Meu Querido Morto

By SamuelGuimares

351 13 12

Tenho certeza de que convive com um igualzinho a mim. Ou pelo menos parecido. E olha que legal, vai estar co... More

Com a palavra, o Palavrão
Capítulo 1: O dia da "morte"
Capítulo 3: A Descoberta
Capítulo 4: Santa Ceia

Capítulo 2: Lar, doce lar

50 4 0
By SamuelGuimares

Fim de mais um ano, época de passar um tempo maior com a família, já que mortos não têm amigos. O Natal se aproximava, e como todo bom brasileiro, deixaram tudo para a última hora. Era um tal de comprar uma coisa aqui, ajeitar outra acolá, pensar em como acomodar as visitas que receberiam, uma zona.

Cinco anos se passaram, e algumas coisas mudaram. O irmão mais velho nem chegou a se formar, e já foi levado para a Europa. Desde que se foi, não voltou, embora mantivesse contato "sempre que possível", segundo ele dizia.

Dona Ana, depois do episódio com o filho mais novo, ficou um tempo desacreditada, mas agora ela tinha encontrado um "homem ungido de Deus", e passou a visitar a igreja do pastor Adevanir.

Seu Osmar estava mais tranquilo. Depois do período de seca que quase arruinou seu negócio anos atrás, as chuvas voltaram a ser regulares. Com as contas sob controle, passava mais tempo com a esposa e os filhos.

Vitinho agora não era só um terror em casa. Virou um pesadelo na escola. Como estudava de manhã, à tarde já chegava menos agitado, e dormia como um bebê durante a noite.

Nosso amigo também passou por mudanças. Concluiu o Ensino Médio, mas não tinha grandes aspirações. Uma névoa o impedia vislumbrar novas possibilidades, apesar da inquietação que o corroía por dentro. Ainda praticava o inglês, conversando esporadicamente com Natalie, que se casou com o antigo namorado. Eu tentava ajudar, dando dicas do que meu formado morto poderia fazer para ocupar o tempo, como ajudar o pai arrumar as tralhas no escritório.

– Filho, pega aquela caixa ali, do lado da escrivaninha.

bom pai!

– Meu garoto ficando forte, hein? Tá tomando aquele negócio lá, como é que fala? Ah, bomba! Tá tomando bomba, rapaz?

– Que nada! – respondeu, com um sorriso amarelo, só para não deixar o pai sem graça com a piadinha besta.

– Agora põe ela aqui e... JÁ VAI MULHER! Que merda! Sua mãe só sabe pedir, ajudar que é bom... Filho, vê lá o que sua mãe quer. – disse o pai, sem sequer olhar para ele.

– Cadê teu pai? – pergunta a mãe, surpresa ao ver o filho morto ao invés do marido.

– Ele meio enrolado lá no escritório, pediu pra eu vir ver o que a senhora queria.

– Aquele traste... Só pensa em papelada. Toma conta do teu irmão, senão ele destrói todos os presentes que comprei. Vou dar um jeito naquela bagunça que a cozinha.

– Mas mãe, não é mais fácil colocar os presentes na salinha dos fundos e trancar? Não tem como ele mexer lá!

– Sem mas, moleque, mania de me contrariar!

Tinha vezes que eu queria estar no lugar dele, muita gente ia escutar umas verdades. Nem vou comentar que achei a ideia ótima, afinal era muito mais "fácil" cuidar do irmão sozinho do que das duas coisas juntas. Mas como a mãe é mais orgulhosa e cabeça dura que tudo, ela não ia dar o braço a torcer justamente para um morto.

Ela está certa, ele tem que obedecer a mãe.

Escuta, Belzebu, não tem mais o que fazer além de me atazanar não?

Meu dever é impedir que você acabe com a vida do pobre menino, com seus conselhos inconsequentes.

Vida? A criatura é mais morta que um esqueleto e você quer que eu não faça nada?

Depois não diga que eu não avisei, tá?

Obrigado pelo conselho, 'senhora mi mi mi', agora desaparece!

Minha paciência tem limite, essa vaca tá me tirando do sério! Desculpe-me pelo vaca, escapou! Não tive a intenção de ofender o pobre animal.

– Olha quem chegou! Meu filho querido, que saudades! – alegrou-se a mãe, com os olhos brilhando, ao ver Vinícius com sua noiva, recém chegados de viagem.

– Também estava com muita saudade, mãe! Ainda bem que me liberaram para passar uns dias com vocês!

