Os Descendentes e a Ferida da...

By brunohaulfermet

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A Ferida da Terra precisa ser contida. O tempo corre. A situação piora. Mas o que ela é, Ian não sabe. Ele nã... More

Periodicidade das postagens
Amazon e Skoob
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1 - Você Não Devia Estar Aqui, Menino
Capítulo 2 - A Casa da Costa
Capítulo 3 - Corpo Gelado
Capítulo 4 - Meninas Más Morrem Primeiro
Capítulo 5 - As Pequenas Luzes
Material de divulgação do livro - Imagens (I)
Capítulo 6 - A Fuga dos Irmãos
Capítulo 7 - Trio Encrencado
Capítulo 8 - A Excursão
Capítulo 9 - A Reunião dos Improváveis
Capítulo 10 - A Planta no Meio do Vale (I)
Capítulo 10 - A Planta no Meio do Vale (II)
Material de divulgação do livro (II)
Capítulo 11 - Descendentes
Material de divulgação do livro (III)
Capítulo 12 - Festa Julina às Avessas (Parte I)
Capítulo 12 - Festa Julina às Avessas (Parte II)
Capítulo 13 - O Castelo de Sorin
Capítulo 14 - Outros Descendentes
Capítulo 15 - A Adaga Infinita
Capítulo 16 - A Ferida da Terra
Capítulo 17 - Os Quatro Dirigentes
Capítulo 18 - Corrente Cósmica Universal (I)
Capítulo 18 - Corrente Cósmica Universal (II)
Capítulo 19 - A Zona Escura
Capítulo 20 - A Floresta das Lágrimas
Capítulo 22 - O Maior Medo de Norah
Capítulo 23 - A Espada Celestial
Capítulo 24 - A Suspeita
Capítulo 25 - Pelúcias
Capítulo 26 - Luz e Água
Capítulo 27 - A Calmaria Antes da Tempestade
Marcadores de "A Ferida da Terra" - Brinde por tempo limitado
Capítulo 28 - O Rompimento
Capítulo 29 - O Rabisco
Capítulo 30 - A Véspera
Curiosidades sobre A Ferida da Terra
Capítulo 31 - A Partida
Capítulo 32 - Em Família
Capítulo 33 - Ele
Capítulo 34 - Sombra Contra Luz
Capítulo 35 - O Fim e o Começo
Capítulo 36 - A Volta (FINAL)
A Ferida da Terra e os leitores: o que vem depois.
BÔNUS - A Saga da Descendência {Livro Dois}
Estudos Ilustrados para Capa Definitiva
[VOTE] Imagem final de um dos cinco.
Color Script
Ilustração e Capa Definitiva - Livro Um
Curiosidades [Parte 2]
Primeiro Encontro Oficial do Wattpad
Livro Dois - Nome e Sinopse
Encontrão do Wattpad - Bienal do RJ 2017
Prêmio Deusa Lendari / Finalista

Capítulo 21 - Um Contra Cem

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By brunohaulfermet


Nos últimos dias a mente e o coração de Higino só tinham espaço para dois tipos de sentimento. O primeiro era aquele mais fácil que se instala nos seres humanos. Chegou sem fazer questão nenhuma de ser silencioso. O medo era algo natural naquele corpo magricela de um metro e setenta e sete.

Ele já estava acostumado, embora fosse um pouco diferente desta vez. Ele sempre sentiu medo pelas situações que conhecia. Estar ali, no entanto, caminhando em um outro continente era assustador.

Era como se o desespero espreitasse em cada sombra, enviando sinais de que poderia se fazer presente a qualquer momento. Pelo motivo mais simples que fosse.

O segundo sentimento era a raiva. Talvez um misto com fúria. Ele não sabia ao certo definir. Sentir aquilo era novo para o garoto. Ele não estava sabendo lidar com as reações de seu corpo. Percebia-se tremendo às vezes, pensando em como sua mãe teve a vida covardemente roubada.

Nesses momentos o coração palpitava desenfreado e os punhos se fechavam. Nunca chorara tanto, exceto quando Caroline partira. Ainda assim, as lágrimas que caíam eram menos de tristeza e mais, bem mais, de inconformidade. Não era justo para ele alguém tão bom partir sem chance de se defender.

