu, você por algum segundo duvida da existência deles? É tudo o que temos. Vislumbres.

Engoli em seco. Edmund o mirou antes de se voltar para mim e sanar minhas dúvidas.

— Histórias sobre Hiraeth são... complicadas, para dizer o mínimo. Uma crença é de que a magia nasceu lá, muito antes do tempo dos feiticeiros e da Ordem. Outra, é de que seria impossível cruzar suas fronteiras. Muitos procuraram por elas desde o momento em que o primeiro poema sobre um reino celeste foi escrito, e enquanto muitos falharam, existiram aqueles que aparentemente conseguiram. Uma linhagem de feiticeiros cujos ancestrais humanos foram impregnados pela magia selvagem daquele plano, deixando marcas físicas em seus corpos.

— Que tipo de marca? – perguntei, em meio ao esforço de tentar processar a avassaladora onda de informações.

— Creio que tenha conhecido Leonard Marshall, líder do Segmento Italiano – falou Gwen, e imediatamente desenhei a imagem mental do homem em questão – E também acredito que deve ter notado como ele é... diferente dos demais feiticeiros.

Mas é claro que sim. Aquele era um rosto que não se podia esquecer tão facilmente após ele ter sido impresso por você. O líder responsável por ter me deixado escapar daquela fortaleza possuía em suas feições uma amálgama indecifrável de mandíbulas definidas e olhos selvagens.

— Ele é o único representante vivo da linhagem dos Marshall, e o único feiticeiro do mundo com traços de energia telúrica em seu corpo – disse Mark – Alguns acreditam que ele só conseguiu o cargo de líder por esse motivo. Como se isso fosse algum tipo de privilégio que outros feiticeiros não têm. Leonard ainda é um de nós, apesar de possuir algo a mais.

— Receber olhares de desprezo por ter outro tipo de sangue correndo em suas veias não é um privilégio – complementou Edmund – A Ordem o considera um herege, pelo fato de sua mera existência profanar a criação de Lunaris e a pureza do sangue feiticeiro, segundo eles.

— Eu não entendo. Se Hiraeth é outro mundo, como os ancestrais dele chegaram lá?

— Não existe uma história única – disse Mark – Os detalhes se perderam ao longo dos séculos. Toda a informação que temos sobre os reinos abaixo e acima vem de tomos antigos escritos por acadêmicos feiticeiros da primeira geração e por congregações de bruxos. Não há como avaliar a veracidade dos textos, mas acreditamos que a linha entre alegoria e realidade seja tênue.

Em uma sociedade onde seres humanos eram capazes de manipular fogo e invocar espadas a partir do nada com um simples gesto de suas mãos, o fato de uma herança sanguínea fazer Leonard ser vítima de preconceito me parecia uma brincadeira de mal gosto de tão surreal.

— Eu não entendo... ele possui esse... esse tesouro que veio literalmente de outro mundo correndo em seu sangue. É algo especial. Por que ele é tratado dessa forma?! – perguntei.

— Se pergunte mais uma vez a razão de existirem tantos feiticeiros que optaram por viver vidas mundanas – Gwen se colocou, me lembrando sobre o que nós duas havíamos conversado no campo lá fora – Desdém por mestiços. Políticas que não favorecem bruxos. As caçadas necromânticas, que foram de longe o período mais violento de nossa história. O mármore polido é apenas uma fachada para esconder o que realmente acontece na Ordem.

De imediato, me recordei do que o governante Hartmann disse durante o julgamento de Tine sobre os necromantes. Aquilo de fato pareceu um enorme massacre.

— As caçadas... – murmurei, como se falasse comigo mesma – Foi algo recente, não foi? Boa parte dos adultos ainda se lembrava.

— Foi o maior derramamento de sangue da era moderna feiticeira – disse Trevor, se fazendo ser ouvido mais uma vez – Divisões militares especializadas foram criadas. Eles se chamavam de vespas, e começavam seu treinamento quando ainda eram crianças. Durante décadas, a Ordem mobilizou esforços, contingente e recursos com apenas um objetivo: assassinar necromantes, independente de sua idade ou se eram praticantes ativos ou não. Qualquer pessoa que possuía a marca da necromancia foi vítima do aço das vespas, seja criança, adulto ou idoso.

Engoli em seco mais uma vez. Antes que eu fosse capaz de expressar meu choque, Edmund subitamente levantou, no limiar da sombra do recinto e da claridade parcialmente ofuscada que conseguia entrar pela janela. Ele tirou da estante um segundo livro, dessa vez de capa azul escura. Mark e Gwen se ajeitaram nas cadeiras, olhando para o líder assim como eu.

O livro foi aberto, revelando uma outra ilustração também feita a tinta. Eu enxergava picos montanhosos sob um tapete de neve e a face do Sol irrompendo no horizonte.

— Não sabemos de fato como tudo começou, mas na Terra, os primeiros registros de nossa sociedade sobre a história da magia datam do século cinco. Eventos cujo palco foram a Ásia e a Europa Central. Incursões cujas consequências resultaram na criação da Ordem.

Gwen virou a página, e senti um arrepio percorrer meu corpo. Os fragmentos de texto e figuras do livro dançaram em meu palácio mental, dando forma a fractais multifacetados que pareciam desabrochar em nanquim. Tive certeza de que, naquele momento, se eu fechasse os olhos, minha mente seria inundada pela visão de caldeiras, sinos de vento e robes vermelhos.

— Existem algumas teorias que buscam explicar o motivo da interferência divina que levou com que Solaris e Lunaris manifestassem sua magia em nosso mundo – disse Gwen – Certos paradigmas dizem que era algo predestinado, uma vez que foram eles que deram origem a vida e, consequentemente, a nós. Que havíamos atingido um determinado ponto em nossa história evolutiva que nos tornou merecedores de tais dons. Há aqueles que acreditam que essas duas singularidades eram incapazes de interagirem entre si, e que para serem capazes de fazê-lo, era necessário que parte de suas essências fosse enviada para a Terra, onde seria seu local de encontro. Um esforço desesperado feito por dois amantes. A promessa do encontro.

