Cícero Quer Ir à Praia [compl...

By isabeula

59.8K 10.1K 4.5K

Cícero tem para si, que o funk ouvido diariamente por sua vizinha do lado foi inspirado na sua vida. Porque... More

PARTE I - Antes da Praia
1. A Mãe Enlouqueceu
2. Ferrado e Otário Como Deve Ser
3. Mamãe Não Sabe Usar o GPS
4. Expulsos do Supermercado
5. Os Genes Hereditários
PARTE II - A Praia
6. O Dia D
7. O Dia D - parte II
8. A Célebre Vizinha
9. Vovó Quer Ser Dançarina
10. A Faca que Matou
11. Gregório Tem Interesse
12. Segunda Guerra
13. Querido Cícero
14. O Megafone
PARTE III - Depois da Praia
16. A Alma Não Tem Coturnos
17. Eduarda Fala Sozinha
18. A Família Que (Não) Pedi
19. O Sumiço
20. A Casa Silenciosa
21. Sou Obrigado a Viver
22. Ela
00. Notas da Beula
23. A Volta
24. Aquilo que Não Vi
25. A Calmaria
26. O Trio, as Cinzas e a Praia
NOTAS FINAIS

15. O Dia Internacional das Minhas Calças

1.5K 323 252
By isabeula

Há luzes para todos os lados, inclusive nos pés do garoto que está na minha frente. O tênis dele brilha. E brilha sem parar, não só a cada pisada. Bizarro o gosto das crianças de hoje em dia.

As famílias já estão quase todas aqui, porque ninguém quer ser o atrasado da vizinhança. Os adolescentes estão espalhados pela praça, os pais mantendo a postura e as crianças como pequenos demônios com sede de pirraça. Eram todos iguais.

O palco desse ano é um pouco maior e possui até uns refletores, o que acho bem desenvolvido, com umas cortinas que indicam a hora do show.

Eduarda me entrega a câmera e diz para que Mãe não a pegue de jeito nenhum, porque, provavelmente, "vai ter um troço".

- Por que ela teria um troço? – pergunto, confuso. Minha mãe é bem animada com essas coisas e, claramente, iria tremer todas as fotos. Mas, ter um troço? Não há motivo.

Eduarda sorri maliciosamente e com um pouco de nervosismo.

- Digamos que a família conservadora vai tremer na base.

- Como assim?

- Surpresinha! – ela diz e corre. – Não se esqueça da câmera!

E assim, sou deixado com a câmera na mão, sozinho, confuso e abandonado pela irmã gêmea.

Gregório chegou com uma blusa havaiana. Junto dele, um mini-Gregório, absurdamente mais fofo e mais ruivo, surge e suga toda a atenção da minha mãe. Ele está vestido de dinossauro, por algum motivo que desconheço.

- Minha mãe me obrigou a usar essa puta blusa horrorosa, mas obrigar a peste a usar uma roupa de gente, nada.

- Vai ver ela sempre quis ser paleontóloga.

- Que tristeza. – ele tira os fones de ouvido do pescoço e os enfia dentro de uma mochila, que até então não tinha percebido. É uma mochila do Ben 10. – É da peste. – ele esclarece. – Tessa não está por aqui?

- Ainda não vi.

- Estranho.

- Por que? Você sabe que ela é doida, daqui a pouco aparece. – digo e ele faz uma careta.

- O irmão dela perguntou se ela estava comigo... – Gregório diz, com o rosto preocupado, mas segundos depois relaxa. – Sei lá. Ela é doida, verdade. Ei, se liga aqui.

Meu melhor amigo me mostra o celular com uma foto de duas garotas e um garoto. Espero que ele diga alguma coisa, mas nada. Ele apenas aponta para a garota do canto, com uma cara que reconheço de quando não quero tirar foto, mas sou obrigado.

- Quem é?

- Quem é? Cícero, meu amigo. É ela. – ele diz. – Sua memória é terrível, precisa ir ao médico. Comer peixe também resolve, ou é cenoura? Nunca sei, minha mãe quem sabe. Enfim, é a Mariana, que me ignorou. Achei o perfil dela. Não que eu tenha ficado um bocado de tempo procurando, simplesmente apareceu. Depois de duas horas, mas...

