Paciente 302

Par LeonardoPizzoli

3.7K 205 51

Um psiquiatra retorna ao hospital em que se especializou vários anos antes, e se depara com um paciente único... Plus

UM
2
III
Qu4tr0
шесть
53p73m
1.0.0.0
3π log0

293 19 5
Par LeonardoPizzoli

          Mal percebi que demoraria a pegar no sono naquela manhã; estava ansioso por ler o prontuário do misterioso paciente 302. O que havia de tão especial nele? Por quê o Saldanha isolou aquele caso? Seria um parente do diretor? Embora a curiosidade corroesse meu espírito, o cansaço me impedia de prestar atenção, então tentei dormir. Depois de um longo período rolando sob os lençóis, mesmo no conforto do ar-condicionado, consegui descansar um pouco, de modo superficial. Em meio à imagens aleatórias do inconsciente, acabei sonhando com a tal moça do muro do hospital; via-a andando sobre o que parecia ser uma imagem translúcida do mesmo muro, agora envolta em uma neblina; um súbito facho de luz atinge a mulher, resplandecendo seus cabelos num tom luminoso de cobre, e sua voz pareceu preencher todo aquele espaço onírico. tentei me aproximar da moça, e uma forte lufada de ar atingiu meu rosto, fazendo com que fechasse meus olhos. Quando voltei a enxergar, grandes penas de um condor branco pareceram cair suavemente do céu. Acordei assustado após esse estranho sonho. A imagem de um condor me veio à mente, e procurei rapidamente no buscador da internet do celular imagens de condores brancos - e para minha surpresa, achei uma única imagem de uma dessas aves majestosas portando um raro albinismo.

          Depois de um bom banho morno, munido de uma grande xícara de café de cápsula - adquiri um estranho apreço pelo sabor artificial e pasteurizado daquela maquininha cara - e um pacote de cream-cracker, lancei-me sedento sobre as fotocópias do prontuário objeto de meu desejo. Apesar de escrito a várias mãos, em sua maioria as horrendas caligrafias médicas me eram legíveis. Divaguei por alguns instantes sobre o fato das letras de nós médicos serem tão ruins - geralmente explicada pela afobada necessidade de registrar grandes quantidades de dados em tempo tão exíguo quanto o de uma consulta. Com um rápido movimento de cabeça, dissolvi a divagação frívola e concentrei-me no arquivo. "Força, foco, fé, como gemem os marombas" - pensei.

          "Nome: Lúcio

           Sobrenome: desconhecido

          Procedência: desconhecida

          Endereço/ contatos familiares: desconhecidos."

          "Que diabos" - pensei - "Nenhum dado pessoal? Em três anos de internação? Demitiram as assistentes sociais do Mandaqui e eu não estou sabendo? Mas que serviço porco!..."

         "Paciente masculino, caucasiano, cabelos negros, olhos azuis, deu entrada na emergência contido na maca da ambulância, em franca agitação psicomotora; segundo o serviço de resgate, teria tentado suicídio jogando-se do sexto andar de um edifício residencial das imediações; apresentava vestes rasgadas e sujas de sangue e restos de cimento da calçada onde caiu, porém ao exame físico não apresentava sinais de lesões, fraturas ou hematomas".

          _ O QUÊ? - exclamei, inconformado - Cacete, só tem incapaz na emergência! Se o cara tivesse caído do sexto andar teria pelo menos uma perna quebrada! 

          "Ele deve ter dito que QUERIA se jogar e foi CONTIDO ANTES de pular" - pensei, sempre me deixando guiar pelo puro pensamento lógico. Percebi que a incapacidade das pessoas de pensar de modo racional, deixando-se sempre levar pelas emoções imediatistas, era algo que constantemente me irritava. "É por isso que esse país sempre leva pau nos testes internacionais de educação" - lastimei.

          "Segundo dia de internação na emergência: paciente ainda apresenta intensa agitação psicomotora; tenta a todo momento se soltar da contenção. Medicado diversas vezes com Clorpromazina e Midazolam intramuscular, sem sucesso. Importante delírio nihilista."

          _ Ok, gênio do PS, delírio nihilista... QUAL? - ah, os velhos vícios da emergência. Ausência e descrição dos sintomas; se eu tivesse feito isso durante a residência, Loester teria me feito copiar o manual de psicopatologia À MÃO - todas as TREZENTAS E NOVENTA E DUAS páginas, até aprender a fazer uma anamnese.

          "Primeiro dia na enfermaria: paciente psicótico agudizado, com ideação suicida e delírios de negação do eu, em franca agitação psicomotora, transferido do PS após quarenta e oito horas de observação. Acomodado no 104. Contenção padrão no leito. Pouca resposta à medicação oral; prescrito medicação endovenosa - Fenobarbital. Paciente sedou por quase três horas. No entanto parou de gritar."