Por um momento ele pensou que recebera a herança correta. Manipular a água em estado sólido. Gelo. Era assim que se sentia no meio daquele turbilhão: um ser humano frio e gelado. Um pouco indiferente desde que descobrira a verdade.

Era confuso acolher os dois sentimentos ao mesmo tempo, visto que um costuma anular o outro. Mas Higino estava ali, de pé, convivendo com ambos. De certa forma o medo era seu mórbido amigo e a raiva estava sendo convidada voluntariamente para ser mais uma companheira naquele círculo de amizades sensoriais.

Caminhava alguns passos atrás de Debas e àquela perspectiva o general parecia ainda maior. Suas costas largas e o andar pesado intimidariam qualquer um.

— Para onde vamos? - perguntou ao atravessar o portal que ficava no fim do caminho entre as portas de travessia.

— Para um lugar que tem muita água, garoto. Não é o seu elemento, afinal?

Higino não respondeu. Um passo a mais e estava em um amplo mezanino, de chão forrado com tábua corrida escura e um corrimão que permitia ver parcialmente o primeiro andar. Um primeiro pavimento que ele já tinha visto antes.

— Casa da Costa?

Debas riu com vontade. A risada grave ecoou pela casa vazia. O cheiro leve da maresia passeava pelo ar e deu ao garoto uma sensação familiar. O fez pensar nas horas que costumava passar no fundo de sua piscina, refletindo sobre a vida enquanto a água sequer movia-se.

E só ali, com o olfato entorpecido, percebeu que nunca tinha feito isso debaixo de água salgada e sentiu uma enorme vontade de se atirar no mar que ficava lá fora.

Seu devaneio foi interrompido pelos sons dos passos do general afundando nos degraus de madeira que levavam ao primeiro andar. Higino apertou o passo para seguir Debas, que descia a escada fazendo sinais apressados para que o garoto descesse também. Higino reparou antes de prosseguir que algumas portas existiam naquele andar, mas todas estavam fechadas.

— Suas olheiras estão enormes - disse o homem ao virar-se. - vou te dar uma dica: canalize sua tristeza para aprimorar suas técnicas e você vai se sentir melhor.

— Como se fosse fácil. Se eu canalizar o que estou sentindo agora, resfriaria até mesmo o sol.

— Hohohoho, isso é impossível, garoto. Quero dizer, não resfriar o sol. Mas um ser humano fazer isso. Nem a custo da sua própria vida você teria vitalidade suficiente para tanto.

— Fico satisfeito em resfriar Zero. Congelar cada pedaço dele e fazê-lo pagar por ter destruído a minha família.

Debas franziu a testa.

— Calma aí, meu jovem. A vingança não parece combinar com você. Quando botei os olhos nos cinco vi o quanto são diferentes e têm qualidades distintas também. E entre eles você é o que mais inspira bondade. Acho que é porque você tem esse jeito quietão aí, hohoho.

Ouvir um elogio fez Higino abrir um sorriso fraco. De fato, vingar-se de alguém não era algo que ele tinha experiência em planejar, mas era isso o que estava no topo de sua mente naquele momento.

— Aprenda a se proteger e deixe o Zero com a gente - continuou o general. - Cosmos sabe o que faz.

— Não é bem isso que tenho visto, depois da tentativa de roubo da adaga.

— Ele tem estado sob pressão. É difícil liderar uma busca dessa magnitude e manter o continente em ordem ao mesmo tempo, especialmente quando se está cuidando de tudo pessoalmente.

— Pessoalmente?

— É... o Cosmos é um bom homem. Ele faz questão de estar presente nas buscas o máximo que pode. Quando encontramos algum lugar suspeito da localização daquele desgraçado, ele vai junto com o grupo responsável por investigar. Eu estou sempre com ele e vejo o quanto sofre quando não descobre nada novo.

— Vocês não consideram a possibilidade disso ser realmente uma lenda? Aquela adaga não quer dizer nada.

