Os Descendentes e a Ferida da...

By brunohaulfermet

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A Ferida da Terra precisa ser contida. O tempo corre. A situação piora. Mas o que ela é, Ian não sabe. Ele nã... More

Periodicidade das postagens
Amazon e Skoob
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1 - Você Não Devia Estar Aqui, Menino
Capítulo 2 - A Casa da Costa
Capítulo 3 - Corpo Gelado
Capítulo 4 - Meninas Más Morrem Primeiro
Capítulo 5 - As Pequenas Luzes
Material de divulgação do livro - Imagens (I)
Capítulo 6 - A Fuga dos Irmãos
Capítulo 7 - Trio Encrencado
Capítulo 8 - A Excursão
Capítulo 9 - A Reunião dos Improváveis
Capítulo 10 - A Planta no Meio do Vale (I)
Capítulo 10 - A Planta no Meio do Vale (II)
Material de divulgação do livro (II)
Capítulo 11 - Descendentes
Material de divulgação do livro (III)
Capítulo 12 - Festa Julina às Avessas (Parte I)
Capítulo 12 - Festa Julina às Avessas (Parte II)
Capítulo 13 - O Castelo de Sorin
Capítulo 14 - Outros Descendentes
Capítulo 15 - A Adaga Infinita
Capítulo 16 - A Ferida da Terra
Capítulo 17 - Os Quatro Dirigentes
Capítulo 18 - Corrente Cósmica Universal (I)
Capítulo 18 - Corrente Cósmica Universal (II)
Capítulo 19 - A Zona Escura
Capítulo 20 - A Floresta das Lágrimas
Capítulo 21 - Um Contra Cem
Capítulo 23 - A Espada Celestial
Capítulo 24 - A Suspeita
Capítulo 25 - Pelúcias
Capítulo 26 - Luz e Água
Capítulo 27 - A Calmaria Antes da Tempestade
Marcadores de "A Ferida da Terra" - Brinde por tempo limitado
Capítulo 28 - O Rompimento
Capítulo 29 - O Rabisco
Capítulo 30 - A Véspera
Curiosidades sobre A Ferida da Terra
Capítulo 31 - A Partida
Capítulo 32 - Em Família
Capítulo 33 - Ele
Capítulo 34 - Sombra Contra Luz
Capítulo 35 - O Fim e o Começo
Capítulo 36 - A Volta (FINAL)
A Ferida da Terra e os leitores: o que vem depois.
BÔNUS - A Saga da Descendência {Livro Dois}
Estudos Ilustrados para Capa Definitiva
[VOTE] Imagem final de um dos cinco.
Color Script
Ilustração e Capa Definitiva - Livro Um
Curiosidades [Parte 2]
Primeiro Encontro Oficial do Wattpad
Livro Dois - Nome e Sinopse
Encontrão do Wattpad - Bienal do RJ 2017
Prêmio Deusa Lendari / Finalista

Capítulo 22 - O Maior Medo de Norah

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By brunohaulfermet

Norah e Xaviera tinham acabado de atravessar uma das portas de travessia, na Casa da Costa. Estiveram o tempo todo acompanhando o treinamento de Higino, à distancia. Embora a irmã do garoto tivesse mostrado interesse em ajudar quando viu seu irmão em desvantagem, a general não permitiu que ela fizesse qualquer coisa. A sensação de impotência foi difícil de ser controlada pela menina.

— Observar também faz parte de um treinamento - disse Xaviera, ajeitando alguns fios de cabelo que estavam fugindo da trança única.

— Ele quase morreu! - respondeu Norah, ainda se recuperando do que tinha visto.

— Todo ser humano corre esse risco dia após dia, nós em especial, dado os últimos anos.

— Você entendeu o que eu quis dizer, Xaviera.

— Você não tinha por quê se preocupar. Viu o que seu irmão pode fazer...

— Impressionante - a menina parou para refletir por um momento. - não sabia que ele tinha tanta força.