Vinícius voltava do exterior. Enquanto ainda estudava em Campinas, despertou a atenção de um tutor da universidade. Este, por sua vez, tinha um amigo ainda dos tempos de faculdade, que trabalhava na filial de uma gigante multinacional de tecnologia. Alguns e-mails trocados e os gringos se apaixonaram pelas habilidades daquele jovem promissor. Mal completou dezoito anos, a empresa tratou logo de providenciar sua transferência para a França. Mais tarde, enquanto se especializava por lá, conheceu a encantadora Sophie.

Enchanté de vous connaître! disse a francesa à sogra, que não entendeu nada.

– Ela disse que é um prazer conhecê-la, mãe – explica o noivo, ao perceber a cara de bunda dela. – Trouxe uma lembrança pra senhora, espero que goste!

– Ai meu filho, que lindo! – era um legítimo Château Pavie, afinal ele morava em Bordeaux.

Aqui vale um comentário. "Ai que lindo", significava na cabeça de Dona Ana o seguinte: "Vou botar essa garrafa de vinho em destaque na prateleira e dizer pra todo mundo que é importado, mesmo que ninguém me pergunte e eu nem sei como se fala isso."

com fome, mãe! – berra Vitinho.

– Moleque, vê lá o que tem pra esse menino comer. – ordena a mãe.

Pacientemente, o querido morto leva o irmão até a cozinha, e vai pergunta o que ele quer. Verifica a geladeira e vai dizendo o que tinha para se comer. Nem terminou, e o moleque já não estava lá.

Ô meu querido, o que sua mãe falou pra você fazer? Tomar conta do "capirotinho", não foi? Onde ele tá agora? Tá correndo na sala! Vai atrás dele, porra! – falei carinhosamente como desatento morto.

E lá foi ele, correndo atrás do mais novo. Só chegou a tempo de ver a garrafa se espatifar no chão. A mãe, num surto de raiva, deu um tapa na criança, que caiu sentada, e olhou para o corredor. Um olhar tão assustador que eu podia jurar ter sentido o cheiro de enxofre.

– Mãe, tá louca? Pra que fazer isso com o menino? Era só uma garrafa de vinho! – ponderou o irmão visitante, abraçando o mais novo que chorava.

– Não me faça ir até aí, maldito desgraçado! – gritou a mãe, ignorando completamente o que seu filho mais velho disse.

Quando ameaçou correr em direção ao morto prestes a morrer, foi puxada pelo braço.

– Para com isso mãe, já passou dos limites! Ele também não tem culpa disso, simplesmente acontece! A senhora perdeu o juízo? Ce qui la baise!

Não sei o que Vini quis dizer com essa última parte, mas pela cara dele, com certeza não foi um "puxa vida, mamãe!"

A noiva estava em estado de choque, nem respirava. Não sei como ele não saiu correndo daquele hospício. Eu sairia, se pudesse. O pai, ao ouvir toda aquela barulheira na sala, chegou correndo para saber o que estava acontecendo, e antes que alguém pudesse avisar, pisou num caco de vidro.

– Meu pé, puta que pariu!

– Pai, bom te ver, mas isso tá sangrando muito, vamos pro hospital! Agora! Onde tá a chave do carro? Mãe, pega alguma coisa pra limpar esse machucado. Rápido! – o mais velho tomava a frente de todas as ações.

Maninho, que bom te ver depois de tanto tempo! Fica aqui com a Sophie e cuida do Vitinho. Não fica bravo com a mãe, você sabe que ela é um pouco esquentadinha mesmo.

"Um pouco esquentadinha?" Que diabos tem aquele vinho que você toma lá, jovem? Isso afetando sua cabeça, depois de tantas garrafas... "Um pouco esquentadinha", essa foi boa...

– Qualquer coisa a gente liga – disse, antes de sair, o único equilibrado da casa.

Na casa ficaram o irmão menor, ainda assustado com tudo o que aconteceu, um morto que não morreu graças ao irmão consciente e uma francesa que não fala português, em um país estranho, numa casa mais estranha ainda, com um adolescente e uma criança em choque.

Pensei, depois desse quiproquó todo, cadê a 'senhora mi mi mi' que vive enchendo a cabeça do garoto de linguiça, dizendo que ele tem que obedecer a mãe, me chamando de irresponsável e blá blá blá? Devia deixar ela resolver essa encrenca. Mas fiquei com pena da moça, paralisada, sem saber o que fazer, imóvel desde o incidente com a garrafa. Resolvi fazer alguma coisa.

Vai na cozinha e pega um copo de água com açúcar pra ela, rápido! – falei para o parado morto. – Não acredito, você tá me ouvindo? Tá esperando o quê? Sua mãe voltar e te encher de porrada? Vai logo na cozinha e pegue o maldito copo, amiguinho! – peguei leve com ele dessa vez, porque a cena foi mesmo tensa.