Amantes? Em um primeiro momento, era estranho pensar em deuses dessa forma. Porém, o estalo veio. Uma verdade tão absoluta quanto o fulgor em meu sangue. É dito que todos os amantes sentem que estão inventando alguma coisa. Não seria este o ofício de um deus? O ato da criação congruente ao de amar? Era nisso que devíamos acreditar.

— Uma vez na Terra, esses fragmentos das singularidades de Solaris e Lunaris encontraram hospedeiros humanos – emendou Mark – A palavra em sânscrito Avatar foi utilizada para nomear essas criaturas. Receptáculos humanos capazes de conter uma porção da mesma força que se originou no horizonte de eventos da criação.

— O Avatar de Solaris, o ser que carregaria o desabrochar dourado consigo, foi uma jovem tibetana, moradora de um vilarejo ao pé das montanhas do Himalaia, na região onde hoje fica o Nepal – Edmund conduzia a história como se fosse um fragmento de um texto que havia lido milhares de vezes – Pouco se sabe sobre sua vida antes do poder divino do Sol fazer parte de sua alma, tampouco o seu verdadeiro nome. Após a mudança, a garota adotou uma nova identidade para representar a transição para outro estágio de sua vida: Ada Merching, aquela que foi tocada pelo Sol.

Ao ouvir esse nome, fui agredida por lapsos de memórias que não pertenciam a mim. A imagem de vestimentas vermelhas se tornou a mais proeminente, seguida pela conjuração de cânticos em torno de caldeiras fumegantes e turbilhões de neve.

— Ada, com o tempo, reuniu um número considerável de seguidores fiéis a Solaris – Edmund prosseguiu com o relato – Eles formaram os Iluminados, uma organização monástica cuja missão era espalhar a palavra da paz pelo mundo, aceitando aqueles que atravessavam desertos e montanhas em busca da realização. Enquanto isso, no território onde fica a atual Eslovênia, mais especificamente no município de Predjama, a Lua reinava.

— Dijana Koren – disse Mark – Também chamada de Diana, após a anglicização de seu nome nos registros históricos. Filha do rei e princesa de um vilarejo na região da Carníola Interior. A próxima na linha de sucessão da coroa. Lunaris pensara que seria a escolha perfeita. Que Diana, por ter crescido rodeada de condições que grande parte das crianças europeias da época apenas sonhava em possuir, estaria apta física e mentalmente a carregar o fardo de hospedar sua singularidade. Mas ela estava errada. A princesa era egoísta, e não esperava a hora de assumir o trono. Ela queria poder, e a Lua lhe deu esse poder, a troco de sua sanidade.

— Diferente da essência de Solaris, uma entidade que reflete a agressividade da vida em frente a não-existência, a ponto de se sobressair em relação ao próprio livre arbítrio de seus Avatares, o arder das chamas de Lunaris é vivo, ou melhor, volátil – Gwen explicava, seu olhar distante focado em destrinchar tal conceito em toda a sua complexidade – A singularidade de Lunaris é moldada de acordo com aquele que o possui. Quando se entra em comunhão com o abismo, é necessário estar no controle para que você não despenque. Diana, ao caminhar na corda bamba, aceitou o convite da sombra e se permitiu ser marcada por ela. Talvez essa não tenha sido sua intenção real, mas de qualquer forma, quaisquer aspirações que a princesa nutriu se mostraram deturpadas o suficiente a ponto de fazer com que a corda rompesse.

— Diana fez o mesmo que Ada, mas em vez de reunir seguidores em uma peregrinação religiosa, ela criou um exército – Trevor narrava os acontecimentos – Começou se tornando rainha de sua nação aos dezoito anos, mas não durou muito, pois todo o reino foi consumido pelo terror púrpura de suas chamas, inclusive sua família. O vilarejo foi completamente obliterado pelas brasas que invocara em um episódio de descontrole quando sua humanidade lhe foi roubada.

Contive o temor quando mais visões tomaram conta de minha cabeça. A única diferença é que, comparadas com os vislumbres dos Iluminados e de montanhas do Nepal, essas fotografias eram familiares. A mulher sem rosto e com asas negras na floresta. A mata reproduzindo um afresco ígneo pintado por Dante, em toda sua glória flamejante. Tudo fazia sentido agora. Por todo esse tempo, sem ao menos estar ciente disso, eu estava sonhando com Diana. Ela atormentava cada noite maldita e cada terror noturno, e por qual razão? Seria uma consequência de meus pais terem sido tirados de mim por necromantes? A marca profana carregado tanto por Diana quanto por eles se viu impregnada em minha família, a ponto de criar morada em mim?

Mas havia algo pior que eu não queria admitir, e Trevor sabia disso. Eu tive certeza quando ele fechou sua expressão, a mais pura face da solenidade transparecendo na escultura de seu rosto. Ele viu o que eu havia feito no beco da saída de incêndio. Ele viu quando ergui um pilar de chamas roxas com meu olhar.

Aquilo não parecia nem um pouco certo. Era diferente do fogo azul, cuja frigidez calorosa se comportava, em última instância, como uma extensão do meu ser, por mais que eu ainda não possuísse controle absoluto sobre sua manifestação. O queimar púrpuro era diferente. Eu não era capaz de proferir ordens ou esperar que realizasse meus comandos, pois isso seria uma ofensa a sua própria existência. Ele não permitiria ser subjugado dessa forma.

O fato de que eu chamei por essa face do presente de Lunaris sem ao menos pensar em fazer isso significava que havia algo de errado comigo, e nós dois sabíamos disso.

— O que aconteceu? – me forcei a focar no agora – Ada e Diana se encontraram?

