Fé Negra

By tiagotoy

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Mil e quinhentas léguas é o que separa a costa sul-americana de uma ilha esquecida pelo resto do mundo. Últi... More

Capítulo 1 - Campo de treinamento
Capítulo 2 - GENESI
Capítulo 3 - Conspirações
Capítulo 4 - O passado desperta
Capítulo 5 - A passagem
Capítulo 6 - Bem vindos à Ilha Desespero
Capítulo 8 - As sombras podem te ferir
Capítulo 9 - Fragmentos de luz na escuridão
Capítulo 10

Capítulo 7 - A névoa

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By tiagotoy

Embora a neblina tivesse se dissipado um pouco, nem Lua ou estrelas se faziam visíveis no céu. Keaven ia primeiro, a lanterna iluminando o trajeto, atento a cada metro vencido. Fazia frio, mas um frio estagnado, como se brotasse de dentro dos ossos e dali fizesse seu caminho para fora, arrepiando a pele. A vegetação enegrecida pela falta de luz não se movia, manchas de tons escuros borradas, estáticas.

— Esse lugar é muito esquisito — disse Felicia. — É como se estivéssemos parados no tempo.

— Você também sentiu? — perguntou Tomás. Transpirava muito; o peso de Leonard em suas costas começava a deixar de ser suportável. Felicia balançou a cabeça afirmativamente, agarrada ao braço de Rômulo.

Estavam caminhando há algum tempo, incapazes de precisar com exatidão; poderia ter sido um quilômetro ou três. A sensação de estarem conscientes dentro de um sonho era tão real que assustava. No entanto, ninguém expressava em palavras o que sentia. Via-se em seus olhares que estavam todos cientes de ocuparem o mesmo barco. Estavam à deriva, alheios ao que espreitava. Finalmente, depois de virar uma curva, avistaram a fachada de uma construção. Juntaram-se próximos à beira de um barranco, fascinados pela imponência do lugar. Era como um rei derrotado, deixado para apodrecer no campo de batalha.

Conforme aproximavam-se, descendo desajeitados (Tomás teve bastante dificuldade em descer com Leonard em suas costas, mas não o deixou em nenhum momento), notavam a invasão por parte da natureza sobre a prisão. Os tijolos escuros haviam sido tomados pelo mato e musgo, eras dominando toda a extensão das paredes. Um cheiro ocre vinha do lugar de janelas destruídas; poucas mantinham-se inteiras com grades enferrujadas. Ao redor do prédio um fosso era tomado pelas sombras. De suas profundezas subia vegetação ressequida; a profundidade era desconhecida. Podia conter água pantanosa, mato, rochas, ou nada. Uma ponte de pedra passava sobre o buraco e terminava num lance de degraus largos. Poucos metros acima havia um espaço circular, e adiante, a porta de entrada. Estava fechada.

Keaven adiantou-se, tentando abri-la. Houve resistência; as juntas do umbral haviam se esquecido como girar os ferrolhos. Sara chegou ao seu lado e o ajudou. Um de cada lado, empurraram novamente. Estalos ressoaram. Poeira caiu sobre suas cabeças. Com um impulso mais forte, as folhas se abriram. Os GENESI viram-se diante de um corredor largo, escuro. Os fachos das lanternas mergulhavam adentro, rasgando a escuridão, mas não encontravam o fim do caminho. Keaven fez sinal para que esperassem ali, e entrou.

Vasculhou ao redor. Não havia tinta nas paredes, nem mesmo resquícios. O prédio havia sido erguido de forma crua, sem atenção a detalhes. O intuito realmente havia sido o de criar um lugar para aprisionar gente da pior espécie, um buraco para indigentes, e não uma obra arquitetônica. O pé-direito era alto. A fonte de iluminação planejada havia sido também bastante arcaica. Suportes de metal estendiam-se pela parede, espaçados, com restos de tochas apodrecidas.

