Luas de Diamante (Volume 1) [...

By luasdediamante

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Katherine Randall tem lutado contra seus próprios fantasmas desde o dia em que foi morar com seu tio Maxwell... More

QUADRO DE AVISOS! (Atualização: 07/04/2024)
Cast
Prólogo
Parte 1 - Fagulhas
Capítulo I - Lua Nova
Capítulo II - Onírica
Capítulo III - Âmbar
Capítulo IV - Garoa
Capítulo VI - Rastros
Capítulo VII - Cinzas
Capítulo VIII - Promessas
Capítulo IX - Regressão
Parte 2 - Cadência
Capítulo X - Criaturas Noturnas
Capítulo XI - E no Princípio...
Capítulo XII - ...Uma Menina Perdida
Capítulo XIII - Umbra
Capítulo XIV - Torrente
Capítulo XV - Vidro Quebrado
Parte 3 - Zênite
Capítulo XVI - Justiceira
Capítulo XVII - Um Conto de Duas Luas
Capítulo XVIII - Ignição
Capítulo XIX - Cicatrizes
Capítulo XX - Reflexos
Capítulo XXI - Peçonha
Capítulo XXII - Weltschmerz
Capítulo XXIII - Maquiavel
Capítulo XXIV - Rainha Branca
Capítulo XXV - Fogo Anda Comigo
Epílogo
Carta de Despedida
Playlist

Capítulo V - Declínio

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By luasdediamante

A realidade se estilhaçava ao meu redor enquanto eu era engolida por redemoinhos descontrolados de luz e fogo. Era como se meu corpo estivesse em vários lugares ao mesmo tempo; algumas partes faltando e outras espalhadas pelo chão. Havia a quietude, e com ela, a incerteza. Se isso era um sonho, eu iria abrir os olhos mais uma vez? Cada pedaço de meu ser, cada átomo meu estava sendo despedaçado pela mesma força que me arrebatara, até o momento em que eu então fui reconstruída, longe das chamas, mas ainda sentindo como se a minha cabeça fosse explodir.

Ao mesmo tempo em que lutava com a desorientação, eu era capaz de sentir um aroma fraco de fumaça à minha volta. O esforço físico feito por minha parte foi seguido por grunhidos de dor e desconforto. Mas o que diabos havia acabado de acontecer? Que raio de lugar era esse?!

Respirando pesadamente, minha atenção correu até meu braço, para a pele exposta. O fogo havia desaparecido. Ele sequer deixou marcas.

Meu Deus... Lori... ela viu tudo!

— Eu... onde...? – disse uma voz abafada – O que aconteceu?

Na escuridão, segui a voz de Tine para o canto da sala mergulhada em breu somente para vê-la caída no mesmo chão frio que eu pisava. Ela esfregou seus olhos e estudou o ambiente ofuscado com eles, atônita e estonteada. Nós duas nos encontrávamos em uma câmara mal iluminada dotada de paredes de pedra e um piso polido feito de mármore e granito.

Suas írises âmbar e aterrorizadas por fim me encontraram.

— S-sua mão... o banheiro...

Tine parou de falar, provavelmente se tornando ciente do fato de que os últimos momentos realmente aconteceram. Ela se empertigou, colocando-se de pé num sobressalto e dando passos apressados até que suas costas se chocassem com a parede rígida, o bastante para criar uma distância considerável entre nós. Ela... estava com medo de mim?

Não existiam motivos para tentar explicar o que houve. Eu nunca encontraria as palavras certas. Suor começou a escorrer de minhas têmporas, e tudo o que pude fazer foi fitar as mãos trêmulas que pertenciam a mim, horrorizada. O que aconteceria se as chamas explodissem de novo?!

Eu te disse para ir embora – sibilei, sem de fato pensar.

— Sim. Claro. Você parecia que estava tendo um derrame e então começa a correr para longe, então é claro que eu ia te deixar sozinha.

A esse ponto, eu não tinha ideia de como eu ainda estava viva. Minha frequência cardíaca disparara, como se na margem de um desmaio.

