Eu parecia estar sozinha naquele lugar que em muito se parecia como da última vez em que eu havia estado ali. A clareira com a grama verde sob meus pés descalços era rodeada por uma grande cerca viva e estava lá também. Entretanto, a grama que antes machucava e arranhava meus pés como se cada uma das folhas o espetasse, dessa vez era confortavelmente macia ao toque, como um grande tapete de veludo que acariciava meus pés enquanto eu caminhava sobre ele.
A luz que preenchia o lugar não possuía uma fonte identificável e tudo estava iluminado como se o sol estivesse prestes a amanhecer. De certa forma, me lembrou do que Czanor me mostrou: o lugar onde vi diversos Répteis se esforçando para passar por um grande portal de luz.
Olhei ao redor buscando aquele ser que eu já estava habituada a encontrar ali. Olhei na área da clareira, na copa das árvores e mesmo na cerca viva dentro da qual ele desaparecera da vez anterior em que estivemos nesse sonho.
Por que eu estaria aqui, se ele não estava? Eu vim por que quis, de forma autônoma, ou por que ele me chamou para estar aqui?
Dirigi-me até a cerca, sentindo algo diferente, uma estranha ansiedade em mim. Sentindo que aquele lugar me parecia familiar e acolhedor como nunca sentira antes.
Estendi minha mão direita sobre a folhagem densa que a compunha a cerca e passei meus dedos suavemente pela estrutura verde. O tamanho das folhas variava entre pequenas e nem tão pequenas, montando uma espécie de mosaico verde e vivo.
Circundei a cerca, caminhando lentamente ao seu lado enquanto meus dedos suavemente acariciavam as folhas. Ao mesmo tempo em que eu caminhava, eu olhava para frente, não me importando em ver onde meus dedos passariam, contentando-me apenas em olhar a paisagem diante de mim.
Logo eu fechei os olhos, pois não precisava olhar mais, e me dediquei a sentir as folhas passando pelos meus dedos e pela palma da minha mão. Então, senti a textura das folhas mudando lenta e gradativamente quando pareciam se unir, formando superfícies maiores e mais uniformes.
Em poucos movimentos, não havia mais folhas, mas apenas uma superfície lisa que parecia reagir ao toque dos meus dedos, estremecendo suavemente a cada passo que eu dava.
O movimento era quase hipnótico e eu me entregava à sensação obtida pelos meus pés, bem como à transformação da superfície da cerca sob o meu toque e como ela reagia a mim, até que meu pulso foi rapidamente pego em um movimento firme e súbito, interrompendo meus passos e minha entrega.
Virei-me e vi Czanor me olhando como se buscasse algo em meu rosto, enquanto segurava o meu pulso. Ele era a vegetação que eu tocava.
— Você está diferente.
Disso eu já sabia. Mas o que será que ele via em mim que deixava isso evidente? Seu questionamento foi para mim um lembrete de que eu deveria manter meus sentimentos e pensamentos contidos a fim de não deixar transparecer qual a minha verdadeira missão. Afinal, ele estava do lado dos Manahti, que me queriam como uma parideira, e não dos humanos os quais eu havia decidido ajudar.
— Para melhor, eu espero...
Disse com o máximo de confiança que encontrei.
— Eu também... Eu te trouxe para te mostrar algo.
Então ele tinha algo para me mostrar. Eu sabia que esse ser, assim como eu, estava em uma espécie de despertamento também, no intuito de deixar o lugar no qual era mantido, de certa forma, prisioneiro.
— Você me trouxe? Achei que era eu quem escolhia quando vir até aqui.
— Eu te chamei. Mas você veio porque quis.
Sem entender bem quando eu decidi efetivamente querer estar aqui, busquei concentrar-me em refletir sobre o que Czanor me falava, a fim de entender até que ponto minha transformação me ligava a ele. Vir até este lugar realmente havia se tornado algo mais sutil e automático. Estaria eu sutil e automaticamente me ligando a esse ser, o qual foi criado para ser o pai de meus filhos e netos?