- Você é um stalker.

- Eu não so...

- Você é um puta stalker. – Gregório faz uma careta.

- Eu sei. É triste admitir. – dou tapinhas em suas costas.

Minha mãe começa a dar um show quando percebe que a câmera não está com ela e somos obrigados a nos juntar aos nossos pais, para tranqüilizar não só a minha mãe, como a de Gregório também. "Está comigo", eu disse; ela sorriu e disfarçou a vergonha.

Depois de vinte minutos, que mais pareceram uma eternidade, estava na hora da abertura do Festival. Todas as famílias se reuniram em frente ao palco, aparentemente animadas. Uma garota assumiu o posto de DJ e um rapaz, que lembro de ter visto no colégio junto de Eduarda, apareceu no palco com um microfone.

Testou uma, duas, três vezes e sorriu. Falou um monte de baboseiras: quanto tempo há desse festival, quem começou a fazê-lo, como podemos contribuir para o próximo, e todas essas coisas. Mas o que ele disse, no final, me instigou:

- Segurem-se, coxinhas, e bem-vindos ao 15º Festival de Inverno. – sorriu e se virou, levando consigo o microfone.

As cortinas se fecharam, e as famílias, confusas, bateram palmas quando, dois minutos depois, as cortinas voltaram a se abrir.

E aí, meus amigos, eu entendi o que Eduarda quis dizer com Mamãe Vai Ter um Treco.

Não só ela, como todas as outras famílias. Algumas, poucas, permaneceram estáticas, enquanto a minha, por exemplo, enlouqueceu. Deixe-me explicar:

Em cima do palco, há dez garotas. Tudo bem até aí, eu sei, super normal. Só que não é só isso.

Todas elas estão vestidas como travestis, com a maquiagem e perucas idênticas e tudo o mais. Preparo a câmera e a primeira foto que tiro é das garotas, a segunda é da reação das mães e dos pais. Principalmente dos meus.

De repente, reconheço a música e as roupas, e todas começam a dançar como no musical. Elas estão interpretando The Rocky Horror Picture Show, ou seja, o horror para a família tradicional brasileira, principalmente, da minha pequena cidade conservadora. O planeta transexual do musical se instalou no palco e o rosto das garotas foi a melhor coisa do mundo, indo de deboche ao nervosismo inicial.

Reconheço Zelda, entre as garotas, vestida de Magenta. Eduarda faz o próprio Frank. Olho bem para minha irmã e reconheço sua roupa, apesar de idêntica a do filme, percebo o que ela foi um dia: minha calça.

Minha. Calça.

Eu vou matar a Eduarda!

Minha calça, rasgada e colada, vestida em Eduarda para todo mundo ver. A calça que eu uso – ou melhor, usava – para ir para o colégio. Ela é uma filha da mãe maldita, nem avisou que pegou. Ao invés de usar a própria calça, onde já se viu?

- Ela está com a minha calça! – digo, indignado, para minha mãe. Mas ela está em choque ainda pelo que está presenciando, para me dar qualquer atenção digna.

- Essa garota perdeu a cabeça! – Mãe começa a dizer. – Ela perdeu a cabeça!

Enquanto ela diz isso, com a irritação estampada no olhar, meu pai sorri, como se estivesse orgulhoso, e até cantarola Time Warp – uma das primeiras músicas do filme -, para a minha surpresa. Aparentemente, de mamãe também, porque ela dá um tapa nele e reclama de alguma coisa. Pai, por outro lado, ri ainda mais e tenta controlar sua esposa, dando beijinhos e algumas tentativas de carinho nos braços agitados dela.

Volto minha atenção para a apresentação e encontro os olhos de Zelda. Ela sorri, mas não tenho certeza de que foi para mim, não sei nem se ela está me enxergando de lá. Mas eles são tão lindos, que não desvio.

É de um castanho tão puro. Tão... Verdadeiro.

