Revival

By MateusBenicio

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Quando o rumo de nossa vida nos faz mudar para um caminho pelo qual nunca andamos, nos expomos a perigos até... More

Sinopse
Início - O Sonho Americano.
Capítulo I - Precedentes
Capítulo II - Latrocínio
Capítulo III - Acordando de um Sonho Americano

Capítulo IV - Sequelas

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By MateusBenicio


Minha vida é uma história sendo escrita por um sádico desalmado. A pena da caneta na mão do escritor pertencera à asa do anjo que recebeu meu mais puro amor por cinco limitados anos, e no tinteiro ferve o sangue da mulher que me aceitou e eu a aceitei... Até que a morte nos separou.

O barulho da chuva arranhando a janela daquele minúsculo quarto isolado, no apartamento da doutora Lea, tornava-se minha única companhia, todas as noites, quando o desespero vinha me visitar, puxando-me para um abismo sufocante. O suor escorria em meu corpo como as gotas da tempestade, desenhando veias geladas nos vidros sujos daquele cômodo. Minhas mãos seguravam firme o lençol fino, mas não impediam meu corpo de vacilar, afundando em agonia. O teto se aproximava de meu corpo deitado, ameaçando me engolir, os pulmões tentavam romper minhas costelas a os aprisionar. Estava ficando, a cada noite, mais intenso. Uma sessão exclusiva de tortura que se estendia por minutos, horas, então eu já perdera a noção de tempo.

Sentira na pele a experiência de fechar os olhos apenas para ter a visão mais clara do horror. Eu era inútil. A chuva ainda insistia em me acompanhar, tentando invadir aquele quarto, talvez sendo minha única ajuda no momento.

Quando o corpo não aguenta, transborda. Nossos olhos viram cascatas; nossa boca, um poço; nossa pele, um mar e nosso coração, manancial.

As percepções opressivas imprensavam-me contra o colchão gelado, esmagando meu peito e ali eu via a noite andar a passos curtos, trazendo uma luz abafada pelas nuvens fartas, um sol que tinha vergonha de mim.

- Passará... - repetia para mim mesmo, mas meus ouvidos privavam-se de ouvir minha voz.

Flores não nascem em campos de batalha. Depois do pânico, uma fusão apavorante de exaustão e humilhação me dava ""bom" dia", e, naquela caixa, meu corpo mofava até Lea chegar em mais uma de suas inspeções diárias.

Permanecia encostada no batente da porta, abraçada por seu roupão de dormir desbotado, com uma xícara de café esquentando suas mãos. Me ofereceria um pouco daquele líquido, se contente estivesse, como em raros dias. E, em uma longa troca de olhar, buscávamos um no outro o que não tínhamos: esperança.

- Você grita em silêncio. - Depois de um tempo, resolveu entrar no quarto.

- Vejo que a dor não pode me calar - falei, recostando-me com dificuldade na cama.

Lea ajustou as cortinas na janela, colocando a xícara de café sobre a cômoda velha, checando a cidade movendo-se preguiçosamente do lado de fora. A chuva continuava incessante, como nas últimas semanas.

- Eu não posso comprar seu sofrimento, Gunther. - Virou-se para mim, que já me encontrava sentado na cama. - Mas não sofra mudo. - Com delicadeza, retirou o tecido que escondia meu olho esquerdo, avaliando o seu estado. - Me diga como se sente.

- As únicas lágrimas que ainda conseguem sair por ele, são de sangue.

O processo de higienização do buraco no lugar do meu olho não demorava, mas a sensação de estar sendo um fardo para Lea pesava em meus ombros, calando-me enquanto suas mãos prestativas cuidavam de mim como um inválido.

Após o procedimento, ela olhava para mim, como se contemplasse com pena a obra de arte trágica que o destino me transformara.

- Diga-me, por que você fez isso? - perguntei.

Lea permaneceu em silêncio por um tempo, como se visualizasse minha imagem, entubado em padecimento.

- Quando eu vi seu corpo cruzando aquele corredor, possíveis motivos invadiram minha mente - respondeu. Seus olhos fixando um jarro vazio. A flor que ali estivera, há muito morrera. - Mas após Harry trazer aquela notícia, eu me senti devastada.

- Então, em um ato de solidariedade, você decidiu cuidar daquele pobre que perdera tudo, disposta a fazer o impossível para mantê-lo vivo. - Sua bondade me irritava por algum motivo.

- Mentiria se negasse. Era mais que a minha função.

- Por que simplesmente não me esqueceu, como todos? - Não me importava se minhas palavras refletiam o meu amargor.

- Seu fantasma ainda rodeia aqueles que ainda amam você - respondeu, deixando claro o fato de eu ser dado como morto.

A história já me foi contada meses atrás. Assistentes sociais que não conseguem encontrar familiares ou conhecidos, um caso esquecido de forma tão rápida que sequer deixa resquícios, amigos acreditando numa mentira sem questionar, uma família deletada da lixeira da sociedade e um Zé Ninguém, tão morto para o mundo quanto para si mesmo.