Após muito penetrar pelo corredor, Keaven chegou a uma área maior, abarrotada de entulho. Pedras, móveis quebrados — não soube dizer. Estava tudo muito bagunçado. A destruição era total. Apontou a lanterna para cima: a luz atravessou a balaustrada de grades estreitas e iluminou os pavimentos superiores, os quais levavam para cantos distintos da prisão. Havia uma infinidade de portas, superfícies negras, ferrosas; o lugar devia ser um labirinto para os incautos.

Keaven era um cara sem medos bobos. Temia o que podia ser tocado, e não frutos da imaginação. Porém, sentiu desconforto em estar ali sozinho. Olhou para trás; não conseguiu avistar a entrada. O silêncio era total. O negro dominava. Estava sim sozinho, mas se controlou para não girar e apontar a lanterna para todos os lados — era como se uma multidão o estivesse cercando, se aproximando. Recuou alguns passos, tomando cuidado para não pisar em falso no chão irregular. Quando alcançou novamente o corredor, deu as costas ao saguão e refez o caminho. A vontade de olhar para trás era grande, mas resistiu. Seguir em frente sem acelerar o passo era uma questão interna de honra. Minutos depois enxergou a saída. Sara o esperava, aflita. Notou uma centelha de alívio na expressão da irmã quando o viu.

— E aí, cara? — perguntou Tomás. — Alguma coisa?

— Ninguém.

— É melhor ficarmos aqui fora — disse Leonard, a dor estampada no rosto. — Não conhecemos o lugar. Além disso, Michael, Gregório e Rose podem vir pra cá. Se entrarmos, as chances de nos perdermos definitivamente são grandes.

— Pensei que os encontraríamos aqui — disse Tomás.

— Michael teria mais chances de saber onde fica a prisão — disse Sara. — Quanto a Rose e Grego, depende muito de onde tenham pousado.

Se conseguiram pousar — disse Felicia.

— Como assim? — perguntou Rômulo.

— Querido, o helicóptero foi atingido por um relâmpago.

— O nosso também foi, e estamos aqui, inteiros. Não estamos?

Felicia não respondeu.

— Não seja tão pessimista — disse Rômulo, descontente com o comentário de Felicia. — Se não pousaram, então saltaram antes de... Grego está bem, ok?

— Ele precisa estar — disse Leonard, na tentativa de apaziguar a tensão que se instaurara, e apontou para a própria perna. — Só ele pode consertar essa bagunça.

— Vamos acender uma fogueira — disse Rômulo. — Me ajude com a lenha, Tom.

Enquanto Tomás e Rômulo desciam as escadas em direção ao matagal, Sara aproximou-se dos balaústres de pedra. Apoiou-se na laje e olhou para baixo; o fosso que circundava o prédio parecia levar para as entranhas mais profundas da terra. Adiante, a floresta jazia adormecida. Ao longe não se via um foco de luz sequer. Michael e os irmãos podiam estar em qualquer parte da enorme ilha. Torceu para que estivessem bem, e para que pudessem sair dali o quanto antes.


♦♦♦


Haviam deixado as portas da prisão abertas e acendido uma fogueira na lateral do terraço. Leonard estava sentado no umbral, protegido do lado de dentro. Vez ou outra lançava uma espiada sobre o ombro, como se uma força vinda de dentro do lugar o impelisse a olhar. Encontrou somente escuridão.

Depois de ajudar a montar a fogueira, Tomás deixara os outros e postara-se ao lado de Leonard. Havia tirado a AK-47 da mochila e checava seu estado. Não parecia ter sido danificada no acidente. Havia pouca munição — a maior parte havia ficado no helicóptero. Torcia para que não precisasse usá-la. Enrolado em guardanapo e papel alumínio encontrou um sanduíche de rosbife em um bolso lateral.

— Você adora rosbife, não é? — perguntou Leonard.

— Rosbife é a melhor invenção do mundo, cara. Quer um pedaço?