Acompanho-os até a hora do fim da apresentação e vou com Mãe encontrar com elas. Enquanto minha progenitora está aos berros (baixos) com Eduarda – que ignora -, vejo minha nova amiga no canto, falando com outra garota. Ela já está retirando a maquiagem e voltando a ser Zelda, quando chego até ela.

- E aí, Cícero? – ela diz, retirando algo parecido com cílios enormes do olho. Vira-se para mim, sorrindo. – Gostou?

Não sei bem se ela está falando dos cílios em sua mão ou da apresentação em si, mas sorrio de volta. – Vocês são bem loucas. Seus pais devem estar loucos contigo.

Ela não diz nada, apenas continua a retirar os acessórios. Não sei se disse algo errado, disse? Eu sempre digo. Sempre estrago tudo, mesmo.

- Sua irmã parece estar ferrada. – diz, depois de um tempo, voltando a me encarar.

- Ela sempre está ferrada. Vai superar.

- Boa sorte pra ela. – sorri, pegando uma mochila de renda e colocando num dos ombros. – Quer dar uma volta? Você gosta de churros? Vi que tem uma barraquinha logo ali.

- Eu amo churros. Mas amo, tipo, de verdade. Não é como meu amor por paçoca, ou tapioca. É mais como amor de mãe.

Zelda começa a rir.

- Eu estou falando sério, Zelda. Eu amo churros.

- Tudo bem então, senhor Amo Churros. Vamos lá! – ela diz, sorrindo.

Começamos a caminhar, um silêncio confortador se instala. Minhas mãos no bolso me dão desequilíbrio e quase caio, mas ela não percebe ou pelo menos não comenta a gafe. Depois de um tempo, ela diz:

- Sabe, é a primeira vez que você diz meu nome. Sem contar a outra primeira vez, quando citou horrorosamente o jogo. Acho que podemos bani-la de nossas lembranças e batizar essa como, oficialmente, a primeira vez que disse meu nome.

- Eu citei o jogo, né? – ela concordou, rindo. – Meu Deus.

- Todo mundo tem defeito. – faço uma careta e ela começa a rir. – Eu até joguei uma vez... – ela sussurra e logo faz cara de brava. – Mas ninguém pode saber!

Meu sorriso vai de orelha a orelha, o dela começa a aparecer segundos depois e é tão bonito que quase me derreto todo e desequilibro mais uma vez.

Fico praticamente o festival inteiro conversando com Zelda e isso não foi nenhum problema. De certa forma, ela me deixa a vontade e isso é bom demais, para ser sincero. Falamos por horas, caminhamos por todos os cantos, comemos churros e, mais tarde, ela tomou um açaí, enquanto tomei sorvete.

Descobri que ela é vegetariana – contei que minha mãe ficaria doida se eu a convidasse para jantar e ela riu, dizendo todas as vezes em que passou perrengue para conseguir comer -, mas, apesar disso, não desistiu de seus princípios. E o motivo é um dos mais loucos que já vi: ela não come carne, porque crê serem reencarnações de humanos. Ela disse que acredita em reencarnação e que todos nós temos oportunidades de consertar erros passados, mas que seria muito triste se voltássemos como humanos porque, "vai que alguém se apaixona por uma reencarnação e essa pessoa morre quando faz o que devia ter feito? A outra vai sofrer tanto!", ela disse. Realmente. Então, ela explicou que acredita que voltamos - quando voltamos - como animais.

E, claro, porque ela ama muito os animais.

Zelda é bem doida.

Ela descobriu que sou uma pessoa bem inútil que assiste série o dia inteiro. Contei que Vikings é a minha preferida, ela disse que tentou começar a ver, mas tinha tanto sangue que desistiu. Perguntei se ela já tinha visto um episódio de Game of Thrones, a resposta foi: "Deus me livre! Tanta morte!"

Ela não tem uma preferida, disse que só vê quando não está muito afim de assistir um filme.

- Sempre vejo um do Woody Allen por mês. É uma coisa minha.

- Ele me irrita.