- Você é um guerreiro. - Suas palavras nem sequer cumpriam a missão de me reconfortar.

- A luta, a cada dia, mata uma parte de mim.

- Gunther, se você se visse naquele leito...

- Eu mesmo colocaria um ponto final, ali mesmo - repliquei. - Ao menos me privaria disso hoje. - Apontei para meu rosto, mas o epicentro do sofrimento apertava em meu peito.

- A noradrenalina era sua maior companhia naqueles seis primeiros meses - continuou, como se eu nada houvesse dito. - Quase sem sedação... Não davam nada por você. Depois o FiO2 começou a diminuir e eu percebi que ali você lutava com bravura.

"Um ano se passara, você me surpreendia a cada dia. Aquele "paciente desconhecido" contava história a cada traço de recuperação. Cogitamos tirar o tubo, então a infecção veio, piorando significativamente o seu quadro, logo eu te vi parando por sepse. Era como se tivesse desistindo, mas você guerreou corajosamente e, com a ajuda lenta dos antibióticos, conseguiu vencer.".

- O caminho que trilhei desapareceu. Já não sinto mais o gosto da realidade em que vivia, agora a amargura gerou monstros dentro de mim que afastaram todas as boas memórias que tinha. Eu não sou tão forte quanto imagina - desabafei.

- Você está cego. - Literalmente. - Por enquanto. - Figuradamente.

Móveis eram arrastados do outro lado daquele cômodo, dando sinal que as outras pessoas daquele apartamento estavam acordando. Lea ajustou o aquecedor portátil e apanhou a sua xícara ainda cheia de um café já frio.

- Você pode se sentar à mesa conosco para o café da manhã - falou, dando uma última conferida no local, antes de se retirar do quarto.

Avaliei o seu convite por alguns minutos. A propriedade com que falara "conosco" cobriu a realidade de sua família com um fino véu de ilusão. Na verdade, a silhueta do casal com uma filha não refletia a tristeza por trás das sombras.

Inspirei profundamente aquele ar carregado, um aroma de móveis que há muito não viam a luz do sol, enquanto ponderava os pós e contras de sair daquele cômodo.

Encontrava-me em um apartamento isolado na rua N Clarck, perto do Museu de História de Chicago, não tão distante de onde eu morava. Aquele quarto estava sendo meu abrigo por meses, desde que Lea me retirou do hospital, com o provável intuito de tornar-se meu patrono.

- Porcaria de abulia. - A falta de vontade forçava uma amizade comigo. A rotina infeliz já se tornara minha companheira.

A vertigem abraçou meu corpo ao me levantar da cama e o chão frio despertou meu interior esmaecido a cada passo. Repousei meus cotovelos no peitoril empoeirado da janela do quarto para ter certeza de que a chuva não parara. Lá embaixo, o relógio digital do ponto de ônibus indicava "21 de junho", o dia mais longo do ano. As mesmas pessoas esperavam o transporte, pontuais, como sempre. Nunca vi seus rostos, todos os dias escondidos sob os guarda-chuvas, talvez propositalmente, o fato era que todos estavam ficando cada vez mais reprimidos, cada vez mais sem voz, cada vez mais sem face.

Logo me veio à mente, era verão. As chuvas de abril não trouxeram as flores de maio. Mais um junho onde a cidade morria de hidrofobia. Dei as costas para o mundo lá fora para dar de frente com o meu. Não sabia qual era pior.

Saí do quarto para banhar meu corpo banhado pela infelicidade. Em certo momento, minhas mãos limparam o espelho embaçado, revelando o meu reflexo, mas ele continuava turvo. Eu era um borrão naquele lugar.

Os olhos pesavam, absorvendo, então, mais um dia cinza chumbo 'colorindo' o corredor no qual eu só me certificava de que minha coordenação motora não apresentara qualquer melhora ou avanço. Desde aquele trágico dia, caminhar tornara-se uma tarefa difícil, em todos os sentidos. Sequelas carregadas por eu ter amado.

- Inútil! - Se não fosse pelo tom pedante naquela fala ruidosa, poderia confundi-la com as vozes em minha cabeça.

- Andrew, acho que é cedo demais para esse tipo de... - A passividade de Lea não tinha espaço naquela rotineira discussão matinal.

- Você só está colhendo o resultado da sua falta de atitude.

De alguma forma, eu já me via indo em direção à ala social do apartamento, onde Lea discutia com seu marido.

- Você fala como se eu segurasse esse teto sozinha.

- O que você sugere então? Que eu limpe todas as merdas que você faz? - Em algum lugar, dentro de mim, eu me perguntava se a minha presença naquele ambiente era resultado de uma dessas "merdas".

- Andrew, não fale desse jeito. Ela é a minha fi... - Senti um corpo franzino topar meu braço, passando rapidamente por mim, deixando seu rastro mofino no ambiente.

- Karen! - A voz de Lea saiu abafada por camadas de emoções desconhecidas. - Gunther.