— Kat. Mas que inferno? – indagou Tine – Que inferno aconteceu?!

As palavras de minha melhor amiga escaparam de meus ouvidos. Elas não foram sequer registradas. Tudo no que eu pensava era fogo. A mulher sem face, o sonho com meus pais, a pedra e o fogo descontrolado.

Espera... a pedra!

Enterrei minha mão no bolso direito, onde eu a havia colocado mais cedo. Ela ainda estava lá, quente contra meus jeans sujos. Não. Estava mais do que quente. Se eu a segurasse por tempo demais, me queimaria.

Contudo, antes que eu pudesse testar minha hipótese, a única porta na câmara escura se abriu, nos obrigando a recuar e proteger o rosto quando o recinto foi inundado pela luz de tochas nas paredes do lado de fora. Uma silhueta emergiu do contraste, e no momento que as sombras foram embora, nós a vimos. Uma garota de pele escura, não aparentando ser mais velha do que nós, vestindo o que se assemelhava a um robe azul marinho por cima de um traje formal. A tonalidade das vestes transformava-se em laranja sob o queimar cálido das brasas a nos cercarem.

— Olá. Me chamo Natasha. Estou aqui para-

E então, subitamente, ela percebeu que alguma coisa estava errada. A atenção da garota se voltou para mim, e ela me estudou por um segundo antes de retornar para Tine, do outro lado da câmara. A face da confusão apossava-se de suas linhas de expressão. Nós ficamos em silêncio, e ela também, pelo menos até o som de passos ecoar pelo corredor de pedra. Imediatamente, Natasha colocou uma máscara de robustez, enrijecendo sua expressão numa tentativa de disfarçar o senso de impotência.

— Senhora Holt, acredito que temos um problema.

Assim que a garota disse isso, o segundo elemento ergueu-se como uma torre atrás dela, na forma de uma mulher de meia idade de aparência robusta com ondas grisalhas caindo sobre ombros resguardados por cetim negro. Suas feições eram marcadas pelo tempo e pela experiência, olhos enevoados tais quais matizes de azul do vestido que trajava. Com apenas um gesto, ela ordenou que a garota deixasse seu posto na soleira. O lugar de sua subordinada foi ocupado pela mulher, que estudava a situação.

— Qual o significado disso? – perguntou a senhora Holt.

A garota não falou nada.

— Por que, em nome dos Sete, eu estou vendo duas pessoas aqui?

— O que devemos fazer? Eu devo levar a outra de volta?

A outra? Sobre o que ela estava falando?!

Com licença? – Tine se dirigiu a elas – Mas o que tá acontecendo aqui?

— Leve as duas para o auditório – a senhora Holt disse para a garota, ignorando a pergunta de Clementine – Alistair precisa saber disso.

A subordinada assentiu. E então, tão subitamente quanto surgiu, a senhora Holt desapareceu no corredor, nos deixando a sós sob as tochas.

— Me perdoem pela confusão – disse Natasha – Isso acabará logo.

Isso? O que é isso? – Tine, mais uma vez, exigia uma resposta.

Como ela era capaz de falar com essas pessoas? Eu não podia me forçar a fazer isso, nem se eu quisesse. Eu não queria sequer escutar o que elas estavam dizendo. Temia que, caso o fizesse, então se tornaria real.

— Você poderá fazer quaisquer perguntas quando a audiência tiver início. Agora, me sigam – ela disse, gesticulando para o corredor – As duas.

Eu e Tine não movemos um músculo enquanto a garota esperava na soleira. Ainda com a respiração pesada e ainda acreditando que tudo isso não passava de um sonho febril, eu dei o primeiro passo para fora da câmara escura. Clementine me seguiu, relutante, de uma distância segura.

