Visceral

By user24547828

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Pedro Aaron está com a vida de cabeça para baixo quando completa seu aniversário de 18 anos. Seus pais estão... More

Capítulo 1 - Colisão.

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Blumenau, setembro de 2007.

É noite, mas eu não sei dizer com precisão o horário. Talvez fosse madrugada. Não consigo definir se está quente ou frio, mas sinto um arrepio percorrer o corpo quando me deparo com a entrada da pequena rua de barro. Há árvores altas de ambos os lados, pedregulhos que atrapalham a caminhada e uma placa de metal onde não pude ler com clareza as informações, mas posso garantir que tem algo a ver com a história daquele lugar. Ali era o começo da grande ponte de ferro.

Eu estava ofegante. Podia sentir o pulsar do coração em todas as extremidades do meu corpo suado. Um pé depois do outro sem perder o ritmo, caminhei como quem tem um objetivo a alcançar. Mirei o outro lado da ponte e quase não enxergava bem por conta da neblina. Pisei na ponte e me apoiei com uma mão na barra lateral, sentindo o vento úmido subir das águas lá embaixo. Era tão alto que eu fiz o maior esforço possível para não encarar as pedras. Vertigem e medo era o que eu mais sentia, como se fossem palpáveis, mas não parei. Um pé depois do outro. Era apenas eu, a escuridão e a ponte.

Ao passo que eu avançava, perdi a noção do quanto havia caminhado e da dimensão daquela ponte. Era como caminhar sem sair do lugar. Me senti perdido e completamente só, e o medo voltou com mais força, até que avistei uma silhueta humana no outro lado, parada diante da ponte, como se me esperasse chegar. Era uma silhueta andrógina, uma sobra em meio à neblina, um mistério que até então não fazia sentido algum, e comecei a me perguntar se voltar não seria uma ideia melhor. Quando olhei para trás, a entrada da ponte parecia bem mais distante agora e, num piscar de olhos, encarei o rio por debaixo dos meus pés. A altura era atraente, o abismo abaixo de mim e as pedras que desenhavam abstratos nas águas agitadas me fascinavam, e me amedrontavam ao mesmo tempo. Era uma atração de morte.

Meus pés ainda estavam se movendo quando percebi a presença mais perto de mim. Aquela silhueta agora tomava a forma de um anjo, com seu corpo masculino e asas abertas, não pude evitar a gargalhada, e antes que tudo aquilo me fizesse perder as estribeiras, acabei sentado na minha cama, ofegante e suado, como quem interrompe uma corrida no meio do caminho devido ao cansaço. Eu acabava de sair de um pesadelo maluco e quando me dei conta, não estava na minha casa, nem na minha cama. E foi então que lembrei: era a casa de Bruna Lara, minha melhor amiga. Está tudo bem – eu disse a mim mesmo, voltando a deitar a cabeça no travesseiro, enquanto percebia o feixe de luz entrando por entre as persianas do quarto.

Na noite anterior, Bruna e eu deveríamos ter feito o trabalho de sociologia juntos, mas ao invés disso, passamos a madrugada fazendo maratona de Grey's Anatomy com os DVd's que ela comprou num surto obcecado pela série. Não fizemos nada além de assistir e comer besteira até pegarmos no sono com a TV ligada. Estamos ferrados! – Pensei, enquanto sentia o aroma de café invadir o quarto. Bruna já estava acordada preparando alguma coisa antes de sairmos para a escola.

Ainda perturbado com o pesadelo, levantei da cama e me encarei no espelho da penteadeira de Bruna. Meu rosto era o mesmo, nem um fio de cabelo branco a mais e nem uma ruga nova.

- Feliz aniversário! – Exclamou Bruna, me assustando ao entrar no quarto com uma xícara de café.

Bruna estava feliz. O rosto radiante ainda por maquiar, os cabelos longos e castanhos soltos pelos ombros, a camiseta de ontem sem nada por baixo além da calcinha. Era assim que ela se sentia à vontade, e foi assim que acostumamos nesses quase dez anos de amizade. Nem seus pais estranhavam mais essa nossa intimidade.

- Obrigado. – Respondi, revirando os olhos em sinal de reprovação. – Mas vamos parar por aqui. É só mais um aniversário. – Expliquei enquanto pegava a xícara de café. – Não vamos fazer mais do que é.

