Vamos enfeitar esse conto perturbador até ele parecer bonito,
Vamos fazer com que eles pareçam bons como ninguém,
E todos sejam vítimas do mundo.
Vamos cativas as pessoas com falsas esperanças,
Vamos fazê-las suspirar em felicidade,
Vamos dar a elas sentimentos tão falsos como porcelana barata.
Com o golpe final, mostraremos o quão árduo, cruel e doloroso é alcançar a luz do sol
E ir ao outro lado da colina.
Deseja se afogar nas doces e serenas mentiras?
Porque a verdade não parece ser tão bonita agora, não é?
Então abram as cortinas e garantam seus assentos, o ato está prestes a começar!
Sejam bem-vindos ao nosso show !
***
- Ah, que tédio. - Disseram os ecos de uma voz, suas vibrações ricochetearam por todo o jardim que residia e fazia com que as plantas tremessem de medo. As flores dançavam com a fraca brisa da noite e a lua cheia acima de sua cabeça fazia com que tudo ficasse iluminado, brilhando e banhando sutilmente aquele lugar. Imaginando estar sozinha, falava consigo mesma com um grande rancor e ódio. Não sabia do porquê sentia aquele ódio ou para que exatamente deveria direcionar tal sentimento horrendo e negativo, somente sabia que deveria permanecer com ele em seu peito vazio pelo desprezo. - Todos eles estão tão felizes e eu continuo nesse tédio. Quero queimar tudo, fazer tudo se tornar tão cinzento como fizeram a Roma e Londres. Quero reduzir toda essa felicidade ao pó.
Uma risadinha miserável saltitou pelo ar, fazendo com que as vozes se calassem quase que imediatamente. Uma figura tão pálida quanto a lua estava sentada ali, no chão, passando seus dedos entre a grama macia e deixando que uma pequena joaninha subisse em seu dedo. A mulher sorria para o nada que eram aquelas vozes e esmagou o inseto contra o chão, ouvindo-o estralar e arrancando a vida dele. Tão pequenos e inúteis, tão fáceis de esmagar, pensou ela. Assim como os seres humanos.
- E o que te impede de fazer isso? - Perguntou a mulher tão prateada quanto a lua que se erguia no céu. - O que te motiva a fazer isso? - Mudou levemente sua pergunta.
As vozes riram e deram à mulher a atenção que ela queria.
- E eu preciso de um motivo para isso? Pois bem, lhe darei um, bruxa: eu gosto de destruição. Gosto de sofrimento e caos, choro e lágrimas inúteis. Quero banhar esse lugar com o sangue sujo daquelas pessoas.
E a mulher, mais que satisfeita com tal resposta, sorriu abertamente.
- É um ótimo motivo, eu também adoro desastres. Afinal, eu sou do Infortúnio!
- O que isso quer dizer? - Rosnou, ficando impaciente. - Está louca?
- Quer dizer que estou fadada a causar destruição naturalmente, e não estou louca. Não vamos mudar de assunto, por que não vai lá logo e executa seu plano?
- E quem disse que ele já não está sendo executado? - Retrucou. - Eu levarei todos eles às cinzas.
A mulher deu uma risada e arrumou o seu chapéu na cabeça, o impedindo de ser levado pelo vento.
- Estarei aqui para assistir, então. Clamo pelo seu sucesso, espírito perdido. Então... - olhou-a e estreitou seus olhos felinos - queime tudo.
***
- Detetive?
Com mais uma tragada de seu cigarro, Caleb Gracês olhou para cima, encarando o jovem à sua frente com seus pés sobre a mesa de seu pequeno e monótono escritório. O cheiro da droga que carregava entre os lábios era incômodo para o seu parceiro que ali estava de pé, o mesmo o encarava com um tom de reprovação e franzia suas sobrancelhas escuras. Caleb soltou um suspiro, fazendo com que mais da fumaça tóxica lhe escapasse pelos lábios e apagou seu cigarro no velho cinzeiro que ficava em sua mesa.
- O que houve, Luca? Está com uma expressão mais azeda que o normal.
- É "Lucas", senhor. Lucas Bandeira. - Corrigiu-o, arrumando os óculos no rosto. O terno que vestia estava perfeitamente alinhado ao seu corpo e os cabelos escuros arrumados, fazendo com que uma comparação entre ele e o seu superior fosse inevitável. Caleb parecia totalmente desgrenhado ao usar aquele velho sobretudo marrom, a barba mal-feita e os cabelos castanhos bagunçados batendo em seu pescoço. Ele deveria se portar melhor, pensou Lucas.
- O "s" faz alguma diferença?
- Sinceramente? Sim, muita diferença.
- O que você quer? Amolar-me? Minha vida já faz isso por si só, então se não tem nada a fazer aqui...
- Queria saber sobre o caso que pegamos. Ele ainda está em andamento, certo?
Caleb pegou um envelope marrom que estava perto de seus próprios calçados tamanho 39, estendendo-o para Lucas. O rapaz o pegou e abriu-o, tirando de lá alguns documentos e analisando-os rapidamente. Alternou seu olhar para a figura de Caleb, ainda apreensivo.
- O senhor está bem, detetive?
- Estou ótimo, por isso estou me entupindo de cigarros.
- Talvez isso leve à falência de seus pulmões, sabe...