— Não, obrigado. Seria muito egoísmo da minha parte aceitar.

— Que nada! Tome.

Tomás partiu o sanduíche ao meio (metade do que sobrara, pois já havia dado duas abocanhadas) e estendeu ao irmão. Este o aceitou, e comeu devagar. Parecia conciliar com dificuldade a dor na perna com atividades paralelas.

— Está doendo muito? — perguntou Tomás.

— Doeu mais. Está passando, mas arde quando faço qualquer movimento, por mínimo que seja.

— Se Grego estivesse aqui, já teria feito alguma coisa — disse Tomás, e de repente pareceu se lembrar de algo. — Espera um pouco.

Estendeu o resto do sanduíche para Leonard segurar, e então puxou a mochila para si e vasculhou seu interior. De um bolso menor trouxe analgésicos e um vidro de álcool.

— Tem água? — ele perguntou.

Leonard confirmou com um aceno e pegou uma garrafa na mochila. Aceitou os comprimidos e engoliu-os com alguns goles curtos.

— Sua sorte eu ter enxaquecas — disse Tomás, um meio sorriso no rosto. — A ardência vai passar rápido.

— Obrigado.

— Me agradeça só depois de me xingar. Isso sim vai arder.

Com um pedido de licença, aproximou o vidro do ferimento e despejou sobre ele uma quantidade generosa de álcool. Viu o sofrimento no rosto do irmão e estendeu-lhe a mão. Apertou-a enquanto limpava o corte, comovido pela dor de Leonard. Enquanto Leonard mantinha os olhos apertados, fechados, como se assim a dor fosse desaparecer, Tomás observou-o. Nutria um carinho grande pelo irmão (sentia desconforto quando os outros lançavam chacotas a ele), e doía vê-lo sofrer daquela forma. Quando Leonard abriu novamente os olhos, a ardência diminuindo, Tomás voltou o olhar ao ferimento. Retirou com cuidado o curativo improvisado, encharcado de lama, e providenciou um novo. Aproximou o rosto de Leonard enquanto enrolava a gaze e a apertava com um nó.

— Está bom assim? — perguntou.

— Bem melhor.

— Não é um procedimento médico tão bom quanto ao que Grego poderia proporcionar, mas quebra o galho.

— Está ótimo, Tomás. Obrigado.

Com um sorriso agradecido, Leonard devolveu o sanduíche a Tomás, que o devorou com poucas mordidas. Assistiu com divertimento o prazer do irmão em relação ao rosbife. Conhecia bem os gostos dos irmãos (exceto por Keaven), e sabia que, para Tomás, rosbife poderia acompanhar tudo. Quando preparava o café, sempre recheava as panquecas ou lanches de Tomás com quantidades generosas de rosbife. Dos irmãos homens, Tomás era o que o tratava com mais respeito. Não se importava com a grosseria de Rômulo e Gregório, nem com a taciturnidade de Keaven; mas o companheirismo de Tomás era sempre bem vindo.

Olhou mais uma vez por sobre o ombro; pensou que alguém estava a poucos centímetros dele, escondido nas sombras. Não havia ninguém ali.

Nenhum deles havia percebido, mas quando Tomás derramou o álcool sobre o ferimento de Leonard, o sangue escorreu e caiu no chão da prisão, do lado de dentro. Como esponja, o solo absorveu o líquido viscoso, por onde pareceu traçar inúmeras rotas, como se tivesse alcançado as veias de um gigante organismo, até aquele momento adormecido. Raízes mortas sob a terra pareceram pulsar, retomando a vida que há muito lhes fora tirada. E nas entranhas da construção, em um dos incontáveis corredores lá costurados, algo farejou o cheiro do sangue.