No momento em que deixamos as paredes de pedra, fomos recebidas por um grande corredor; arcos de mármore irrompendo das paredes para o teto acima de nós, que por sua vez estava coberto por afrescos esculpidos em tinta endurecida e prata derretida. Eu pensei que o lugar estava deserto até prestar atenção nas áreas que as tochas não eram capazes de iluminar. Se tratavam de portas cuja presença alguém poderia deixar passar. Frestas entre paredes conduzindo até refúgios dos quais você nunca ouviu falar e escadarias que permaneciam escondidas para se protegerem da luz do Sol. Era desses lugares que eles vinham. Para onde quer que eu olhava, eu via rostos de homens e mulheres. Suas roupas eram similares às que Natasha utilizava, mas as suas posturas não eram. Por causa disso, eu me tornei desconfortavelmente ciente de mim mesma. Eles estavam encarando a mim e a Tine das sombras. Isso se devia ao medo de se aproximar? Ou... eles sentiam repulsa de nós duas? Era porque viemos de fora?

— Do que se tratava aquilo? – eu abri minha boca pela primeira vez desde que a garota apareceu – Uma de nós não devia estar aqui?

Ela olhou de soslaio por cima do ombro, me fitando por uma fração de segundo até redirecionar sua atenção para o corredor e os inúmeros arcos de mármore diante de nós, banhados num misto de luz e sombra.

— O raio trator não deveria ter te trazido junto – ela admitiu – Foi um erro.

Meu olhar incrédulo alternava entre Tine e a garota. O uso das palavras raio trator nem era a pior parte de tudo isso.

O quê?! – minha melhor amiga estava igualmente chocada – O que vocês querem comigo? Então por que ela tá aqui também?

— Isso não importa agora – disse ela – O governante saberá o que fazer. Isso é uma reunião de emergência. O que quer que tenha feito, foi o suficiente para chamar sua atenção. Ele não é alertado com facilidade.

Tine de repente ficou pálida, ombros enrijecidos devido a tensão. Qual era a relação dela com tudo isso?! Havia acontecido alguma coisa?

— Venham – a subordinada da senhora Holt insistiu para que seguíssemos o corredor – A Ordem é bastante rígida quando se trata de pontualidade. Vocês não querem deixar o senhor Hartmann esperando.

E com isso, nós a deixamos nos conduzir através do labirinto de colunas de mármore e lances de escada maiores que o meu apartamento. Num certo ponto, nas profundezas do que quer que esse lugar seja, nos deparamos com uma enorme vidraça delimitando uma grande seção na parede entre duas pilastras. Do outro lado do painel translúcido, campos verdejantes e colinas esticavam-se até onde o olho podia ver, em direção ao horizonte. A grama dançava no compasso do vento, sob uma tapeçaria de nuvens escuras tocadas pela prata mais pura. A visão me despertou certa euforia, como uma revelação. Nós não estávamos mais na América.

— Onde estamos? – perguntei – Que país é esse?

— Itália. A região da Toscana, para ser mais exata – disse Natasha, com um tom casual. 

Eu certamente não estou entrando em pânico agora.

Nós andamos por mais alguns árduos minutos em silêncio, provavelmente pelo fato de que havíamos acabado de descobrir que estávamos presas em outro continente. Eu fitei Tine por minha visão periférica, percebendo a forma com a qual ela aparentava encolher ante a magnitude do que estava acontecendo. Eu nunca a havia visto tão desestabilizada assim.

Logo, chegamos até uma grande escadaria levando até uma espécie de mezanino ligado ao segundo andar. A garota parou, limpando a garganta e gesticulando para os intimidadores degraus de granito polido.

— Vocês duas precisarão continuar sozinhas. Sigam as escadas até as portas principais do auditório. A audiência está prestes a começar.

— E depois? – Tine engoliu em seco – O que devemos fazer?

— Você irá tomar o assento vazio diante do governante.

Ela então olhou para mim, olhos castanhos mostrando pesar.

— Quanto a você... tente achar um lugar vazio nas fileiras de trás. Espere até ser chamada, e não fale a não ser que se dirijam a você.

Eu assenti em silêncio, falhando miseravelmente em tentar disfarçar a ansiedade que varria minha postura. Natasha compartilhou um último olhar solene conosco antes de se retirar e retornar para o corredor de mármore. Tine imediatamente agarrou a minha mão, firme e urgente.