— Você também tem, Norah. Só precisa de um empurrãozinho. E vai poder manipular a água em qualquer estado além do líquido. Além disso, você ficou transtornada em vê-lo correr perigo. Percebe quanta bondade há em você?

Norah franziu a testa.

— Como assim?

— Você é menos durona do que pensa. Eu sei que existe uma menina aí dentro que transborda amor e que está doida para sair. Apenas queria que você também enxergasse.

— Você não sabe nada sobre o que eu sou por dentro - rebateu Norah com deboche. Havia uma ponta de tristeza na resposta, também. - então foi por isso que ficamos observando esse tempo todo?

— Foi sim. Me diga, não está feliz pela atitude que teve?

Norah estava. Sentia um calor no peito, um sentimento tenro e aconchegante que pôs um sorriso tímido em seu rosto. Ela o disfarçou para não admitir que a general estava certa.

A menina sentiu-se grata pela oportunidade de ver um outro lado seu que ela mesma não lembrava mais. A cada ano que passava ela se sentia pior. Mais arrogante, mais isolada, mais má. Um pai bondoso e um irmão gentil debaixo do mesmo teto todos os dias não fez diferença para ela.

Assim como Higino desabou com a morte de Caroline, Norah também o fez. De um jeito completamente oposto ao irmão, mas nem por isso menos legítimo. Ela compartilhava da mesma raiva ao descobrir a verdade sobre a morte de Caroline e mais uma vez sua reação foi diferente da postura de Higino.

Ela queria encontrar Zero e fazê-lo pagar, mas o pesar em seu coração vencia de longe a vontade de se vingar. E isso ela achava irônico. O tímido e gentil irmão estava possesso. Ela, que sempre fora extrovertida e abusada, estava em um luto que invadia sua alma e a calava mais do que a exaltava.

Lágrimas quentes escorreram pela face e ela não se incomodou em secá-las. Xaviera sorriu ao notar o rosto molhado da menina.

— Se essa história de gêmeos serem parecidos em muitos aspectos for verdade, fico mais ansiosa ainda para ver o que você tem para mostrar.

— Não espere muita coisa – disse Norah, fungando.

As duas caminharam por um corredor semelhante ao que levara os descendentes até o ginásio do terceiro andar da Ala Principal. Norah sentiu o ar mais fresco, como se estivessem perto de uma praia.

— Onde estamos?

— Na Ala Marina. Mais precisamente no último andar.

A menina olhou em volta: notou alguns poucos guardas e mais ninguém. Nenhuma outra pessoa que pudesse ser estudante ou funcionário do Castelo de Sorin.

— Ninguém vem muito aqui, né?

— Apenas funcionários. Os alunos e visitantes só podem circular pelos dois primeiros andares.

— Como na Ala Principal?

— Sim. E isso também serve para a Ala Pólux. A demanda é suficiente para ser atendida em dois andares de cada Ala.

— Sabe, Xaviera, eu estou com uma curiosidade... - começou a menina.

— Pode falar.

Mas Norah interrompeu a fala. Ela e a general tinham chegado ao fim do corredor e a menina estava sem palavras diante do cenário que se apresentava.

Quase que inteiro, o andar era tomado por uma piscina circular de água tão cristalina que ela podia ver o fundo lotado de pedras arredondadas. Uma plataforma flutuante de metal extensa ficava posicionada no centro e tinha o formato de uma estrela com oito pontas.

Um aro dourado circundava a estrutura metálica, tocando cada ponta e criava uma piscina menor dentro da que existia. Norah achou que o local parecia uma bússola, embora faltassem detalhes na plataforma que de fato caracterizassem a ideia.

No centro da piscina e abaixo da plataforma a água era azul escura e clareava à medida que se aproximava da borda, que possuía diversas folhas soltas e de tamanhos diferentes acumulando-se apenas naquela região.