- Não mesmo, Pedro. – Ela retrucou antes de se abaixar para abrir a gaveta, de onde retirou uma caixa média embrulhada num papel de presente roxo.

- Eu não creio que você fez isso, sua maluca! – Exclamei envergonhado. De todas as coisas embaraçosas em dias de aniversário, ganhar presentes era o que mais me deixava sem saber como agir.

Abri cuidadosamente, mas ainda sem jeito, o embrulho da pequena caixa pesada. Para minha surpresa era uma mistura de tudo o que nós dois gostamos: um box da série Desperate Housewives com as três primeiras temporadas. Um CD da Natasha Bedingfield com o pôster promocional. Além disso, dentro da caixa tinha o livro O código Da Vinci, de Dan Brown, que eu estava maluco para ler e, várias fotografias reveladas.

Dentro daquela caixa tinha mais de mim do que qualquer um poderia entender. Apenas Bruna sabia a importância de cada item que ela selecionou a dedo. Eu não sou materialista – ok, talvez eu seja um pouco. – Mas o que eu senti ao abrir a caixa e me deparar com tanta coisa incrível, foi indescritível. Dentro da caixa não continha apenas presentes que eu gostava, mas símbolos que selavam nossa amizade. Era a série que assistimos juntos, as músicas que embalavam nossas tardes de domingo, o tipo de leitura que fazíamos em silêncio na cama antes de dormir, e claro, memórias de nossos melhores momentos.

Com os olhos lacrimejantes, larguei os presentes na cama, e abracei Bruna com força. Agradeci por aquilo e não podia imaginar minha vida sem sua companhia. Um filme passou pela minha cabeça enquanto nos abraçamos. A maneira como nos conhecemos, os altos e baixos pelo qual passamos juntos, as mentiras e loucuras que um guardou do outro, as brigas e os silêncios que nos fizeram conhecer melhor um ao outro, e claro, todo o amor envolvido nesses últimos dez anos de relacionamento.

Ela não era apenas minha melhor amiga. Era uma irmã, uma alma gêmea sem a parte do sexo. Sempre brincamos que se não fosse o grande abismo que nos separa, teríamos tudo para ser um casal de dar inveja. Mas já aceitamos que a vida é bem assim mesmo. Não dá para ter tudo o que se quer.

- Agora precisamos nos arrumar, ou vamos nos atrasar para a aula. – Bruna lembrou.

Devolvi o café pela metade, já frio. Troquei de roupa e verifiquei meu material uma vez mais antes de sair de casa. Tínhamos vinte minutos para chegar se não quiséssemos pegar a aula da tenebrosa Dona Walburga pela metade. E todo mundo sabe o que acontece quando se atrasa na aula dela.

- Chegando no horário ou não, prepare-se para a tortura. Não fizemos o trabalho, lembra? – Disse Bruna sorrindo com deboche, fazendo meu coração pular mais forte dentro do peito. Eu já tinha esquecido desse detalhe.

Merda!

Engraçado, mas não me sinto nenhum pouco diferente. Os corredores da escola continuam do mesmo tamanho, as pessoas continuam sendo as mesmas de sempre, cada um no seu grupinho chato e previsível de sempre. Eu continuo me sentindo um fora da caixa, deslocado de todos os dias. O fato de eu completar hoje dezoito anos não interferiu em nada minha rotina. Não sei se fico aliviado ou chateado. Só sei de uma coisa: fazer dezoito não é isso tudo que as pessoas dizem.

Encontrei com minhas amigas no refeitório antes de entrarmos na sala de aula juntos. Passamos pela turma do segundo e primeiro ano e suspirei de alivio em lembrar que em menos de três meses estarei fora desse pedaço do inferno. Se eu passar, é claro. Ok, devo confessar que não estou tão aliviado assim, porque enquanto meus amigos fazem quinhentos planos para as diferentes faculdades no ano que vem, eu estou completamente perdido e não faço ideia do que fazer com minha vida quando o ensino médio terminar. Mas ainda não contei sobre isso a ninguém. Nem a Bruna, muito menos à minha mãe.

Eu não faço ideia do que quero ser quando crescer, e estou crescendo muito mais rápido do que eu gostaria de admitir.

