Quanto Tempo o Tempo Tem?

By passarinhou

22.8K 1.5K 865

Se a reta é o caminho mais curto entre dois pontos, a curva é o que faz o concreto buscar o infinito. Ana é o... More

Prólogo
01
02
03
05
06
07
08
09
10
11
12
13

04

1.4K 121 133
By passarinhou


Vocês já pararam pra pensar no que são sentimentos?

Sabe, eu nunca senti nada de fato. Como Tempo tenho diversas formas e já vi muita coisa, mas não sinto. Talvez seja por isso que muitos me julgam "impiedoso".

Para mim, sentir é compreender. Muitas vezes as coisas que os tocam mais são aquelas que, na altura em que estão a acontecer, nem vocês mesmo percebem. A felicidade, a tristeza, o repúdio, o nojo. Todos são formas de compreender algo, alguém.

O por que de eu estar dizendo isso para você?

Bom, um dia você vai me entender... Só esperar.

Onde paramos mesmo?

Ah, certo.

Vitória, lagoa, céu estrelado, lágrimas. E então: Uma voz.

Quando a cacheada virou parar olha-la, Bárbara tinha uma das mãos no peito enquanto caminhava até ela.

Espera, vocês não acharam mesmo que seria a voz da Ana, não é?

Deixem-me explicar algo para vocês: As coisas não são fáceis. Se a vida não é fácil, por que o Tempo seria? Aquele velho ditado de que "tudo é questão de tempo" não é falho. É real. E essa história que aqui conto a vocês não seria nada se não fosse por mim.

"O quê que cê tá fazendo aqui, Bá?" Vitória indaga, tentando descontroladamente passar as mãos nos olhos numa tentativa falha de se livrar das lágrimas e do embargo.

"Sabia que estaria aqui. Lembro das vezes em que você e Aninha fugiam pra cá quando o mundo de vocês ficava um caos." Bárbara ri pelo nariz e se encosta no capô, olhando para a lagoa. "Pensei que você estivesse precisando de alguém para conversar depois de tudo o que aconteceu hoje."

Vitória se mantém em silencio.

Bárbara parecer querer respeitar sua reação.

"Por que ela voltou?" Bárbara escuta Vitória dizer num fio de voz. Como por impulso, ela encolhe os ombros.

"Por conta de Estrela." Diz, "ao menos, foi só por conta disso que ela me disse.".

"Depois de tanto tempo... Depois de tanto tempo ela resolve reaparecer!" a cacheada diz num tom um tanto quanto frustrado.

"Vi..." começa, "Ana não sabe."

"Sobre o que?"

"Sobre tudo. Sobre tia Isabel, sobre o porquê de você não ter ido para São Paulo com ela."

Vitória ri, angustiada. Deita suas costas no vidro do carro e olha para o céu.

"Eu imaginei." Fala, "Ela estava feliz demais com nova vida para procurar saber..."

"Você é o amor da vida dela, Vi." Bárbara solta e então escuta uma gargalhada da mais alta. Encolhe ainda mais os ombros, pensando no quanto Vitória havia se magoado ao longo dos anos.

"Por que afirma com tanta certeza?"

"Por que eu a conheço."

"Eu também já a conheci." Diz triste. "Hoje, não mais. Sabe, Bárbara, eu conheci a Ana Clara de 8, 11, 16 anos. Mas essa de agora... Essa de agora eu nem conheço mais."

Bárbara a encara.

"Eu a vi dar o primeiro beijo. Eu a vi conquistar a primeira medalha de melhor aluna, a vi começar o primeiro namoro. E como doeu, Bárbara. Doeu tanto! Mais tanto que nem cabe eu contar aqui. Eu a vi passar no vestibular também, Bá. Mas eu também a vi se matar de estudar para tal. E então, de repente, eu não vi seu primeiro porre de faculdade. De repente ela tinha novas medalhas, novos namoros. De repente ela tinha se casado, Bá. Se casado! E esse doeu mais. Ô se doeu. Não sei se doeu mais por não ter sido comigo ou por que eu já havia perdido tanto da vida dela. Doeu, Bá. Doeu e ainda dói."

A única reação que a menor conseguiu ter foi estender os braços para a outra. Vitória aceitou encostando a cabeça no ombro de Bárbara e se permitiu chorar ali um pouco.

"Ela também sente toda essa dor, Vi. Ela só acha que tu não foi para São Paulo por que quis assim." Argumenta, "foi difícil para ela também."

"Talvez um dia o tempo nos dê respostas, não é?" sorri fraco.

Ih, olha lá. Mencionaram-me novamente.

Engraçado como sempre apelam para mim quando não veem solução, não é?

Vitória e Bárbara continuaram ali por horas. Parte em silêncio, parte conversando sobre como seria dali pra frente.

Vitória decidiu que faria da vida de Estrela mais fácil. Sabia que a menina tinha uma luz especial e com o primeiro contato, já sentia grande apreço por ela.

Voltou para casa ao som de Nando Reis e com o rosto vermelho. Em seu encalço, Bárbara em seu carro. Quando passou a frente da casa dos Caetano, pôde ver Ana com Estrela no colo.