Arquibancadas de alvenaria eram conectadas com a piscina e se elevavam em muitos níveis, envolvendo-a em todo o seu diâmetro. Dos canteiros, árvores e arbustos frondosos em tons de laranja e vermelho preenchiam o lugar com vida. A admiração de Norah foi cortada por Xaviera que repetiu a fala, diante do transe momentâneo da garota.

— Ei, eu disse que você pode falar.

— Falar o quê?

— O que está te deixando curiosa.

— Ah, é mesmo. É que vendo esse lugar me deu uma sensação boa e por um segundo esqueci o que estava falando... me diz, Xaviera... as técnicas da classe Abismal funcionam de que jeito?

— Por que pergunta?

— Já disse... curiosidade.

— Técnicas abismais não são bem vistas em Terraforte. Você já viu a imagem de Zero e o quão desoladora ela é. Magia desse tipo é usada apenas para causar dor e sofrimento. Técnicas normais já absorvem muito da energia vital do conjurador. As abismais consomem além disso, o próprio senso de humanidade.

— É tão cruel assim?

— Absolutamente. Alguém que consegue utilizar uma técnica dessas só pode ter a mente e o corpo inundados de ódio e amargura. Todo sentimento nocivo é combustível para fortalecer a técnica desta classe. O que quer dizer que quanto mais forte é a magia Abismal, menos humanidade existe no coração de quem a usa. No entanto, existe uma ressalva...

Norah estava atenta. Queria saber o máximo sobre o inimigo e como poderia lidar com ele. Xaviera continuou:

— Quem opta por utilizar uma técnica Abismal apenas poderá usá-la como único recurso pelo resto de sua vida. E quando digo único, é literalmente.

— Então se alguém utiliza uma técnica Abismal, ela não pode usar outras técnicas abismais?

— E de nenhuma outra classe. Por isso os conjuradores dessa classe costumam estudar meticulosamente o que desejam aprender porque sabem que é um caminho sem volta.

— Qualquer um pode aprender?

— Desde que estejam impregnados de sentimentos e intenções ruins, sim.

— Mesmo se for um descendente?

— Qualquer um. Em casos de descendentes, eles podem abrir mão de suas classes herdadas para obter uma, e apenas uma, técnica Abismal.

— E por que alguém trocaria tantas opções por apenas uma técnica?

— Porque é a classe mais perigosa. Se equipara à classe Divina. Uma técnica Abismal se vale também de todo o medo e sentimentos ruins que existirem no oponente. E como somos todos seres humanos, imperfeitos, existe um pouco de tudo isso dentro de nós, o que facilita a eficácia dessa magia.

— Medo é o que mais temos sentido com todas essas descobertas.

— É, menina. Paira um sentimento de alerta em todos nós. Zero pode atacar a qualquer momento. Estamos todos vulneráveis e essa impotência de agir me irrita demais.

— Sinto muito. Eu... - ela parou, sem ter certeza se deveria dizer aquilo. - vou ajudar no que puder. Se eu conseguir, né...

— Você é uma descendente da rainha Sorenta. Sangue nobre e gentil corre nas suas veias. Vejo potencial em você, assim como vejo no Ian e nos outros. Gostaria de dizer o mesmo para todos os descendentes, mas a maioria deles não dá crédito a Cosmos. Estão correndo riscos sérios de morrer e simplesmente não ligam.

— Talvez por serem daqui e nunca terem vivido algo assim eles duvidem mais do que nós, que acabamos de chegar e estamos mais receptivos com tudo que é novo.

— Faz sentido, embora não ache que isso seja justificável. Cosmos e nós, seus três generais, temos feito todo o possível e eu te digo, Norah. Zero está vivo. Ele é real. Não sabemos como provar, mas eu posso sentir. Depois que achamos a Adaga uma energia densa tem rodeado todos nós.

— Como podemos lidar com Zero?

— Como general que protege o Regente e tendo também a responsabilidade de cuidar da segurança de vocês, descendentes, tenho vergonha de dizer que eu não sei a resposta para essa pergunta.