          "Segundo dia na enfermaria: designado para R1 Bernardo."

          _ Agora isso vai ficar interessante - sussurrei para mim mesmo, após um longo gole de café. O pacote de cream-crackers estava na metade.

          "Dirijo-me ao 104 para anamnese do paciente; o mesmo se encontrava pendurado na claraboia do quarto, arranhando os vidros a ponto de arrancar as unhas do indicador e do dedo médio da mão direita; oriento enfermagem a retirá-lo e contê-lo em seu leito. Doutor Saldanha sugere transferência para o isolamento 302; acato. Prescrevo curativos nas mãos após contenção e Fenobarbital oral a cada seis horas. Inicio antipsicótico atípico Olanzapina por sugestão da preceptoria."

          Mergulho nas anotações do residente; relato sucinto, com descrição precisa dos sintomas: humor deprimido, com ideação frequente de suicídio; durante a entrevista, o paciente teria se acalmado, parando de gritar e ficando apenas chorando. Bernardo descreve o pensamento do paciente como organizado e bem-estruturado, sem indícios de lentificação - o que não se esperaria de um deprimido clássico - porém com conteúdo delirante que ele também classificou como nihilista: crença de que não poderia morrer, ainda que tentasse o suicídio, pois acreditava que seu corpo estaria "amaldiçoado"; acrescentou ainda delírios místicos: o paciente alegava que havia sido castigado por Deus, tendo sido "banido do Paraíso".

          Nessa parte que o relato do primeiro-anista da residência começa a ficar confuso. Relatos vagos sobre a história pregressa do paciente, alegações de que havia ocorrido um "despertar", e que a realidade seria uma ilusão. Um haikai escrito às pressas num canto da folha: "será que sou eu sonhando que sou uma borboleta, ou uma borboleta sonhando que sou eu?". E a última anotação do residente foi a mais estranha de todas: "devo me reencontrar com Deus; ser uno com o Universo".

          Lembrei-me do que Toninha disse sobre Bernardo: meio hippie, usava doses baixas das medicações prescritas para saber quais os efeitos delas. Imaginei que talvez fosse usuário de drogas, e que finalmente a psicose se manifestara no médico. Do fundo da memória surgiu a lembrança de um cara da minha turma de faculdade; chamavam ele de "Locão" - vivia sempre sob efeito de alguma droga (ora maconha, ora cocaína, ora álcool). Não durou muito tempo na faculdade de medicina, sendo internado num manicômio logo no terceiro ano, quando apresentou um surto psicótico e correu pelado no meio do pátio da faculdade gritando que era vampiro. "Triste" - pensei - "que aqueles que estudam para salvar vidas acabem destruindo a própria com as drogas. Não me conformo como ainda tem quem defenda esse tipo de coisa".

          Fui dar um novo gole de café e percebi a xícara vazia. Levantei-me para preparar mais uma das viciantes cápsulas, e enquanto aguardava a cafeteira emitir seu característico apito, espreguicei meu corpo, esticando os braços acima da cabeça, com os dedos das mãos entrelaçados. Senti uma fisgada nas costas, e uma leve cãibra me atingiu na musculatura que corria paralela à coluna, na altura das escápulas. "A velhice cobrando seu preço" - lastimei, apesar de ter somente quarenta anos. "tenho que tomar vergonha na cara e começar a fazer exercícios".

          Reabastecido de cafeína, retomei a leitura do prontuário misterioso. Os registros seguiam, agora sob a responsabilidade da R2 Carla. Registros extremamente sucintos, lacônicos. Por vários dias apenas fez anotações metódicas sobre sinais vitais e resposta observada à medicação: efeitos colaterais pouco notados - apenas sedação noturna; pouca resposta terapêutica, com permanência do humor deprimido e da ideação delirante. Até um determinado dia, o sétimo desde que aquele paciente dera entrada na enfermaria; ela relatara que, durante a recreação dos pacientes, começaram a cantar uma música - não registrou qual, nem mesmo que tipo de música seria - e quase imediatamente o paciente começou a esmurrar a porta do isolamento; quando foi ver, o rapaz estava com um corte fundo na testa, sangrando bastante, e ainda assim golpeando o vidro blindado da escotilha da porta de metal. Ela teria entrado no isolamento com a enfermagem e contido o paciente; depois - procedimento de rotina - teria ficado no quarto para acalmá-lo e suturar o ferimento. E aí novamente as anotações ficam estranhas. De seu modo lacônico, a residente anotou:

          "Limpeza da lesão. Lesão? Sem necessidade de sutura! Vozes no quarto. Paciente calmo. Chorando. Feliz. O quê? A música. Paz. Kirie Eleison!

          Alta médica."

          _ O quê diabos aconteceu, desgraçada? Que anotação de merda foi essa? E por quê alta? Está na cara que o paciente é um psicótico!