Suspirou.

Seriam dias complicados.

Quando chegou em casa, viu Aninha, sua irmã, deitada de qualquer jeito no sofá. Tinha apoiado em seu peito alguns livros e os óculos estavam tortos no rosto pela posição. Sorriu ao vê-la e deixou as chaves do carro na mesa, aproximando-se dela.

"Ei, anjinho. Acorda" diz com a voz calma, alisando os cabelos cheios da irmã.

Aninha não tardou em abrir os olhos. De forma preguiçosa, foi enxergando a forma da irmã a sua frente.

"Ei Vi. Estava te esperando chegar. Cochilei rapidinho."

Vitória riu com a desculpa esfarrapada e assentiu com Aninha a acompanhando.

"Vou pra cama, tá?" a mais nova diz. Vitória abre os braços para a irmã e a aperta.

"Vi?"

"Oi."

"Eu acho que vi Ana hoje..."

Vitória engole em seco, fechando os olhos.

"Que Ana?"

"Tua Ana."

"Minha não..." pensou Vitória, mas preferiu se calar. Com calma conduziu a irmã até seu quarto e a deitou na cama, deixando um beijo em sua testa.

Quando entrou no chuveiro para um banho, pareceu querer nunca mais sair dali.

(...)

Quando a cacheada chegou ao teatro e viu uma garotinha distraída com seus legos, sua reação não fora outra a não ser sorrir. Deu passos largos para chegar ainda mais perto e se agachou, mantendo uma distância considerável.

"Oi pequena, tudo bem?" sorriu e Estrela a encarou por longos segundos, mas depois voltou seu olhar aos brinquedos. Vitória se levantou afagando o cabelo da menor e, quando olhou para o lado, só então percebeu uma figura praticamente petrificada ao lado da criança.

"Oi, Ana" disse e se surpreendeu por não ter sido uma fala arrastada. "Já está aqui há muito tempo?"

"Não... Só faz uns cinco minutos, por aí" diz.

Vitória assente e volta sua atenção para Estrela.

"Vamos entrar? Lá dentro tem mais lego. Você quer mais legos?" indaga e Estrela presta atenção. Vitória então entra numa sala e rapidamente volta, mas em suas mãos tinha agora uma caixa transparente com vários legos visíveis.

"Os favoritos dela são da Ninjago" escuta Ana dizer. Vitória dá um meio sorriso quase imperceptível e Ana fica feliz ao ver.

"Preciso que você me passe tudo aquilo que ela possui afeição, certo?"

"Certo."

As duas adultas passam um tempo a se encarar, mas a cacheada quebra o contato, caminhando de volta para dentro com a caixa. Estrela a acompanha devagar e Vitória sorri.

"Você vai ficar aqui?" Vitória indaga.

"S-sim." Ana diz, envergonhada. "Se não tiver problemas eu gostaria de ver como vai ser o dia de Estrela."

"Sem problemas." A dona do teatro dá um sorriso amarelo. "Fica um pouco com ela aqui? Vocês foram as primeiras a chegar. Os outros pequenos costumam chegar..." olha no relógio. "Só daqui meia hora."

"Sem problemas."

Ana observa Vitória se distanciar e então olha para a filha.

Estrela era tão linda...

Tinha bochechas rechonchudas e avermelhadas. A pele era morena, assim como a sua, e o cabelo liso escorrido assim como o pai. Os olhos um pouco caídos e o nariz pequenininho haviam sido puxados da mãe, e a boca lembrava a de dona Mônica, sua avó.

Mas, sem saber como e por que, Estrela a lembrava tanto Vitória. Ana sentiu o estômago revirar em pensar no quanto queria que Estrela fosse filha da mulher e sentiu mais uma vez o pesar de ter perdido tanto tempo.

Vitória voltou. Dessa vez, com uma fantasia inusitada: Vitória estava vestida de dinossauro.

Ana não conseguiu controlar a risada e Vitória sorriu, indo até a garotinha, que soltou os brinquedos e encarou a mulher.

Vitória voltou-se para Ana.

"É importante tratar o autismo com ludicidade." explicou, "As atividades lúdicas têm um papel fundamental na estruturação do psiquismo da criança, é no ato de brincar que a criança utiliza elementos da fantasia e a realidade e começa a distinguir o real do imaginário. Estrela pode desenvolver não só a imaginação, mas também fundamenta afetos, elabora conflitos e ansiedade, explora habilidades e a medida que assume múltiplos papéis, consegue superar muitas barreiras."

Ana encara a mulher a sua frente com um semblante orgulhoso. Por mais que não tivesse a visto chegar onde chegou, Vitória sempre fora um ser admirável.

"Existem várias formas divertidas pra fazer essa princesa se desenvolver..." diz, "e, pelo o que eu pude perceber, ela é uma criança inteligente. Logo, logo, estará melhor."

Ana sussurrou um obrigada e Vitória assentiu, negando com a cabeça como quem diz que não precisava agradecer.