— Eu não consigo fazer isso.

É óbvio que eu queria confortá-la, mas como?

— Como isso aqui pode ser real?! — ela continuou – Como diabos chegamos até aqui? Através de um portal? Eu devo acreditar nessa droga?

— Eu não tenho certeza...

Tine largou meu aperto, seu rosto se contorcendo numa mistura de desespero e raiva, dois sóis a explodir lutando para ver qual dos dois seria o último a se apagar. Clementine sempre foi a voz da razão, mas agora, esse não era o caso. Ela não tinha o poder de aguentar o peso de toda a situação, e eu nunca poderia esperar que ela fosse capaz de fazer isso.

— Quem essas pessoas acham que são? Eles... eles-

Ela hiperventilava, pupilas agindo como densos buracos negros num mar de âmbar. Segurei ambas as suas mãos; um gesto silencioso cujo propósito era dizer que tudo estava bem. Essa era a única forma que eu podia fazê-lo sem ter que dizer as palavras em voz alta. Eu não queria mentir.

Ela ficou parada assim por um momento, tentando se recompor.

— Isso é minha culpa. É tudo minha culpa.

— Não temos tempo para isso agora – a última coisa que eu queria era ver Tine culpando a si mesma – Nós temos que fazer isso. Juntas.

Encarando as colossais portas duplas como se fossem algum tipo de monstro, Tine acabou por franzir o cenho e fechar as mãos na forma de punho. Respirei fundo, e numa questão de segundos, começamos a subir.

No instante em que adentramos a grande sala circular, fomos recebidas por dezenas de olhares curiosos, distantes e, acima de tudo, intimidadores. A maior parte deles era proveniente de pessoas de meia idade e anciões trajando azul marinho. Situado na face mais interna do átrio, encontrava-se um trono sobre um pedestal de mármore, e sentado nele, havia um homem cujas feições eram capazes de esculpir a rocha sobre a qual esse lugar foi construído. Ele vestia as mesmas cores que todos na sala, apesar de seus adornos estarem banhados em ouro e prata, aparentando absorver toda a luz das tochas e tornando quase impossível olhar para ele sem ter minha visão agredida pelo reluzir áureo que recobria sua figura.

Estávamos olhando para o governante. Só podia ser ele.

Tine se despediu silenciosamente de mim antes de se dirigir ao púlpito diante do trono. Ciente de que eu estava sendo observada por quase todos no recinto, realizei minha marcha da vergonha até os confins das fileiras de assentos, tentando encontrar um lugar para sentar em meio a multidão de estranhos. Acabei por achar um espaço livre ao lado de uma garota que poderia facilmente ter a minha idade. Apressei o passo até lá.

Eu encolhi sobre minha própria silhueta, com medo de que a imponência do auditório me engolisse. Ela imediatamente olhou para mim, cachos tingidos de loiro caindo numa cascata ao redor de um rosto redondo. Assim como eu, ela vestia um moletom escuro e jeans; peças de roupa que se mostravam deslocadas demais no meio de tantas capas e ternos.

— Primeira vez? – ela perguntou – Dá pra ver pela sua cara.

— Eu não devia estar aqui – eu me esclareci – Foi um erro.

— Só pode ter sido culpa de Natasha. Não é a primeira vez que algo assim acontece.

Permaneci quieta, mas arqueei uma sobrancelha entre a confusão.

— Ela é uma feiticeira sem treinamento político ou de campo – continuou a garota, disposta a me explicar – Me pergunto como ela conseguiu esse cargo. Trabalhar no gabinete de Aurora não é algo para qualquer um. Não sei. Há rumores de que a família dela é importante. Maldito nepotismo.

Feiticeira.

A palavra me atingiu como um soco na garganta, arrancando de mim qualquer senso de equilíbrio e segurança. Corri meu olhar em direção a Tine e ao governante, fingindo que a garota ao meu lado não existia. Sem dize uma palavra sequer, minha melhor amiga implorava para que eu a resgatasse, apesar de eu não ser capaz de fazer absolutamente nada.

