Luas de Diamante (Volume 1) [...

By luasdediamante

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Katherine Randall tem lutado contra seus próprios fantasmas desde o dia em que foi morar com seu tio Maxwell... More

QUADRO DE AVISOS! (Atualização: 07/04/2024)
Cast
Prólogo
Parte 1 - Fagulhas
Capítulo I - Lua Nova
Capítulo II - Onírica
Capítulo III - Âmbar
Capítulo IV - Garoa
Capítulo V - Declínio
Capítulo VI - Rastros
Capítulo VII - Cinzas
Capítulo VIII - Promessas
Capítulo IX - Regressão
Parte 2 - Cadência
Capítulo XI - E no Princípio...
Capítulo XII - ...Uma Menina Perdida
Capítulo XIII - Umbra
Capítulo XIV - Torrente
Capítulo XV - Vidro Quebrado
Parte 3 - Zênite
Capítulo XVI - Justiceira
Capítulo XVII - Um Conto de Duas Luas
Capítulo XVIII - Ignição
Capítulo XIX - Cicatrizes
Capítulo XX - Reflexos
Capítulo XXI - Peçonha
Capítulo XXII - Weltschmerz
Capítulo XXIII - Maquiavel
Capítulo XXIV - Rainha Branca
Capítulo XXV - Fogo Anda Comigo
Epílogo
Carta de Despedida
Playlist

Capítulo X - Criaturas Noturnas

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By luasdediamante

A cidade dormia sob um luar congelado no tempo.

O Rio East se assemelhava a uma superfície cristalina, marcado por pinceladas suaves e um borrão de luzes e movimento no horizonte que tomava a forma da ponte do Brooklyn. Também havia outros borrões em prédios e na própria rua, mas estes não eram elementos da cidade, e sim do vidro mofado da minha janela. A camada de sujeira tornava a visão turva, desfocada e distante.

Ela não abria há anos. A madeira estava tão podre que eu tinha medo de quebrá-la ao meio ao tentar forçar. Não tínhamos dinheiro para trocar, e também não tínhamos dinheiro para consertar a porta quebrada do armário da cozinha, o problema no ventilador e a mesa do computador. Essa era uma das desvantagens de ser sustentado por uma mãe solteira e ainda por cima professora, enquanto o máximo que você podia fazer era garantir notas boas. Eu queria ajudar Trisha, mas ela fazia parte de seu próprio mundo, passando o dia inteiro no quarto corrigindo provas e preparando planos de aulas sobre genética e bioquímica para alunos que não poderiam se importar menos com aquilo. Desde que podia me lembrar, essa era a imagem que sempre tive dela: uma mulher ocupada demais para se dar conta de que o mundo girava.

Enquanto minha mãe tinha seus problemas, eu tentava resolver os meus. Katherine e Tine não atendiam o telefone de forma alguma, e depois de tentar ligar para cada uma delas ao menos dez vezes em sequência sem obter nenhuma resposta, eu acabei por desisitr, jogando meu celular sobre minha escrivaninha velha e atolada de cadernos e anotações desconexas. Como as duas não atendiam, talvez significasse que estivessem juntas agora, em algum lugar ou em alguma situação onde a comunicação fosse restrita. De qualquer forma, se isso fosse verdade, seria um bom sinal. Desde que estivessem de fato juntas, as coisas ficariam bem. Não existia nada nesse mundo que pudesse parar aquelas duas.

Apesar de meu apartamento não ser lá essas coisas, um dos pontos positivos era a vista. A localização privilegiada possibilitava que um fragmento da Roosevelt Island pudesse ser visto da janela de meu quarto, em meio a águas calmas que me faziam lembrar das vezes em que os pais de Clementine levavam a filha, eu e Katherine para passar um domingo no Brooklyn. Como Trisha dirigia exclusivamente para ir para escola e me buscar, isso foi o mais perto que eu cheguei de participar de viagens em família. Nós dois nunca saíamos da cidade, e sendo sincero, creio que nunca tive vontade. Não tem como sentir falta de uma coisa que você nunca fez. O espírito aventureiro da família Matthews possuiu a minha mãe em sua juventude e morreu antes mesmo de eu nascer, quando a vida adulta e novas responsabilidades a forçaram a plantar os pés nesse bairro, torcendo para que suas raízes pudessem penetrar em estradas de concreto que nunca descansavam. 

Era inevitável. Eu pensava na minha mãe. Em Clementine, e em Katherine. Eu só queria dizer que tudo ficaria bem; talvez para elas, talvez para mim mesmo. Era o que restava quando eu não era capaz de encontrar amparo em fontes convencionais. Contudo, na quietude da noite, meus dedos trêmulos eram a prova de que eu não podia me enganar desse jeito. Eu já vinha fazendo isso há algum tempo, e os efeitos eram cada vez menos potentes. 

Tirei os óculos, deixando suas lentes empoeiradas para trás. Vislumbres de garoas desabando em cidades elétricas, narizes sangrando e incêndios preencheram o anfiteatro de minhas pálpebras, e apesar de estar completamente imóvel em minha cama, era como se eu estivesse sendo puxado para várias direções ao mesmo tempo, a ponto de me ver rompido. Dois dias atrás, a minha maior preocupação era terminar o ano letivo sem quaisquer pendências para que eu pudesse conseguir um emprego e, dessa forma, ajudar minha mãe com as coisas de casa. Uma reforma aqui e ali; nada tão majestoso, mas apenas o suficiente para tornar esse refúgio minimamente aconchegante. Agora, eu me via repensando sobre a vida de uma das pessoas mais próximas de mim, que aparentemente não passou de uma grande mentira sustentada por uma conspiração mais antiga que todos nós. É impossível imaginar o quão difícil deve ser ter que desenterrar algo que ficou para trás mais ou menos uma década atrás. Tirar as memórias do âmbar e colocá-las em movimento mais uma vez. Ao que parece, passados trágicos tinham a chance de proporcionarem uma vida cheia de reviravoltas e revelações. Mas será que isso acontecia com todas as pessoas? Me fiz essa pergunta algumas vezes, e tinha minhas dúvidas.

Ainda estava esperando por alguma mudança.

Não havia sequer uma faixa de luz além da fresta embaixo da porta. Meu quarto estava iluminado parcialmente por um abajur estrategicamente posicionado em uma prateleira da estante dos livros. Eles, em sua maioria, eram histórias fantásticas, parte de uma coleção de uma autora chamada Tiffany Winston. Eu já havia passado noites em claro com aqueles contos, mesmo não lembrando da maior parte de seu conteúdo, principalmente pelo fato de tê-los consumido quando ainda era criança. Desde então, fazia bastante tempo desde que eu li algum volume por inteiro. Para falar a verdade, se alguém me perguntasse agora mesmo sobre aqueles livros, eu não saberia dizer ao certo sobre o que se tratavam. Talvez as experiências de leitura não tenham sido tão marcantes assim, por mais que eu me lembre do tempo em que aqueles livros me fizeram companhia na época em que ainda não tinha nenhum amigo próximo.

