Eduarda
Acordei com o barulho da minha mãe abrindo as janelas. A claridade irritou um pouco os meus olhos e pisquei algumas vezes para me acostumar. Eu tinha ficado até tarde lendo Orgulho e Preconceito, ao qual eu deveria ter terminado, mas a leitura é tão envolvente que quero demorar ao máximo para concluir.
— Eu sei que você deseja dormir mais um pouco, mas já são quase nove horas e se bem me lembro, Victor marcou com você ás dez. E se pretende tomar seu café sem pressa, acho melhor se levantar.
— E precisa abrir todas as cortinas para me acordar? Bastava me chamar – falo enquanto tento me sentar na cama.
— O seu quarto precisa entrar um pouco de sol, e você também. Está muito branca.
Reviro os olhos.
— É que esqueceram de me levar para tomar sol enquanto eu estava em coma – falei rindo.
— Fico feliz que tenha acordado de bom humor.
— É um outro lado que está voltando ao normal, só falta as minhas pernas pararem de serem preguiçosas.
Minha mãe olhou para mim por um instante antes de voltar a falar.
— Fico muito feliz que você esteja reagindo assim após o acidente.
— Vai adiantar alguma coisa ficar me lamentando?
— Acredito que não...
— Então vamos pensar apenas na minha melhora daqui para frente. Depois que o doutor Victor for embora, quem sabe eu não vá para a piscina...
— Por que você o chamar de doutor?
— É o que ele é – falei sem dar muita importância.
Minha mãe me olha por alguns segundos e depois volta para as cortinas.
— Vou abrir as janelas, aqui ficou muito tempo fechado... Quer ajuda para se levantar?
— Não obrigada, acho que já consigo fazer isso sozinha. Pensou sobre o assunto de me transferir para o quarto de baixo?
— Sim, e ainda acho que você deveria ficar aqui...
— E depender dos outros? Não obrigada. Contrate uma equipe para que cuide de tudo. Quero poder circular pela casa sem ficar pedindo para alguém me ajudar.
— Mas querida...
— Sem discussão mãe, ok? Que tal agora me ajudar com minha roupa. Quero algo confortável para estar apresentável para o doutor Victor.
— Sinto que você está implicando com o Victor.
— Sente? E por que acha isso?
— Não sei. Ele parece ser uma boa pessoa, um bom pai, um excelente profissional, mesmo depois de tudo o que aconteceu com ele.
— O que aconteceu com ele?
— O pobre coitado perdeu a esposa e segundo filho em um acidente de carro – minha mãe disse enquanto revirava meu guarda-roupa.
— O que disse?
Minha mãe puxou uma legging e olhou para mim.
— Que tal esse? Acho que ainda serve...
— Odeio a cor azul...
— Desde quando? Era sua preferida.
— Meu pai dizia que era minha cor preferida, mas voltando ao assunto do doutor Victor, como foi o acidente?
— Não sei muitos detalhes, apenas que um carro entrou na contramão e bateu de frente com o carro da esposa dele. Depois disso, ele foi embora do país e não quis mais voltar.
— Mas está aqui agora.
— Por você.
— Por mim? – perguntei incrédula.
— Ele fez um excelente trabalho com seu irmão, então eu entrei em contato com ele e entramos em um acordo.
— Que acordo?
— Ele cuidaria de você e em troca eu encontraria a pessoa que causou o acidente.
— A polícia não descobriu o culpado?
— Até parece que não conhece a justiça do nosso país.
— E como a senhora pretende fazer isso?
— Vivi muito tempo com seu pai. Tenho meios de conseguir algumas informações.
— Mãe...
— Fique calma. Quando fiz a proposta estava pensando em você.
— E ele concordou com isso? Sem fazer perguntas?
— Victor não vai conseguir seguir em frente sem saber quem foi o responsável.
— Olhando para ele, não parece alguém que esteja procurando justiça.
— Ele nem sempre foi assim. E como você ficaria se alguém importante na sua vida fosse tirada sem aviso prévio? Ele esconde toda sua tristeza por conta do filho e do trabalho.
Minha mãe voltou para o guarda-roupa a procura de outra roupa.
— Você deveria tentar ser mais gentil com ele.
— E desde quando não fui? – perguntei enquanto sentava na cadeira.
Minha mãe me olhou séria.
— Quer mesmo uma resposta para essa pergunta?
Como não respondi, ela voltou a revirar minhas roupas.