- Parece que a morte não é lá uma opção muito ruim na minha situação. - Ele jogou a cabeça para trás, cobrindo o rosto com uma mão e grunhindo. - Minha ex-mulher não quer que eu veja minha filha, meu apartamento está caindo aos pedaços e acabei por atrasar o aluguel.
- Está com barba por fazer e suas roupas nem ao menos parecem passadas, senhor.
- Obrigado por notar, querida. Quer arrumar minha gravata também?
Lucas se forçou a não revirar os olhos e manter seu profissionalismo, devolvendo o envelope à mesa.
- Parece ser um caso comum. - Comentou. - Poderia fazer um resumo para mim?
Caleb se sentou corretamente e apoiou seus cotovelos na mesa. Pegou um pequeno elástico que sempre ficava em seu pulso e prendeu seus cabelos, ainda pensante.
- Deixe-me ver... quem me ligou para que a investigação fosse executada foi Mary Brown, presumo que já ouviu falar dela, não é?
- Ela é uma advogada importante e esposa de Henry Brown, um dos diretores de um grande hospital da cidade.
- Sim, exatamente. Sua sobrinha, Emma Brown, estava desaparecida já faz dois dias, mas foi localizada hoje no Sanatório Sta. Lucy. Ela bateu nas portas daquele lugar notavelmente ferida e fragilizada. Agora você me pergunta: "Oh, sábio senhor Caleb, ela já foi encontrada, não há mais nada a se fazer, não é?". - Lucas respirou fundo para não perder a paciência. Nunca, na Terra, ele falaria daquela forma. - Pois eu te respondo: os pais dela e sua irmã caçula também haviam sumido junto com ela mas, ao contrário da garota, eles não reapareceram. Temos investigar o que aconteceu com eles, onde estão, por que Emma estava ferida e foi parar naquele Sanatório. Essa garota tem que voltar para casa, caso contrário, o Sanatório irá se tornar o seu novo lar, e eu não acho que isso a agradaria muito.
- Não será fácil. O senhor a verá logo?
- Estou indo hoje mesmo, já que não tenho nada para fazer além de me remoer com minha vida horrível.
- Não seja dramático, senhor.
- Você investiga o histórico dos pais dela, - ele se levantou e se espreguiçou, colocando suas mãos nos bolsos - e eu vou encontrá-la no Sta. Lucy. Conto com você.
Lucas assentiu seriamente.
- Sim, senhor.
Caleb saiu do seu pequeno escritório particular, descendo as escadas do prédio em que ele residia e quase se espremendo no apertado corredor, indo para fora e tomando um grande gole de ar fresco. Olhou para o trânsito movimentado, sentindo o cheiro da fumaça dos carros da rua, tão sufocante quanto era o de seus cigarros. A cidade grande era demais para ele, e toda essa agitação não era o que ele realmente desejava. Viver com sua pequena filha em uma grande casa no interior era o que ele realmente almejava, ou somente se mudar para um lugar mais calmo que aquele. Mas ele não possuía dinheiro o suficiente para comprar uma casa e o até o restante que sobrara para seus cigarros logo esgotaria, já que o preço deles aumentava cada vez mais. Mas ele não conseguiria largar aquele vício sozinho e da noite para o dia. "É como comprar veneno por um preço caro e se matar aos poucos", diria Lucas a ele.
Aquele garoto realmente se importa?, pensou, suspirando e estremecendo dentro de seu casaco. Mesmo que vestisse ele, o frio parecia cortá-lo como navalha, Ele tem sua própria vida para cuidar.
Seu jovem parceiro havia se juntado a ele por conta de uma indicação de um amigo e ex-chefe. Sr. Thompson, um profissional confiável e a única pessoa que manteve contato desde que deixara de ser um policial e trabalhar em uma delegacia. Se não fosse uma recomendação de Thompson, presumo que não aceitaria.
Ele estendeu sua mão para o lado com a intenção de parar um táxi. O veículo amarelo berrante parou ao seu lado e ele entrou, fechando a porta com um baque surdo.
- Para o Sanatório Sta. Lucy, por favor.
O motorista careca olhou para Caleb pelo espelho do retrovisor, mascando um chiclete e fazendo uma bola com o conteúdo rosa. Concordou e virou seu olhar para frente.
- Claro, chefia.
Exatos vinte e cinco minutos depois, o táxi parou de frente ao Sanatório Santa Lucy. O edifício largo que se estendia à sua frente não era tão perturbador quanto imaginou que seria, a estrutura parecia recente e não era como retratado em filmes de terror. Sem gritos, nada de musgo incrustado pelas paredes ou janelas quebradas, era totalmente normal. Fala sério, Caleb. Aquilo tudo é ficção, coisas como casas mal assombradas não existem.
Ele estava ansioso e agitado, mas tentou manter sua calma e não transparecer nada daquilo. Acalme-se, você vai interrogar uma criança, não um serial killer.
Foi até a porta e não avistou nenhum segurança, então bateu nela algumas vezes e esperou. Ninguém viera lhe receber então, estressado, esmurrou a porta repetidas vezes sem parar até ela ser aberta, quase acertando o rosto da pessoa que o atendera. Era um homem alto e rosto gentil, e ele observou Caleb com um sorriso mesmo estranhando-o.
- Pois não? Como posso ajudá-lo?
Ele mostrou seu distintivo e abriu o melhor sorriso amigável que possuía, o que já era algo difícil.
- Sou o detetive Caleb Gracês, vim fazer uma visita a uma de suas pacientes, Emma Brown. Será que posso entrar para conversar um pouco, senhor?