Uma das paixões de Trisha era literatura épica de civilizações antigas. Histórias de guerreiros que carregavam fardos mais pesados que montanhas. Suas obras favoritas iam desde o Épico de Gilgamesh até a Edda em prosa e o trabalho de Homero. Tal admiração por esses mitos foi nutrida principalmente por meu pai, um fanático pela cultura mediterrânea. Depois que ele se foi, minha mãe quis honrar seu nome, e foi por meio dos livros e poemas que o legado de Jefferson Matthews foi perpetuado. Eu podia capturar uma fotografia estática do homem que eu nunca conheci cada vez que folheava a coleção particular de minha mãe e via partes dele compostas por um mosaico cujas peças eram encontradas nas páginas e paisagens descritas por aquelas obras. Jefferson mostrava-se em mares límpidos de arquipélagos iônicos ainda não explorados e nos campos inalcançáveis de uma Mesopotâmia que não existia mais. 

A razão para eu não conhecer meu pai biológico é simples. O acidente marítimo que tirou sua vida ocorreu enquanto minha mãe ainda estava grávida. Se eu perguntava sobre ele quando criança, eu não me lembrava. É provável que tenha feito questionamentos básicos, uma vez que eu não devia ter demorado para perceber que algumas das crianças voltavam para casa com o pai depois que nossas aulas acabavam. Contudo, essa singela peculiaridade sobre a minha existência foi uma das inúmeras coisas com as quais aprendi a conviver. A verdade é que não fazia diferença para mim; pelo menos não uma diferença real. Eu não sabia quem ele era, mas minha mãe sim. Se o preço de descobrir mais sobre ele fosse abrir as feridas de Trisha, significava que o esforço simplesmente não valia a pena. Para mim, Jefferson Lee Matthews era um historiador de sucesso e um marido carinhoso que, assim como minha mãe, era munido de um passaporte possuidor de vários carimbos. Eu tentava não pensar muito sobre isso, mas era óbvio que a paixão por viajar que Trisha compartilhava com meu pai morreu junto com ele. Afinal, que graça teria conhecer o mundo se ela estava fadada a fazer isso sozinha? Ela comentara em algumas ocasiões sobre as viagens que Jefferson fazia por lugares históricos da Europa, desde a península Itálica até os jardins de tulipas de Amsterdam. Entretanto, a Grécia sempre foi seu destino favorito, principalmente a costa oeste. De acordo com ela, meu pai era fascinado pelas ilhas de Kefalonia e Zakynthos. Eu não tinha certeza, mas acredito que durante seus estudos na universidade, ele escreveu uma tese sobre a ocupação desses territórios. 

Toda família tem segredos, e este era o nosso. Um pai morto, uma viúva com sintomas severos de burnout e ansiedade crônica e um garoto que se sentia culpado somente por existir, porque isso significava que sua mãe tem de desembolsar o necessário para sustentá-lo. 

Eu nunca contei sobre isso para ninguém, nem mesmo Katherine e Clementine, por mais que suas vidas fossem um livro aberto. Não queria usar de uma tragédia para me destacar ou me sentir especial. Não que Katherine tenha feito isso, mas com ela foi diferente. Ela teve que recomeçar. Eu não sofri a dor da perda, mas o vazio dentro de mim era a prova de que eu sentia falta de alguém que nunca conheci. Esse é o pior tipo de saudades. Obviamente, pelo fato de me conhecerem há tanto tempo, elas estão cientes de que não possuo uma figura paterna, e é claro que houveram perguntas quando éramos mais novos. Eu fazia o meu melhor para explicar, mas não entrava em detalhes. Talvez fosse uma forma de fingir que não aconteceu. 

Sabia que para Trisha era ainda pior. Ela se esforçou ao máximo para cuidar de mim sozinha, e eu tentava compensar isso ajudando nas tarefas de casa e sendo um bom aluno, ou melhor, um bom e atencioso filho. Mas havia um porém. Com o tempo, ela parecia estar se distanciando mais, criando paredes invisíveis que a separavam do resto do mundo. Alguns podem achar que era só estresse por causa do trabalho, mas era algo a mais.

Chega um momento que a dor não cabe mais em você, e por mais que tente esconder, uma hora ela irá transbordar. Eu já podia sentir a tempestade se aproximando. E a culpa disso tudo? O maldito santuário. Não demorou muito até eu me ver esgueirando pelo corredor até o quarto da minha mãe. Abrindo a porta com cuidado, vi que ela havia desabado sobre um encadernado de exercícios e provas intermináveis. A pequena luminária ainda estava acesa. Além da escrivaninha, em cima de uma mesa de canto, lá estava ele. A Odisseia de Lee e Matthews.

Era assim que Trisha chamava a coleção de objetos, fotos e lembranças que a recordava dos momentos felizes que viveu com Jefferson. Logo na frente estava um porta-retratos de uma viagem que fizeram juntos em um cruzeiro pelo mar Egeu. Eu me parecia muito com meu pai; os mesmos cabelos castanhos, as mesmas curvas e feições no rosto, e a mesma miopia que nos fez usar óculos. Trisha era diferente, com as maçãs do rosto bem redondas, sardas, cabelos ruivos escuros e olhos cinzas. Ela dizia para mim, enquanto contava histórias para meu eu de seis anos de idade dormir, que meu pai a comparava com a deusa Afrodite, e raras vezes, com sua equivalente romana, Vênus. Deusas de beleza imensurável, capazes de encantar o mais frio dos corações com sua voz e charme. De acordo com ele, a beleza não possuía uma forma fixa. Ela se reinventava, adquirindo diferentes formas em diferentes pessoas. Alguns tinham um brilho nos olhos que espantava qualquer sombra, por mais densa e persistente que fosse. Outros, um sorriso tão fervoroso que faria você sonhar com nada além de eletricidade e euforia. Também havia pessoas especiais, que possuíam todas essas características de uma vez só. Entretanto, dizia-se que apenas uma única pessoa no mundo poderia enxergar a manifestação dessa beleza, e quando eles se encontravam, nascia dessa união o amor verdadeiro. Um laço de confiança eterna que está destinado a existir além dos limites da vida mortal, até onde os jardins de ambrósia e olivas dos Campos Elísios levassem. Eu me perguntava se meu pai estava lá nesse momento, saboreando um banquete de vinho e romã servido por Hades e as mãos delicadas de Perséfone. Estaria ele antecipando a fadada reunião? Se sim, o que ele diria quando a visse?

Os outros itens da coleção eram réplicas de navios, pulseiras de vidro marinho e colares de conchas que pareciam terem sido feitos a mão. Além de miniaturas de âncoras, estátuas gregas e uma velha bússola que apontava permanentemente para o nordeste, estava um mapa de todos os lugares que já visitaram. Quase todo o Mediterrâneo foi marcado por tachinhas. Outro objeto que se destacava era uma réplica em tamanho real e funcional de uma adaga Xiphos, usada na Grécia Antiga. Reza a lenda que o herói Acateon, treinado pelo centauro Quíron, empunhou uma dessas em suas batalhas. O objeto era talhado em ferro e possuía ornamentos de bronze onde algumas joias viam-se incrustadas.