— Rumores sobre um confronto iminente se espalharam quando notícias sobre os feitos de ambas as filhas dos deuses atravessaram montanhas e planícies para alcançar os ouvidos de seus respectivos seguidores – disse Mark – Diana espalhava morte por onde quer que passava. Suas investidas contra outros reinos e vilarejos ficaram conhecidas como Cruzadas Lunares, e não tardou até que a parábola da ceifadora conhecida como Pomba Negra adentrasse o cotidiano de crianças cujos pais temiam pela chegada da marcha liderada pela mulher de branco. O terror espalhou-se pela Europa, porém, por mais devastadoras que as empreitadas de Diana fossem, elas se restringiam a porção central do continente. Talvez tenha sido o caráter repentino dessa incursão em especial que pegou Ada Merching de surpresa. Uma vez ciente da existência de alguém como ela, a rainha reuniria seus homens para marchar rumo ao leste, em uma investida contra o monastério dos Iluminados. A noite foi despedaçada por chamas púrpuras e aço incandescente brandido por ela e os algozes leais a ela. Flechas de fogo perfuravam as nuvens, e as montanhas foram profanadas pelo demônio púrpura do ódio. Os peões da batalha caíam, um a um, sob a fúria do Sol e da Lua. O fadado encontro das duas singularidades, em sua essência, não representou nada além de fúria desenfreada. As promessas da chegada de uma nova era não poderiam ser cumpridas, a não ser que tal era consistisse em um mundo onde toda areia se tornasse vidro. Diana queria queimar o mundo, e foi na noite em que matou a filha de Solaris que percebeu que era de fato capaz disso.

— Enquanto Solaris rege as forças da criação, Lunaris é aquela que governa a destruição – continuava Gwen – Mas destruição não significa o oposto da vida. Pelo contrário. Entropia é o mecanismo pelo qual o universo funciona. Foi isso que Diana falhou em compreender. Lunaris a entregou uma foice, e em vez de utilizá-la para a colheita, a rainha optou por banhá-la em sangue.

— Eu não entendo – me manifestei, cercada de dúvidas – Como Solaris e Lunaris deixaram isso acontecer? E quanto as outros deuses? Eles não poderiam ter feito algo? Criado mais Avatares para dar um fim a isso tudo?

— Não é tão simples assim – afirmou Edmund – Seu erro é atribuir conceitos humanos como benevolência e moralidade a algo tão intrinsecamente vasto como singularidades. Nós, enquanto sociedade, chamamos os Sete de deuses pelo fato de sermos incapazes de compreender o que de fato eles representam em sua totalidade. A tentativa de realizar tal feito despedaçaria nossas mentes. Não podemos sequer afirmar que a escolha de Avatares é algo deliberado. Talvez tenha acontecido por uma razão, ou talvez tenha sido fruto de uma coincidência cósmica. A questão é que não podemos racionalizar o divino.

— Então os deuses estão no céu e tudo está certo com o mundo – eu comentei – Sei que é a religião de vocês e tudo mais, mas eu não iria querer venerar deuses assim.

— Mais uma vez, não é tão simples assim – falou Trevor, de forma direta, porém não incisiva – Primeiro, essa não é necessariamente nossa religião, ou sequer uma religião. Não precisamos acreditar no fogo, porque nós o vemos, assim como não precisamos acreditar em magia oriunda de outros planos, porque as marcas feéricas no rosto de Leonard e seu sangue diferenciado existem. Sim, Solaris e Lunaris podem ter cometido um "erro" ao deixar mortais alcançarem o divino, mas esse erro foi responsável pela criação do que nós somos hoje. A nossa raça é fruto de um erro cósmico que causou a morte de milhares de inocentes. Isso não nos torna melhores ou piores que os humanos, ou ninguém. Apenas tentamos compensar nossa existência vivendo cada dia, o que acaba sendo difícil dado a ausência de propósito quando não existem inimigos para combatermos. O mundo seria exatamente o mesmo caso não existíssemos.

Essa foi a coisa mais profunda que já o ouvi dizer até o momento. Precisei de alguns instantes para me recompor após o trunfo filosófico posto sobre a mesa de madeira.

— Então Ada foi morta por Diana. O que aconteceu depois? Quer dizer... como isso tudo acabou?

— Os homens fiéis a rainha começaram a ter dúvidas sobre sua lealdade, tal como as verdadeiras intenções da Avatar – continuou Edmund – Após a conquista do Nepal, ela mesma dizimou grande parte de seu exército, com o objetivo de tomar de volta para si o poder que havia dado a seus seguidores, uma vez que o confronto com Ada a exauriu por completo. Nisso, notando o crescente desequilíbrio apresentado pela rainha, um grupo de rebeldes entre os homens de Diana criou uma resistência, com o intuito de impedir que a influência da Avatar se expandisse. O líder dos rebeldes, Alder Hartmann, foi responsável pelo feito mais importante de toda a nossa história. A primeira transmutação já realizada. Alguns consideram o feito como o milagre alquímico original. Solve et coagula. De alguma forma, talvez por intervenção divina, ele conseguiu modificar a natureza da magia ensinada aos homens por Diana, purificando as chamas púrpuras para que pudessem ser comportadas pelo corpo sem danificá-lo. O roxo foi desfeito e feito novamente, se transformando em azul, e foi assim que nasceu a face da magia lunar como nós a conhecemos hoje. As chamas espirituais, também conhecidas como prata lunar. Uma forma menos volátil do fulgor de Lunaris, capaz de ser moldado em formas sólidas além do plasma. É essa a base de cada escrita rúnica, armamento e conjuração utilizada por nossa sociedade.

Ele fechou o pulso, e quando abriu novamente, uma chama azul enorme explodiu em seus dedos, espiralando como fumaça de incenso. As labaredas então precipitaram, recolhendo-se na palma de Edmund. No ato de fechar o punho, enxerguei vestígios do queimar.

— Eu sei o que está pensando – disse ele – Alder Hartmann. Alistair Hartmann. O discurso do governante ao iniciar uma sessão da Ordem, proclamando sua condição enquanto descendente de Alder. É verdade, mas o grau de parentesco exato é desconhecido.

— É por isso que ele ocupa o trono? – indaguei – A sociedade de vocês é baseada nesse lance monárquico? Pensei que seriam mais avançados.