Xaviera deu um longo suspiro de frustração, enquanto sinalizava para Norah segui-la. As duas caminharam por uma das passagens que cortavam a arquibancada circular e chegaram até a borda da piscina.

— Como você deve ter notado ao ver seu irmão treinando, nenhum de nós vai pegar leve com vocês.

— Tenho até medo de perguntar o que vem por aí.

— Você pode se posicionar no meio da plataforma - apontou a general para o centro da piscina.

Norah olhou em volta e não viu nenhum tipo de acesso para a estrutura metálica.

— Como vou chegar lá? Preciso de uma ponte ou algo assim.

— Não vamos precisar. Em geral usamos um acesso móvel para isso, mas você tem seus próprios meios de chegar até lá.

— Tenho?

— Você é da classe Cascádian, menina. A água obedece suas ordens! Encontre a solução que achar melhor.

Norah sentiu um pouco de irritação. Estava claro para si que ela não sabia mexer com a água. Que sua herança era apenas hipnotizar as pessoas pelo canto e... aquilo.

Ela sentiu o estômago revirar ao pensar na outra herança. Aquela que Norah tinha de mais assustadora e que só de pensar trazia pânico para a menina e horror para sua expressão. A herança que era mascarada pelo bracelete de escamas dourado. E ela não o tiraria em hipótese alguma.

Ninguém veria sua real aparência e isso ela se esforçaria ao máximo para manter escondido. Tudo que ela precisava fazer era usar o bracelete até morrer e estaria livre daquela maldição.

— Não temos o dia inteiro. Vá até a plataforma, Norah - disse Xaviera, com assertividade.

Sentindo a tensão se espalhar por seu corpo, a menina caminhou até a borda da piscina e viu seu reflexo interrompido quase por inteiro na água, atrapalhado pelas folhas que flutuavam acumuladas ali.

Ela não sabia como usar sua coronal e muito menos sentir a Corrente Cósmica Universal. Quando usara a hipnose seus sentimentos eram mais voltados para si do que para os outros e ela não estava acostumada a ver o mundo com olhos gentis.

— Isso vai ser difícil - pensou.

Sem conseguir pensar em qualquer solução, ela lançou o corpo para frente com um salto curto e atingiu a água, fazendo com que as folhas se movimentassem desordenadamente e muitas se afastassem um pouco da borda.

Xaviera não conteve a expressão de surpresa. Esperava que Norah utilizasse seu potencial de descendente para chegar até o centro da piscina e não que tivesse se jogado na água como uma jaca que cai da árvore.

Apesar do salto desajeitado, a irmã de Higino nadou com

graça e tranquilidade, passando pelo aro de metal dourado até alcançar a plataforma metálica. Ao subir, caminhou até o centro.

— A água não estava fria? - gritou a general, depois de sentar no primeiro nível da arquibancada circular, o mais baixo e próximo da piscina.

— Um pouco, mas eu até que gosto - respondeu a menina, sentindo mais frio nas pernas descobertas. Usava um shorts acima do joelho.

Ensopada, o cabelo loiro estava colado no rosto, pescoço e ombros, mas ela não estava incomodada. A água gelada na pele dava a sensação de conforto, familiaridade, era como estar em casa de alguma forma. Era como estar mais perto da mãe. Norah olhou para Xaviera com firmeza e fez um gesto afirmativo com a cabeça, o que a general facilmente entendeu: a menina estava pronta para começar.

Sem sequer levantar, a mulher ergueu uma das mãos na altura dos ombros e com a palma na direção de Norah, executou sua técnica mexendo os lábios com sutileza.

Imo do Medo.

Na plataforma, uma energia começou a se materializar na frente da garota, que deu alguns passos para trás em instinto. Norah viu com espanto uma silhueta humana surgir. Seu rosto foi tomado pelo desespero. Ela olhou para Xaviera e sua expressão era de súplica.