Os próximos minutos foram dados por uma Vitória que agora brincava da "brincadeira do sapo" com várias crianças. Todas as crianças tinham sapos de fantoche nas mãos e a brincadeira consistia em fazer bolhas de sabão e com entusiasmo e animação fazer o sapo "comer" as bolhas.

"Dessa forma estimula-se a comunicação verbal, pois os pequenos têm que dizer "bolha" para o sapo comer e o contato visual." Vitória explica a Ana, que assente com atenção.

Após muita encenação e brincadeiras, Vitória despede-se da última criança daquele turno da manhã. Cansada, porém contente, volta-se para a pequena e sua mãe.

"Você é incrível." Ana diz sem perceber e cora com a revelação. Vitória abaixa a cabeça, e como se fosse uma válvula de escape, fala com Estrela.

"E aí, pequena. Você gostou do seu dia?"

Como o esperado, a criança apenas continua encarando seus brinquedos. A cacheada abre a boca para falar, mas é interrompida pelo toque do seu celular.

"Licença" diz.

Ana a observa atender o celular perguntando-se Vitória tinha alguém. Se aquele garoto das fotos de anos atrás ainda existia.

"Tá bom, Sá. Deixa pra outro dia, então."

Escuta Vitória responder um pouco cabisbaixa e, mais uma vez, não consegue controlar sua boca, disparando mais uma pergunta.

"O que houve?"

Vitória a encara surpresa.

"Eu e Sabra marcamos de almoçarmos juntas. Ela teve de desmarcar."

Ana parece pensar por um momento.

Olha para Estrela, olha para Vitória e então um grande "dane-se" em sua cabeça a faz dizer o que queria.

"Quer almoçar conosco?"

A cacheada a encara. Não esperava pelo convite tampouco quanto esperava que um dia a veria novamente.

Lembra das falas de Bárbara.

Ela não sabia.

Ela podia se permitir conhecer essa nova Ana Clara, certo?

Afinal, apesar de tudo, no fim sempre somos os mesmos.

"Por que não?" responde, sorrindo de canto.

Ana não consegue disfarçar o sorriso e suspira, aliviada. Quando vê que Vitória estaria indo com ela para o restaurante vestida de dinossauro, gargalha.

Ao chegar, Vitória aconselha que peguem uma mesa mais separada das outras. Conhecia o lugar pois já havia almoçado ali, então ao entrar com toda aquela fantasia, os funcionários apenas sorriram.

"Vitórinha!" a cacheada escutou a gerente do local dizer. Acenou ao passar reto até a mesa em que ficariam.

Ao contrário do que temiam, não havia sido desconfortável. Evitavam o assunto "tempo" ao máximo e conversavam sobre política, sobre as bandas do momento e como os festivais de música haviam decaído. Falaram sobre o novo satélite da NASA, sobre o perfume novo da Dior e da polêmica envolvendo a novela das 9.

Fazia anos desde a última conversa sincera que Ana Clara Caetano havia tido. Não lembrava como era bom poder conversar sobre qualquer coisa – especialmente com a cacheada – e sentia seu miocárdio querer saltar pela boca de tamanha felicidade. Mal podia acreditar que estava frente a frente dela e seu sentimento de paz rapidamente se deu por susto ao ouvir alguns pratos caírem próximo da mesa em que estavam.

O barulho foi alto e logo os olhares das adultas foram voltados para a pequena Estrela que agora tinha as mãos pressionadas nas pequenas orelhas e gritava. O som dos pratos se quebrando a assustou e o garçom olhou para a criança sem entender, assustado.

Ana não conseguiu reagir. Vitória, de prontidão, virou-se totalmente para a pequena. Encostou suas costas na cadeira e afagou seus ombros de forma precisa, iniciando um tipo de massagem. Levou suas mãos até as têmporas da criança e as massageou com movimentos leves e precisos.

Quando a criança abriu os olhos, encarou Vitória.

"Eu tô aqui, princesa. Eu tô aqui." Vitória dizia para Estrela, que chorava.

Ana também chorava. Abraçou seu próprio corpo enquanto via a adulta acalmar sua filha e sentiu seus ombros caírem um pouco ao perceber que Vitória havia feito em um dia coisas que Mike não havia feito em anos.

Sentiu-se protegida.

Lembra o que eu havia dito sobre sentimentos?

Vitória compreendia o que Estrela sentia.

E Ana Clara sentia-se grata por isso.

Continue Reading

You'll Also Like

1.3M 58.9K 105
Maddison Sloan starts her residency at Seattle Grace Hospital and runs into old faces and new friends. "Ugh, men are idiots." OC x OC
282K 18K 22
"you might not be my lover, but you still belong to me" "crazy, you don't even love me but you want to claim me as yours? have you lost your mind jeo...
146K 4.9K 100
'How I obsessively adore you' ˏˋ°•*⁀➷ started➛30/03/2024 finished➛ ˏˋ°•*⁀➷ cover by me x
428K 25.9K 85
Y/N L/N is an enigma. Winner of the Ascension Project, a secret project designed by the JFU to forge the best forwards in the world. Someone who is...