E lá se foi o atônito morto buscar a água com açúcar. Enquanto ele voltava, já com o copo em mãos, me dei conta da decisão do irmão mais velho. Que tipo de homem deixaria a mulher em uma casa desconhecida numa situação bizarra dessas? Por que não levou ela junto com ele? Deve ser mal de família isso...

Water, suggar, drink, you calm down. Sit on the couch. – ele tentava acalmar a mulher apavorada com seu inglês indígena.

Mas foi uma boa sacada dele. No susto, até que se saiu bem. Pelo menos ela bebeu, fez uma careta reprovando o sabor e sentou-se no sofá.

Do you wanna watch TV? – perguntou o bilíngue morto.

Sophie acenou positivamente, e ele ligou o aparelho em um daqueles canais genéricos, em que a baixaria reina absoluta. Ela surpreendentemente pareceu se interessar pelo programa da apresentadora barraqueira. Embora não entendesse uma vírgula do que diziam, vez ou outra ria daquele circo armado na tela.

Enquanto isso, o irmão menor estava estranhamente quieto. Quieto até demais. Procurou nos quartos, no banheiro, na salinha dos fundos, no escritório... Puta merda, o pirralho sumiu! Ficou tão preocupado com a francesa que se esqueceu do irmão menor! , fui eu que falei para ele cuidar dela e esqueci do pequeno. Eu falho também, caramba! Ou será que tenho que resolver tudo sozinho?

Quando viu o portão entreaberto, saiu correndo pela rua, perdido, gritando o nome do irmão desaparecido como louco. Seu maior medo era que o fedelho resolvesse seguir em direção às trilhas de terra e se perder na mata fechada. Seria impossível encontrá-lo se isso acontecesse. Por isso nunca brincava sozinho na rua, sempre tinha alguém de olho nele.

O desesperado morto já não sabia onde procurar. Perguntou para tudo que era vizinho, transeunte, cachorro, enfim, qualquer coisa que se movesse. Nada. Aflito, perguntou até para o senhorzinho que morava no final da rua, esquecendo-se de que ele era cego e já não ouvia muito bem. Ao passar novamente na frente da casa, ouviu o telefone tocando insistentemente. Correu mais uma vez, quase se arrebenta no degrau da entrada, respira fundo e atende. Do outro lado da linha, uma voz conhecida.

– Fala maninho! Tá tudo bem por aí? Você tá ofegante cara, o que aconteceu?

– Nada, tá tudo em ordem. É que você sabe né, (respira) pra acompanhar o pique do moleque não é fácil!

Hahahaha, eu imagino, ainda mais agora que ele maior, deve ser bem mais difícil de segurar. Bom, o pai já foi atendido, tá bem, deram uns pontos e já estamos voltando pra casa. Até daqui a pouco!

Pôs o telefone no gancho, se sentou no sofá, e ao olhar para os lados, caiu em si. Cadê a mulher? Viu que a porta do banheiro estava entreaberta, mas não tinha ninguém lá. Mesma coisa nos quartos, cozinha, fundos da casa... A Sophie também sumiu! Acho que ela se deu conta do barco furado que estava entrando e fugiu enquanto era tempo.

Em menos de uma hora o carro apontaria no portão da casa, a noiva de seu irmão desapareceu, Vitinho também, e agora não só sua mãe ia matá-lo, mas todo o resto da família. Seria um morto realmente morto. Se agachou no quintal, levou as mãos à cabeça, começou a bater um joelho contra o outro. Não conseguia mais pensar, não tinha forças para agir. E eu não sabia o que dizer para ele.

Eu não falei que você só estraga a vida do menino?

Ah não! Como se já não me bastasse o tanto de preocupação, a senhora certinha resolve aparecer. E por que não apareceu antes de dar merda, filha da p...

Ei, calma aí machão! Foi o senhor que disse para que eu fosse embora, não? O que foi? Já sei, eu me ausentei e você fez bobagem de novo, acertei?

E voltou agora por que? Ah, deixa pra lá, eu tô preocupado demais pra enfiar a mão na sua fuça agora.

- Mas é um incompetente mesmo! Eu saio um pouquinho, e você estraga tudo. Se continuar desse jeito, temo pelo futuro do pobre garoto...

- Quer fazer o favor de calar a boca e evaporar daqui, praga dos infernos? Se não veio me ajudar, pelo menos não atrapalhe!