Em espasmos cadenciados, seus membros estalaram, erguendo-se. Um som gutural projetou-se, ecoando ao redor. Um barulho se seguiu, meio grunhido meio rosnado. A uma velocidade alucinante, percorreu os corredores, as paredes passando como borrões, arranhões acompanhando o percurso. À medida que avançava, portas e portões se abriam, dando passagem independente de suas trancas estarem lacradas ou não. Não havia resistência diante dele. A barulhada de portas batendo perdia-se no interior da prisão, mas foi aproximando-se da entrada. O cheiro do sangue tornou-se mais forte. Podia sentir o gosto. Chegou ao corredor final. Estavam ali, a poucos metros. Estacou. Não podia sair. Embora tenha paralisado bastante longe da saída, a rajada do vento provocado pelo deslocamento alucinado continuou, e atingiu o grupo em uma golfada de ar que levantou seus cabelos.

— Que cheiro horrível é esse? — disse Felicia, tapando o nariz.

— Parece que o diabo soltou um barro daqueles — disse Rômulo, protegendo a fogueira, que por pouco não apagou.

Tomás ajudou Leonard a sair de perto do corredor, onde o cheiro era mais forte. Keaven se aproximou da entrada, encarando o breu. Era como cheiro de morte. Podre.

Afastada deles, sentada no degrau mais alto e abraçada nas próprias pernas, Anna balançava o corpo para frente e para trás, observando a floresta. Não moveu um músculo ao ser atingida pelo odor de podridão. Embora fosse como um bafo quente, sentiu calafrios percorrendo seu corpo. Não havia dito nada a ninguém, mas jurava ver vultos caminhando por entre os arbustos, além de vozes vindo do mesmo lugar. Não entendia o que diziam. Mantinha os dentes cerrados, raspando um no outro, reprimindo um grito. Ainda estava sã, e sabia que os irmãos associariam seu estado ao choque do acidente, mas sentiu que enlouqueceria em breve. Cravou as unhas nos joelhos.


♦♦♦


Felicia havia se distanciado dos irmãos após a lufada de ar podre que os atingira meia-hora antes. Gostava de contato humano, de sentir o toque da pele com pele, mas precisava de um momento para si. A ilha a fazia sentir um misto de sensações, boas e ruins (mais ruins do que boas). Queria estar agarrada ao braço forte e protetor de um homem, mas ao mesmo tempo queria sentir apenas o próprio toque. Quando encontrava-se em missão, era bastante calculista. Gostava de ter tempos em silêncio para planejar as ações conseguintes. Ali, no entanto, era difícil concentrar-se em um só pensamento. Se começava a pensar em algo, a impressão de estar sendo observada era tamanha que a fazia perder o fio da meada. Enquanto observava cada ponto em que pisava, a sensação de que algo saltaria na próxima curva para atacá-la era tangível demais para que ela ignorasse, e então se desconcentrava de novo. Havia desistido de tecer uma ideia precisa do que aconteceria, e cedera à proteção de Rômulo, seu adorável brutamontes.

Apoiada na balaustrada, do lado oposto ao que Sara se encontrava absorta em seus próprios pensamentos, Felicia encarou Rômulo. Ele remexia a fogueira, distraído, os olhos perdidos nas labaredas. Observou seus músculos protuberantes, os nervos do antebraço movendo-se sob a pele, o peitoral inchado subindo e descendo sob a roupa. Uma gota de suor brotou na testa e desceu até os lábios grossos. Hipnotizada, Felicia via cada detalhe com clareza, com olhos de águia. Seu coração acelerou, os dedos começaram a tremer. Sentiu um calor surgir e crescer abruptamente entre as pernas, que se enroscaram; contraiu a virilha. Era uma garota sexual, mas aquela sensação era nova para ela. Assustou-se. Era como se dedos invisíveis, dedos grossos, enormes, penetrassem sua vagina e deslizassem para dentro, fundo, brincando em seu interior. Esquentava muito. Saltou da balaustrada e pôs-se de pé. Os pés formigavam.

— Rômulo — ela chamou.

Felizmente ninguém olhou além dele. Dirigiu-se até ela e fez sinal com a cabeça, questionando o que havia de errado.