Então, o governante realizou um gesto com sua mão direita. Tal ato foi seguido por uma queda brusca na luminosidade do auditório quando a maioria das tochas se apagaram, permitindo que fulgores distantes de candelabros cristalizados suspensos em arcos de mármore banhassem todo o átrio em uma tintura gélida da cor do azul mais intrincado. A atmosfera ao nosso redor foi transformada, metamorfoseando-se numa ilusão etérea e frígida. Ele estava prestes a começar seu discurso quando um jovem de cabelos negros bagunçados e barba cerrada adentrou apressadamente o auditório, como se tivesse corrido por todo o labirinto de mármore e granito dessa fortaleza para chegar até aqui. Sem cerimônias, ele correu até uma das fileiras centrais, ocupando um lugar livre entre dois adultos. O governante o fitava durante todo o percurso, e pela rigidez em seu semblante pétreo, era aparente que desaprovava a falta de decoro.

— Se estamos livres de interrupções de qualquer tipo... – ele começou, uma voz robusta ecoando pelo átrio – Eu, Alistair Hartmann, governante supremo da Ordem, quinto de meu nome, herdeiro de Alder Hartmann, o Lorde das Brasas, declaro essa sessão extraordinária aberta.

Todos ficaram em silêncio até as próximas palavras serem ditas.

— Melinda acabou de me contatar. Registramos uma ocorrência.

E com isso, um lampejo de murmúrios e exclamações surdas percorreram todos os assentos. Uma ocorrência? Do que ele estava falando?!

— Houve uma falha de segurança na América, em Nova York – ele continuou enquanto Tine se tornava mais pálida ainda – Um dos sítios foi comprometido, talvez o mais notório deles. A propriedade vitoriana dos Williams. A senhora Norton checou o inventário, e foi constatado que um dos artefatos está desaparecido.

Inadvertidamente, alguém se levantou na multidão, erguendo a voz.

— Com todo o respeito, mas a câmara advocou inúmeras vezes por uma interdição completa do local. Foi um procedimento padrão adotado na Europa, principalmente na França. A sua negligência e descaso com o continente americano o transformou em um antro de atividades ilícitas!

A expressão de Alistair não se modificou, contudo, percebi uma mudança em seus olhos. Seria a forma como suas írises avelãs refletiam a luz?

— Edmund, desacatar o seu governante durante uma reunião formal não é o tipo de comportamento esperado de um líder respeitável. Quaisquer sugestões que tenha quanto às ações promulgadas pela coroa, você terá a oportunidade de manifestá-las nas reuniões da câmara de líderes nas quais nossos representantes estejam presentes. Até lá, peço que aja com decoro durante essa sessão.

Eu estava certa de que ele queria criticá-lo mais uma vez, mas Edmund optou por permanecer em silêncio. Ele se sentou novamente, e foi aí que eu percebi que ele estava ao lado do jovem atrasado e dos adultos perto dele. Eles se conheciam? O olhar da mulher encontrou o meu, e eu rapidamente desviei minha atenção, mas não antes de notar a gama de colares e adereços que ela usava por baixo de um cachecol de lã preta. Ela e o outro homem pareciam ter idade suficiente para serem meus pais, e o jovem era provavelmente apenas um pouco mais velho que Clementine, que por sua vez era um ano mais velha que eu. Por outro lado, o cabelo e barba grisalha de Edmund deixavam claro que ele estava na casa dos setenta anos.

— A fundação das barreiras não sofreu danos, e com a ajuda da senhora Norton, conseguimos identificar o responsável pela brecha – o governante continuou, voltando seu foco para Tine, que estava diante dele – Clementine Ciara Howard, residente da cidade de Nova York, eu ordeno que se levante!

Tine ergueu-se do púlpito, completamente petrificada.

— Você pode depor – falou Alistair – Possui o direito de se defender ou aceitar as consequências dessas acusações, acatando com as devidas reparações conforme está escrito em nossa lei.