Observamos a jovem, sem dizer uma única palavra, atravessar o ambiente em que todos nós estávamos. Era o único caminho pelo qual ela teria que passar até a porta de saída e Lea sabia disso, pois esse era o raro momento do dia no qual teria a chance de ver a sua filha por um período razoável de tempo.

- Não vai querer comer alguma coisa... - A mulher tentava falar para a parede humana à sua frente. - Ao menos leve algo... - quase suplicou, mas a menina estava distante daquele domínio.

Nas raras vezes em que saí do quarto pela manhã, a mesma cena se repetira. Karen, a única filha de Lea, recepcionava todos com sua presença opaca refletida por seu moletom, com um capuz que cobria sua cabeça quase por completo. Escondida dentro de várias camadas de roupas, a jovem saia pela porta; rumo, em teoria, à escola, sem dizer "tchau" e chegava, em horários imprevisíveis, sem dar "oi". Reclusa em seu mundo, se afastara de todos antes mesmo da minha chegada ao domicílio. Sabia sobre ela o tanto quanto a mesma sabia sobre mim e, de certa forma, isso me alentava, pois uma coisa era certa, os meus demônios eram tão fortes quanto os dela.

Por um momento, a menina parou frente à porta de saída, assisti um fio de alegria puxar levemente os lábios de Lea para cima, enquanto a criatura, que se dizia seu marido, sentada no sofá da sala, permanecia afundada em sua carranca desprezível. Karen virou-se para trás, refazendo o caminho até o seu quarto e então, depois de tanto tempo, tive a chance de rever seu rosto.

Sob toda aquela negritude que contornava seus olhos, o precipício de sua alma encarou o da minha. As várias camadas de maquiagem cobriam a sua juventude padecida em silencioso sofrimento. Estava perdida dentro de si mesma.

- Esqueceu algo, querida? - Lea sibilou, então vi o pequeno rastro de sorriso em seu rosto deixar o ambiente junto com sua filha.

- O café está uma porcaria - resmungou Andrew.

- Oh, Gunther sente-se. - Lea parecia não se importar mais com qualquer palavra pejorativa que aquele homem falava.

- O pão parece uma pedra de carvão - continuou o traste.

- Eu preciso resolver algumas coisas no centro. Tenho que sair antes que fique mais perigoso do que já está, então...

- Você acha que vão te contratar com essa cara? - Lea permanecia com seu olhar fixo a mim, mas isso não a impedia de absorver mais uma dose de negatividade de seu companheiro.

- Fique à vontade, eu insisto que coma algo à mesa. - Apressou-se para desempoar o objeto de madeira e retirar as roupas velhas que não pertenciam mais ao armário e acabaram sendo jogadas no lugar onde ninguém mais comia suas refeições.

Engraçado como o objeto e o ambiente perdera seu significado.

- Eu já tive o suficiente por hoje - Andrew rezingava no cômodo à nossa frente. Mudava tediosamente os canais na TV.

Ali estava eu, atendendo ao pedido de Lea, presente no café da manhã em família.

Naquele momento, a menina, que antes havia rasgado o ambiente até seu quarto, costurou o caminho rumo à porta de saída.

- Não vem dar um beijo no seu padrasto não? - Andrew não precisara se esforçar, sua voz era naturalmente sarcástica.

Com sua mochila nas costas e guarda-chuva preparando-se para uso, Karen fechou a porta, deixando seu silêncio dá-nos adeus. Desejei estar enganado ao perceber que a moça soluçara ao passar por mim.

- Que Deus a proteja. - Lea a amava a ponto de resgatar de si mesma uma fé inexistente. Desejava para sua filha o que ela mesma acreditava ser improvável.

Eu esquentava minhas mãos na xícara contendo um café que não iria ser provado, enquanto observava a mulher analisar rapidamente sua insegurança no espelho sujo na divisa entre a sala de jantar e estar e virar-se para Andrew, recebendo nenhuma atenção em troca, e em seguida se despedir depressa, saindo pela mesma porta que a sua filha saíra minutos antes. Contemplei a incrível semelhança entre mãe e filha. A tristeza estava presente na hereditariedade.

Por alguns minutos desagradáveis, o som da chuva atingindo as esquadrias fora o único ruído aparente. Andrew continuava desabado no buraco que seu corpo acima do peso formara na poltrona, e eu tentava não cair no buraco negro que meus pensamentos formavam. Logo os noticiários poluíram o ambiente. As desgraças matinais. Os canais passavam, à medida que o dedo seboso de Andrew apertava o botão do controle remoto, alternando a falsa paz com a guerra distorcida. O discurso persuasivo, beirando a manipulação, perdeu lugar para mais um filme genérico.

Eu cansei daquela tela de horrores.

- Onde está a bebida? - Renunciei a força por falta da mesma.

- Meus parabéns. - O homem rabugento no assento enfim olhara para mim.- Hoje é o seu recorde de resistência.