Dentro da sala de aula, enquanto aguardávamos a professora Walburga chegar, Bruna se virou para mim e disse:

- O que vamos dizer se ela perguntar o motivo de não termos feito o trabalho a tempo?

Pensei muito antes de responder, mas não o bastante para conseguir formular algo que fizesse sentido. Dona Walburga entrou na sala de aula com aquele olhar altivo e, sem cumprimentar ninguém, começou a chamada de classe.

- Professora. – Chamei segurando um pigarro em forma de nó que se formava na minha garganta. Ela levantou os olhos por sobre aqueles óculos horríveis e me encarou séria, sem responder nada, apenas torcendo a boca de canto, em sinal de intolerância. – Esqueci meu trabalho em casa, como eu posso fazer para recuperar essa nota? – E mantive o olhar firme em seus olhos, aguardando mais uma sessão de humilhação pública, enquanto os outros alunos encaravam amedrontados o que viria a seguir.

Dona Walburga levantou-se da sua mesa, caminhou de cabeça erguida até o lugar onde eu estava, e pôs a mão aberta em cima da minha carteira. Me fitou por alguns segundos e simplesmente respondeu:

- Preciso de ajuda com um trabalho extra na biblioteca. Não vai recuperar a nota, mas vai aliviar o peso.

Não entendi nada, e continuei encarando aqueles olhos pretos que pareciam segurar uma risada diabólica por trás de toda aquela seriedade. Sorri com leveza, e antes que eu pudesse perguntar o que eu teria que fazer, Dona Walburga anunciou:

- Você pode ir até a biblioteca agora e quando chegar lá, vai saber o que fazer. Ao finalizar, traga a planilha de acompanhamento e a deixe na sala dos professores antes do intervalo.

Bruna me lançou um olhar como quem se sentia culpada, mas eu até que tinha gostado da ideia de escapar daquela sessão de romance russo que era a aula de Dona Walburga. Levantei da minha mesa tentando não parecer muito animado, e me dirigi até a biblioteca da escola, que ficava no final do corredor.

A biblioteca era grande. Depois da reforma que o governo providenciou com a ajuda da associação dos pais e professores, ela ganhou estantes novas, livros didáticos e romances clássicos, além de uma diversidade de revistas, apostilas, enciclopédias e, pasmem! Computadores com acesso à internet para pesquisas. As estantes e armários estavam espalhados pelos cantos da grande sala, enquanto as mesas e computadores ficavam no centro. No fundo da biblioteca ficavam as estantes maiores onde os livros deveriam estar organizados por assunto, autores e títulos. Pois bem, não estavam. O que vi quando entrei foi uma cena pós-guerra. Era como se um furacão tivesse passado por ali na noite anterior e todos os livros tivessem sido jogados contra o ventilador de teto e arremessados por todos os cantos da biblioteca. Entendi o que eu teria de faze na hora, e me arrependi de ter sentido alívio.

Parecia que o lugar estava vazio, então entrei devagar passeando por entre a bagunça, quando fui surpreendido por uma voz atrás de mim.

- Posso te ajudar? – Disse a voz masculina atrás de mim. Levei um susto e pulei rapidamente para trás, me virando depressa num ímpeto de defesa.

O que eu senti naquele instante não pode ter sido algo natural deste mundo. Antes mesmo de me virar, era como se uma leve corrente elétrica estivesse percorrendo meu corpo. Era também estranha a sensação de familiaridade que aquele momento me proporcionava, como se eu já o conhecesse, como se eu já tivesse passado por aquilo antes em algum momento da vida.

Eu podia jurar que estava fervendo de nervosismo, e meu rosto com certeza estava avermelhado. Eu sentia meus lábios tremendo enquanto tentava disfarçar os movimentos involuntários de meus dedos.

- Desculpa, não quis assustar. – Disse o homem diante de mim, estendendo a mão como quem tenta acalmar alguém, mas eu estava nervoso demais para entender o que estava acontecendo ali, e por uma fração de segundos eu me esqueci de tudo. Eu só enxergava seus olhos castanhos que pareciam um abismo me atraindo para dentro deles.

- Tudo bem, eu só me assustei. – Respondi sentindo o canto da minha boca se contorcer num movimento que eu não controlava.

- Tudo bem. – Ele respondeu sorrindo como quem achasse graça do susto. – Posso te ajudar em alguma coisa?