Todo o auditório foi varrido pelo silêncio, e por um momento, pude ouvir meu próprio batimento cardíaco. Que droga de situação era essa?! Tine olhou para mim mais uma vez, engolindo em seco antes de se virar para encarar as fileiras de homens e mulheres que aguardavam uma resposta. Eu queria sair correndo daqui e desaparecer nas colinas italianas lá fora, levando Clementine comigo. 

Eu rezava por uma saída, mas Tine sabia que ela não existia.

— Eu fiz isso – ela disse as palavras – Eu invadi o casarão e roubei o artefato.

A onda de murmúrios retornou, só que dessa vez muito mais intensa e urgente. Alistair respirou fundo, juntas esbranquiçadas de seus dedos agarrando a margem de granito do trono no qual se sentava. Ele não desviou o olhar de Tine. Ele não permitiria que ela fosse agraciada com tal conforto trivial. Nem sequer um pingo de calmaria. Não agora. Não nesse lugar.

— Agora, quantos de vocês estavam ativos durante o auge das caçadas? – o governante perguntou ao público – Quantos de vocês testemunharam os horrores que a necromancia trouxe aos nossos lares e famílias?

Quase todos os adultos do recinto assentiram em concordância; alguns balançando a cabeça e outros exibindo certa mudança em seus semblantes, como se a sombra de memórias específicas escurecesse qualquer outra manifestação de seus traços. As poucas exceções eram os jovens, incluindo a garota ao meu lado e o homem atrasado perto de Edmund.

— Nesse caso, vocês sabem que nossa sociedade navegou por eras sombrias. Nós sobrevivemos, porque fizemos o que devia ser feito. Eu fiz. Me digam, como uma humana conseguiu atravessar um conjunto de barreiras fortificadas em um sítio necromântico abandonado? Não. Deixem-me fazer uma pergunta melhor. Como uma humana sabia da existência desse lugar, e do que havia em seu interior?

A atenção de Alistair retornou para Tine, a máscara intimidadora da autoridade coroada em prata e ouro criando raízes em sua face firme.

— Eu exijo respostas, e você irá me entregá-las. Você não agiu sozinha. Quem a ajudou? Um feiticeiro renegado? Um bruxo ou uma bruxa? Como obteve conhecimento desse sítio?

Tine começara a suar, ficando mais nervosa a cada segundo que se passava. Isso não importava para Alistair. Ele havia deixado seu trono para trás, dirigindo-se ao púlpito para ficar frente a frente com a minha amiga.

— Que tipo de conexões você tem dentro da Ordem?! – insistiu Alistair – Por acaso um dos nossos foi o responsável?!

— Eu... eu – ela não era capaz de encontrar as palavras certas.

Clementine não iria conseguir fazer isso sozinha. Nós duas sabíamos disso. A pessoa mais forte que eu conhecia não podia se defender sozinha, não quando ela havia acabado de ser jogada em um mundo que nós duas não fazíamos ideia de que existia em primeiro lugar.

Ela precisava de uma intervenção.

Usando toda a força de vontade e coragem que eu não sabia que possuía e fingindo que não havia ao menos dúzias de pessoas conosco nesse auditório, eu me levantei, projetando a minha voz trêmula o mais alto que eu pude, para que assim, o governante fosse capaz de me ouvir.

— Fui eu – uma confissão foi feita – Eu a ajudei!

De prontidão, ignorei a chuva de olhares enquanto eu abandonava meu lugar e percorria os degraus com a intenção de ficar cara a cara com Alistair Hartmann. Ele me examinava com olhos avelãs indiferentes, como se eu fosse alguma espécie de animal selvagem que despertava repulsa.

— E quem é você? – ele indagou – Declare seu nome, residência e filiação.

— Katherine Dawson Randall. Eu também sou de Nova York. Meus pais... isso não importa. Sou sobrinha de Maxwell Randall, e foi ele quem me criou, desde sempre.