          Aquilo estava me irritando. Só tinha drogado fazendo residência de psiquiatria? Será que o Saldanha tinha razão? Se os residentes da época eram todos nóias, estaria explicado o motivo pelo qual o Estado teria cortado as bolsas de residência em saúde mental. Meu coração apertou de agonia e tristeza; seria a decadência final do ensino médico?

          "Kirie Eleison". As últimas palavras anotadas pela residente no prontuário do paciente 302 soaram algum sino em minha mente. Eu já havia visto elas em algum lugar antes. Internet - digitei no buscador do celular; "Senhor, tende piedade". Uma oração cristã, em grego. 

          As anotações dos demais médicos não eram muito diferentes; começavam técnicas, precisas, com descrições da psicopatologia, relatos de mudanças ou ajustes nas medicações, com progressiva redução dos psicofármacos até a suspensão total de medicação. O paciente estava internado há três anos sem qualquer prescrição! Mas nem era tal absurdo que chamava atenção, e sim as anotações finais de cada médico; sempre terminavam de modo súbito, escritas de forma caótica, e sempre com alguma mensagem de cunho religioso. As anotações da Doutora Diva foram as que mais me surpreenderam; ela era uma atéia pura, daquelas que diziam que a Bíblia era "contos de fada para ignorantes". Suas últimas palavras naquele arquivo foram: "Perdoai, Senhor, o ímpio e o descrente; que ele, assim como eu, tenhamos o Teu perdão".

          Confuso, levantei-me da poltrona em que lia aquelas páginas, e fui até o banheiro jogar uma água no rosto. "Quem é você, Lúcio?" - pensei. Meu espírito ardia num misto de estupefação e raiva. O que havia de tão especial naquele rapaz? Tudo indicava apenas uma psicose normal, mas alguma coisa acontecia, alguma coisa aquele paciente fazia que enlouquecia os médicos. Senti-me envolto numa trama de Stephen King, e um calafrio súbito percorreu minha espinha.

          Voltei-me ao prontuário, decidido a terminar a leitura. As últimas páginas tinham anotações lacônicas do Saldanha; mas apesar de economizar nas palavras, o teor era igualmente bizarro às demais notas.

          "Dia 1: espécime sedado; dez ampolas de Clorpromazina intramuscular. Duração: quarenta e três minutos."

         _ Meu Deus, essa dose é potencialmente fatal! O quê o Saldanha tá pensando?

         "Dia 2: espécime desperto. Incisão profunda em flanco abdominal esquerdo, auto-infligido. Sem sinais de cicatrizes. Regeneração completa.

          "Dia 36: espécime saudável, apesar da privação de alimentos por mais de um mês."

          "Dia 49: espécime solicita água. Rejeita qualquer refeição."

          "Dia 67: espécime solicita conversar; ordeno que se cale."

          "Dia 94: espécime solicita água. Providencio. Solicita conversar; ignoro e injeto dezesseis ampolas de Clorpromazina intravenoso; sedação dura sete minutos." 

          "Dia 152: espécime solicita música. Providencio. Parece nutrir-se do som."

          "Dia 238: espécime solicita conversar. Ordeno que se cale. Atende. Todas as medicações disponíveis se mostram inúteis. Cogitar eletroconvulsoterapia."

          A partir daí as anotações do diretor se tornam mais e mais absurdas e incompreensíveis. O desgraçado do português estava usando o paciente como cobaia para algum experimento doentio, isso havia ficado evidente. E o maldito havia submetido o paciente a eletrochoque; provavelmente feito lá no quarto 302 mesmo, sem a sedação, sem suporte de anestesista nem nada, violando todos os protocolos éticos!

          Apesar da raiva que aquelas notas fizeram brotar da minha alma, uma coisa ficou evidente com aquela leitura: o paciente 302 era manipulador; sempre que conversava com os médicos, de alguma forma ele conseguia mexer com a cabeça do entrevistador e confundi-la. Isso ficou evidente principalmente nas anotações do diretor; sempre que o paciente demonstrava querer conversar, ele o fazia ficar quieto.

          O mistério envolvendo o quarto 302 só estava ficando maior. Era hora de entender aquele caso mais a fundo.

          Naquela noite, eu iria falar com o paciente. De qualquer jeito.

                                                        .....   




Continuer la Lecture

Vous Aimerez Aussi

3.8K 296 14
Anjo, Demônios, Bruxas, Magos, Lobisomens e vampiros, todos atrás de uma unica coisa, uma fada que corre em busca de poder para salvar a raça humana.
105K 7K 26
who cares if one more light goes out? onde hayes faz bullying com kolen, sem nem se importar com a saúde mental dela.
1K 121 10
Rabiscos em formas de palavras...
340K 13.7K 112
𝑇𝑜 𝑠𝑒𝑚 𝑛𝑎𝑑𝑎 𝑝𝑟𝑎 𝑓𝑎𝑧𝑒𝑟