Ao notar a criatura que se constituíra no centro da piscina, a mulher apertou os olhos para ter certeza do que estava vendo e não conseguiu disfarçar o horror da surpresa. Norah levou as mãos ao rosto, tentando não olhar.

— Para com isso, Xaviera! Tira isso daqui! - soava o pânico na voz trêmula da menina.

Norah correu para tomar impulso e se jogou na piscina mais uma vez. Quando virou para a plataforma, a criatura já estava parada na extremidade do chão de metal. Os olhos negros e profundos olhavam diretamente para as órbitas azuis de Norah.

Olhando de baixo, era ainda mais perturbador.

A pele era quase branca, misturada com um tom de azul desbotado, de aspecto escamoso e escorregadio. O cabelo branco e liso tinha o mesmo comprimento que o da garota, embora fosse ralo e falhado em algumas partes da cabeça. Dos pés até os joelhos escamas cobriam os membros. O mesmo acontecia com as mãos e antebraços.

O abdômen, seios, ombro e pescoço eram feitos de água, como se fossem um aquário. Apesar da transparência, não se viam órgãos ou esqueleto. Dois peixes nadavam no interior do tórax, muito calmos. Um, dourado, brilhava suavemente. Suas nadadeiras e caudas eram transparentes e finas. O outro tinha uma coloração verde água, a cauda era mais comprida e as nadadeiras pareciam asas delicadas.

O aspecto líquido do tronco não continuava na cabeça, que era opaca e salpicada com poucas escamas. Membranas ligavam os dedos das mãos e essa característica se repetia nos pés. Guelras diagonais estavam dispostas nas laterais das coxas e pescoço, arrematando o visual repugnante da criatura.

Norah não sustentou o olhar negro por muito tempo. Nos segundos que encarou aquela visão se sentiu paralisada, impotente, hipnotizada. A criatura mergulhou na água, passando por cima dela e a menina entrou em pânico. Tentou nadar de volta para onde a general estava, inutilmente.

Com assombrosa rapidez a criatura agarrou suas pernas e a arrastou para o fundo da piscina. Desesperada, Norah já tinha perdido boa parte do ar e começou a se debater vendo a plataforma ficar mais distante à medida que descia. A garota não entendia o que estava acontecendo e como uma criatura daquelas poderia estar ali.

Ela não conseguia respirar embaixo d'água como o irmão e nunca tinha manipulado a água conscientemente. O medo já havia tomado seu corpo e ela foi perdendo as forças. Em câmera lenta viu algumas bolhas subindo para superfície. As poucas que ainda vinham dela.

A criatura a soltou e quase inconsciente Norah viu o vulto grotesco nadar à sua frente. O tronco líquido era quase invisível ali embaixo, exceto pelas luzes que vinham de dentro e de fora da piscina, que facilitavam a visualização daquela parte da silhueta.

— Ela está em seu habitat – Norah pensou. - a água é o seu lugar.

A voz de Xaviera veio em sua mente, lembrando-a que a garota poderia fazer o que sua vontade desejasse. Era uma conjuradora da água, descendente de Sorenta. O poder em suas mãos era gigantesco e tudo que ela precisava fazer era encará-lo. Aceitá-lo.

Norah sabia como fazer isso, mas exigiria uma coragem que ela julgava não ter. Higino teria, mas não ela. Não a garota loira, bonita e impecável que mandava e desmandava nos outros. A arrogante da família, da escola, a mimada que sempre tinha as vontades atendidas, a menina má que era odiada por muitos. Ou por todos.

Norah sabia que o motivo pelo qual andava com poucos amigos - se é que poderia chamá-los assim - não era pelo fato de os outros serem ruins demais ou fracassados demais para estar com ela. Ela é que se achava ruim demais para os outros.

Ela é que era intragável e alguém difícil de se conviver. De se estar na presença. No fundo ela sabia e se sentia inferior. E quanto mais isso a perseguia mais pose de menina forte ela tinha que sustentar. Mais maldade tinha que oferecer. O mal era sua defesa. Era doloroso, mas era necessário.