- Eu... – Pigarreei antes de continuar. – Dona Walburga me mandou vir aqui que eu saberia o que fazer quando chegasse.

- Ah sim! – Ele exclamou sorrindo de volta, e aquele sorriso era tão lindo e aberto que chegava a ser perturbador. – Então era por você mesmo que eu estava esperando. – E para meu desconserto, ele sorriu de novo. – Como é o teu nome? – Perguntou.

- Pedro. – Respondi. – Pedro Aaron.

- E você está em que série, Pedro? – Perguntou caminhando para a mesa principal enquanto eu o seguia.

- Terceiro ano. – Respondi tentando não demonstrar a voz embargada. O maldito nó ainda estava ali na garganta, arranhando minha fala, denunciando me nervosismo.

- Maravilha, hein? – Disse ele sorrindo enquanto procurava por algum papel dentro de uma pasta azul em cima da mesa bagunçada. – Mas se você está aqui, deve ter feito algo de errado, não?

Eu sorri, e dessa vez me sentindo mais à vontade. Não saberia dizer se ele estava sendo simpático ou se ele era mesmo daquele jeito. Mas eu estava gostando.

- Esqueci de fazer um trabalho. – Respondi fazendo uma careta. – Me julgue. – Brinquei.

Ele então sorriu e parou de mexer nos papéis, me encarando de um jeito que eu não pude conter o nervosismo voltando para minha garganta. Eu estava sendo analisado e não tenho certeza se aquilo era bom ou ruim.

- Eu, julgar um aluno por não fazer o trabalho de escola? – Sorriu. – Quem não tem teto de vidro, que atire a primeira pedra, não é? – E gargalhou com prazer, como se estivesse lembrando de seus próprios dias de ensino médio.

- Verdade. – Respondi sem muita graça.

Nos encaramos por um instante sorrindo, até que o silêncio e os olhos imobilizados se tornaram desconfortáveis.

- Meu nome é Lucas. – Ele disse do nada estendendo a mão para me cumprimentar.

- Prazer em conhecer, Lucas. – Respondi me encolhendo um pouco. – O que você faz aqui na escola? – Perguntei.

- Sou estagiário. – Respondeu. – Ainda estou na faculdade e me ofereci para auxiliar em alguma escola púbica. Faz parte do meu trabalho de conclusão de curso.

- Nossa, que bacana. – Respondi me perguntando qual a idade dele. – Quem em dera eu saber o que fazer ano que vem quando tiver de escolher a faculdade. – Confessei me sentindo completamente confortável com o estranho Lucas que eu havia acabado de conhecer.

- Você ainda não sabe? – Perguntou ele me analisando mais uma vez, e agora pude perceber melhor.

Lucas estava vestindo uma calça jeans surrada, um par de tênis esportivos, camisa polo branca com grandes listras verdes. O conjunto no geral não combinava em nada entre si, mas o que é que eu entendo de roupa? Apesar de reprovar seu gosto para moda, ele estava lindo. Cabelos castanhos claros penteados para o lado, num corte clássico padrão. Seus olhos castanhos tinham um formato que se encaixava perfeitamente com seu rosto quadrado. Ele devia ter quase um metro e oitenta, e ao julgar pelo braço de fora e o par de tênis, gosta de praticar alguma atividade física. Eu ia perguntar se ele estava estudando educação física, mas achei muito invasivo, então apenas perguntei qual era o curso que ele fazia.

- Filosofia. – Respondeu sorrindo com timidez.

- Você está falando sério? – Perguntei sem pensar e me arrependi no mesmo instante.

- Todo mundo tem essa mesma reação que tu, fica tranquilo. – Lucas respondeu enquanto analisava alguma coisa naquela lista em sua mão. – Eu sei que parece estranho, nos dias de hoje

ainda mais. Eu amo filosofia. – Disse fazendo sinal para que eu o acompanhasse, e caminhamos até as estantes do final da sala.

- E o que te ajudou a decidir esse curso? – Perguntei curiosamente interessado.

- Pergunta difícil. – Confessou, sorrindo sem graça. – Meus pais, foram os grandes motivadores dessa decisão. – Confessou.

- Nossa, se eu seguir o desejo dos meus pais, não sei se viro médico ou advogado, e posso garantir que não tenho sangue nem nervos para nenhum e nem outro. – Gargalhei.