— A monarquia foi a nossa base, sim, mas no passado – esclareceu Mark, que não pareceu discordar do meu comentário – A civilização humana não foi a única que teve sua estrutura completamente alterada por conta da Revolução Francesa. Os feiticeiros de nossas instituições também perceberam a necessidade de mudança, e foi assim que nasceu o voto.

— Ainda existem simpatizantes do antigo regime, assim como na sociedade humana – respondeu Edmund – Talvez seja esse o motivo por terem escolhido Alistair como representante. Algum ideal de resgate de linhagens ou de responsabilidade divina. Por mais controverso que nosso governante seja, não podemos negar o impacto de Alder. O primeiro reinado comandado pelo Lorde das Brasas se instaurou quando Diana foi assassinada pelos rebeldes em um confronto nas terras germânicas, nos campos que margeiam esse Segmento. A natureza descontrolada das chamas recém-transmutadas de Alder e seus homens carbonizaram a Pomba Negra sem que ela pudesse ter qualquer chance de defesa. As trevas pereceram perante o luar prateado. Depois da queda de Diana, seu corpo foi largado no meio da mata, onde foi cavada uma trincheira qualquer para que ela apodrecesse.

— Mas mesmo na morte, a rainha deixou um legado ressaltou Trevor – Seu corpo profano, em seu último suspiro, manchou qualquer vida que ousasse crescer no seu local de descanso. O vigor fora arrancado da terra, e as árvores arderam. Uma grande quantidade de fulgor residual se enraizou em nossos solos, resultante dos últimos esforços de Diana para sobreviver aos rebeldes. Grama morta e vegetações desprovidas de vida tomaram conta da paisagem. Aquilo se espalhou como uma praga, dando origem a uma zona ébria onde nada pode prosperar. Para conter o estrago, Alder e seus homens foram obrigados a aprisionar a maior parte da magia profana em aglomerados cristalinos que se originaram de forma espontânea a partir da prata lunar original e seu caráter instável. Contudo, o ar ainda é tóxico. A energia necromântica, ao ser aprisionada pelos cristais, enxergou o solo como uma rota de fuga. Ela se alastrou, dando origem a um ecossistema autossustentável de ciclagem de necromassa. Um cemitério dominado por conglomerados cristalinos de magia sombria e fogo fátuo. Se olhar para além de nossas plantações, será capaz de enxergar os portões de ferro que guardam os limites daqueles campos mortos. É território restrito, e deve ser tratado com extrema cautela.

— Ninguém com sangue lunar pode se expor a magia de origem necromântica por longos períodos de tempo – explicava Gwendolyn – O presente que Lunaris dera a Diana, em sua essência, é incompatível com corpos mortais. Para se adequar a eles, é necessário deformá-lo das mais diversas formas, sejam elas físicas ou mentais. É daí que surge a característica em comum entre necromantes de longa data: mutações. Um fenômeno que ainda não é completamente entendido por nós, mas que está presente em cada relato sobre os artesãos da sombra. Quando as chamas sombrias tentam assumir formas sólidas, tal qual sua contraparte azul, o resultado está longe de ser um construto bem estruturado. Não. O que surge são anomalias geradas a partir do próprio corpo do praticante. Imprevisíveis e letais.

Eu imediatamente me peguei pensando no necromante que perseguiu Tine e eu em nossa vinda para cá. A forma com que ele disparava projéteis cristalinos. De início, pensei que eram algum tipo de armamento que ele escolhera de antemão para levar consigo em sua caçada, mas e se esse não for o caso? Ele seria capaz de manipular esses cristais livremente, da mesma forma que feiticeiros dobram o fogo a seu bel prazer? Era esse o presente que a necromancia lhe dera? O fato de que eu fui literalmente envenenada ao ser perfurada por uma dessas coisas tornava tudo ainda mais provável. Trevor acabara de explicar que cristais podem armazenar essa energia.

— Se isso é tão perigoso assim... por que a Ordem estaria errada em tentar exterminar essa prática? – eu manifestei minhas dúvidas, e imediatamente fui recebida por olhares estupefatos relativamente surpresos pelo fato de eu ter chegado a essa conclusão – Quer dizer... não que eu seja a favor de genocídio ou de todo o derramamento de sangue que rolou, mas...

Edmund pigarreou. Notei que Mark correu os olhos por entre ele e Gwen, esperando que um dos dois se manifestasse. Quando nenhum o fez, ele se comprometeu a falar.

— Existem... posicionamentos a respeito da necromancia. Ela não era proibida enquanto prática pela Ordem até a época das caçadas, mas a sua utilização sempre foi controversa. Não é como se todo praticante passasse por mutações, e também não é como se todos eles também quisessem queimar o governo de dentro para fora. ou possuíssem visões alinhadas a filosofia de purificação de Diana. A verdade é que a imprevisibilidade extrema da necromancia permitia que resultados fossem alcançados com maior facilidade e velocidade quando comparada com métodos tradicionais. A Academia de Prata, nossa principal instituição de ensino e formação de soldados, sempre assumiu posição contrária a prática justamente por isso.

— Grande parte dos necromantes vivia em comunidades majoritariamente humanas, longe de feiticeiros e do governo – complementou Edmund, por fim – Por vezes, acabavam por se associar a círculos de comércio ilegal e realização de serviços. No fim das contas, encontrar pessoas desaparecidas e fornecer conselhos sobre o inconsciente se torna algo fácil quando você está em comunhão com a sombra. Eles precisavam sobreviver na margem da sociedade, e descobriram que uma forma para fazer isso era contribuir com ela, da forma que podiam.

— Mas nem todos os necromantes são como os benfeitores de cidadezinhas europeias – afirmou Gwen, tomada por algo em sua expressão que não consegui identificar – Longe de Segmentos e de centros de poder da Ordem, também existem aqueles que se aproveitam dos dons concedidos pela sombra. Não são todos que permancem sãos quando tentam tocar a mesma brasa que deu poder a Diana. Existe uma razão para o púrpuro ter causado sua queda.