Se ela não se sentia feliz então ninguém seria feliz também. As pessoas nunca a aceitariam como realmente era. Seria loucura. Uma aberração. Iria para um circo, para um laboratório do governo, ser estudada e avaliada como um animal.

Não, as pessoas não a aceitariam. Pela sua sobrevivência, o mundo apenas tomaria conhecimento da jovem e perfeita Norah Santa Rita, filha de Ricardo e Caroline Santa Rita, e seu cabelo loiro bem escovado, sua pele alva e suas roupas caras.

Ela tocou de leve o bracelete dourado. Para não morrer afogada, ela precisaria tirá-lo.

Simples.

Apenas puxá-lo de seu pulso e estaria viva.

— Puxe, Norah - ela pediu a si mesma em pensamento.

Mas o pavor de tirá-lo era infinitamente mais forte do que o medo de encarar a criatura marinha, que se aproximou dela. A garota não queria ficar no fundo da piscina, mas suas forças já tinham esgotado. O ser colocou suas mãos geladas no rosto de Norah, que com a visão semicerrada, mirou os olhos negros outra vez. Um formato amendoado tão escuro e sombrio que incomodava sua alma.

— Higino... o que você faria? - perguntou mais uma vez para si em pensamento.

Ela sabia o que seu irmão faria. Ela viu o que ele fez momentos antes na praia ao derrotar um exército de criaturas de gelo. E ela estava com medo de apenas uma.

Mas não era qualquer uma.

Seu irmão era forte e ela deveria ser também. Eram gêmeos e se compartilhavam das mesmas dores, compartilhariam também as mesmas conquistas. Ele estava ao lado dela e ela se esforçaria ao máximo para estar do lado dele.

Para protegê-lo.

Com um movimento sutil, deslizou o bracelete de escamas de seu pulso, que repousou no fundo da piscina. Xaviera aguardava pacientemente na arquibancada e se surpreendeu ao ver a criatura emergir da piscina com um salto gracioso, girando e caindo de pé na plataforma, com precisão.

A general levantou, olhando para a água, esperando que Norah pudesse surgir, mas ninguém apareceu. Xaviera olhou para a criatura buscando uma resposta. E então entendeu o que tinha acontecido.

De pé na plataforma, ofegante e usando roupas, não era a criatura que tinha se materializado através de sua técnica. Era a descendente de Sorenta.

Norah.

A menina pulou na água, nadou até o fundo da piscina e depois de um tempo curto apareceu na borda, próxima de Xaviera. Apenas a cabeça era visível entre as folhas.

— Quando usei a técnica e vi o que surgiu, não entendi de primeira. Só quando notei a semelhança entre vocês é que imaginei algo assim. Confesso que fiquei surpresa.

— Essa sou eu - ela fez uma pausa. - de verdade - ergueu uma das mãos de dentro da água, segurando o bracelete.

— A técnica que utilizei vasculha a mente e o coração do oponente e materializa seu medo mais profundo.

— Agora você sabe qual é. Essa é minha herança. Nasci com esse corpo e esse aspecto. Escondi pela vida toda. Poucas pessoas sabem. Meus pais me deram esse bracelete para me proteger e minha mãe dizia que ele foi feito com escamas da própria cauda de Sorenta. Esse bracelete cresceu comigo, literalmente, se ajustando ao meu pulso. Com ele posso disfarçar o problema.

— Não é um problema, Norah. É quem você é. E você deu um passo importante para se aceitar hoje.

— Eu iria morrer lá embaixo. Fui obrigada a tirar o bracelete. Com minha forma real posso respirar embaixo d'água.

— E não só isso, pelo que vi. Seu salto para a plataforma foi realmente muito belo.

— É... – Norah concordou, envergonhada. - submersa eu também posso me movimentar com rapidez. E falar também.

