Desbotador (COMPLETO)

By AlessonSO

1.7K 1.1K 390

Pós Holocausto. Europa. 1946. Um garoto alemão que se viu sem memória e sem empatia. Ele tentou encontrar a... More

SIGNIFICADO DA CAPA
Parte 2 - 5
Parte 3 - 5
Parte 4 - 5
Parte 5 - 5

Parte 1 - 5

483 230 178
By AlessonSO

O desprezo generalizado pelos alemães no pós guerra foi um fato. No caos da Alemanha dividida, muitos desejavam que o país fosse varrido da Europa. E daí vem a invejosa vingança que neste conto eu trato.

Do autor.

*

O polonês perguntou, empurrando o garoto alemão para uma caminhonete: ''Jak masz na imię?''.

O menino ignorou o homem e olhou para um espaço vazio no carro, ao lado de um garoto da sua idade. Sentou-se no espaço vazio. Olhou brevemente para o polonês que lhe tinha feito a pergunta.

O homem estava com uma touca ninja tapando o rosto.

Sussurrou para ele o garoto ao seu lado: ''Ele te perguntou seu nome''.

O homem fechou o bagageiro da caminhonete e entrou na parte da frente dela.

''Sei disso. Só não quis responder'', falou o garoto alemão, com seu olhar baixo e sério.

''E como a-aprendeu a falar po-polonês?'', perguntou o garoto ao seu lado, com um rosto sorridente.

''Não me lembro. Só sei''

Continuou cabisbaixo e sério ele.

''Hm... Eu sei um pouco graças a minha irmã mais velha q-que recebia aulas d-de po-polonês. E eu ficava ouvindo o que o pro-professor dizia. E qual é o se-seu nome?''

''Não me lembro."

''Hm... q-que estranho. Eu sou Heiko.'' Ele sorri. ''Já que não se lembra do-do-do que posso te chamar?''

''Espere...'' Ele parou e pensou. ''... então me chame de Zero se quiser''.

''Zero? Mas po-por quê?''

''Porque é o que sinto. É a única referência que tenho sobre mim. Não sinto nada. Não lembro de nada. Não posso e nem quero somar ou influenciar. Sou um completo 'Zero'. Um número maiúsculo que nada soma.''

''Você não se lembra d-de nada?... Nadinha mesmo?... '' O outro negou com a cabeça. "Isso é estra-tranho...''

A caminhonete tinha um teto de plástico no bagageiro, que era descoberto nas laterais e no fundo. Ela começou a andar e a tremer na pista de terra, antes do garoto alemão sério levantar o olhar e ver uma placa. Nela estava escrito: ''Szczecin, 151 km''.

''Tá curioso? Se pe-pergunta onde é o nosso destino, Zero?''

''Não.''

''Você é engraçado...'', observou abrindo mais o sorriso.''A gente vai pra Po-Po-Polônia. Não sei como seremos utilizados. Talvez pra trabalhos mais leves...''

O sorriso aberto continuou, abrindo-se mais: ''O homem disse q-que me-meus pais e minha irmã estão lá. Acho q-que foram os primeiros a serem le-levados há uns 9 meses com vários outros''.

''Por isso o sorriso. Vamos ser escravos, mas vai rever seus pais. Por isto não se importa com o trabalho forçado. Que incoerência lógica!'', deduziu rapidamente o garoto sério.

''Po-pois é. Você é engraçado e também é pe-perspicaz, Zero.'' O sorriso continuou, iniciando a pausa na conversa.

Uma chuva começou a cair naquele início de noite. Veio o som das gotas no teto do bagageiro. E quanto mais a caminhonete era acelerada, mais ela balançava.

Depois de mais uma grande balançada, o garoto alemão sério fechou abruptamente os olhos e viu uma cena em sua mente. Viu a caminhonete em que ele estava capotar após uma curva fechada.''Diga para minha família que eu os amo'', ouviu ele de Heiko, que estava caído na terra molhada da estrada.

Voltou para o presente.

Olhou para o garoto loiro ao seu lado, que usava um short e uma jaqueta, e que abraçava as pernas peladas. Com a mesma voz calma e com o rosto ainda sério, ele disse para o menino sorridente: ''Você morrerá logo''.

Heiko assustou-se, mas sorriu timidamente. Confuso, contestou: ''O quê? Não brinque assim comigo d-de repente! Vo-você me assusto-tou, sabia?!''.

Zero não insistiu no assunto. Parou de focar no garoto, e também abraçou as pernas de frio, não demonstrando nem um pouco de tensão ou de medo do que viu.

O que viu aconteceria, ele julgou. Não sentiu nada sobre isto, só arriscou uma certeza.

Não sabia do porquê de ser um escravo, só sabia que era.