- Só me dá aquela porcaria e se livre de mim.

O homem se levantou, fitando-me com sua carranca. Veio em minha direção, trazendo seu odor de suor, até, então, sentar-se na cadeira paralela à minha. Pegou o pão torrado em meu prato e, ainda com os miolos do alimento entre seus dentes amarelos, falou:

- Se livrar de você, huh?! - Mais uma vez fiz a retórica pergunta do porquê de Lea manter um verme daquele dentro de casa.

Era uma vez, uma mulher que se entregara ao plebeu amaldiçoado apenas para ocupar o vazio de seu antigo, verdadeiro e falecido amor. O vilão tragara da guerreira a cada dia e, entre crimes e falsos pedidos de desculpas, aquele relacionamento abusivo se mantinha, com Lea permanecendo ali, drogando-se com o medo do desconhecido, com a vergonha de admitir que não dera certo, com a falsa esperança de que ele iria mudar e com o apego às características que pareciam boas aos seus cegos olhos. Na verdade, nunca fora conto de fadas. Não existia feliz para sempre. Não era uma história de amor.

- Seria tão difícil assim? - Andrew deu uma larga e forçada gargalhada, antes de puxar a gola de minha camisa, fazendo-me sentir seu hálito hediondo mais próximo.

- Não pergunte a um dedetizador aposentado como eliminar parasitas.

- Equilíbrio biológico.

O homem hesitou, ainda em seu movimento despótico, enquanto meu corpo afundava, sem nenhum esforço para se reconectar com o meio.

- Sabe de uma coisa?! - finalmente falou ao me largar na cadeira, dirigindo-se ao local onde escondia a bebida. - Você é um sujeito benévolo. - Sua voz se distanciava atrás de mim. - Com uma certa pretensão - Então o barulho de vidros chocando-se ao fundo, - mas eu gosto de você. - Colocou, por fim, duas garrafas e dois copos na mesa. - De verdade.

- Você mente tão bem quanto eu finjo acreditar. - Palavras desnecessárias. Era melhor empurrá-las para dentro de minha boca com um gole de álcool.

Peguei uma das gordas garrafas de vidro escuro sobre a mesa.

- Essa não. - Andrew tomou a garrafa de minha mão, colocando o conteúdo da outra em meu copo. - Quanto a sua acusação... - Enquanto seus lábios eram calados pela boca da garrafa, parecia ganhar tempo para pensar. - Não é novidade que você só permanece aqui por minha causa... - Empurrei o liquido de gosto forte goela adentro. - Porque Lea me ama o suficiente para...

- O que é amor para você? - As palavras saíram como faíscas, inflamadas pelo ardor causado pela bebida em minha garganta.

- Você realmente duvida da minha influência sobre sua permanência nesta casa? - Andrew simulava uma estabilidade. Empurrei mais daquela droga psicoativa para dentro de mim. - Se Lea não me amasse...

- Isso não é amor.

- O quê? - Andrew permaneceu imóvel por alguns segundos.

Eu sentia o vazio gritante dentro de mim se afogar no álcool e, eu bem sabia, em outras substâncias contidas dentro daquela garrafa já pela metade e isso me era prazeroso. Uma nova perspectiva ao sadomasoquismo.

- Ela não te ama - falei, com o sabor amargo em meus lábios cada vez mais secos. - O que é amor para você? - continuei após alguns goles.

- O que é amor para você? - Suas palavras saíram como faíscas, inflamadas pelo ardor causado pela bebida em sua garganta.

Senti o empuxo da gravidade em meu corpo e, como reação, me levantei abruptamente. A cabeça pesou e pude sentir o sangue sendo violentamente bombeado, pulsando por trás da grande cicatriz no lugar de meu olho esquerdo.

- Você realmente acha que eu não sou capaz de sentir o que você sente pelos ossos que agora se afogam no Cemitério Lilyhill? - Andrew continuou. Sua pergunta me atingiu de forma fatal, mas meu corpo estava anestesiado demais para sentir.

Meu coração batia freneticamente contra minha caixa torácica cada vez mais dormente, sentir os sentimentos mórbidos sendo enterrados pela sedação fazia meu corpo se entregar à inercia, abafando a voz de desespero de Helena e Lucy, que gritavam ininterruptamente em minha cabeça, agora congelada pelo suor frio que escorria em minha têmpora. As paredes daquele ambiente se afastaram de meu eu embriagado pelo prazer de não sentir mais a angústia e aflição arranhando meu interior. Era hora de rastejar ao quarto.

- Para onde você vai tão cedo? - O cinismo de Andrew se distanciava de minha audição.

Tentei alguns passos inúteis. Ainda sóbrio, carregava comigo a habilidade de caminhar fora de meu prumo - as sequelas -, já ébrio, cada passada era um novo fracasso. Caí em alguma parte muito turva do apartamento.

Uma sombra pareceu tocar em meu corpo mole. O odor o entregou.

- Não preciso de sua ajud... - Meus braços pesados tentavam atingir Andrew.