Eu pensei em tudo o que estavam falando. Sobre o tamanho da marca deixada pela necromancia no mundo, assim como os perigos dela. Ao que tudo indicava, os meus pais foram mortos por necromantes onze anos atrás, e se eles eram mesmo feiticeiros habilidosos, isso significava que seus oponentes não eram necromantes quaisquer. Estávamos falando de praticantes que sabiam o que estavam fazendo. Eles possuíam estudo. Recursos.

— Aquele casarão em Nova York. Alistair disse que era residência de um necromante – falei, trazendo o assunto para o contexto atual – Tine já deve ter contado tudo para vocês. O fato de que nossa invasão nunca teria acontecido se ela não tivesse sido ameaçada por um potencial necromante a entrar lá e pegar seja lá o que ele pediu que ela roubasse.

— A Ordem possui um catálogo de sítios de atividade necromântica, que vão desde refúgios em potenciais até residências inativas, como esse casarão de Nova York – explicou Gwen – No caso de locais com presença de artefatos necromânticos, também são produzidos inventários. Alistair não entrou em detalhes, mas o objeto desaparecido é um receptáculo. Sua principal função é a de armazento de magia ou energia como um todo, mas quando falamos de práticas necromânticas, esses artefatos também são capazes de abrigar manifestações extracorpóreas.

Engoli em seco. O termo era confuso para mim, mas não falhou em me deixar inquieta.

— O que... o que exatamente seria isso?

— Aquilo que pilota seu corpo – falou Trevor, sem cerimônias – Almas. Espíritos. Essências. Chame como quiser. Não existe uma definição correta em nossa extensa nomenclatura.

Um objeto capaz de abrigar almas? Isso definitivamente estava no topo da lista de coisas mais absurdas que ouvi nas últimas horas. Me abstive de perguntar como diabos isso funcionava ou como sequer era possível. Já existiam perguntas demais cujas respostas eu ainda buscava.

Mark pigarreou, e em seus olhos cansados pude ver a cortina da preocupação conjurando sombra em um semblante endurecido.

— Qualquer que seja a finalidade de uso desse artefato, sabemos que isso já viola inúmeras implicações éticas. De qualquer forma, somente a existência de uma mobilização para que esse grupo pudesse estar em posse do receptáculo indica o quão valioso ele é para eles. Existe um objetivo, e o artefato é um meio para alcançá-lo.

Imediatamente, os alertas que Tine fizera quando nos encontramos na casa de Penelope se posicionaram sob o holofote da minha atenção. Havia chances dos mesmos responsáveis pelo que houve com meus pais estarem nesse exato instante esperando um momento de vulnerabilidade ou descuido meu para terminar o que começaram. Eu me questionava a razão para um grupo de necromantes querer exterminar o nome Randall, e também me perguntava sobre o papel do receptáculo nisso tudo. Por que estavam atrás disso logo agora?

— Esse objetivo que você diz. Acho que é seguro afirmar que sou eu – falei, manifestando uma certeza há muito consolidada que fez com que todos voltassem seus olhares para mim – Toda a movimentação para fazer com que Tine fosse ao casarão, pois sabiam que eu estaria lá para quebrar as barreiras inconscientemente. O ataque que sofremos tentando vir pra cá.

A tensão do silêncio se instaurou frente a minha constatação incontestável.

— Ainda é cedo para afirmar alguma coisa – foi Gwen quem rompeu a calmaria – Mas é inegável que a melhor escolha que poderia ter feito foi ter vindo para cá. Se trata do único lugar onde podemos ter certeza de que vai estar segura.

Certeza? Por mais aconchegante que a sala de estar e essas quatro paredes rústicas fossem, eu não sabia se era capaz de afirmar isso. Já deixei de saber o que eram certezas.

— Segurança é o bem que mais almejamos. Desde a queda de Diana, é isso que nós temos buscado durante séculos. Segurança, ou pelo menos a dádiva da comodidade – disse Edmund, se levantando devagar – A comodidade no ato de sobreviver. O maior princípio de nossa raça, e o único propósito conferido a nós por poderes superiores. Em um mundo em que você não deve se preocupar com monstros, demônios ou anjos caídos, a única coisa que representa perigo é a própria sociedade. Sobrevivemos lutando uma cruzada em nome de nossa deusa mãe ao guerrear contra aqueles que veneravam o Sol. Sobrevivemos ao derrubar uma tirana e construir uma sociedade a partir das ruínas de seus massacres. Sobrevivemos criando leis e regras para serem seguidas, consolidando um governo e nos espalhando por todos os cantos do globo. É isso o que fazemos de melhor. A pergunta é se você também irá conseguir fazer isso depois de ouvir aquilo que a motivou a vir para cá em primeiro lugar. Aquilo que a fez começar tudo isso.

Eu abri a boca para responder, mas a severidade no semblante do líder do Segmento fez com que eu congelasse na cadeira, meu corpo retesando-se por inteiro à medida que me dei conta que a expressão de Edmund também era compartilhada pelos outros aqui presentes.

— Estava lá, não estava? – questionou o líder, fitando as janelas de minha alma com tamanha maestria que não duvidei que fosse capaz de enxergar as verdades que eu não podia – Desde Seattle. Desde antes de seus pais. Desde antes de você conseguir definir algo tão complexo quanto o anseio de algo que você sequer sabe o que é. Alguma coisa sobre a sua natureza e quem você é, que mesmo após a descoberta das chamas espirituais e do aço frio da Ordem ainda não a deixou livre por completo. Existe uma peça faltante. Você sempre soube disso.

Engoli em seco, sentindo cada célula no meu corpo reagir a eletricidade crescente no ar. A antecipação de algo irreversível que se rasteja por entre essas tábuas de carvalho escuro. Encontrei o olhar metálico de Edmund, ciente de que meu peito estava prestes a explodir. Estava lá sim, pensei. Em cada sombra e em cada respiração entrecortada depois do relógio marcar meia noite em meu apartamento antigo do outro lado do país. Em cada crepúsculo sob o teto que dividia com meu tio que não falhava em se assemelhar a um auditório vazio nos dias em que não trocávamos sequer uma palavra. Estava lá, de forma diminuta, todas as vezes em que me forcei a mergulhar de cabeça no labirinto urbano novaiorquino com Tine e John para ver se eu conseguia achar a chave para escapar de uma prisão de meu próprio feitio. Estava lá, esse tempo todo.