— Fique um pouco comigo — ela disse.

— Está tudo bem, gata?

— Sim. Só estou... não sei, assustada.

— Tem medo do quê? Essa ilha está morta. Não tem nada aqui.

— Eu sei. É que...

Não encontrava palavras. Na verdade tinha as palavras na ponta da língua, mas não sabia como dizê-las sem assustá-lo. Abraçou-o.

— Fique comigo.

Rômulo envolveu-a num abraço firme, e Felicia encostou o rosto no peitoral forte. Fechou os olhos. Controlava-se, pois sua vontade era rasgar as roupas de ambos e transar com ele ali mesmo, diante de todos. Dedos intangíveis percorreram sua nuca. Ela abriu os olhos e encontrou as mãos de Rômulo paradas em suas costas. Contudo, sua genitália estava sendo apalpada, embora não houvesse ninguém ali. Ela apertou as coxas e cravou os dedos nas costas do irmão.

— Licia, você está bem? Está tremendo.

A resposta foi um gemido baixo, rouco. Tentou afastá-la para ver seu rosto, mas ela mantinha-se grudada nele. De repente suas mãos desceram, as unhas deslizando sobre a roupa. Alcançou a calça e colocou a mão entre as coxas musculosas. Rômulo estranhou. Conhecia o fogo de Felicia, e já haviam dado mostras de lascívia em público, mas não daquele jeito. Não era hora nem lugar para aquilo. Ele olhou ao redor, receoso de ser flagrado pelos irmãos; ninguém prestava atenção neles. Ao virar de volta para Felicia, pronto para pedir para ela parar, viu-a descer o corpo enquanto continuava apalpando-o. Sentiu a ereção começar. Num ímpeto, resistiu e agarrou-a pelos braços, chacoalhando-a.

— Felicia — disse em tom firme. — O que deu em você?

— O quê?

Ela parecia fora de si, como se acabasse de despertar de um sono profundo.

— Não é hora pra isso.

Recuou um passo e encarou-a nos olhos. Viu suas pupilas revirarem, e então pareceu voltar ao normal.

— Desculpe, Rome. Não sei o que houve. É essa ilha...

— Beleza. Tenta se controlar. Temos bastante tempo pra satisfazer sua fonte insaciável de desejo.

Ele sorriu, um sorriso maroto. Ela tentou retribuir, mas sentia-se fraca, dominada por uma estranha letargia. Deu-lhe as costas e voltou a apoiar-se na balaustrada.

— Volte pra fogueira — ela disse, irritadiça. — Vá manter aquele fogo aceso.

Confuso, mas sem se abalar, Rômulo fez o que ela disse.


♦♦♦


Sara passou ao lado de Anna e desceu alguns degraus. Estava preocupada com a demora dos outros em dar sinal de vida. Sobre a linha das árvores, ao longe, o mar parecia uma superfície estática, sem ondas. Não havia reflexo dos relâmpagos mudos que estouravam a quilômetros de distância em meio às nuvens. Era quieto demais.

De repente teve a impressão de ver manchas dançarem no céu, saídas da névoa distante. Borrões negros desenhavam arcos no céu, aproximando-se. Conforme chegavam mais perto, pôde distinguir asas batendo frenéticas. Envoltos na penumbra, era impossível precisar a qual espécie pertenciam, mas pareciam aves bem grandes. Continuaram voando, até que, como se teleguiadas, pousaram com precisão em galhos altos, que balançaram por um tempo com seu peso. Permaneceram imóveis. Sara sentiu que a encaravam diretamente.

— Que aves são aquelas? — perguntou.

Sem resposta, olhou para trás.

— Anna? Que aves são aquelas?

Anna não respondeu. Mantinha os olhos fixos na floresta, mas não nas aves. Preocupada com a irmã, Sara subiu os degraus, dando as costas para a mata.