Ele ficou em silêncio por um momento, me encarando de forma vítrea e anormal. Então, antes que eu pudesse me dar conta, o meu queixo foi agarrado por uma mão fria e calejada. Eu não pude manifestar qualquer desconforto, pois ante ao toque do governante, o meu corpo reagira com uma corrente elétrica que se espalhava pela área de meu pescoço como estática. Tudo isso durou menos que um segundo, e quando Alistair me soltou, ele murmurou algo incompreensível. Aparentemente, Tine e eu não eram as únicas confusas com o súbito gesto, pois todos os outros também não pareciam entender o que diabos havia acabado de acontecer no púlpito. O homem diante de mim se via paralisado, como uma estátua.

— Essa sessão está oficialmente encerrada – falou Alistair, por fim.

Com outro gesto seu, as tochas se acenderam mais uma vez. A audiência explodiu em um maremoto de perguntas e questionamentos direcionados ao governante enquanto parte do público se desfazia ao saírem pelas grandes portas pelas quais nós duas entramos. Não demorou até o recinto ser varrido por uma onda avassaladora de movimento decorrente do fluxo de pessoas. Nós duas apenas ficamos paradas no mesmo lugar.

— O quê? O que você quer dizer com a sessão está encerrada?! – Tine quis saber, sem medo de falar diretamente com ele – O que irá fazer com a gente?!

Alistair não pareceu ter registrado as súplicas de Clementine. Ele ainda me encarava, na mesma posição, quase como se ele se recusasse a dar um único passo sequer em minha direção. Assim que os nuances azuis foram embora e a sala foi banhada em luz cálida novamente, ele piscou, afastando o olhar de mim e se atentando aos homens e mulheres deixando o auditório. Alistair suspirou, esfregando a testa com a parte de trás da mão.

— O caso é mais complicado do que eu pensei. Ele irá requerer mais tempo, e outras autoridades deverão ser consultadas.

— E quanto a nós? – Tine perguntou – Vai nos mandar de volta?

— Temo que não seja tão simples assim.

E essas foram as últimas palavras do governante antes dele deixar o recinto por uma saída diferente, que se encontrava diretamente atrás do trono, entre dois pilares e uma série de afrescos postos sob um dos maiores candelabros do átrio. Na pintura sólida, eu via estandartes e brasões.

Eu e Clementine nos vimos sozinhas num mar de capas azul marinho e colunas de mármore. Meu corpo se rendeu de exaustão, colapsando contra um dos inúmeros pilares. Me deixei descansar na pedra esculpida.

— Não consigo acreditar que isso tá acontecendo.

A cabeça de Tine estava baixa. Ela evitava o meu olhar.

— Tudo isso é minha culpa – disse ela, as mesmas palavras de antes.

— Eu não quero ouvir isso agora! Nós só temos que sair daqui. Eles não podem nos deixar esperando para sempre. Tem que haver uma saída.

A julgar pelo som que fizeram, as portas que Alistair utilizou foram trancadas quando ele saiu. Eu escaneei a sala em busca de uma rota de fuga, esperando que Tine fizesse a mesma coisa. Olhando para cima, percebi a existência de uma grande coleção de vitrais que faziam parte do mosaico da claraboia revestida. Eram sete ao todo, cada um deles composto majoritariamente de uma cor primária. Um certo vitral capturou a minha atenção: ele era feito de vidro azul marinho com nuances de roxo. O vidro retratava uma mulher trajando um vestido branco tão pálido e límpido quanto a Lua. Subitamente, a mesma sensação de vertigem que eu senti quando olhei para a pintura naquele casarão se apossou de mim.

Os calafrios vieram, e com eles, algo que eu não podia nomear adequadamente. Uma fagulha. A textura de seda. Aço frio demais para ser tocado. Desestabilizada pela sobrecarga sensorial, me vi na obrigação de desviar o olhar antes que eu perdesse o equilíbrio, mas não antes de enxergar algo a mais. Algo escondido. Algo que não queria ser visto. A silhueta erguia-se por trás de um dos pilares, e os fios de cabelo prateados foram a primeira coisa que eu reconheci. Então eu vi as asas. Um leque de plumas negras suspenso ao redor de seu esguio e fantasmagórico corpo.

E, exatamente como um fantasma, ela desapareceu.