— Amor, eu não acredito – balbuciou Trisha, em estado de sonolência – O nome do nosso filho não vai ser Perseu, muito menos Dardanos. É assim que crianças sofrem bullying na escola. 

Me virei lentamente para ela. Minha mãe estava no limiar da lucidez, a ponto de entrar em sono profundo, mas parte de mim sabia que lutava contra isso, dado o estado da tarefa na qual havia mergulha há pouco tempo. Ainda restava uma pilha de folhas para ser revisada. A luminária iluminava parcialmente o rosto dela, criando sombras contra as maçãs embaixo dos olhos e a ponta do nariz, conjurando tinturas quase que fosforescentes sobre as bochechas. Sem os óculos, era possível perceber suas feições arredondadas que foram capazes de fazer Jefferson se apaixonar. Mesmo com os cabelos ruivos que geralmente eram usados em um coque feito de qualquer jeito que quase sempre acabava por se desfazer na correria de seu trabalho na escola, ela ainda se parecia com Afrodite. Uma réplica sua, que também poderia facilmente se passar por Vênus, Freyja ou qualquer outra deidade cuja beleza era retratada por textos sagrados.

— Que nome tem em mente? – me abaixei ao seu lado, sussurrando.

— Jonathan. Meu Jonathan – ela sorriu, inconscientemente.

— É um lindo nome.

Eu engoli em seco, sentindo o princípio de alguma coisa em minha garganta. Isso não era justo. Por qual razão minha mãe só poderia experimentar a paz nos momentos em que não estava acordada? Lutei contra a vontade de abrir a janela de seu quarto e gritar para a noite lá fora, exigindo que qualquer deus me respondesse o porquê de coisas ruins acontecerem somente com pessoas que não as mereciam. Segurei sua mão, como se dessa forma as lembranças das gaivotas voando ao amanhecer, o cheiro de maresia e os barcos partindo nos portos sobre os mares cristalinos durassem para sempre. Se ela estivesse sonhando, queria que fosse com Jefferson. Com seus braços a segurando ante a brisa dos últimos dias de verão numa praia em Kefalonia. Com sua voz que apenas ela conhecia a contando histórias fantásticas sobre os povos que nasceram, guerrearam e morreram naquele lugar. Promessas seriam feitas entre as falésias e o sal soprado pelo vento, e se Trisha pudesse acreditar que tudo ficaria bem, talvez eu pudesse me dar a esse luxo também. Somente por hoje. Somente por esta noite.

Eu precisava acreditar.

Dizem que se manter ocupado é a melhor forma de atenuar uma mente em polvorosa. Era por essa razão que nesse momento, em meio a vestígios de uma garoa distante e cheiro de comida de rua, eu me via pedalando minha bicicleta velha que raramente deixava nosso prédio. Minha mãe a havia me dado de aniversário há algum tempo, e como eu tinha parado de crescer depois de ter feito treze anos, não é como se eu ainda não coubesse no assento. Tudo bem que o aspecto velho certamente não era muito atrativo, mas não existia razão para comprar outra se esta ainda funcionava. De acordo com as palavras de Trisha, seria tanto um gasto desnecessário quanto uma comprovação de que seres humanos prezavam estética a funcionalidade. Como amante de coisas antigas, essa era uma opinião imutável de minha mãe. O antiquado também tinha valor.

Devido a falta de prática, manter o equilíbrio das rodas se mostrou um desafio maior do que eu pensei que seria, mas ainda sim menor que a tentativa de equalizar a desordem desenfreada que tomou o controle de meu monólogo interior. Quando eu pensava em Katherine, eu via erupções azuladas e aço frio. O mesmo se aplicava a Clementine, embora ela não estivesse no olho do furacão. Quando as vi pela última vez, nosso refúgio havia sido invadido por um policial do departamento do pai de Tine. Katherine fugira, e deixei Clementine para ver como Lori estava. Só que havia um detalhe nessa história: eu não havia feito isso quando fui embora da residência dos Howard. Outro detalhe importante era que eu também não sabia o porquê de ter feito essa escolha. Talvez tenha sido o sangramento nasal, o fiasco com Amanda no casarão ou o que veio depois disso. De qualquer forma, eu não consegui encarar Lori nas horas que seguiram o incêndio. Parte de mim dizia que se devia ao fato de eu ser incapaz de proporcionar o conforto o qual me vi obrigado a fornecer para alguém que se encontrava na posição dela. Uma espectadora, pega no fogo cruzado por estar na hora errada no lugar errado. Algo capaz de ter sido evitado, mas por uma ironia cósmica ou um capricho de um criador malevolente, acabou por se tornar uma casualidade em meio a inúmeras que ainda podem ocorrer.

Eu sou alguém que gosta de ter soluções, e quando não as possuo, me vejo forçado a tê-las em mãos antes de admitir meu fracasso. O que eu deveria dizer para Lori? É simples. Nada. Omissão proposital até que tudo seja solucionado. Assim que tiver certeza de que Katherine e Clementine estão seguras, eu falarei para ela que não há nada com o que se preocupar.

Me manter ocupado. Era tudo o que eu precisava fazer até lá. Isso, e torcer para que ela estivesse fazendo o mesmo, de sua própria maneira.

Após alguns minutos pedalando a esmo, finalmente passei a ter um destino em mente. Depois de curvar breves sucessões de esquinas, encostei na elevação de concreto que levava até um dos meus lugares favoritos da cidade: uma aconchegante biblioteca que servia um dos melhores cafés espresso que eu já tomei em toda a minha vida, e provavelmente um dos melhores de toda Manhattan. Como eu podia saber disso? Bem, Katherine é de longe a mais bem entendida no departamento do café, e já fomos aqui algumas vezes. Em todas as ocasiões, sua avaliação foi de cinco estrelas. Foi assim que soube que pude confiar nesses grãos. Mesmo assim, não pude evitar a não ser falhar em sentir o aconchego que essas quatro paredes inúmeras vezes já proporcionaram, uma vez que ela não estava aqui e eu não fazia ideia de onde encontrá-la. Eu via pós-imagens da garota loira que sempre andava de moletom e tênis surrados entrando na fila sem ao menos conferir o menu, pois seu pedido nunca sofria alterações: preto, sem açúcar. Preto como meia noite em uma noite sem Lua, alguns até poderiam dizer.

Naquele instante, pensei em pedir a mesma coisa, mas não antes de tirar o celular do bolso mais uma vez e tentar ligar para Katherine de novo. Caixa postal, novamente. Praguejei em silêncio, ainda olhando para a tela, e foi por isso que não me dei conta da pessoa que se aproximava enquanto eu fazia meu caminho em direção ao balcão.