Eu não era somente eu.

A máscara da realização se apossou de mim, e pude ver que Edmund e os outros sabiam o que estava prestes a acontecer. Afinal, não poderia ter ocorrido de qualquer outra maneira.

— Um casal de feiticeiros não faria um acordo com a Ordem para impedir que a filha soubesse de sua origem – fiz minha voz ser ouvida – Um acordo que se estendeu ao meu responsável legal que o cumpriu até o último momento. Alistair, por mais questionáveis que seus métodos enquanto governante sejam, não hesitaria em abrigar uma refugiada sem nenhum motivo.

Edmund ajustou sua postura, respirando fundo ao mesmo tempo em que unia ambas as mãos para massagear seus dedos, buscando encontrar conforto no gesto.

— Todo feiticeiro, por possuir a dádiva da chama original, possui certo grau de afinidade com aquilo que chamamos de planos imateriais – começou Edmund – É a partir dele que conjuramos nossas chamas e nossas armas. Uma camada da realidade menos densa que existe de forma sobreposta à nossa. Caso queira abordar isso por um ponto de vista da física, chame de um bolsão dimensional, acessível a partir de qualquer ponto no espaço. Porém, existem certas linhagens e famílias de feiticeiros cuja genética diferenciada os permitiu firmar uma ligação mais potente com esses planos. Indivíduos chamados de clarividentes pela Ordem.

— Genética diferenciada? – indaguei – Quer dizer, aqueles mais próximos da linhagem de Alder? Por causa desse lance da chama original e tudo mais?

— Com as diásporas que ocorreram após a consolidação da Ordem, não há como mapear os descendentes dele, pelo menos não com um grau de confiança elevado – afirmou Mark – No caso de Alistair, ele advém de apenas uma de diversas outras linhagens que Alder originou. É possível que a clarividência esteja relacionada com a genética de Alder, mas uma vez que a maior parte das informações se perdeu, não há como afirmar. O que sabemos é que existem registros de clarividentes em todos os continentes com populações de feiticeiros.

— Clarividentes são feiticeiros em constante comunhão com o imaterial – continuou Edmund, querendo alcançar seu ponto – Enquanto o outro lado nos presenteia somente com fogo e aço, eles são recebidos por parábolas e agouros. Histórias contadas pela sombra, do que aconteceu e do que pode vir a acontecer. A clarividência, enquanto condição, não é algo que se mostra ativo o tempo inteiro. Existem lapsos. Janelas de ascensão de consciência onde esses indivíduos podem acessar informação compartimentalizada e enxergar além de nossa percepção linear do tempo. É a partir desses lapsos que as visões surgem. Tive a oportunidade de conversar com um número de clarividentes durante os anos das caçadas, marcados pelo tumulto e pela incerteza. Todos nós falávamos de mudanças, mas estes clarividentes contavam sobre uma mudança mais... agressiva. Eles disseram ter visto. Todos eles. Um presságio arrastando o céu em uma conjuração prateada.

Eu enxergava o meu próprio reflexo apático nas pupilas do líder, como uma observadora atrás da projeção de uma fita cassete. Tudo o que eu podia fazer era permanecer sentada e ouvir.

— A palavra se espalhou. É o que acontece quando centenas de clarividentes ao redor do mundo alegam terem tido exatamente a mesma visão. Fascinado e alerta com o ocorrido, Alistair mobilizou a Ordem para que uma nova repartição legista do governo fosse criada, composta exclusivamente por clarividentes. Ele convocou todos aqueles cujos dados constavam no registro e instaurou a Legião, um órgão responsável por participar da promulgação de leis e também por atuar como um oráculo para embasar tomadas de decisões políticas.

— Os integrantes da Legião possuem contato restrito com o mundo exterior. A partir do momento que se tornam membros do órgão, é esperado que passem grande parte do resto de suas vidas entre quatro paredes, em uma câmara selada cuja localização é de conhecimento apenas da elite da Ordem, dos cargos mais próximos a Alistair e Aurora – esclareceu Mark, como se disesse um fato casual – O governo prega que é tudo em prol de refinar as capacidades de percepção extrassensorial dos clarividentes. Que menos estímulos equivalem a um maior desempenho psíquico.

— Sua mãe, Samantha, era uma clarividente – disse Gwen, a súbita revelação falhando em extrair uma reação genuína da minha parte – Por sorte, seus dons se manifestaram somente depois do período das caçadas ter oficialmente se encerrado. Clarividentes cujas habilidades vieram à tona após a criação da Legião não possuem quaisquer compromissos com a Ordem, embora possam contribuir em assuntos oficiais sem necessariamente integrar o órgão. Esse foi o caso de Samantha, e é o caso da líder Ivanov, do Segmento da Rússia, um dos poucos clarividentes em posição de destaque e de reconhecimento pelo público.

Edmund respirou fundo mais uma vez, repousando a mão sobre a capa envelhecida do livro que tirara da estante no início de nossa conversa. Eu ouvi contos sobre peregrinos de montanhas nevadas, sobre a sombra que envolve princesas atormentadas e sobre homens que construíram uma sociedade fundamentada em sangue, fogo e aço. A história da criação me foi apresentada. Singularidades e mundos acima e abaixo deste. Contudo, por alguma ébria e inevitável razão, eu sabia que o que estava prestes a ser dito não poderia ser comparado com nada disso.

— Eu perdi o contato que tinha com comunidades de clarividentes depois da criação da Legião, é claro – continuou o líder, de rosto pétreo e firme – Mas a inquietação nunca foi embora. As preocupações persistiram, e apesar de nunca ter ocorrido outro presságio de escala global, todos os clarividentes espalhados pelo mundo estavam cientes de que algo estava prestes a mudar. Eles sentiam uma perturbação. Um agouro que fora sinalizado pela conjuração prévia.