Eu agarrei a mão de Tine, dando o meu melhor para disfarçar o horror e o pânico crescente que ameaçava encharcar minha voz descrente.

— Me siga – eu disse – Me siga agora.

Não havia tempo de responder as suas manifestações de confusão, porque eu estava ocupada demais arrastando-a comigo para a escadaria de granito mais próxima. Enquanto íamos embora, olhei de soslaio para o auditório somente para ver o grupo de Edmund mais uma vez. O jovem tinha seu olhar fixo em mim e em Tine, mas não pude decifrá-lo a tempo.

Era óbvio que Clementine sabia que havia alguma coisa errada.

— O que você tá fazendo? Você se lembra do caminho?!

— Eu não sei! Só continue correndo!

E foi aí que de repente, por alguma razão da qual eu não estava ciente, a pedra em meu bolso começou a ficar mais quente do que o normal, ao ponto de eu poder sentir a minha pele queimando por baixo do jeans. Eu rapidamente a tirei do bolso, e no instante em que teve contato com o lado de fora, a pedra não tardou em literalmente catapultar de minha mão e se lançar voando pelos corredores em alta velocidade como um verdadeiro cometa incandescente. Me esforcei para não gritar de horror.

Mas que diabos?! – Tine não teve a mesma preocupação.

O míssil banhado em labaredas azuis agia como um rastro incendiário, mais luminosos que todas as tochas desse lugar, forçando todos em seu caminho a desviar de sua trajetória incontrolável e desgovernada. Nós seguimos a trilha incendiária, passando por feiticeiros com expressões perplexas enquanto disparávamos pelos corredores de mármore. Depois de uma série de curvas bruscas e de ter que lidar com exclamações em línguas europeias que não compreendíamos, nós finalmente chegamos até onde fomos recebidas por Natasha e a senhora Holt. Pisos e paredes polidas foram substituídos por pedra bruta e fria, e a luz das tochas tornava-se mais fraca em comparação com as áreas mais movimentadas. Por sorte, eu me lembrava desses corredores escuros. Nós estávamos perto.

Eu e Tine seguimos as marcas de fumaça até uma das inúmeras portas de madeira daqui. Essa em especial tinha algo que a distinguia do resto: um buraco fumegante do tamanho de uma bola de tênis, denunciando que a pedra abriu o seu caminho sem pestanejar. De forma relutante, tentei abrir a porta arruinada com o meu pé, com medo de me queimar caso tocasse a madeira. Para a minha surpresa, funcionou.

Esse era o mesmo cubículo. Conseguimos achar o nosso caminho de volta. Eu fui a primeira a entrar, fitando a pedra de minha mãe sobre o chão frio, esperando que outro vórtice de fogo surgisse para nos engolir mais uma vez. Eu imaginei as chamas. O redemoinho descontrolado de labaredas azuis e a eletricidade que elas traziam. Imaginei a tempestade.

Mas nada disso aconteceu.

— E então? – Tine indagou – O que acontece agora?

Tudo o que pude fazer foi recostar meu corpo numa das paredes de pedra nua, sendo exposta ao frio e, acima de tudo, ao gosto da derrota.

— Nós não podemos sentar aqui e não fazer nada.

Tine não respondeu de imediato. Ela pensava nas palavras certas.

— Olha... se eles nos trouxeram aqui, quer dizer que provavelmente podem fazer isso de novo se de alguma forma nós conseguíssemos sair.

A voz que a respondeu não era a minha.

— Particularmente, não creio que seja isso que irá acontecer.

Nós duas pulamos quando o jovem atrasado da audiência apareceu literalmente do nada, carregando uma maldita espada em uma das mãos. Sob as tochas, prata se assemelhava a dourado, e eu pude ver o meu reflexo pálido na face da lâmina, a cor de cera pingando de uma vela acesa.

— Deixem a câmara agora. Eu não irei pedir uma segunda vez.

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Oie gente!essa é minha primeira história por isso não consigo escrever um resumo,espero que gostem.Se vocês quiserem eu faço mais(aceito ajuda).Obg 😄