— John? O que tá fazendo aqui essa hora?

Levantei o olhar, me deparando com Lori. Por uma fração de segundo, eu a confundi com Katherine, dada a expressão cansada e o fato de seu cabelo não estar mais preso em um rabo de cavalo, mas sim caindo em torno do rosto redondo. Lorine vestia um casaco cinza e calças esportivas longas de algodão, e portava uma linguagem corporal fatigada. Por acaso... ela estava treinando em casa? Seria essa a sua forma de se manter ocupada?

— O que você tá fazendo aqui? – rebati, pego de surpresa.

Ela deu de ombros, fazendo sua atenção correr pelas pessoas presentes na biblioteca e também pelos nomes e preços de bebidas da cafeteria.

— Não é o único que faz passeios noturnos, pelo jeito - disse ela, enquanto retraía uma das cadeiras de uma mesa para se sentar – Mas, aproveitando que está aqui... alguma razão específica para ter ignorado todas as minhas mensagens e ligações nas últimas horas?

Naquele instante, eu pesava cada uma de minhas opções, e após realizar um rápido cálculo, cheguei a simples conclusão de que me manter em silêncio seria a abordagem mais sábia.

É claro que Lori não gostou nem um pouco.

— Para com isso – exigiu a garota, num tom firme – Eu vi o noticiário. Todo mundo viu. Só se fala disso nos grupos da turma e do time da escola.

— Eu não sei o que aconteceu – falei a verdade. Eu de fato não fazia ideia do que tinha acontecido, pois aquilo não foi um incêndio que ocorreu em condições normais – Tenho tentado falar com ela, e com Tine também. Nenhuma das duas deu sinal de vida.

Isso poderia ser considerado uma mentira? Não. Foi apenas uma omissão, por escolha. Eu escolhi não contar sobre o encontro que tivemos na casa dos Howard depois do acidente e sobre o policial que estava atrás de Katherine. Lori não deveria ter que se preocupar com essas coisas.

— O que vamos fazer agora? – ao que parece, a ausência de rumos a serem tomadas não era um obstáculo para a garota dos cabelos platinados.

— O quê? Lori, isso... isso não é algo que a gente simplesmente possa fazer!

— Mas a família no casarão... Amanda e a mãe dela...

— Elas iriam nos prender caso algo desse errado, ou pior. Nós tivemos sorte. Foi apenas isso. Sorte.

Um dos funcionários havia aparecido com o pedido de Lori, que ela aparentemente havia feito antes da minha chegada: um copo quente de café com leite com infusão de caramelo. Ela sequer desviou sua atenção para o copo enquanto me fitava, como se eu tivesse acabado de sugerir o impossível.

— Então é isso? – indagou – Vamos para a aula amanhã e nos preocupar com a próxima prova que está por vir? Você vai estudar história ou álgebra linear enquanto eu me encarrego da decoração da festa de Halloween?

— Não parece tão ruim.

Lori realizou um gesto abrupto, como se quisesse levantar. Porém, ela se interrompeu no meio da ação, se contentando apenas em segurar o copo entre dedos firmes e imóveis.

— E depois? A polícia assume o caso e conduz sessões de interrogação com cada um de nós? Com você? Com os nossos pais?!

De repente, o aroma do café não parecia mais tão convidativo.

— Não foi isso que eu disse – um suspiro fundo, imbuído em cansaço e, acima de tudo, impotência – É só que... tem pessoas cuidando disso. Agora mesmo. É tudo o que eu sei. A última coisa que nós temos que fazer é nos meter ainda mais fundo nessa loucura.

Isso não pareceu convencê-la. Posso não conhecer Lorine Watson muito bem, mas todos sabiam o quão cabeça dura ela era. Uma garota cuja obstinação fora a responsável por, literalmente, colocá-la no topo de uma pirâmide. Era preciso mais do que promessas vazias para fazê-la acreditar em algo sem evidências concretas.

Esse era o problema. Debaixo do fantasma de uma chuva torrencial, eu não possuía nada além de promessas vazias.

— Confia em mim. Você... você não pode se perder no meio disso tudo.

Lori arqueou uma sobrancelha.

— E quanto a você?

Isso não importava, pensei.

— Eu nem sei mais o que eu tô fazendo. Só... tentando continuar, eu acho.

— Quer minha opinião? – perguntou Lori, sem a intenção de me dar tempo de responder – Pra alguém que quer que os outros sigam em frente, você tá dando um exemplo terrível.

Eu pensei em rir. Curiosamente, parte de mim achou aquilo engraçado.

— Tem algo que quer me dizer? Algum conselho inigualável dotado de sabedoria?

— Na verdade, tenho sim – ela deu de ombros – Vá para a festa de Halloween. O tempo que falta é o suficiente para você se preocupar com arrumar alguém para ser o seu par.

Dessa vez, não consegui segurar. Uma risada abafada e ligeiramente surpresa preencheu o ar tímido do interior do recinto.

— Isso é sério? – indaguei – Pra você pode ser fácil, mas isso não se aplica a todas as pessaos também.

— Eu... eu não... – Lori se interrompeu, sacudindo a cabeça ao perceber que talvez não devesse ter dito o que acabara de falar.

Levantei a sobrancelha, curioso.

— Ah, entendi. Você ficou ocupada demais com a decoração para pensar em conseguir um par.

— Não é como se eu tivesse tido alguma escolha – confessou ela.

— Todas as suas opções estavam indisponíveis?

Naquele instante, o leve barulho da garoa se transformou em ruído branco ao se mostrar presente nas ruas elétricas do lado de fora. O cheiro de chuva misturava-se com aroma de grãos de café torrados e de sanduíches grelhados que estavam sendo preparados atrás do balcão. Ao olhar para Lori, percebi que assim como eu fizera antes, ela estava medindo suas opções. Apesar de nos conhecermos há anos, creio que nunca ficamos tão próximos como estamos agora nesse dia que parece nunca acabar. Que fragmentos de sua história ela estaria disposta a compartilhar com um conhecido que agora se encontrava abaixo de um holofote recém-colocado?

Uma opção, na verdade – disse Lori, por fim – Mas Rebecca já colocou as mãos nele.

— Van Hart?! Charles Van Hart?

— Eu sei o quão clichê isso parece. Não precisa me dizer.

— Quer dizer... eu me lembro de vocês dois. Quando eram melhores amigos na oitava série. Não é como se fosse algo inesperado e completamente aleatório.

Lori apenas suspirou, e vi que ela evitava olhar diretamente para mim.

— Isso já faz três anos. A gente meio que parou de se falar quando ele entrou para o time e eu para a equipe de torcida. Compromissos diferentes, horários diferentes... essas coisas...