- O quê? – ela perguntou, exasperada. Então começou a dizer o quanto eram bons os filmes dele e que os diálogos eram "Incrivelmente bem feitos". Contei que preferia o Tarantino, então ela pensou por um instante. – Ele é bom, mas... Você sabe... Sangue demais.

- Por isso que é bom!

- Ai, meu Deus, Cícero!

Só faltou ela me bater, mas começou a rir logo depois.

Estamos sentados na grama e não faço ideia de onde minha família, ou Gregório, ou Tessa estão. Na verdade, não estou me importando muito com isso. O céu está repleto de nuvens, mas dá para ver a Lua daqui e isso é bonito demais para que eu pense em qualquer outra coisa.

Quando olho pra Zelda, percebo o quão linda ela fica sob a luz do luar e me dá vontade de tocar em seu rosto, ou falar isso para ela. Sei que não devo, mas é como um ímã que me puxa. Resolvo ficar em silêncio e apenas olhar para o céu, como ela está fazendo. Só para não fazer uma besteira, como de costume.

Depois de alguns minutos, ela se vira para mim, com os lábios esticados num sorriso.

- Sabe, amanhã tem um evento bem legal e vai ser aqui mesmo. Eu ia sozinha, mas não seria muito divertido.

- Ahn. – isso é uma resposta, Cícero?

- Você quer vir comigo? – ela pergunta. Seus olhos castanhos brilham, mesmo na pouca luz e quase me acendem por dentro. É claro que eu quero, meu Deus. – É aquele Entre Olhares, é bem... Profundo. – ela ri, ao falar.

- Sim, sim, eu quero.

Zelda sorri e fica me observando quando sorrio de volta. Ficamos assim até meu celular apitar, acusando uma mensagem de Eduarda, toda desesperada. Quando vejo o horário, já são quase onze da noite. Arregalo tanto os olhos, que a garota ri.

Gêmea Má:

EU TO VENDO VOCÊS DAQUI

Eu:

Não enche, Duarda

- Desculpa. – digo. Zelda balança a cabeça, ainda sorrindo.

Gêmea Má:

Vem logo, a mãe ta doida que nem a vovó

CÍCERO, VEM

ELA VAI PEGAR O MEGAFONE

- Meu Deus. – olho para Zelda e fico triste em ter que ir embora. Está tudo tão bom que... Que simplesmente não quero ir. Uma pena não ser dono do meu próprio nariz. Guardo o celular e faço uma careta. – Preciso ir.

- Tudo bem. – ela sorri.

- Até amanhã.

- Até. – diz.

Me levanto e começo a andar, quando a ouço me chamando.

- Cícero! Espera!

- O... – então seus braços finos e fortes me envolvem. Fico paralisado, tentando entender o que está acontecendo.

Zelda está me abraçando.

Demoro alguns segundos até meus braços responderem ao comando do meu cérebro, então nos encaixamos. O abraço não é só confortável, é... É como um lugar certo de estar.

Logo depois de nos afastar, vou embora, encontrar minha família. Quando chego até em casa, ainda pensando – sorridente - nas últimas horas do meu dia, vejo uma mensagem que me faz sorrir o triplo:

Zelda:

Obrigada por hoje, Cícero

Continue Reading

You'll Also Like

1.4K 113 20
Como você se define? Poder. Êxito. Sangue. Morte. Obsessão. Dor. Perda. Fracasso. Monstro. Escuridão. No entanto, a escuridão não pode residir onde...
170K 15.9K 42
Ao ter uma conversa com seus pais, Minna descobre uma verdade pertubadora sobre seu próprio eu, onde encontra uma nova versão de si tendo que se muda...
163K 17.2K 39
"Cuidado as paredes podem te ouvir" PLÁGIO É CRIME TODOS OS DIREITOS RESERVADOS!! PS:essa história é da minha imaginação e qualquer coisa que acont...
8.6K 1.4K 24
Aurora Moreau se autodiagnosticou como uma romântica incurável logo após o seu primeiro contato com uma história de amor ficcional. Desde então, cons...