- Não ficará para a festinha? - Precisei de esforço para compreendê-lo. - Você precisa...

Senti meu corpo ser carregado, então as sombras e as luzes formaram reentrâncias e saliências, movendo-se no aposento embaçado.

- Que você está fazen...

- Me livrando dos parasitas.

Eu me tornava cada vez menor naquela caixa de horrores, mas eu não me importava, estava me desligando do mundo, dando adeus para a realidade. O abismo da modorra seria o berço em que eu iria repousar minha alma inquieta.

●••●

Talvez aquele lugar me fosse familiar, talvez meus pés já pisaram aquela relva úmida, talvez meus pulmões já se encheram daquele ar gélido, talvez o talvez fosse apenas uma forma de transformar a fantasia numa possibilidade. Sonhos são realidades incertas, quiçá o próprio talvez.

Umidade e frio. Nos primeiros segundos, minha percepção não fora além. Corpo ajoelhado sobre o chão, olhos continuavam fechados para o mundo, tentara por mais uma vez enxergar algo de bom em meu interior. Falhei.

Então foi como vir ao mundo novamente. Como um recém-nascido, tive o primeiro vislumbre do sombrio mundo ao qual eu estava fadado a sofrer e ser reduzido a pó. Chorei.

O horizonte mais escuro, a noite rúbia mais vivida, a névoa estava distante, a ojeriza envenenava-me. O passado não fora alterado. Acontecera de fato. Eu estava ancorado no chão, ao lado do meu próprio corpo desfalecido, sangrando minha antiga essência afora. Acontecera de fato. O passado não fora alterado. Era hora de buscar o futuro, supus.

O cheiro da pólvora ainda ocupava a atmosfera e um líquido escuro pintava o gramado... Meus joelhos afundavam no sangue a jorrar do corpo do Gunther baleado à queima-roupa.

Eu precisava fugir, até tentei, no entanto, meus joelhos não se mexeram.

Do sangue a regar as ervas rasteiras brotaram ramificações carmesins, que se aderiram aos meus joelhos e pés, prendendo-me no chão, unindo-me cada vez mais em um laço de sangue ao meu eu morto.

Olhei para minhas mãos trêmulas, avaliando meu estado, não me restavam opções, eu precisava arrancar aquelas raízes a me prender e perfurar minha pele. Minha carótida pulsou mais rápido, o vapor condensado começou a sair depressa de minha boca, quando eu respirei fundo e agarrei os ramos, dolorosamente desligando-os de mim.

As raízes rompiam o tecido da roupa e cada vez mais abraçavam a minha pele. Quanto mais elas agarravam-se a mim, mais eu movia-me para retirá-las e quanto mais eu as retirava, mais dor sentia, pois aquelas ramificações de sangue incorporavam-se à minha pele, levando um pedaço dela a cada vez que eu arrancava as raízes, que brotavam do sangue a lavar o chão.

Pele e raiz saltavam, soltando-se de meu corpo, minhas unhas rasgavam-me, puxando cada parte daquela casca tênue, que, centímetro a centímetro se desprendia de minha perna, cintura, barriga, braço, ombro... Logo eu estava me despelando e, de alguma forma, aquilo me parecia dolorosamente certo. Como um mal vindo para o bem...

Mas o bem estava demorando a vir, talvez se perdera no caminho.

Minhas mãos se desvencilhavam vorazmente de cada pedaço de vegetação que invadia meu corpo. Pele, raiz e sangue misturavam-se no chão ao meu redor. Eu podia ouvir minha pulsação. A dor já não era maior que a avidez por liberdade. Puxei o couro em meu rosto, arrancando a máscara de pele morta, livrando-me da velha epiderme e assim, com anelo, meu corpo rapidamente se viu livre da antiga casca.

Porém, quanto mais sangue jorrava de meu antigo Eu, mais a relva era regada, geminado desespero e brotando angústia, que ainda insistia em me enraizar.

Era hora de fugir das amarras do caos.

Meu corpo reclamou quando tentei desesperadamente correr, então experimentei caminhar, mas meus pés não conseguiram suportar o meu peso. As raízes carmesins se alastravam cada vez mais pelo ambiente, como um vírus, possuindo e deteriorando tudo que tocava. Não me restava opção, comecei a rastejar para o mais distante possível dali.

A agonia me perseguia. Aquele emaranhado de veias se formando no chão erguia-se em uma vegetação de sangue, ganhando forma em uma trilha rumo a mim, cada vez mais rápido, acompanhando o trabalho árduo de meus braços, sustentando meu corpo a rastejar.

Estavam me alcançando, minhas mãos sujas de terra tremiam a cada investida para me distanciar daquele horror, o barulho dos galhos de sangue se reproduzindo atrás de mim aumentava a cada segundo, logo meus joelhos também estavam trabalhando na fuga, mas meus pés já podiam sentir os respingos quentes dos galhos oriundos da seiva de meu antigo Eu, eu estava engatinhando desesperadamente sem rumo, e então os ramos estavam aos meus dois lados, prestes a me engolir. Soltei um gemido de pânico antes de me apoiar contra meus joelhos e investir na primeira passada, muito cedo, meu corpo foi em queda ao chão. Fechei os olhos e esperei ser tragado, porém, isso não aconteceu.