Algo me dizia que Lori queria falar mais alguma coisa. Outro fator que havia contribuído para tal afastamento. Apesar dela não ter dito nada, era evidente que tinha a ver com o fato de Rebecca ter se matriculado no Manhattan High no ano seguinte. Se realmente fosse esse o caso, a situação tornava-se ainda mais complicada, pois não se tratava mais de um garoto que fora chamado primeiro para ser o par de alguém. Era claro que Lori tinha suspeitas, e ela costumava não estar errada quando o assunto era ler as motivações dos outros.

— Mas você acha que os dois...? – eu não precisei terminar minha pergunta para ela perceber o que eu queria insinuar com tal afirmação.

Lori virou metade de seu café de uma única vez. Pensei em pedir algo, mas a última coisa que eu sentia agora era sede ou fome. Minha única necessidade era respirar um ar que não fosse proveniente de meu apartamento.

— Não – disse ela – Pelo menos eu não achava, até hoje de noite.

Minha expressão confusa exigia uma explicação. Lori não tardou em tirar o celular do bolso, enquanto agarrava seu copo com a outra mão. O conteúdo estava quase no fim.

— Mal tive tempo de ver as mensagens do grupo das meninas por conta de tudo o que aconteceu hoje – falou, ao mesmo tempo em que corria seu dedo pela tela do aparelho, como se procurasse algo em especial – Parece que depois que as aulas foram canceladas por causa do apagão, um dos meninos do time cedeu o apartamento para uma festa improvisada. A maioria das líderes foi, e Rebecca também, porque Charles a chamou.

— O que aconteceu? – perguntei, ciente de que talvez não gostasse da resposta.

Em vez de entrar em detalhes, Lori apenas virou o celular para mim. Me deparei com um vídeo sendo reproduzido. Inicialmente, a câmera estava focada no rosto de Clara, uma das colegas de equipe de Lori. Ela estava no meio de um grande grupo, e pude reconhecer as outras líderes de torcida e alguns dos jogadores ao fundo, ocupando a sala de estar espaçosa do anfitrião. Estava um pouco escuro, mas consegui enxergar um tufo de cabelos ruivos e ao lado deles, uma menina de lábios escarlates e cascatas onduladas da cor de castanho escuro. De repente, um conjunto de sons criou vida quando todos os garotos deram início a um coro, e em questão de segundos, Charles foi empurrado na direção de Rebecca, que o recebeu ao tomá-lo inteiramente para si quando jogou seus braços por trás do pescoço do jogador. Charles a beijou vorazmente enquanto ela agarrava a parte de trás de sua jaqueta, se esforçando ao máximo para reduzir o espaço entre os dois. Qualquer calmaria na sala de estar desapareceu quando o vídeo explodiu em uma sequência indistinguível de brados e gritos de comemoração partindo tanto do time de futebol quanto das meninas. A filmagem chegou ao fim quando o capitão se aproximou da câmera e gritou, o que fez com que a pessoa que estivesse gravando apontasse para o chão de forma abrupta.

Por mais que quisesse dizer alguma coisa, eu me vi sem palavras. Lori apenas guardou o celular, inexpressiva. A esse ponto, ela já havia terminado o café com caramelo.

— As meninas disseram que a única razão pela qual ele pediu para ser o par de Rebecca foi por conta de uma aposta que os outros garotos do time fizeram com ele – falou Lori – Alguma coisa a ver com eles pagarem a passagem de avião para ele poder visitar a família nas férias de Ação de Graças. É claro, isso deve ter sido mais um incentivo do que qualquer outra coisa. Era só uma questão de tempo até alguém dar o primeiro passo, e como deu pra ver, parece que ele foi dado.

— Talvez isso não queira dizer nada – me senti na obrigação de confortá-la, pois era a única coisa que eu estava em condições de fazer naquele momento – Adolescentes idiotas fazem coisas idiotas em festas, ainda mais quando bebida está envolvida.

— Não é sobre dizer alguma coisa – Lori retrucou – É o que significa pra mim. Eu não sei como explicar, e também não sei se você entenderia.

Por que eu não entenderia? Esse foi o pensamento que tive ao ouvir suas palavras. Sou estranho do amor, mas o enxerguei de perto. Morava sob o mesmo teto que uma mulher que amou como Aquiles amou Pátroclo, e eu tinha a chance de ver tal amor de perto toda vez que fitava a coleção de objetos no santuário que minha mãe havia montado em nossa casa. Em outra vida, ela e Jefferson teriam se conhecido na infância e brincado de esconde-esconde em cachoeiras. Eles cresceriam juntos, lutariam juntos e desejariam que todos os gregos morressem para que pudessem conquistar Troia sozinhos.

— Acredite em mim – aquele foi o meu pedido – Eu entendo.

Por poucos instantes, o silêncio havia se instaurado. Parte dos clientes fora embora, e imediatamente pensei que seria melhor voltar para casa. Porém, qualquer capacidade de raciocínio lógico que eu possuía me abandonou quando o toque de meu celular me fez pular da cadeira. Com mãos trêmulas, observei o nome de Tine no identificador de chamada, e a única coisa que pude fazer foi levar da cadeira como se minha vida dependesse disso.

— Pelo amor de Deus, onde você tá?! Onde vocês estão? – eu me assustei com o tom desesperado de minha própria voz – Como foi que... espera, onde?!

Parei de falar quando fui interrompido por uma voz ainda mais desesperada que a minha. Lori percebeu minha palidez, e se prontificou em jogar o copo fora e ir atrás de mim.

— Na casa de Penelope? Mas... como? – eu a interrogava – E quanto a Katherine?!

— John? O que houve? – a linguagem corporal de Lori denunciava que eu e Tine não éramos os únicos inquietos. Ela já havia colocado a alça da bolsa esportiva nos ombros, pronta para ir.

Eu prestava atenção em cada palavra apressada que Tine dizia ao telefone, e não pude evitar a não ser ficar mais ansioso e preocupado a cada segundo que se passava.

— Tudo bem. Só fica escondida por enquanto, e por favor não faça nada idiota.

Ela encerrou a ligação, e Lori se virou para mim buscando por qualquer explicação sobre o que diabos acabou de acontecer.

— Katherine está bem. Longe daqui, mas bem – eu contei – Mas quanto a Tine... ela acabou voltando para a cidade para procurar algo na casa de Penelope.

— Por que ela faria isso?

— Eu não sei, mas pareceu importante – sem pensar, corri até a porta onde a garoa ainda despencava do lado de fora, com Lori logo atrás de mim – Ela disse que tem quase certeza que foi seguida, e acabou se trancando lá dentro por causa disso, com medo de alguém entrar.

Essa certamente foi a última coisa que Lori pensou que ouviria.

— Seguida? Como assim seguida? Chame a polícia! O pai dela não é chefe do departamento?!

— Não – foi uma resposta instantânea, em parte porque explicar para Robert Howard a sequência de eventos que levou sua filha até onde ela estava agora seria de longe a coisa mais difícil que qualquer um de nós teria de fazer hoje, e também porque eu não queria arriscar que o agente Madden abordasse Tine novamente – A comissão das líderes de torcida tem acesso a todas as fichas das alunas da escola, não é?