— Você não entende, garoto... - as feições do brutamontes pesaram. - só de estar próximo da adaga já dá para sentir o peso daquele sangue maldito. A aura de terror e de lamentação que emana dela é perturbadora. Talvez seja do próprio Zero ou sei lá, de todo o mal que ele fez. Em breve, espero, você conseguirá lidar com a sua herança e tudo que a envolve. E assim vai testemunhar o que falo.

— Se vocês têm tanta certeza... - respondeu, sem entusiasmo na voz. - me diz, Debas, como esse treinamento pode me ajudar?

— Protegendo a sua vida e a dos outros está bom para você? Me diga, qual são as suas manifestações de herança até agora? – ele perguntou ao abrir a porta de vidro corrediça que levava aos fundos, onde ficava a praia.

O garoto parou alguns segundos para pensar, fazendo uma careta de desgosto ao lembrar das sensações que sentira depois das manifestações recentes.

—Meu canto pode adormecer alguém, tenho guelras atrás das orelhas, respiro e escuto normalmente embaixo d'água - ele fez outra pausa. - e recentemente saí congelando tudo sem querer. Duas vezes. Em uma delas quase congelei o Rafaelo.

— Interessante. Você, assim como sua irmã, possuem técnicas ligadas à água. Isso é muito bom, já que permite os dois manipularem a corrente cósmica universal nos três estados desse elemento.

Higino arregalou os olhos de surpresa. Um mundo de opções mágicas acabara de se abrir para ele.

— Quer dizer que posso controlar tudo isso?

— Sim.

— Mas por que só consegui congelar tudo?

— Você, Ian e os outros estão em uma posição crua. Estado bruto. Podem e devem amadurecer tudo que a herança de vocês ofertarem. Nesse momento o gelo é mais forte em seu corpo e sua mente, mas você poderá utilizar técnicas de água, assim como Norah as de gelo. E não vamos esquecer do vapor, claro.

— Um dia vou poder evaporar o mar, se eu quiser? - perguntou, empolgado com a possibilidade.

— Tanto quanto poderia resfriar o sol. - debochou Debas.

Os dois atingiram a areia fria da praia e a vontade de ficar descalço fez Higino tirar os tênis e deixar no deck onde Isla servira lanches para todos, em dias anteriores. Mesmo sentindo um pouco de frio, quis arriscar.

Um golpe de vento fraco fez com que uma espiral de areia levantasse e atingisse o rosto do menino. Os olhos no entanto, não foram afetados. Os ombros de Debas tremeram um pouco: estava rindo à custa do garoto.

— Qual é a graça? - perguntou enquanto sacudia a camisa para tirar a areia.

— Esse ventinho que vem do mar não é nada. Hoje você ainda vai beijar muito esse chão de areia, hohohoho.

Higino não gostou nem um pouco de ouvir aquilo. Mirou o horizonte, visualizando a Ala Principal, a única visível daquele ponto da praia. Se perguntou como Norah estaria se saindo no treinamento dela. Com certeza melhor que ele. Ela era destemida, ele era apenas um pinto com medo de sair da casca do ovo.

— Você enxerga bem sem óculos ou fica ceguinho sem eles?

— Ceguinho - Higino pensou. - e não soube porquê lembrara de Emília naquele momento. Talvez por ela ter acertado-lhe um tapa que fez seus óculos voarem do rosto.

Emília. Ele sentiu vontade de congelá-la também.

— Não vejo nada, Debas. Nadinha.

— Isso vai ser interessante, jovem descendente.

O homem alto e ruivo se aproximou, enquanto alisava a grande barba desgrenhada. Sua expressão não era mais a de um homem bruto e descontraído. À luz do sol, as sombras desenhadas em seu rosto pelo cabelo, barba e nariz tornaram aquela feição quase sanguinária. E era Higino quem estava no caminho daquele imenso general.

Uma dor aguda. A sensação de que a mandíbula tinha sido arrancada. Foi o que o garoto sentiu ao ser atingido em cheio com um golpe do brutamontes, desferido com as costas da enorme mão. Os óculos remendados foram lançados para longe, caindo na areia fofa.