— Você está bem? — perguntou, abaixando-se e pegando as mãos de Anna. Ela dizia alguma coisa baixinho. Estava em choque. — Fique calma. Michael e os outros estão bem. Você vai ver. Logo estarão aqui conosco.

Ainda sem resposta, puxou a franja de Anna para trás da orelha e se levantou, voltando ao pavimento acima. Girou e procurou as aves. Continuavam lá, suas silhuetas recortadas na neblina.


♦♦♦


— Está doendo de novo? — perguntou Tomás.

Leonard exibia uma careta estranha, enquanto se remexia no cochilo. As mãos alcançaram o ferimento na perna e, para o horror de Tomás, Leonard cravou os dedos sobre o curativo e coçou o ferimento. O sangue voltou a escorrer. Tomás agarrou seu pulso e o impediu de continuar. Com os dedos segurou seu queixo e balançou sua cabeça.

— Leo, acorda.

Os olhos claros de Leonard se arregalaram e, num grito, ele levou a mão livre para o machucado, tentando arrancar o curativo.

— Pare com isso, cara — disse Tomás.

— Está coçando muito!

— Calma.

— Queima!

— O que está acontecendo? — perguntou Keaven, aproximando-se.

— Me solta! — gritou Leonard. — Está coçando.

— Calma, Leo! Me ajuda aqui, cara.

Keaven adiantou-se e segurou um dos braços de Leonard enquanto Tomás segurava o outro. Tomado pelo desespero, Leonard se debatia, gritando, chorando.

— O que houve? — Sara perguntou, assustada.

— O ferimento dele — disse Tomás.

— Me soltem. Preciso coçar. Me soltem!

— Calma, Leo — disse Sara, segurando suas pernas. — Gente, precisamos fazer alguma coisa.

— Você tem algum medicamento? — perguntou Tomás.

— Só analgésicos.

— Já dei alguns a ele.

— Alguém tem anti-histamínicos? — perguntou Keaven.

— Tenho certeza que Grego tem — disse Rômulo.

— Ninguém aqui? — perguntou novamente. Lutava para segurar Leonard, surpreso com a força do irmão. Ninguém respondeu. — Precisamos de urtiga, ou argila verde, camomila.

— Não tem nada disso aqui — disse Sara. — Toda a vegetação parece morta.

— Sara, traga minha mochila.

Sem questionar, ela disparou até a bolsa de Keaven e a trouxe.

— Pegue minha garrafa d'água. Está no compartimento lateral. O outro.

Sara puxou uma garrafa de metal. Estava gelada. Keaven despejou a água sobre a ferida de Leonard. Seu corpo deu um tranco com o choque, e um tempo depois, exausto, acalmou-se e fechou os olhos, inconsciente.

— Ele está bem? — perguntou Tomás, ainda segurando seu braço.

— Vai ficar, por enquanto — disse Keaven.

— O que você fez?

— Água fria é um ótimo calmante para coceiras.

— Estava bem fria mesmo.

— Quente só café — disse Keaven. Pousou a mão na testa de Leonard, a fim de identificar uma possível febre. Sua temperatura estava normal.


♦♦♦


Alheia ao que se desenrolava a dois metros de distância, Anna mantinha-se atenta à floresta. Algo parecia dominar sua atenção. Algo que a havia acompanhado do cemitério. Algo saído daquela cripta. Ninguém mais via, mas nas sombras da mata vultos caminhavam, zombando da solidão de Anna em seus próprios medos. Queria o Pai para dizer que a missão estava abortada e que podiam ir embora daquele lugar maldito. Era uma garota racional, sempre disposta a enfrentar todos os obstáculos para provar ao Pai que era uma pessoa inteligente, habilidosa e difícil de derrubar. Porém, o que enfrentava naquela ilha estava além de suas capacidades. Embora nada houvesse se apresentado, sentia que não teria forças para lidar contra o que viria. Cálculos e enigmas próprios para fazer o dono do mais alto QI suar eram fichinha; enfrentar o sobrenatural, no entanto, estava fora de suas capacidades.