— Uma chegada – complementou Gwen – Ou melhor, um segundo advento. Assim como os cristãos acreditam no retorno do Messias e assim como os nórdicos possuíam a crença na ressurreição de Baldur após os eventos do Ragnarok. A chegada que fora profetizada.

A cadeira caiu aos meus pés assim que eu me levantei abruptamente.

O tintilar das colheres do pote de açúcar quando meu joelho se chocou com a mesa e o vento agredindo a grande vidraça pelo lado de fora eram os únicos sons audíveis além do meu batimento cardíaco acelerado e completamente descompassado. Edmund e os outros retesaram ante meu gesto repentino, mas isso não impediu que ele continuasse a falar.

— Dentre os nove Segmentos existentes, o nosso é tido como pária por abrigar o maior depósito de rejeitos necromânticos do globo, onde os restos de Diana foram queimados. O fato do último líder antes de mim ter enlouquecido por conta da corrupção da zona restrita também não é um acontecimento que ajude na construção de nossa reputação. Por isso, pode imaginar nossa surpresa quando, certo dia, recebemos uma convocação anônima para uma reunião com uma feiticeira pertencente a uma comunidade norte americana. Aceitamos a solicitação, e assim que ela adentrou os limites dessa cabana, notamos duas coisas de imediato: o volume que sua barriga abrigava sob o manto negro que trajava e o homem de cabelos loiros e olhos de jade que a acompanhava. Mas havia algo a mais. Algo empoleirado nas faces daquele casal. Medo.

O nó que comprimia meu miocárdio se alastrou para além dos meus músculos cardíacos e se apossou de minhas vias respiratórias. Estava acontecendo. Estava realmente acontecendo.

— A mãe, uma clarividente, contava sobre pesadelos e premonições rogadas no apogeu de cada noite – Gwen deu continuidade ao relato do líder – Sonhos de infernos em brasa, cuja voracidade implacava qualquer representação que Dante poderia ter impresso na Divina Comédia. Um castigo púrpuro de tormentas de fogo irrompendo da mata. Visões sobre uma figura sem face, coroada em enxofre e asas negras. Entre os presságios, existiam aqueles que a deixavam sem dormir por dias. Nele, ela via seu bebê recém nascido suspenso no ar, espaço vazio o separando de uma queda rumo a um desfiladeiro incandescente. Ela não sabia o que tinha do outro lado, mas sabia que, o que quer que fosse, clamava por seu primogênito. Não por um capricho ou pelo ímpeto de um malfeitor de separar a cria de sua mãe, mas pelo mero fato de ser um direito de nascença. Algo mais forte que qualquer um de nós. Algo que o pertencia.

A esse ponto, eu me obrigava a fitar a cesta de pães e me atentar ao aroma de café que ainda pairava na mesa da biblioteca em que estávamos. Em minha visão periférica, notei o olhar frígido e oculto em bruma de Trevor recaindo sobre minha direção geral. É claro que ele queria saber como eu estava reagindo a isso tudo. Gwen estava falando da minha mãe. De Samantha.

— Nós tentamos ajudar, obviamente – falou Mark – O fato de que haviam recorrido a nós já dizia muita coisa. A Ordem ignorou suas solicitações para consultar a Legião, que até então estava silenciosa. Eles ficaram conosco aqui no Segmento durante parte da gestação. Não foi uma estadia regulamentada pela Ordem, mas Alistair estava ciente disso. Talvez para ele seria melhor se cuidássemos desse problema nós mesmos, sem envolver o governo. Foi assim que fomos apresentados aos seus pais. Não foi uma estadia longa, mas nos afeiçoamos a mulher e ao homem que eram. Os dois frequentaram o mesmo programa de treinamento que eu, mas nunca tive a chance de conhecê-los a fundo na época que estudávamos juntos na França. Assim como os demais, aquele foi o primeiro contato que tive com os mistérios de Dawson e Randall.

Edmund assumiu as rédeas do discurso mais uma vez, e senti as paredes da biblioteca se comprindo cada vez mais, tornando o ambiente menor e mais difícil de respirar.

— Como dito, a Legião estava silenciosa até então. Mas isso não perdurou. Dessa vez, não foi necessário um presságio de escalas globais conjurado na mente de cada clarividente de nossa sociedade. Não foi necessário, pois um presságio real cortou os céus. Com o final da gestação se aproximando, seus pais deixaram nosso Segmento para serem atendidos por um parteira de uma cidade próxima. Eva Klein era seu nome, uma curandeira relativamente conhecida na comunidade feiticeira do sudoeste germânico. No dia anterior ao parto, a Lua em sua fase crescente entrou em conjunção com Marte. Para os estudiosos dos fenômenos do céu, o aspecto marcial é um aspecto adversário. Aquele que se opõe. Como se não bastasse, a Terra estava em periélio, o período onde está mais próxima do Sol. Quando o mundo se preparou para receber a criança, ele montou um palco de oposições polares. A Lua que emerge ante o Sol dominante.

— Eva nos contou os detalhes – disse Gwen – Você nasceu à meia-noite do dia dois de novembro, aqui em Baden-Württemberg. Quando veio ao mundo, foi acompanhada por uma chuva de meteoros que pintou a noite alemã de prata. Uma coincidência astronômica que deixou de ser apenas uma coincidência no momento em que a Legião se manifestou.

— Não – eu mal podia ouvir meu próprio clamor abafado pela minha própria pequenez.

— Eles falaram da Lua crescente e da prata que renasce da sombra – a esse ponto, Edmund despejava sem rédeas todas as palavras sobre o alicerce incinerado do que eu pensei que fosse a minha vida – Do segundo advento e da promessa de redenção rogada pela própria singularidade. Da antítese da Pomba Negra! Uma chama que reluziria tal qual um diamante.