Lucas sorriu em seguida, mas tornou a ficar sério enquanto se concentrava na lista. Me explicou como organizar os livros e revistas, e disse que mais alunos deveriam estar ali para ajudar. Eu apenas assenti com a cabeça, mas por dentro e sem saber exatamente o motivo. Torci para que não chegasse ninguém. Eu estava interessado nele e queria ter mais tempo para conversar.

- Eu amo filosofia. – Menti quebrando o silêncio e torcendo para que ele não me fizesse pergunta alguma sobre o assunto. Só queria inventar algo em comum para manter o interesse em andamento.

Lucas virou-se depressa com os olhos arregalados e curiosos. Sorriu para mim como quem estivesse encontrado algo e andou até onde eu estava. Parou apoiando-se sobre uma pilha de enciclopédias.

- Eu não acredito que um aluno do terceiro ano, que esquece de fazer o trabalho de sociologia, cujos pais querem que ele seja médico ou advogado, realmente goste de filosofia.

- Bom... – Eu disse pensando o mais depressa possível sobre o que eu poderia dizer para amenizar a mentira. – Na verdade eu estou... começando agora a ler sobre o assunto e acho interessante.

- Filosofia é a mãe de todo o conhecimento. – Disse ele orgulhosamente enquanto recolhia várias revistas dentro de uma caixa e levava para a estante da frente.

- O que você poderia me indicar para aprender mais sobre o assunto? – Perguntei para tornar aquela conversa ainda mais convincente.

- O que tu achas de a gente marcar um café hoje à tarde e eu levo alguma coisa para ti, e conversar sobre o assunto?

- Hoje? – Exclamei sem esconder a surpresa. – Podemos fazer isso amanhã? – Pedi. – Hoje é meu aniversário e já tenho planos o dia todo. – Expliquei.

- Aniversário? – Perguntou com espanto. – Quantos anos?

- Dezoito. – Respondi com um sorriso de orgulho, e pela primeira vez no dia eu senti como se fazer dezoito fosse algo novo e diferente.

- Uau! Parabéns! – Exclamou ele me dando um leve tapa nas costas com um pouco mais de entusiasmo na entonação de voz.

- Obrigado. – Respondi um pouco tímido. – Agora já posso ir para cadeia. – Brinquei.

- Vamos esperar que nunca precise. – Ele disse sem sorrir. – É um lugar horrível. – E o silêncio constrangedor voltou.

- Amanhã? – Perguntou Lucas quebrando o silêncio, me confundindo.

- Amanhã, o quê? – Perguntei enquanto analisava cuidadosamente a pilha de revista científicas que eu estava organizando.

- O café. – Disse ele sorrindo sem tirar os olhos da estante onde limpava antes de organizar as enciclopédias.

- Ah, sim! Claro. Amanhã está tranquilo. – Respondi meio sem graça.

As horas seguintes se passaram entre momentos de um silêncio confortável, e pequenas conversas aleatórias que não duravam mais que cinco minutos. As duas primeiras aulas voaram sem que eu percebesse. Era muito bom estar ali com aquele estranho desconhecido, que me fazia sentir inacreditavelmente confortável, como se fossemos amigos por anos. Apesar de ser alguns anos mais velho que eu, Lucas conseguia acessar meus lados mais complicados, e fazia isso sem que eu me sentisse mal ou envergonhado. Era fácil se abrir com ele, contar o que quer que fosse, fazer perguntas idiotas e rir de mim mesmo na maior naturalidade, que apenas amigos conseguem fazer entre si. Havia também algo a mais acontecendo ali, algo que eu sabia ser arriscado demais para sequer ousar pensar. Algo que eu não quis admitir a mim mesmo, ainda que esse algo fosse quase palpável de tão óbvio. Nossos olhares cruzavam entre si de vez em quando, e logo após um leve sorriso nascia em nossas bocas, exatamente como os trovões após os relâmpagos. Olhares e sorrisos. Trovões e relâmpagos.

Lucas ligou um pequeno rádio que estava empoeirado no canto da mesa principal. Estava tocando Beautiful Liar de Shakira com Beyoncé, e eu posso jurar que o vi cantarolando a canção diversas vezes enquanto organizava os livros numa concentração invejável. Confesso que era quase constrangedor um homem daquele tamanho, num tom de voz gravíssimo, tentando imitar o timbre de Shakira. Eu queria muito dar uma gargalhada, mas segurei ela na garganta e me concentrei na música e nos livros diante de mim, que pareciam estar se reproduzindo ao invés de diminuírem.