Incrível é o lapso de tempo entre a antecipação e a surpresa.

Franzi o cenho após perceber que a trilha de vegetação aos meus lados seguiu à frente, formando um agenciamento, rumo ao horizonte obscuro. Depois de diversas tentativas, movido pela curiosidade e confusão, me coloquei de pés ao chão e, com certa dificuldade, avaliei meu entorno. O muro de galhos retorcidos apontando para o além crescia, me colocando em um estreito corredor carmesim. À medida que eu avançava, o ambiente se apresentava a mim, com aqueles arbustos de mais de três metros de altura direcionando-me para o único caminho a seguir: frente.

Eu já estivera ali antes, era-me certo. Eu me encontrava aprisionado em mais um labirinto atroz. E, naquele lugar, onde a sinuosidade me intoxicava, onde as paredes me dizimavam e onde o assobio do vento nos arbustos me seduzia, eu procurei mais uma vez a saída.

Corredores e mais corredores escarlates me guiavam para a desorientação, a noite ameaçava chover sangue sobre minha cabeça, o vermelho refletia em minha pele pálida e úmida e o vento tangia os galhos além das paredes aos meus lados, trazendo-me a notícia de que eu estava cercado por um enorme complexo de entradas e saídas incertas.

Tateei os muros sufocantes, sentindo o fardo da agonia pesar sobre meus ombros e a tristeza abafar meu choro. O fruto de minha angústia amadurecia por toda parte e me roía gradativamente. Se de norte a sul as perguntas invadiam minha mente, de leste a oeste nenhuma resposta eu encontrava. Eu criara aquele dédalo e nele eu estava fadado a padecer.

Em algum momento eu parei de andar, não por cansaço, ou pelas feridas dos espinhos encarnados em meus pés, mas, porque me pediram. Primeiro a visão procurou e falhou, então a audição se aguçou, mas nada achou, então não demorou muito para eu perceber que não era sobre ver ou escutar, era sobre o outro sentido, aquele que não pode ser dominado, aquele que dentro de nós adormece, além do carnal, do palpável, do material...

Fechei os olhos, contive a respiração e tentei ir além da corda que eu cerzi e que no momento premia meu pescoço, além das paredes de galhos de sangue regados pelo meu desespero, muito além dali, mas tão dentro de mim. Eram elas?

A resposta veio no vento.

Carregava um sonido conhecido. O chiado distante, acompanhado do assobio do vento, me perguntei onde antes havia escutado aquilo, o choque contra as paredes distantes naquele labirinto. Senti o cheiro agradável e úmido, o barulho estava cada vez mais alto, cada vez mais violento... Estava perto. Um clarão transpassou minha pálpebra. Abri os olhos. As gotas de sangue caiam do céu embebendo minha pele nua.

Mais uma vez a voz distante falou, não conseguia compreendê-la, então ouvi novamente, sequer era capaz assimilá-la, olhei ao meu redor, à procura de alguém, percebi mais uma vez, misturando-se ao vento sibilante, dentre do som alto inundando o ambiente.

...Inundando o ambiente...

- Corra! - Em claro e bom som, de todos os lugares, acima das nuvens e dentro de minha cabeça, eu escutei.

Virei as costas e eu vi, corredor adentro, a profusão de água rapidamente levando tudo pela frente.

Os seguintes segundos constituíram-se na minha falha tentativa de fuga, encontrando-me com uma onda de mistura de água e sangue, que levou-me violentamente ao chão, imergindo meu corpo e, cada vez mais, as paredes marcadas pela força da água.

À medida que meu corpo tenso e rígido afundava, eu via o céu vermelho iluminar-se em relampejos, acima da superfície. A água estava ficando mais concentrada e eu estava prestes a me afogar, então investi as braçadas, tentando levar meu corpo para cima, porém, à medida que meu tronco subia, o volume da daquele mar aumentava. Acima das paredes eu mal via o labirinto abaixo, tomado pela negritude, meu coração batia forte, estava ficando sem ar, e já era turva a superfície. Os clarões dos relâmpagos me ajudavam a distinguir algo naquele mar vermelho, mas já não era mais útil, meus braços cansados não estavam dando conta e eu estava me afogando.

Senti o gosto metálico invadir minha garganta e meu olho queimar, enquanto procurava desesperadamente uma saída naquele imenso e gelado mar escarlate. Não existia labirinto abaixo, só o violento céu de sangue acima da superfície. Meu corpo estava afundando, as bocas de meus pulmões abriram para gritar, porém, só engoliram água, mas não por muito tempo. Quando meu cérebro parou de forçar meus pulmões a respirarem, meu corpo começou a contrair involuntariamente. Estava perdendo a noção de tempo, espaço... realidade... quando ergui minhas mãos em apelo aos céus, metros acima, eu as vi.