— Tal qual a rainha Sorenta.

— Só que sem a beleza dela.

— A beleza é algo tão relativo, minha jovem. Ela floresce de dentro para fora. Perceba isso e todos em volta vão ter o mesmo olhar.

Norah saiu da água. Os peixes em seu tórax nadavam com certa rapidez.

— Eles são muito bonitos - disse a general.

— Não sei como ainda estão vivos. Eu nunca os alimentei. — Talvez o alimento deles não seja físico - ponderou a mulher.

— Pode ser - disse a menina ao colocar o bracelete no pulso.

Uma transição física gradativa ocorreu e Xaviera ficou espantada em testemunhar. A pele foi ressecando, perdendo as escamas e ficando opaca. As membranas se fundiram aos dedos e as guelras sumiram nas pernas. O cabelo ganhou cor, volume e as órbitas voltaram a ser azuis.

— Ainda não tenho tanta coragem para sair por aí desse jeito.

— Tudo bem, Norah. Leve seu tempo. Você não tem que se forçar a nada. Exceto, é claro, a se tornar uma pessoa mais preparada. Seu segredo está guardado comigo - a general sorriu. Norah retribuiu o gesto.

Um estampido alto veio do outro lado do corredor por onde vieram, assustando as duas. Xaviera assumiu uma postura séria e o coração da irmã de Higino deu um salto.

— O que foi isso, Xaviera?

— Não sei. Fique aqui e tome cuidado. Já volto!

Norah não teve tempo de responder. A general avançara pelo trajeto de volta enquanto a menina ouvia a movimentação de passos apressados dos guardas e suas vozes misturando-se, na outra extremidade do corredor.

Ela pensou em seguir Xaviera, mas ainda estava em choque por ter ficado cara a cara com sua real aparência e isso a ter obrigado a tirar o bracelete. Cruzou os braços na altura do ombro, sentindo frio, quando algo atingiu sua cabeça com força. Em reflexo, ela colocou a mão no local atingido e sentiu que havia um pouco de sangue. Girou na direção de onde o objeto viera, apreensiva.

Não havia ninguém ali. Ela olhou para o objeto que a acertara e com horror abaixou para pegá-lo.

Ela já vira aquela cena antes.

Um pequeno urso de pelúcia, menor que a palma de sua mão segurava um pedaço de papel entre as patas. Norah fez uma careta ao perceber que o objeto estava murcho, sujo e com cheiro de podre. Ela desgrudou o papel da superfície e abriu o bilhete, do mesmo tamanho que o anterior, escrito com as mesmas letras:


"Menina má, menina má
É por dentro o que vemos por fora
Monstro grotesco, você sofrerá
É chegada a sua hora"


Ela congelou ao pensar na força do arremesso. Um material como a pelúcia não poderia tirar sangue de ninguém. Mas ela estava em Terraforte. E naquele continente tudo era perfeitamente esperado.

Seu pavor aumentou ao perceber que a pessoa que a ameaçava também era daquele continente. Ou tinha conhecimento dele. Alguém que transitava entre os dois lugares. Uma ameaça de morte não era algo bom, mas ser ameaçada por alguém que tinha conhecimento em magia era ainda pior.

Ela estava vulnerável e poderia estar sendo observada naquele momento. Mais uma vez vasculhando o lugar, não notou a presença de qualquer pessoa. O barulho dos guardas tinha cessado e Xaviera reapareceu no corredor. Norah colocou o urso no bolso, limpou a mancha de sangue no shorts e foi de encontro à general, torcendo para que o corte na cabeça não estivesse aparente.

— O que aconteceu lá, Xaviera?

— Não sei. Foi apenas um estrondo. Não tem ninguém ferido e nada foi destruído. Apenas um barulho alto. Vamos retornar para a Ala Principal. Já tivemos emoções demais por hoje.

—Você não faz ideia - pensou a garota, enquanto assentiu com a cabeça e seguiu a general corredor adentro.










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