Eu vim para tentar abrir seus olhos, não percebe o mal que está fazendo a ele? O que foi? perdeu a língua? Fale alguma coisa!

Deixei aquela infeliz falando sozinha. Não tinha mais saco para discutir alguma coisa, com quem quer que fosse. Percebo que Ralf se deitou ao lado do menino. Parecia saber da situação. Era como se quisesse dizer "calma, vai ficar tudo bem, eu tô aqui com você". Outro cachorro, com o portão escancarado daquele jeito, teria aproveitado a chance. Mas ele não, ele era diferente. Não à toa ele era a única unanimidade na família.

Já havia se passado bastante tempo, e a morte do morto era eminente. O barulho que ouvira no portão decretava sua sentença. Como um condenado prestes a pagar sua penitência, ele se levanta. Não havia mais medo, nem esperança. Se dirigiu até a entrada da casa. Levantou a cabeça. Viu Sophie, com seu irmão pequeno no colo dormindo.

I found him sleeping under a tree in the tiny square . – ela disse, baixinho, antes de levá-lo para o quarto e ajeitá-lo na cama.

Thank you so much! – agradeceu o morto que não vai ser mais morto graças a francesa ruiva.

Water, suggar, drink, you, calm down. Sit on the couch – responde Sophie sorrindo, imitando a pronúncia rudimentar do seu mais novo amigo.

Não demorou muito, e o carro chegou, parando em frente à garagem. Confesso, simpatizei com a moça. Agora entendi o porquê do irmão mais velho tê-la deixado em casa.

Apesar do dia claro, já se passava das sete da noite, graças ao horário de verão. Todos desceram, o pai mancando e resmungando, a mãe mais calma (modo de dizer, ela nunca está calma) e o irmão mais velho.

– E aí gente, tá todo mundo bem? – pergunta Vinícius.

Shhhhhhh! Le garçon dort! – Sophie o reprime.

Pardonne-moi l'amour!

– Mas será que alguém pode me explicar o que acontecendo? – Dona Ana se impacienta.

Shhhhhhh! Le garçon dort! – Sophie repete, dessa vez usando as mãos simulando a posição de dormir.

– Ela disse que o Vitinho tá dormindo, mãe! – explica o filho mais velho, num tom de voz mais baixo.

Dona Ana vai até o quarto do pequeno, abre lentamente a porta e fica ali, parada, contemplando sua cria. Bocejando, Vinícius se dirige a Seu Osmar:

– Pai, cansado pra caramba! Vou tomar um banho, comer alguma coisa e cair na cama. O que acha da ideia?

– Tirou as palavras da minha boca Vini!

Depois da resposta do pai, ele diz alguma coisa a Sophie. Ela vai ao banheiro, carregando roupas e uma toalha. Enquanto isso, o velho prepara alguma coisa no fogão para que todos possam comer. Depois de pronto, se senta junto aos filhos e à esposa. A francesa aparece, já vestida para dormir.

Beija o noivo na testa, diz alguma coisa e acena para os demais.

Bonjour!

– Ela não vai comer nada não? - indaga o pai

– Não, ela disse que muito cansada, e prefere dormir.

– Ela é com vergonha da gente, isso sim – retruca a mãe.

– Engano seu, Dona Ana! Sophie é uma pessoa super transparente. Ela pediu pra que eu falasse à vocês que a perdoassem, mas ela realmente cansada. É bem provável que ela me acorde de madrugada pedindo pra beliscar alguma coisa.

– Então , vou deixar as panelas no fogão e você esquenta a comida pra moça – diz a mãe, não escondendo uma certa decepção.

Aos poucos, quem terminava de comer ia logo tratar de tomar seu banho, fazendo o mínimo de barulho possível. Acordariam cedo no dia seguinte para arrumar a casa, que teria mais hóspedes que o habitual.

Continue Reading

You'll Also Like

Enemies By Louise

General Fiction

19.4K 1.6K 12
*ESTA OBRA É UM DARK ROMANCE* Três anos. Esse foi o tempo necessário para que Mavena se tornasse uma pessoa completamente oposta do que sempre foi. A...
73.8K 4.9K 69
(História não revisada, pode conter possíveis erros de ortográfia e gramática) "Derramarei quanto sangue for necessário para proteger aquilo que é me...
842K 43.2K 57
📌Rocinha, Rio de Janeiro. 1° Livro da série Mundos🌎 O meu mundo e o seu mundo são completamente diferentes🌍 Plágio é crime🚫
427K 16K 44
© ┊𝐎𝐍𝐃𝐄 eu faço imagines sobre jogadores de Futebol.