O semblante de Lori assumiu um ar visível de confusão.

— Sim, mas... o que isso tem a ver?!

— Amanda fez a matrícula. O celular pessoal dela deve estar lá.

De alguma forma, a confusão piorou. Agora, ela estava acompanhada por uma máscara de alerta. Como se cada célula de Lorine gritasse que isso era uma péssima ideia.

— Você quer pedir ajuda pra um deles? Não foi você que acabou de dizer que tivemos sorte de não termos sido presos?!

— Eu sei disso. Sei que é um risco – afirmei, por mais contraditório que fosse – Nós mentimos pra ela, e aquilo certamente não foi uma primeira boa impressão. Mas se Tine foi mesmo seguida por alguém daquele mundo, ela é a pessoa mais adequada pra lidar com isso.

Desde que cometemos invasão de propriedade depois da aula, eu não consegui parar de pensar no ocorrido. A mãe de Amanda pode ter nos repreendido quando viu através da farsa, mas ela não pareceu se importar em nos deixar entrar. Se houvesse qualquer motivo bondoso por trás daquele gesto, eu escolheria acreditar que ela faria algo assim de novo. Eu não era tão bom quanto Lori em decifrar pessoas, mas algo dentro de mim dizia que podíamos confiar na garota de cabelos pintados de fogo.

— Certo – Lori concordou, por fim – Vou procurar os documentos.

Dei espaço para ela revirar os arquivos do celular em busca da ficha. Tão fugaz quanto fora seu início, a garoa também chegou ao fim, deixando para trás ruas asfaltadas dotadas de poças e uma camada reflexiva de água que era colorida de amarelo elétrico pela ação dos postes ao nosso redor. Não demorou muito até que Lori encontrasse a papelada digital na forma de um formulário acadêmico com um nome em negrito logo no começo. Meus olhos corriam pela ficha de Amanda Claire Norton, que ostentava uma foto 3x4 antiga onde, em vez de cabelos tingidos e curtos, a garota possuía um corte simples e castanho indo até os ombros. Quando enfim encontrei seu número de celular, foi apenas uma questão de segundos até levar meu aparelho ao ouvido e torcer para que a pessoa do outro lado não estivesse dormindo e atendesse.

— Alô? Amanda? Alô?! – eu exclamei assim que a outra linha atendeu, porém, após um intervalo ter se passado; tempo esse que deveria ter sido o quanto ela demorou até ter reconhecido minha voz, ela simplesmente desligou na minha cara sem ao menos dizer uma única palavra – Droga!

Sem reforços então. Determinado, fui até onde havia deixado minha bicicleta, somente para me dar conta de que Lori se colocou ao meu lado, me ajudando a tirar o lacre.

— Não começa – disse ela – Eu vou também. Não importa o que você diga.

E com isso, nós dois nos entregamos para uma noite fria embebida em memórias de chuva.

O assento era grande o suficiente para nós dois, mas isso não significava que a viagem seria confortável. Lori havia se espremido atrás de mim, e me esforcei para comportar meu peso de forma que o ato de pedalar não se tornasse mais exaustivo ainda. A bicicleta deslizava por asfalto molhado, e a única razão de eu não estar indo mais rápido se devia ao medo de tombar ante a força exercida por duas pessoas sobre o humilde meio de transporte.

A casa de Penelope ficava relativamente perto, segundo o endereço que Tine havia me mandado por mensagem de texto. Uma residência localizada entre um sobradinho de tijolos e um apartamento convencional. Eu prestava atenção no caminho à medida que chegávamos mais perto, me atentando aos números presentes nas fachadas. Nessa parte do bairro, a quantidade de árvores duplicava, e não era difícil notar a presença de tapetes de folhas caídas no chão. Quando finalmente dobramos a esquina, eu percebi. Uma fonte de luz inicialmente distante que assumia padrões quase caleidoscópicos ao confrontar a intensidade do fulgor amarelo projetado pelos postes. No fim da rua, mosaicos vermelhos e azuis mostravam-se na forma de sirenes de polícia silenciosas, porém nem um pouco discretas. Fiz sinal para Lori, e ela desceu enquanto eu encostava a bicicleta. Nós dois corremos até o aglomerado de oficiais ao longe. Quando estávamos por fim perto o suficiente para ver seus rostos, reconheci Robert e o agente Madden em meio ao grupo. Meus olhos também corriam pelo ambiente, e ao fitar a janela de uma das viaturas estacionadas, pensei ter visto um rosto me encarando através do vidro.

O pai de Tine olhou para trás, dispensando o policial com quem conversava ao se virar para nós.

— John! – nos cumprimentamos com um aperto de mão que não soube ao certo como receber. De alguma forma, ele não parecia surpreso com a minha presença – Como vai a sua mãe? Faz tempo desde a última vez que nos vimos.

— Ela tá bem – tentei ver além dele, mirando a figura por trás da janela – O que houve aqui?

Robert somente percebeu depois de alguns segundos que Lori também estava comigo. Ele acenou a cabeça para ela, e se deu licença ao me puxar um pouco para longe.

— Eu sei que todos estão arrasados pelo o que aconteceu pela manhã. Eu também estou – disse, com um tom solene e ao mesmo tempo profissional – Maxwell era uma boa pessoa, disso eu tenho certeza. Você sabe que eu levo meu trabalho a sério, e quero fazer o bem para essa cidade. Mas quando vejo que minha filha está agindo estranho, sei que tem alguma coisa que ela não está me contando. Algo entre vocês, e isso inclui a menina Randall.

Engoli em seco, e fiz a primeira coisa que meus instintos mandaram.

— Katherine sumiu – menti – Estamos tentando achá-la desde o acidente.

— Sim. Eu sei disso. Eu deixei o agente Madden encarregado do caso – Robert apontou de soslaio para Scott, que falava ao rádio com alguém – Ele acabou de ser transferido para o departamento, e provou ser um oficial determinado e com vontade de fazer a diferença. Acredite em mim quando digo que é um jovem promissor que quer tornar Manhattan mais segura. Nós não mediremos esforços para encontrá-la. Isso eu posso garantir.

Então Tine estava certa. Seu pai mandou Scott investigar o incêndio. Não querendo duvidar de suas capacidades em sua área de trabalho, mas a forma com que lidou com a situação ao forçar sua entrada na residência dos Howard me fez ficar com um pé atrás. 

— Agora, aproveitando que está aqui... – ele colocou a mão em meu ombro, e diminuiu seu tom de voz – Um garoto inteligente como você saberia me dizer o que minha filha estava fazendo em uma área de interesse investigativo, como a casa da senhora Lynn, horas depois de seu cônjuge ter sido vítima de um acidente fatal e de sua sobrinha ser dada como desaparecida?