Em meio às folhagens um vulto se destacou. Caminhava de modo mais humano. Afastou os galhos e saiu dos arbustos. Olhava diretamente para Anna. Reconheceu-a.

— Rose! — Anna gritou.

Os irmãos olharam para onde ela apontava. Anna se levantou num salto, abandonado a inércia, e desceu os degraus, quase tropeçando nos próprios pés. Sara precipitou-se, assistindo-a correr até a mata. Os outros se aproximaram da escadaria.

— O que houve com ela? — perguntou Rômulo.

Anna saltou sobre pedras e troncos caídos e avançou de braços abertos para Rose, que sorria.

— Onde ela está indo? — perguntou Felicia.

— Não sei — disse Sara. — Ela gritou o nome de Rose e começou a correr.

— Rose? — perguntou Tomás. — Não tem ninguém ali.

Antes de alcançar Rose, Anna foi envolvida pela névoa que avançou por entre as árvores sem que ela percebesse. Os GENESI a viram desaparecer.

— Droga! Mais essa — disse Rômulo.

Sara fez menção de ir atrás dela, mas Keaven a segurou pelo braço. Ela o encarou, surpresa, e ele fez sinal com a cabeça. Sara seguiu seu olhar, e, sobre as árvores, via uma cortina de névoa se aproximando. Parecia condensada demais, diferente da neblina típica da ilha. Havia uma coloração esverdeada na fumaça; movia-se lentamente, como um animal se preparando para dar o bote. Era uma imagem assustadora.

Sara subiu o degrau de volta a postou-se atrás de Keaven. A névoa continuava como uma onda de lava engolindo o caminho, sem pressa. Alcançou o fosso, inundando-o. Chegou ao primeiro degrau, e foi subindo. Era enorme, e logo os alcançaria.

— Vamos entrar — disse Keaven. — Tem algo estranho com essa neblina.

— E quanto a Anna? — perguntou Sara.

— Ela sabe onde estamos. Vamos.

Sem esperá-los, Keaven seguiu para o corredor da entrada e aguardou ao lado da porta. Tomás correu até Leonard e o pegou no colo, acompanhando Keaven. Sara e Felicia entraram em seguida. Rômulo foi o último, encarando a ameaça, sustentando-a com o olhar por mais uns instantes. Dar as costas e fugir de uma nuvem era demais para seu orgulho. Um sinal de alerta, porém, apitou em sua mente, e decidiu seguir o conselho de Keaven, embora achasse o irmão convencido demais. Um de cada lado da porta, Rômulo e Keaven cerraram as portas pouco antes de serem apanhados pela névoa.

Esperaram um minuto na escuridão, imóveis, calados. Era abafado ali. Nenhum som vinha do lado de fora. Keaven acendeu a lanterna, no que os outros fizeram o mesmo.

— Aconselho a pouparem suas baterias — disse Keaven. — Duas ou três lanternas são o suficiente para iluminar o caminho.

Algumas lanternas se apagaram — Keaven, Rômulo e Felicia eram os únicos com suas lanternas acesas.

— O que sugere agora, sabidão? — perguntou Rômulo.

— Vamos procurar um caminho que nos leve ao andar superior. De lá podemos vigiar a entrada e acender sinalizadores para que Michael, Rose e Gregório saibam onde estamos. Vamos.

O facho de sua lanterna girou e apontou para o lado oposto, distanciando-se. Sara o seguia de perto. Tomás ia em seguida, carregando Leonard, ainda inconsciente, nos braços. Felicia e Rômulo iam por último, afastados um do outro. A tensão começava a incomodar. Seus passos sobre o piso de pedra ecoavam no breu quase total.

Enquanto caminhavam, os olhos arregalados para acostumarem-se às trevas, alguém os seguia, exalando podridão dos poros de seu corpo.

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