Pela primeira vez tentei isolar-me de contatos e percepções de Czanor sobre minha consciência. Mas até que ponto estar aqui não seria uma construção de nossas consciências, afinal?
Isolei-me da mesma forma como isolaria meu kamnia. Logo um véu, desta vez reluzente, me cobria como uma segunda pele energética que impedia que Czanor entrasse em mim.
Seu olhar intensificou-se enquanto ele soltava lentamente meu braço e fazia com que sua cabeça pendesse para um dos lados, ainda sem tirar os olhos de mim.
— Não me quer?
Sua expressão era um misto de curiosidade, apreensão e ultraje. Eu imaginava se antes da interação comigo, se tudo que eu veria nele nesse momento, não seria apenas ultraje e talvez um bocado de ira.
— Digamos que eu queira privacidade hoje. Quero ter um pouco de controle na minha vida. Escolher quem entra em mim é uma maneira de obter isso, você não acha?
— Controle... Entendo... Quero te mostrar uma coisa. Olhe para mim.
— Já estou olhando, moço. Presta atenção.
Enquanto eu olhava para ele, percebi seu sorriso de um lado só da boca aumentando, sem mostrar os dentes pontiagudos, algo que ele já vinha fazendo há um tempo, como se quisesse parecer menos estranho para mim.
Seu olhar fixo, intenso e extremamente sedutor parecia entrar em minha mente como se quisesse fazer parte dela. Sem dizer uma palavra e sem tocar em mim, Czanor me envolvia totalmente, como o olhar de uma serpente hipnotizando sua vítima.
Ele parecia me mostrar que, apesar do isolamento que eu impunha sobre mim mesma, ele poderia penetrar meu ser, pois era assim que deveria ser. E eu não conseguia resistir ao impulso de permitir que o fluxo natural encontrasse seu destino.
Logo, enquanto eu retribuía seu olhar, percebi que seus olhos de cor verde vibrante tornavam-se menos resplandecentes da mesma maneira que sua pupila assumia uma forma arredondada. Sua pele se tornava em um tom de bege bronzeado enquanto seus cabelos alaranjados e ralos se tornavam espessos e loiros.
Enquanto eu olhava admirada para a transformação diante de mim, ele percebendo minha reação, sorriu fartamente, exibindo uma ampla fileira de dentes brancos e perfeitos em nada parecidos com os dentes finos e pontiagudos com os quais eu já estava habituada.
Seu corpo alto, musculoso e imponente, continuava o mesmo, mas desta vez encapado com uma superfície humana que eu somente me lembrava de ter visto semelhante em filmes de Hollywood.
Havia um híbrido humano absolutamente lindo diante de mim...
— Agora eu também tenho uma forma para mostrar na superfície.
Foi como se meu cérebro congelasse, travando totalmente meus movimentos e pensamentos enquanto eu só conseguia admirar a figura diante de mim. Agora eu poderia ter certeza que estava em um sonho.
Sua cabeça mais uma vez pendeu para um dos lados enquanto seu sorriso cerrou-se, deixando evidenciar uma fisionomia tensa e irritada.
— Não aprova? Com seu isolamento, não percebo o que sente.
Percebendo a necessidade em continuar mantendo comunicação com o ser híbrido alienígena capa de revista na minha frente, me esforcei para parecer casual e minimamente impactada pela surpresa que ele havia me apresentado.
— Desculpe. Eu não gosto de surpresas, sabe? É... Acho que está bom, sim. Dá pro gasto...
Czanor pareceu relaxar um pouco, mas mantendo ainda sua atenção em mim como se não quisesse deixar passar qualquer sinal que lhe desse pistas sobre o que eu sentia ou pensava naquele momento.
— Isso é bom.