Pare, eu queria dizer. Gritar, até. Pare de me dizer essas coisas. Mas não. Eu havia concordado com os seus termos, e por mais que eu o conhecesse há pouco tempo, eu estava ciente de que Edmund não era um homem que voltava atrás uma vez que acordos eram feitos. Ele me avisou sobre a dor, e naquele instante, permiti que ele abrisse todas as minhas feridas que pensei já terem cicatrizado após todos esses anos com o mais afiado de seus facões.

— Você estava certa em assumir que não era humana, mas errou em pensar que é apenas uma feiticeira – o líder proclamou a sentença derradeira – Você é mais do que isso. Mais do que qualquer um de nós. Mais do que os seus pais, e também mais do que os que nos governam. Samantha e George sabiam disso, e pelo seu bem e pelo bem de nossa sociedade eles resolveram abdicar de tudo para lhe dar uma vida normal, longe de qualquer fogo. É claro, eles estavam adiando o inevitável. Você estava fadada a incinerar o céu desde o dia em que nasceu, quando Lunaris anunciou sua chegada. É esse o destino de sua segunda filha. O fardo da sucessora de Diana.

Eu ri. Uma manifestação fugaz, marcada pela curva de meus lábios ressecados e pelos ruídos abafados que escapavam de minha boca. Edmund me fitava em completo silêncio, assim como os outros. Corri meu olhar dilatado por entre os presentes no recinto, esperando que se juntassem ao meu coro e que o recital de gargalhadas preenchesse a biblioteca. Mas isso não aconteceria, porque isso não se tratava de uma piada de mal gosto. Era a verdade, e eu não precisava que alguém confirmasse sua veracidade. Eu mesma estava ciente disso.

Quem sabe sobre isso? – perguntei, mais como um procedimento padrão. Não que eu quisesse de fato saber. Que diferença isso faria?

— Nosso Segmento, os superiores da Ordem e os outros líderes – respondeu Mark – É informação extremamente sigilosa. Acredito que seja capaz de imaginar o fervor uma vez que se tornasse algo de conhecimento público. Você ouviu sobre a Guerra Avatar. Sobre Diana.

Gwen imediatamente virou-se para ele, censurando-o com o olhar devido a menção a primeira filha. Lembro de ter construído um roteiro inteiro em minha cabeça. Perguntaria o que isso significava para mim e para aqueles ao meu redor. Se essa era a razão da minha família ter sido alvo de ataques, e se era por isso que havia um alvo sobre mim nesse exato instante. Porém, ao ver a figura moribunda cuja aparição me perseguira durante esses últimos dias prostrada contra a estante atrás de Edmund e os outros, minha única resposta foi correr até as escadas e irromper pela porta da frente da cabana ao me dar conta de que eu estava tendo um ataque de pânico. Me recostei contra o tronco frígido de uma das inúmeras árvores no limiar da mata ao redor da construção e permiti que meu corpo expulsasse todo o conteúdo de minhas últimas refeições em uma torrente que não fui capaz de conter. Após o regurgitar, veio a queda de pressão, acompanhada pela desorientação que surgiu com o zunido em meu ouvido interno.

Em algum lugar da Alemanha, por mais que eu não soubesse exatamente onde, uma garota juntava os remendos do sonho de uma vida quieta. Eles foram perdidos no fogo, assim como os seus pais, o seu tio e os seus lares passados. Se ela pudesse, ela também se jogaria ao fogo na esperança de se juntar a eles, mas isso não seria possível uma vez que o fogo era fruto de sua criação. Ele fora dado a ela quando nasceu, por uma outra mãe cujo nome a garota só veio a conhecer há pouco tempo. Ela tinha vindo atrás de respostas e de um novo lugar ao qual pudesse pertencer, embora tudo o que tenha conseguido no final tenham sido mitos de criação e contos sobre Sol e Lua e as filhas destes. Irmãs unidas não pelo sangue, mas sim pelos céus.

A cabana se transformou em uma casa mal assombrada, e apesar de não haver cercas, me sentia como um fantasma flutuando por entre seus limites, aprisionado em um retrato bucólico onde neblina e brisa reinavam. Foi unicamente por esse motivo que me peguei olhando para o céu quando a agressão ultravioleta me recobriu assim que a ínfima mancha de luz solar atravessou o firmamento nublado, aquecendo meu corpo onde me tocava. Ainda havia medo, claro. Sempre há de ter. Medo de abatedouros, e de Deus também. Está tudo bem em sentir, meu pai diria. Era o que ele fazia quando as tempestades do noroeste do pacífico rugiam a ponto de fazer parecer que as janelas da sala de estar de nosso apartamento fossem quebrar. Ele me seguraria enquanto minha mãe cantava para mim uma melodia em alemão, uma escolha de idioma que na época não fazia sentido para mim, mas hoje, posso entender a origem do canto. Der Mond ist aufgegangen. Die goldnen Sternlein prangen. Am Himmel hell und klar.

Foi em uma manhã sem relâmpagos em algum lugar da Alemanha que a garota conseguiu as respostas que tanto buscava. Como se amparada por mãos fantasmas de seus guardiões que já se foram, ela fitou seu novo lar erguido em madeira escura. Através da janela, um jovem envolto em sombra cruzou o olhar com o seu. Assim como a garota, ele mantinha-se imóvel frente os resquícios de uma calmaria estilhaçada. Compreensão emergiu dessa troca, embora ela não soubesse exatamente o porquê. Contudo, havia três coisas das quais a garota sabia.

Primeira: ela era filha não somente de seus pais, mas também de algo maior. Segunda: existiam pessoas que estavam atrás dela, e talvez esse seja o motivo. E terceira: se essas mesmas pessoas foram, de fato, os responsáveis pela desgraça que recaiu sobre a família Randall, a garota não hesitaria em clamar pela brasa do inferno mais ardente para varrê-los da face da Terra. Não porque ela era uma assassina, e também não porque encontraria prazer nisso. De repente, algum refúgio obscuro de seu ser fosse encontrar, mas essa não era a questão. Não.

Ela faria isso, simplesmente porque ninguém seria capaz de pará-la.

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