Por diversas vezes, Lucas precisava passar por mim para pôr alguns livros e revistas nas estantes de trás, e sua aproximação me deixava completamente vulnerável. Em alguns momentos eu podia sentir seu cheiro amadeirado como quem havia acabado de sair de um banho quente e passado o primeiro desodorante que viu pela frente. Pela escolha de roupas, eu duvido muito que ele era do tipo que sabia escolher o perfume ou desodorante apropriados também. O problema não era esse, mas o fato de eu achar isso tudo muito atraente e até charmoso. Não pude evitar quando imaginei ele saindo do banho enrolado numa toalha, com gotas de água morna escorrendo pelas costas, cabelos molhados exalando o aroma típico.

Meu devaneio foi interrompido quando olhei para a porta da biblioteca e vi Lucas conversando com alguém, e queria morrer ao invés de ter que ficar ali dentro mais quarenta minutos dividindo espaço com aquela presença indesejada. Quase caí duro quando vi quem era.

Eu não acredito que Ricardo está aqui. Eu não mereço isso. – Praguejei para mim mesmo quando vi que Ricardo cumprimentou Lucas e estava entrando, largando a bolsa no canto da sala. Quando nossos olhares se cruzaram, Ricardo enrubesceu e apenas acenou com a cabeça algo que significava "oi". Fiz que nem vi e mergulhei nos meus livros, tentando não prestar atenção em nada do que acontecia ao meu redor.

Ricardo e eu não nos falávamos desde o primeiro ano quando ele resolveu terminar comigo e continuar escondendo sua verdadeira identidade dentro do armário. Ele foi meu primeiro amor, meu primeiro sexo, o primeiro a me fazer sentir coisas que eu jamais imaginei existir, e foi também o primeiro a partir o meu coração em todos os pedaços possíveis. Ricardo é um covarde que se esconde atrás de uma máscara e vive nas sombras de um personagem que ele inventou. Ás vezes eu sinto pena, mas na maioria das vezes eu tenho raiva.

Faltava meia hora para meu trabalho na biblioteca terminar antes de eu sair para o intervalo, quando Lucas avisou que precisava resolver uma situação na secretaria, mas já estaria de volta. Assim que ele saiu, Ricardo suspirou alto chamando minha atenção.

- Então é assim que vai ser? – Perguntou ele num tom sarcástico e intolerante sem olhar para mim. – Um ano e você ainda insiste em me tratar como se eu fosse um monstro?

- Você não terminou comigo para que a gente continuasse tendo contato. – Respondi rispidamente.

- Você não entende, não é mesmo Pedro? – Perguntou ele cerrando a mandíbula num tom raivoso. Eu quase pude ver seus dentes entrelaçando em ressentimento, como se estivesse prestes a dar um murro em uma daquelas estantes.

- Não, Ricardo. – Respondi sentindo o imenso nó na garganta arranhar minha fala. – Não entendo e, honestamente, a essa altura, n]ao quero entender nada que venha de você. Não faz sentido algum você se sentir no direito de me afrontar como se a culpa disso tudo fosse exclusivamente minha.

- Seu problema sempre foi esse egoísmo. – Ele disse voltando a encarar os livros. – Você é incapaz de compreender o que não vem de você mesmo. É uma pena.

Era como se meu coração estivesse pulsando no meu pescoço. Eu podia pular em cima dele e quebrar aquela cara de pau, de tanta raiva que eu sentia. Meu coração batia freneticamente e minha respiração ofegante denunciava meu nervosismo. Eu precisava sair dali. Quando me mexi para sair do lugar, Lucas voltou e flagrou o clima tenso entre nós dois. Ricardo pegou a pilha de revistas da caixa ao lado e as carregou até a estante que ficava fora do meu ponto de vista. Lucas me encarou confuso como quem me perguntasse o que estava acontecendo, e eu apenas acenei com a cabeça que não queria falar daquilo. O silêncio durou até o sinal soar pelos corredores anunciado o intervalo.