No final, acabei vestindo um short de lycra preto. Facilitaria nos exercícios. Coloquei um top preto e uma regata cinza por cima. Estava terminando o café quando fomos avisadas que Victor havia chegado.
— Bom dia Victor, aceitar tomar café conosco?
— Bom dia Eliza, Eduarda... Obrigado, mas já tomei café.
— Uma pena. Mandei preparar a área da piscina para que vocês usem o espaço.
— Ótimo, vou para lá e aguardarei até que Eduarda esteja pronta.
— Já estou pronta, podemos ir – falei afastando minha cadeira da mesa.
— Vou aproveitar e ir até a cidade cuidar de algumas coisas pendentes. Devo estar de volta em duas horas no máximo. Fica para o almoço?
— Não sei, tenho alguns casos para avaliar...
— Faça um esforço para ficar. Essa casa ficou muito vazia depois que os gêmeos saíram e Eduarda precisa de alguém além de sua mãe aqui para conversar.
— Mãe, se o doutor Victor diz que não pode ficar, não devemos insistir, além do mais, sobre o que conversaríamos? Fiquei anos dormindo, não saberia como interagir.
Olhei para Victor e ele pareceu concordar comigo. Nenhum dos dois parecia que iria ficar a vontade.
— Outro dia quem sabe?
Minha mãe era insistente.
— Claro. Outro dia...
— Preciso ir agora. Qualquer coisa é só chamar um dos empregados. Até mais tarde querida – disse me beijando o rosto e saindo da sala de jantar.
— Peço desculpa pela minha mãe. Ela não costuma agir assim.
— Tudo bem. Sua mãe é parecida com a minha, acha que somos adolescentes e que precisamos de ajuda.
Eu ri. Ele também, mas seu sorriso parecia forçado, ou eu estava imaginando.
— Posso ajudá-la com a cadeira?
— Eu recusaria, mas o caminho até a piscina é um pouco longo.
Quando chegamos à piscina, uma cama improvisada havia sido montada à sombra. Ao lado havia uma bandeja com uma jarra de suco e frutas.
— Acho que sua mãe pensou até nos detalhes.
— É, parece que sim. Por onde vamos começar?
— Vou fazer alguns exercícios com suas pernas e depois podemos aproveitar a piscina e nadar um pouco.
— Nadar? Você está brincando? Como vou nadar sem as minhas pernas?
Ele olhou para mim e depois para a piscina.
— Confie em mim, você vai conseguir.
— Está me pedindo demais. Não o conheço o suficiente para isso – tentei soar séria.
— Serei seu médico por um bom tempo, vai ter que confiar em mim.
— Devo concordar que você tem razão, mas nada de piscina hoje.
— Vou aceitar sua negação apenas por hoje – disse gentilmente – agora vamos ao trabalho.
Victor me ergueu e me colocou na cama sem se preocupar se eu questionaria ou não. Pensei em reclamar, mas por um breve e estranho momento gostei de sua ação.
Fiquei deitada olhando para seus movimentos enquanto ele se concentrava no seu trabalho. Ele era o tipo de pessoa que levava seu trabalho muito a sério.
Eu desejei apenas sentir o suave toque de suas mãos, mas era como se ele estivesse tocando outra pessoa e eu fosse apenas a telespectadora.
— Sua mãe me falou que você deseja trocar de quarto.
— Ela não está muito de acordo com isso, mas não vou desistir.
— Por que quer isso? Acha que não vai voltar a andar novamente? – perguntou me olhando agora.
— Não sei, mas enquanto tentamos, não quero ficar dependente dos outros. Não quero ser tratada como uma inválida ou algo parecido.
— Acreditaria se eu dissesse que você vai voltar a andar?
— Os médicos dizem o que os pacientes querem ouvir – suspirei – mas não se preocupe, já perdi muita coisa, perder o movimento das pernas seria como pagar uma dívida por tudo o que eu fiz.
— Falando assim até parece que cometeu algum crime – disse enquanto dobrava meu joelho e abria-o de novo.
— Não matei ninguém, se é com isso que está preocupado – eu ri.
— Acredito que você não seria capaz de matar alguém, pelo menos não proposital.
— Como pode ter tanta certeza sobre isso?
— Seus irmãos não são assim, embora Kadu tenha um histórico de confusões.
Victor trocou de perna e fez o mesmo movimento.
— Sou a mais velha, posso ser a ovelha negra da família.