Seus pés sobre as águas, como boias, além da superfície, enquanto minha carcaça afundava, distanciando-se de seus corpos de mãos dadas, erguidos sob os clarões do céu violento do lado oposto. Minhas mãos tentaram emergir, mas não havia nada em que eu pudesse me sustentar, não havia ajuda, não havia socorro. Se ali eu fosse morrer, que a ultima imagem fotografada em meu cérebro fosse a da minha mulher e filha ilesas. Não conseguia gritar seus nomes, mas como eu tentei... Daria cada parte já drenada de mim para estar do outro lado, mas encontrava-me naufragando sozinho, onde minhas lágrimas misturavam-se com o lugar, onde meu corpo era tomado pela agonia, em laringoespasmos de sofrimento. E nesse ritmo torturante eu afoguei-me em meu mar de medo.

●••●

- Você deveria amá-las de verdade. - A voz feminina resgatou meu consciente. Abri o olho, assustado.

Eu gritei alguma coisa que meu cérebro nem sequer se esforçou para compreender.

A desorientação durou alguns minutos, enquanto eu varria o quarto escuro do apartamento de Lea com os olhos, procurando segurança. O gosto metálico continuava em minha boca, mas não havia sangue no ambiente, eu estava perdido, mas no labirinto de meus pensamentos, minha pele estava molhada, no entanto, por conta do suor frio que brotava incessantemente de meus poros. Do lado de fora, a tempestade varria as fachadas das muralhas de concretos.

Só quando minha respiração conturbada pareceu parar de provocar ruídos, eu pude notar o suspiro de alguém escondido no canto do quarto, tomado pela negritude da noite. Forcei minha visão, fazendo minha cabeça doer ainda mais, e o que antes fora meu olho esquerdo reclamar.

- Ou melhor, você ainda deve amá-las de verdade - continuou, apesar da longa pausa, enquanto eu pressionava minha mão acima de meu peito inquieto, na tentativa de abrir mais minha traqueia, para o ar circular.

Ela moveu-se para se retirar do quarto, revelando sua identidade.

- Por quanto tempo permaneceu aí? - com certa surpresa, perguntei, ignorando minha situação. Karen parou de andar.

- Tempo o suficiente - respondeu a garota, depois de hesitar.

Fora a primeira vez que, de fato, falara diretamente comigo. Encarei seu corpo encapuzado, de costas para mim, rente à porta por alguns segundos, antes dela voltar a caminhar.

- Com que frequência tem vindo aqui? - Foi minha forma de pedir inconscientemente para ela permanecer ali.

A filha de Lea parou, com as mãos pousadas na moldura velha da porta e, após um tempo, direcionou seus grandes olhos avermelhados para mim.

- Não é a primeira vez que passo no corredor e ouço você chamando por elas - revelou.

Dei um suspiro seguido de um discreto riso sarcástico, escondendo o intenso palpite de meu coração com uma fraca apatia.

- Sua mãe quem te mandou acompanhar meu sofrimento ou a amargura causada pelo infortúnio alheio te intriga? - supus.

A menina virou-se completamente para mim, abriu a boca para dizer algo, mas, em vez disso, apenas se aproximou, trazendo consigo um cheiro de produto anti-mofo impregnado em seu casaco.

- Sabe o que me irrita? - finalmente falou, enquanto analisava as lágrimas das nuvens escorrendo no lado de fora da janela. - Pessoas tentando me ensinar como carregar minha cruz enquanto nem sequer conseguem sustentar as delas.

Uma vez me disseram que a nossa maneira de encarar a realidade é alterada pelas nossas predisposições. Pela primeira vez, eu esperei ver algo na garota, mas ela me mostrou o oposto.

Sentei-me com dificuldade na beira da cama, sabendo que os motivos de Karen estar naquele escuro e infeliz ambiente fugiam de minha mente bagunçada, e isso fez com que aquelas quatro paredes girassem ao meu redor.

- Quanto tempo passei desacordado? - perguntei, massageando minhas têmporas com os dedos trêmulos.

- Provavelmente dois dias. - Suas respostas demoravam mais que o normal para serem ditas.

- É com o olho fechado que não consigo me desgastar distinguindo bem de mal. - Falácia.

- Não. - Kare se mexeu, sentando-se na outra extremidade da cama, fazendo-a revelar sua fragilidade ao peso da menina com um rangido. - O que é bem e o que é mal? Somos capazes de distingui-los? Não é fugindo deles que os encontramos?

- Que bom que discorda.

- Por quê? - Ela fitou-me. Sua forte maquiagem deixara um borrão escuro ao redor de seus olhos ainda avermelhados.

- Porque isso mostra suas intenções, que não está aqui com o intuito de me mostrar uma luz, uma possibilidade, um deus e sua forma ou como agradá-lo.