*

Os garotos começaram a adormecer depois do frio e da chuva chegar. A calma da caminhonete na estrada sem buracos, ajudada pelos pingos relaxantes que batiam sobre o teto, estimulou o sono a se estabelecer.

Depois de minutos, o garoto sério acordou, tendo outra visão da morte de Heiko.

Zero se viu em seu próprio corpo, sentindo a caminhonete virar e segurando, instintivamente, no suporte do teto do bagageiro. Heiko não fez o mesmo, pois continuou dormindo no instante da virada. Ele acordou segundos antes de ser arremessado da caminhonete. O carro capotou para trás, passando brutalmente por cima dele, pressionando-o contra a estrada.

Zero ainda segurou no suporte do teto quando, no giro do carro, o menino alemão passou por sua vista.

E voltou para o presente.

Heiko estava com a cabeça abaixada e apoiada nos joelhos, abraçando as pernas.

A seriedade do garoto sem nome não foi afetada depois de ter visto a tragédia com mais clareza. A falta de qualquer tipo de sentimento foi manifestada sem que ele soubesse. Afinal, o menino era um nada por dentro.

Era lógico saber que o sentimento existia, mas ele não tinha a capacidade de provar que ele existia ali, dentro de si. Pois, sentindo, era um completo vazio.

Zero não tinha vontade de acordar Heiko e de, possivelmente, salvá-lo. Queria ver a cena de sua visão repetindo-se no presente. E somente por segurança. Não sentia vontade disto, só não desejava influenciar o tempo, nem jogá-lo para a sorte dos movimentos aleatórios do acaso. A falta de empatia humana o ajudava nisso. Tinha uma vantagem em ser um nada...

Depois de alguns minutos, a cena prevista do capotamento repetiu-se no presente.

A caminhonete parou de lado. Zero ficou pendurado, segurando no suporte do teto. Ele não se feriu muito. Soltou do carro, que saía muita fumaça, tentando ficar de pé. Depois de soltar-se, pisou na terra e sentiu uma forte dor. Percebeu um corte na palma do pé ao tirar seu piso também cortado.

Saiu mancando da caminhonete, percebendo a noite que havia chegado. Foi na direção de Heiko, que tinha seu corpo iluminado pelas luzes amarelas dos postes que cercavam a estrada.

A chuva deixou-o, em questão de segundos, quase todo molhado. Ele andou com o pé machucado e descalço na lama, que suavizou a dor com a umidade.

Depois de caminhar alguns metros, percebeu o garoto na sua frente. Heiko direcionou sua visão para ele com uma imensa dificuldade. Pronunciou as mesmas palavras da visão: ''Diga para minha família que eu os amo''.

Ele, antes sorridente, começou a cuspir sangue e iniciou seu mais profundo sono.

''Não posso prometer que direi.'' E sua última frase foi ouvida.

A chuva escorreu o sangue do pequeno alemão sobre a estrada.

Zero reparou a jaqueta do garoto, que estava ensanguentada e suja de lama. Tirou-a. Torceu-a algumas vezes. Olhou em volta da estrada, ignorando o corpo no meio dela, deixando-o com os olhos abertos.

Não existiam muitos detalhes na beira. Via-se somente alguns postes de luz e algumas rochas. O menino foi até uma delas e se sentou.

Olhou para o seu corte, este que já estava bem sujo, limpou-o como pôde, aproveitando-se dos pingos da chuva. Arrancou um braço da jaqueta e amarrou em seu pé com força, o deixando quase todo envolto.

O sangue estava estancado. Sangue que unia-se ao do garoto morto.

Depois de segundos, o homem polonês saiu do carro virado, tirou a touca do rosto e olhou para o menino. Gritou e fez um gesto de pare com a mão: "Stań spokojnie!''.

Zero continuou parado. Não porque lhe foi ordenado, mas porque não sentia a mínima vontade de fugir.

Sentindo era um completo nada.

Continue Reading

You'll Also Like

(sobre)viva By Erika S. Maso

Mystery / Thriller

22.8K 2.7K 58
🏅VENCEDOR DOS PREMIOS WATTYS 2021 EM SUSPENSE 🥇lugar em suspense no Concurso Relâmpago de Natal 🥉Lugar na segunda edição do concurso Mestres Pokém...
288K 35.6K 46
Após vários dias em coma, Malu acorda em uma cama de hospital, sem lembrar nada sobre seu passado. Sua única companhia - além de colegas de quarto es...
12.5M 213K 22
LIVRO FÍSICO DISPONÍVEL NO LINK: https://www.editoralunas.com.br/renatacosta Amy Carter , morava com seu pai numa pequena cidade dos Estados Unidos...
17.8M 1.2M 91
Jess sempre teve tudo o que quis, mas quando Aaron, o sexy badboy chega a escola, ela percebe que, no final das contas não pode ter tudo o que quer...