As engrenagens do meu cérebro deram partida em velocidade máxima, pensando se eu devia confiar nele ou esconder a verdade. Lori concordaria com isso? O que Clementine pensaria? Eu gostava de acreditar que seu pai era um homem razoável, e foi por conta dessa fé que optei por dizer o que pensei que se tratava da verdade. Tine pode não ter me contado, mas dado o seu histórico de sempre saber onde eu e Katherine estávamos, não era muito difícil de imaginar o que ela veio fazer aqui. 

— Estávamos tentando encontrar Katherine por meio do computador de Penelope. Rastreá-la, de alguma forma. Pensávamos que de repente encontraríamos algo em um e-mail, ou que talvez ela tivesse passado por aqui depois que tudo aconteceu. 

Robert me encarou por longos instantes, e com isso, entrei em desespero com a possibilidade de eu ter dito algo que não devia. Contudo, ele apenas me parabenizou.

— Inteligente. Muito inteligente – disse ele – Mas ainda assim irresponsável, e ainda se configura como invasão de propriedade, dado que a senhora Lynn não estava em casa, e tenho razões suficientes para acreditar que nenhum de vocês possuía a chave. 

Pensei em dizer algo. Robert apenas deixou escapar um suspiro cansado, colocando as mãos nos quadris. Mal podia imaginar o quão exausto ele estava depois de passar um dia inteiro na delegacia lidando com a pressão de tudo o que aconteceu nas últimas horas.

— Olha, garoto... eu entendo – lá estava ele; o tom calmo que a maioria esmagadora dos policias parecia ser incapaz de demonstrar – Querem fazer algo por uma pessoa próxima de vocês. Sei que nos filmes que assistem nós somos retratados como incompetentes que não sabem fazer o próprio trabalho, e por causa disso, acaba sobrando para as crianças o peso de ter que resolver a bagunça. Mas esse é o mundo real. A única coisa que vocês vão conseguir caso se metam na linha de frente é se colocar em perigo. Não precisamos de mais tristeza por aqui. Os céus já choraram tudo o que tinham para chorar. 

— Sei que estão se esforçando – tentei mais uma vez olhar disfarçadamente para a janela do carro em que pensei ter visto alguém, mas tive medo de romper o contato visual com Robert – E eu não poderia estar mais grato. Também sei o quanto Katherine é importante para a sua família. Vocês foram os primeiros em quem ela realmente confiou.

— É por isso que vou trazê-la de volta – disse, dando um tapinha em meu ombro – Fiquem na linha enquanto isso. Sei que você nunca foi de arrumar encrenca, então agradeceria se colocasse um pouco de senso na cabeça da minha filha também. Só Deus sabe como ela deve estar lidando com isso tudo.

Concordei com a cabeça, mas não fiz promessas em voz alta. Algo me dizia que eu não seria capaz de cumpri-las. 

— A propósito – Robert apontou para sua viatura – Quer uma carona pra casa? Só temos que fechar o relatório do turno. Não deve demorar muito.

— Tudo bem. Eu agradeço.

Ele me deixou, voltando para o grupo de oficiais. Eu retornei para onde Lori estava, que não tardou em me perguntar sobre o que Robert havia dito. Como ele não entrou em detalhes, eu também não pude fazer isso. A única coisa da qual eu tinha certeza era de que Tine estava bem, uma vez que isso fora denunciado pela calma com a qual seu pai se portava.

— Acho que isso é tudo por hoje – eu disse, tirando o celular do bolso somente para me dar conta do quão tarde estava ficando – Obrigado de verdade. Por ter vindo até aqui e tudo mais.

— Não precisa agradecer.

— Eu voltar voltar de carro. Pode levar a minha bicicleta e devolvê-la amanhã se quiser.

— Tem certeza? – Lori perguntou – Faz tempo que não ando. Não quero acabar destroçando-a em algum poste ou em um carro estacionado.

Uma risada fugaz. Ela brilhou entre luzes azuis e vermelhas.

— Seria uma ótima desculpa para eu finalmente comprar uma nova. 

E com isso, ela foi embora, pedalando para longe da congregação de sirenes e em direção a uma merecida noite de sono, ou pelo menos era isso o que eu esperava. Quando Robert retornou, ele me acompanhou até o último carro estacionado no meio-fio, o mesmo que eu me peguei olhando diversas vezes para confirmar minhas suspeitas acerca da figura no banco de trás.

Eu não estava delirando. Realmente havia alguém lá, e esse alguém era Tine. Ela estava olhando para o retrato da rua através da janela, e não demorou até que percebesse a minha presença assim que abri a porta ao seu lado.

— Oi – ela murmurou, se virando de volta para a janela assim que eu me sentei.

— Oi? Como assim oi?! – gesticulei agressivamente, apesar dos meus braços não poderem se movimentar com tanta liberdade no espaço apertado – O que diabos aconteceu aqui?!

— Um enorme mal entendido. Meu pai estava fazendo o turno da noite por aqui, e deve ter me visto entrando. Eu entrei em pânico quando ouvi a porta abrir, pensando que o mesmo cara que nos encurralou mais cedo havia me seguido, de alguma forma. Agora ele acha que eu tenho algum tipo de transtorno por pensar que tem alguém querendo me matar. Bem legal, não é?

— Cara? Mas que cara? – aparentemente, havia detalhes sobre os quais eu ainda não estava ciente – Quer saber? Não importa. Pode me contar tudo depois. Mas você conseguiu encontrar  algo lá dentro, pelo menos? Afinal, o que você foi fazer na casa da tia dela?!

— Katherine me pediu para dar uma geral no computador de Penelope – disse Tine, como se isso se tratasse de um pedido comum – Ela tem razões para acreditar que ela está envolvida nisso tudo de algum jeito, e para falar a verdade, também comecei a ter minhas suspeitas.

Ela me mostrou o celular, e me deparei com uma foto que havia tirado da tela do computador, evidenciando o recibo de passagens aéreas e ferroviárias. Ao que parecia, Penelope havia desembolsado um voo para a Stuttgart, na Alemanha, assim como uma integração com uma viagem de trem para a cidade de Freiburg, a três horas de distância. Como se isso já não fosse confuso o suficiente, Tine não tardou em narrar superficialmente o que havia acontecido desde que nos separamos quando deixamos sua casa. Ela começou a contar, enquanto seu pai não voltava para o carro. Eu ouvia histórias de felinos que corriam entre sombras e de passagens escondidas nas rachaduras de pontes. À medida que ela falava, eu via imagens em minha mente. Uma toca do coelho debaixo dos narizes de todos nós, cuja combinação para entrar encontrava-se no fogo presente em joias raras. Matas tortuosas, cujas raízes fincavam-se na névoa e protegiam um refúgio caloroso de madeira e chás fortes. Era lá que Katherine repousava agora. Longe de casa, mas exatamente onde deveria estar.

— Então... Penelope – eu ainda tinha dificuldade para assimilar tudo o que fora dito – Vocês acham que ela sabe disso? Que Maxwell a contou sobre eles?