— Teria motivos para isso?
— Conhece meu pai?
Victor juntou as duas pernas e fez o mesmo movimento ao mesmo tempo.
— Tive um breve momento com ele.
— E que o achou dele?
— Um homem sério e decidido.
— Acrescente na sua lista, um manipulador e adorador do poder. Isso poderia resumir no meu lado ovelha.
— Parece que vocês não se dão muito bem.
— Você está certo. Por um lado agradeço por ter dormido por tanto tempo – minha voz saiu um pouco rancorosa.
Victor deve ter notado meu tom de voz , por que logo mudou de assunto.
— Você se lembra de alguma coisa do acidente? Como aconteceu?
— Não, e para falar a verdade, não quero lembrar.
— Você é a primeira pessoa que conheço que deseja esquecer.
— Talvez seja por que tenho medo de descobrir.
— Por que você teria medo? Acidentes acontecem...
— Você está certo, mas ainda assim, não quero saber.
Victor se afastou das minhas pernas e veio para minha cintura.
— E seus amigos, algum deles veio lhe visitar?
— Nenhum. Acho que depois de tantos anos, eles simplesmente me esqueceram.
— Não se pode chamar essas pessoas de amigos.
— Eu não os culpos. É vida que segue.
— E você não se importa, ou fica triste?
— Eu deveria, mas não estou, por incrível que pareça, me sinto bem melhor longe deles. Agora vamos parar de falar sobre minha vida, me fale algo sobre você.
— Como o quê?
— Sei lá, que tal como escolheu essa profissão, como é cuidar do filho sozinho depois da morte da sua esposa...
Victor parou a onde estava e olhou para mim.
— Como sabe sobre isso?
— Minha mãe comentou hoje. Como aconteceu?
— Não falo sobre isso com meus pacientes.
— Qual é, acabei de falar sobre minha vida...
— Minha vida não é para ser compartilhada. Terminamos por hoje.
Victor se levantou e começou a baixar as mangas de sua camisa. Esforcei-me para sentar na cama.
— Me desculpe, foi algo que falei? Não achei que... Eu não...
— Está tudo bem. Só não gosto de misturar trabalho com vida pessoal.
Mas nós não tínhamos acabado de falar da minha?
Toquei seu braço e segurei, forçando Victor a olhar para mim.
— Eu sinto muito Victor. Não foi minha intenção tocar em uma ferida que parece que ainda não cicatrizou.
Victor me encarou por alguns segundos antes de tocar minha mão.
— Acabei de ouvir você me chamar pelo nome?
— Acho que sim.
— Então pulamos a parte de que não somos mais estranhos?
— Nunca disse que você era estranho.
— Mas estava me chamando de doutor. O que dá na mesma coisa.
Puxei minha mão.
— Se não gostou, podemos voltar para o antes.
— Não. O agora está melhor. Vamos marcar a mesma hora amanhã?
— Sim, podemos.
— Ótimo, preciso ir agora.
— Não quer ficar para o almoço?
— Agindo como sua mãe agora? – ele sorriu.
— Não... Só achei que seria uma maneira de sei lá... Começar do zero...
— Está querendo dizer que vai parar de implicar comigo?
— Nunca impliquei com você – tentei me defender.
— Está implicando comigo desde o nosso primeiro encontro, aquele em que não falei quem eu era.
Fiquei calada, por não sabia o que responder.
— Bem, é bom saber que vamos esquecer esse pequeno incidente. Mas o convite vai ficar para outro dia, já que estou devendo outro convite – ele falou e eu me lembrei do almoço de sábado.
— Não se sinta obrigado a vir no sábado. Você deverá realmente estar ocupado procurando uma maneira de me colocar de pé.
— Na verdade, vou tirar o fim de semana para ficar com meu filho Davi. Nos últimos meses não tenho sido um pai muito presente.
— E está tentando recuperar tudo agora...
— Sim.
— Então espero que consiga. Um pai presente é tudo o que uma criança precisa – falei pensando na minha relação com meu pai.
— Vou ajudá-la a entrar. Quer ir para o seu quarto?
— Não, vou para biblioteca, preciso terminar o livro que estou lendo.
— Orgulho e Preconceito?
— Sim. Não consigo largar a leitura – sorri.
— Gosta de ler?
— Adoro, principalmente romances com muito drama.
Victor sorriu e me ajudou a sentar na minha cadeira.