Mal me despedi de Lucas e caminhei a passos largos para levar o relatório até a sala dos professores, e depois me encontrei com Bruna e as outras meninas no refeitório, onde passei boa parte do meu tempo ouvindo-as discutir sobre alguma banda indie que estava em alta nas rádios. Bruna percebeu que algo estava estranho, mas não me perguntou nada, além de como foi esse trabalho extra e, se desculpou pela milésima vez por não ter feito o trabalho comigo na noite anterior. Não falei nada sobre Lucas com ela. Mas eu estava ansioso para o café de amanhã.

Ricardo e os amigos imbecis dele passaram por mim no refeitório. Lançaram sobre mim aquele olhar de deboche por eu estar sentado num grupo de meninas, e depois de sorrisos abobalhados, seguiram para o outro lado, onde eu já não os enxergava mais. Outra vez eles conseguiram me fazer sentir como sempre desde o primeiro ano do ensino médio: diminuído.

É muito estranho estar na minha pele ás vezes. Tem dias que acordo como qualquer outro garoto da minha idade. Sigo minha rotina sem ter que me preocupar com muito. Como meu café da manhã, me arrumo, vou para a escola, almoço com Natália, minha irmã e ás vezes com minha mãe. Vou para a loja de livros onde trabalho como atendente, e no final do expediente volto para casa, estudo e faço as atividades antes da janta. Depois passo tempo com minha irmã e minha mãe. Ás vezes, quase nunca, meu pai lembra que eu existo e resolve telefonar para conversar comigo e Natália antes de dormir. Essa semana ele ainda não deu sinal. Antes de dormir eu ouço um pouco de música, escrevo algumas coisas no meu caderno de anotações (um hábito que adquiri durante o divórcio dos meus pais e, que me ajudou a superar aquela fase negra da família). Adormeço quase sempre por volta da meia-noite, ás vezes antes.

Há dias que essa rotina me sustenta. Mas há outros em que chego em casa destruído por dentro, exausto emocionalmente. É difícil ser gay na minha idade, no meu tempo, na realidade que minha sociedade vive. Quase diariamente ouço uma ou duas piadas ridículas sobre minha condição. Eu vi pessoas se afastando de mim, gente cochichando pelos cantos sobre minha vida particular. Me sinto deixado de lado por determinados grupos na escola e tenho muita dificuldade em fazer amizade com os meninos da minha turma. Eles se sentem ameaçados e expressam isso de maneira covarde, com agressões verbais e muitas vezes me empurram nos corredores, me xingam de palavrões e ofendem até minha família. Não raro, Natália vê essas coisas acontecendo e volta para casa em prantos, sem saber o que fazer para se proteger.

Para minha sorte, eu tenho uma mãe incrível, que passou por cima de seus preconceitos e dúvidas em nome da harmonia de nossa casa. Ela foi quem me incentivou a ser quem sou, a viver de acordo com o que eu acho melhor pra mim sem me importar com a opinião dos outros, e também me garantiu que sempre que eu precisasse, podia contar com ela. Mas eu não posso chegar em casa todas as vezes que sou ofendido e despejar em cima dela minha frustração. Eu vivo esperando por dias melhores vivo tentando mudar o ponto de vista das pessoas sobre sexualidade e, não me canso de lutar contra os preconceitos em geral. Mas eu me canso, fico frustrado, sinto medo e tem dias que não quero sair de casa para enfrentar essa merda quer é ser diferente da maioria. As pessoas não enxergam o Pedro. Elas enxergam o Gay, e isso me deixa muito mal. Como se elas fossem incapazes de me ver como eu realmente sou.

Faz dois anos que eu me assumi abertamente para minha família e amigos próximos. Tem muitas lições que aprendi nesse caminho, mas há muito que eu ainda estou aprendendo, e nem sempre sei lidar com graça. Dias como hoje me deixam completamente vulnerável e sem esperança de algum dia me ver livre do preconceito e das zombarias. Já me senti culpado, amaldiçoado, doente e defeituoso por ser quem eu sou. É um mundo solitário, cansativo e cheio de altos e baixos que exigem um fôlego tamanho. Hoje é meu aniversário, caramba! Eu só queria um pouco de paz.