— A única coisa que eu acho é que não posso ter certeza de nada – admitiu ela – Katherine é quem a conhece melhor, e mesmo assim, ela ainda vê Penelope como um enigma.

— Eu não acho que Maxwell confiaria nela a esse ponto – ponderei, e Tine voltou sua atenção para mim – E faz sentido ele querer manter distância de tudo isso. Quer dizer... ele criou a sobrinha por conta própria por anos. Nessa situação, eu também iria querer dar uma vida normal para ela. No final das contas, ele só devia estar querendo protegê-la. 

Meus pensamentos retornaram ao beco em que eu e Lori vimos Maxwell e Melinda em uma discussão fervorosa momentos antes do incêndio. Eu não havia parado para pensar, mas saber que nós fomos umas das últimas pessoas a vê-lo ainda vivo era algo ainda incompreensível. Minha mãe costumava dizer que a calamidade, tal como águas tempestuosas e agitadas no Mediterrâneo, acontece quando menos esperávamos. Agora, acreditava ser conveniente dizer que eu estava navegando bem no meio de uma tormenta.

— Não sei – falou Tine, pensativa – Sei que falo como alguém de fora, mas sempre o vi como uma pessoa distante. Quando eles vieram para cá, a polícia teve de fichá-lo para poder firmar um contrato com a imobiliária responsável pelo lugar em que eles iam morar, ou alguma coisa assim. Eu não faço a menor ideia de como essa burocracia toda de checagem de antecedentes funciona, mas sei que existe um documento sobre a família Randall enfiado em alguma pasta nos arquivos da delegacia. Pode ser útil para nós.

— Teria como você pedir para seu pai procurar? – perguntei 

— Isso tá fora da alçada dele – ela sacudiu a cabeça – Robert pode ser chefe de departamento, mas não tem autoridade total. Deve levar um tempo até a requisição ser expedida. 

— Vamos ter que pensar em outra coisa, então.

Clementine olhava fixamente para o assento na sua frente. Ela tinha esses lapsos de atenção quando colocava sua cabeça para pensar em apenas um único objetivo. Se eu me esforçasse, podiam ver as peças do quebra-cabeça se juntando com o mínimo de esforço.

— Robert não tem autoridade, e eu também não – disse ela – Mas eu não preciso.

Por acaso... ela estava pensando em invadir os arquivos?! Minha resposta imediata foi a de repreendê-la, mas a porta da frente se abriu antes que eu pudesse falar qualquer coisa. Robert assumiu o volante, seu rosto sendo colorido por tons de vermelho e azul que alternavam entre si. Não demorou até darmos partida, pneus cantando sobre asfalto encharcado. A última coisa que ouvi antes de me render ao silêncio de uma Manhattan que queria dormir foi um comentário casual do pai de Tine sobre a possibilidade de dar um aumento a Scott.

Meus pés encontraram a calçada úmida quando desci da viatura e me despedi dos Howard. Tine acenou para mim com a cabeça por trás do vidro fosco, antes do carro dar partida novamente e desaparecer na noite elétrica e prestes a se tornar distante ao dobrar uma esquina.

Realizei o trajeto da porta da frente até o segundo lance de escadas sem ao menos olhar para onde eu estava indo. Nosso apartamento ficava no final de um corredor, onde além da varanda comum, uma parede inalcançável de vidro apresentava uma visão distorcida do subúrbio, diferente da vista panorâmica do meu quarto. Pendurei minha jaqueta molhada no gancho da parede depois de trancar a porta com duas voltas na chave, como sempre fora me ensinado. A porta do quarto de Trisha, entre um sofá coberto por estampas de flores silvestres e uma mesinha de canto, estava fechada, sem sequer apresentar a pequena fresta que deixei ao sair. Ela provavelmente havia acordado sobre a pilha de tarefas e, após ter se preparado de fato, voltou a dormir. 

Mandei uma mensagem rápida para Lori, me desculpando pela confusão repentina na qual ela foi envolvida. Não aguardei por uma resposta para voltar para o aparente conforto do meu quarto. Estava prestes a me jogar na cama sem ao menos trocar de roupa, mas a visão de um prato de ovos mexidos e um copo de suco natural me fez parar no meio do caminho. Ao chegar perto, notei que a comida ainda estava quente e recoberta de flocos de orégano e pimenta. Minha mãe estava cozinhando para mim enquanto eu estava fora.

Eu queria agradecê-la, e não só pela comida. Eu queria abraçá-la, não por ter se preocupado comigo agora, mas por sempre querer o melhor para mim mesmo quando não podia fazê-lo ou quando eu não me achava merecedor de tal. Naquele instante, quis voltar para as ruas somente para correr sob as nuvens e amaldiçoar os céus. Seria tudo tão fácil se Jefferson estivesse aqui. Não digo isso pois sinto falta dele, pois o derradeiro fato é que não sinto. Não fui eu quem conheceu sua voz, seu cheiro e seus sonhos. Eu não fui aquele a quem ele fez promessas de viajar pelo mundo e construir uma pequena casa em cada lugar especial pelo qual passássemos. Eu queria que ele estivesse aqui não para que eu pudesse ter um pai, mas sim para que Trisha pudesse chamá-lo de marido mais uma vez.

Me forçando a colocar os pensamentos no lugar, logo me vi dando a primeira mordida na refeição noturna. Porém, fui interrompido pela vibração de meu celular quando ele começou a tocar. Dessa vez, era o nome de Lori que apareceu na tela. 

— Oi – foi o que eu disse ao me sentar na cadeira giratória do computador – Desculpa. De novo.

— Tudo bem. Pelo menos a sua bicicleta sobreviveu a viagem. Mas me diz... tem certeza que tudo está bem?

— Sim, a Tine só está meio... quer dizer, nós estamos um pouco abalados com tudo. Acho que não tem como não ficar. 

Seguir em frente. Foi isso que nós havíamos falado na biblioteca, não? São pequenos passos, que no final se tornam parte de uma longa caminhada. O primeiro é sempre o mais difícil.

— Então – um suspiro, carregado de antecipação – Você vai para o treino amanhã, não é?

— O quê? Eu... quer dizer, eu não sei...

— Isso é sobre ele? – indaguei – Porque ele vai estar lá. Se for por causa disso...

— Não – Lori me cortou antes que eu pudesse terminar de falar – Não tem nada a ver com Charles. Nem com Rebecca. Eu... eu só...

— Tudo bem – eu disse, me atentando a silhueta da sombra conjurada pelo brilho do meu celular na mesa do computador. Engolindo em seco, me peguei hesitando antes de voltar a falar novamente – E se eu estiver lá? Você faria isso por mim?

— John... – sua voz cansada era indecifrável do outro lado da linha.

Normalidade. Uma promessa simples e ao mesmo tempo intrincada demais para tornar-se viável. Me perguntava se veríamos a garoa sem nos lembrar da estática. 

— Você faria isso? – eu insisti.

E então ela desligou.

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