O que se seguiu dentro de mim foi a realização de que logo ele estaria na superfície com o único propósito de unir-se a mim e colocar em prática o propósito de procriar e encher a Terra de seres híbridos capazes de receber os Répteis que se escondiam no subterrâneo da Terra já que não conseguiam suportar naturalmente as condições da superfície. Eles seriam como avatares sem alma, criados e usados. Será que Czanor tinha noção disso da mesma forma que eu? Será que isso não o incomodava?
A ideia do cumprimento desse propósito bizarro, de forma mais forte do que eu já tinha parado para pensar, me remeteu à urgência de fazer algo que pudesse livrar a raça humana da extinção. O planeta é de nós humanos e não deles.
— Vejo que você está se preparando para sair da tal cápsula de manutenção da vida, não é mesmo? Deve estar ansioso...
Me esforcei para parecer casual.
— Em breve estarei livre e capaz de estar no mesmo plano em que você está, pequena.
— E depois?
Com um passo, Czanor se aproximou de mim deixando quase que nenhum espaço entre nossos corpos.
— Seremos um novamente. De uma forma que você não imagina que possamos ser.
Estremeci por inteiro.
Eu não poderia deixar que ele me intimidasse e me provocasse dessa forma. Eu continuava dentro do meu sonho, ou seja lá o que isso fosse. Meu sonho, minhas regras.
— Mas como você poderia saber se tem estado trancado numa cápsula por toda a sua vida? Imagino que você não seja experimentado nessas... coisas.
Bom. Eu não era, com certeza.
Por alguns instantes ele me olhou seriamente, como que se pensasse no que me diria em resposta ao meu questionamento casual.
— Ainda não posso sair para a superfície, mas já participei de certas... experiências.
Imediatamente veio à minha mente a imagem que ele havia me mostrado de minha mãe deitada nua sobre uma maca, dos dois seres alienígenas andando pelos corredores daquilo que parecia ser uma espécie de clínica e de Czanor trancado numa espécie de armário de parede.
A ideia do que tais experiências significavam me fez tremer por dentro.
— Você não é virgem, então?
— Não.
— Amiguinhas híbridas, talvez?
— Não.
— Então te apresentaram amiguinhas humanas que foram levadas para alguma festinha na nave?
— Não. Não foi uma festa, não foi em uma nave e foi apenas uma humana.
Então Czanor teve um passado romântico, afinal. Talvez ainda estivesse apaixonado por essa humana e, quem sabe, ainda pensasse nela. Isso poderia ser minha esperança de que esse plano procriatório não desse certo. Eu poderia reunir os dois pombinhos e talvez Czanor desistisse de mim e de tomar parte na dominação da Terra.
— Por que vocês não ficaram juntos? Vocês não se gostavam?
— Através de você posso dizer que entendo um pouco o que o termo gostar significa. Eu não gostava da fêmea, mas gostava do que fazíamos e do porquê o fazíamos. Graças a isso, eu e você estamos aqui hoje.
Então ele não gostava dela. Ou talvez somente não entendesse que gostava dela. Agora que ele parece estar mudando, graças a mim, eu poderia imaginar a possibilidade de que um reencontro viesse a despertar alguma espécie de sentimento.
Repentinamente algo no que ele disse me incomodou.
— O que eu tenho a ver com isso? Em que esse seu relacionamento tem a ver conosco?
— A esfera vibracional da fêmea foi preparada através do que fizemos para que ela pudesse receber a semente para ser gerada em seu corpo. Eu atuei nesse preparo enquanto eu mesmo era testado como varão.
Ah, então, o testaram para saber se ele seria capaz de realizar a tarefa de reprodutor comigo. Muito prático.
— Você quer dizer que essa fêmea foi um teste para saber se você conseguiria... errr... consumar o...? Você entendeu.
— Eu passei no teste e a fêmea teve êxito na geração da vida que foi colocada nela.
Então, talvez Czanor já seja pai e seu filho, se é que a tal semente era dele, deve estar andando por aí.
— Então quer dizer que você tem um passado, não é, seu Réptil? Conta aí quem era a moça, vai.
— Ela me foi apresentada como Maura Santos, a sua mãe.