Minha salvação é o apoio de minha mãe e Natália, e das minhas amigas. Fora isso, eu me sinto completamente isolado e sozinho nesse mundo podre onde o fato de eu ser gay é mais importante e marcante do que minhas qualidades e virtudes que beneficiam o coletivo num geral. Eu sempre me sinto como estivesse carregando uma grande marca na testa, ou como se fizesse parte de um rebanho diferente. É horrível tentar me encaixar numa sociedade onde eu sou considerado uma aberração, onde recebo xingamentos e gargalhadas impiedosas pelos corredores da escola.

Eu não me odeio, não me censuro, não deixo de ser quem sou e nem nego a mim mesmo. Eu só odeio ter de lidar com essa merda que é andar na contramão do certo e errado imposto.

Logo após o sinal de término do intervalo, eu e minhas amigas voltamos para nossa sala, onde aguardamos pelo professor de educação física. Duas aulas seguidas de vôlei, e eu não estava nem um pouco na disposição de correr atrás de uma bola pela quadra de esportes. Bruna me contava alguma coisa sobre um campeonato que aconteceria em novembro, mas eu não prestei atenção. Estava ocupado demais notando Lucas do outro lado do corredor. Ele parecia nervoso em seus passos largos em direção à secretaria. E foi quando Manu e ele esbarraram nos corredores que eu levei o maior susto e fiquei muito confuso. Confuso não. Frustrado é a palavra correta para o que eu senti.

Manu é uma amiga nova que fiz durante um passeio para as dunas de Florianópolis em março. Ela é aluna nova e está no primeiro ano do ensino médio. Nos tornamos amigos quando percebi que ela parecia completamente deslocada no fundo do ônibus de viagem, como quem estivesse tentando se esconder. Lembro que sentei ao lado dela e perguntei seu nome e ela me contou toda sua história depois disso. Passamos aquele sábado inteiro juntos, e por isso quase tive problemas de ciúmes com Bruna, mas no final das contas deu tudo certo e ganhamos uma amiga a mais. Porém me dei conta de que sabia muito pouco dessa garota, e vendo-a conversando com Lucas de maneira tão íntima, quem sentiu ciúmes foi eu, o que me deixou constrangido. Que direito eu tenho de sentir alguma coisa por esse cara que eu acabei de conhecer? O problema não foi avistar os dois conversando, mas meu coração deu um pulo quando os dois se abraçaram forte e Lucas se despediu de Manu com um beijo no rosto, cheio de carinho e sorrisos. Por mais que eu tentasse me concentrar no aqui e agora, eu só conseguia ver aqueles dois abraçados no corredor da escola, e não pude evitar de me perguntar se Manu e aquele cara tinham alguma ligação romântica. Amanhã eu deveria sair com ele, tomar um café e conversar sobre filosofia. Um de nós dois estava equivocado quanto às intenções desse encontro, e eu admiti a mim mesmo que o equívoco esteve do meu lado o tempo todo.

Minha curiosidade não me deixaria quieto e nem mesmo me concentrar na partida de vôlei, então eu decidi ceder ao instinto e me deixar levar. Quando dei por mim, já estava parado na porta da sala onde Manu estava. Antes que ela entrasse, gritei seu nome e ela me esperou, fazendo sinal com as mãos dizendo que precisava entrar logo.

- Hoje eu vou fazer uma festa do pijama na minha casa, para comemorar meu aniversário, e gostaria que você fosse. – Eu disse no calor do momento sem levar em conta as possíveis consequências desse convite mal pensado.

- Nossa, que ótimo! – Manu exclamou surpresa com o convite. Ela já sabia que era meu aniversário, mas me abraçou de novo e disse que iria com certeza absoluta em minha casa.

- Só não pode levar namorado. – Eu disse fazendo uma careta como quem estava brincando. Até me senti um pouco fútil por isso, mas já não era mais eu quem estava no controle da situação. Eram os meus nervos.

- Namorado? – Perguntou ela confusa. – Eu tenho namorado e não estou sabendo disso? – Brincou soltando uma gargalhada me deixando ainda mais confuso, e um tanto aliviado.

- Eu vi você e um rapaz se abraçando agora. – Expliquei. – Pensei que ele fosse...

- Ele é meu irmão. – Respondeu ela ainda entre gargalhadas. – Lucas, é meu irmão. Foi ele quem você viu me abraçando.

- Nossa! – Exclamei envergonhado. – Me desculpe, eu deduzi errado então. – E sorri tranquilo com a nova informação. Lucas estava mais perto de mim do que eu imaginava. Puta merda!

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