- Como posso te dar o que não tenho? - Por um momento, olhando aquela garota sentada sorumbaticamente na cama, comparei com as poucas vezes que a vi, no conforto de seu calar. Suas dores e dúvidas tinham voz e essas vozes a davam identidade.

Após algum momento absorvendo o fino fio de calor do aquecedor no quarto, pensando nos blocos de infelicidade que passavam a construir aquela família, falei:

- Já não posso sentir mais o gosto da felicidade.

- Ao menos você já teve a oportunidade de prová-la. - Sua voz falhou ao terminar a frase.

- E ter a consciência disso é doloroso. - Empurrei a saliva com dificuldade na garganta.

- É como se olhar no espelho e não se enxergar, pois a dor ocupou nosso espaço... - Ela olhou para baixo e uma lágrima pingou no chão. - E já não fazemos parte desse mundo, pois nós somos ele e o mundo é sofrer no aqui e no agora... - Eu poderia sentir sua mente trabalhando para expor em palavras o que sentia. - Então já não podemos esperar nada do depois, pois ninguém pode nos garantir que haverá um depois.

Meu peito começou a queimar novamente.

Quanto mais ela falava, menos o que dizer eu tinha. Me perguntei se Karen crescera sem saber o que é felicidade, pois, sim, seus demônios eram tão fortes quanto os meus.

- É como se nós fossemos escolhidos para sofrer - continuou.

- Nós fomos escolhidos para sofrer - concordei.

- E fechar os ouvidos para o mundo é ouvir nosso interior e os nossos maiores medos falando conosco. - Ouvir isso fez meu corpo se enrijecer. - Você ainda consegue ouvi-las claramente, como da última vez, suponho.

Então eu senti, como uma facada no coração. Suas palavras haviam penetrado meu já frágil escudo, surrado pela empatia e isso fez com que Helena e Lucy tornassem a gritar em minha cabeça. Assim recomecei minha árdua luta pela estabilidade.

A garota tornou a falar, mas eu já não conseguia prestar atenção no que dizia. Minhas mãos suadas apertavam o forro do colchão, eu não podia mais respondê-la. O ambiente começou a parecer mais opressor, os trovões mais intensos, os clarões mais arrebatadores, as vozes de Helena e Lucy implorando pela vida mais altas.

Por um momento eu permaneci estático, sentado na cama, foi o suficiente para Karen perceber minha impassibilidade e se sair do quarto, sumindo do meu campo de visão, levando consigo seus horrores, mas ela trouxera à tona os meus e ali, naquele escuro cômodo com cheiro de móveis velhos, eu me debrucei em angústia.

"Você ainda consegue ouvi-las claramente".

- Helena...

O timbre de sua voz, claro como o som dos trovões invadindo meus ouvidos, outrora dissera "Eu te amo", mas agora clamava por socorro. Joguei-me ao chão.

"...como da última vez".

Eu não poderia suportar reviver mais uma vez aquele momento. O sangue escorrendo em minhas mãos, as lágrimas lavando minhas vestes.

"...como da última vez".

Seu pequeno corpo desfalecido no chão, o sangue de meu sangue varrendo o carpete. Uma vida inocente dizendo "adeus".

"Eu te amo, papai".

Dissera como da última vez... Eu podia sentir sua pele gelada em minhas mãos e os seus finos fios de cabelos entre meus dedos. Ela estava desaparecendo em meus braços, sua respiração falhando, seu olhar se distanciando mais uma vez... Eu tinha que salvá-la.

- Lucy! - Me pus de pé e cambaleei até a porta do quarto. O ambiente turvo girava inconstantemente.

Eu não poderia perdê-la outra vez. Usando as paredes como sustento, segui as suas vozes que se distanciavam dentro do apartamento escuro. Eu precisava vê-las novamente. Mal conseguia chamá-las, nem sequer respirar, eu sentia o sangue brotar do buraco no lugar de meu olho enquanto caminhava rumo à porta de saída. Eu iria consertar aquilo, fechar as feridas, me livrar das sequelas.

Contudo, no momento em que minhas mãos tocaram a maçaneta da porta, algo soou mais alto que qualquer coisa que meus ouvidos estavam a escutar, assustando-me, levando qualquer rastro de voz em minha cabeça. Um longo, ecoante e agudo ruído, que se estendeu por segundos, e então minutos.

Não emanava de dentro daquele apartamento, muito menos do prédio. Porém, apesar de intrigante, aquele não era um barulho novo. Soou por mais alguns segundos, suficientes para deixar clara a mensagem por toda a cidade, assim como em todas as noites.

Enxuguei as lágrimas quentes que escorriam em meu rosto.

Aquele ecoar era decorrente de uma das várias sirenes estrategicamente espalhadas por toda Chicago que, desde que eu havia acordado da morte para aquela atormentadora realidade, avisavam que, naquele momento, eu deveria engolir o meu sofrimento e me direcionar até a cama e ali permanecer até o nascer do sol.

E, simplesmente assim, sem quaisquer questionamentos, o fiz.

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