Um instante, um borrão e um mundo girando. Segundos depois, Higino estava com o rosto fincado na areia. Sentiu a textura incômoda dos grãos colados em sua língua. Seu rosto estava dormente e ele ficou imóvel.

— Levante-se! - gritou Debas. - ficar no chão por causa de um golpe desse significa que você não vai conseguir nem congelar uma pedrinha. E ainda fala em vingança? Em resfriar o sol? Não seja fraco, moleque!

O próximo alvo foi a lateral da barriga, que recebeu a força descomunal de um chute. Higino rolou para o lado contorcendo de dor. O gosto de sangue invadiu sua boca e ele não soube dizer se era do primeiro ou do segundo ataque.

— Meus... óculos. Não posso... ver bem sem eles - as palavras saíram como um sussurro.

— Então vá procurá-lo, moleque. Você tem poucos segundos até eu me aproximar de você de novo.

Higino não queria apanhar. Tinha a certeza de que mais um ou dois socos o deixaria desacordado. Mas vendo o mundo à sua frente como um borrão colorido não daria um passo com segurança. O medo de se ferir mais e a falta de orientação sobre o paradeiro dos óculos estavam começando a se transformar em desespero.

Ele cuspiu o sangue acumulado com saliva e viu apenas uma mancha vermelha desfocada na areia. A coloração escura fez seu estômago revirar.

Um sombra surgiu e ele sabia quem era. Mas Debas não o atingiu dessa vez. O general agarrou os braços do menino, erguendo-o no ar. Sem esforço o arremessou. Higino caiu no chão, levantando um pouco de areia e sentiu algo bater de leve em sua coxa. Ele tateou apressado a região e ficou feliz por descobrir que eram seus óculos.

— Essa é a única ajuda que te dou, Higino. Pegue o que é seu.

— Como é? - perguntou assustado.

— Hohohoho.

O garoto sentiu um calafrio. A risada costumeira de Debas, grave, despretensiosa e até divertidinha, tinha um tom diferente naquele momento. Era deboche, sarcasmo. Piedade.

Com pressa, colocou a armação no rosto. A lente estava embaçada e com pontos de areia espalhados. Alguns grãos caíam da haste nas bochechas e a fita que o remendava estava polvilhada com eles. Lente suja era algo que Higino detestava, mas ali, no meio daquela praia deserta, ele tinha uma preocupação maior. Literalmente.

Debas deu as costas para o menino e caminhou na direção oposta, deixando Higino confuso.

— Para onde você vai? - gritou. - é isso? Você me dá alguns golpes e vai embora?

Debas não respondeu. Parou alguns metros à frente e virou-se. Suas mãos estavam unidas em concha, um movimento que Higino sabia o significado. Ali em Terraforte, o gesto era anúncio de magia.

As mãos do brutamontes foram ganhando um tom branco-azulado, ficando resfriadas e liberando uma fumaça discreta. O garoto também reconheceu aquelas características. Já as tinha sentido na pele. Era gelo.

Exército Álgido! - gritou o general.

— Mas o que é álgi... - sussurrou o menino, sem ter tempo de completar a própria pergunta.

Um vento gelado invadiu a praia, levantando a areia. Higino cobriu os olhos em proteção ao mesmo tempo que tentava enxergar o que estava acontecendo. Grãos entraram em sua boca.

Quando a leve tempestade cessara e o menino pôde desproteger o rosto, alguns deles já estavam formados. Mas ele conseguiu ver alguns que faltavam se materializar.

Um número grande e assustador de silhuetas humanas feitas de gelo surgiram à frente do garoto, com rostos pouco definidos onde apenas era possível ver o nariz e as cavidades oculares. Cabeças lisas e um formato pouco definido de orelha.

Corpos retos e assexuados, apesar de lembrarem figuras masculinas. Os olhos de Higino foram arregalando à medida que contava quantos surgiam. Quando chegou a trinta decidiu interromper. Era bem mais que isso.

— Quantos... - sussurrou para si.

Debas estava cercado deles, boa parte atrás do general, que ainda conseguia ser visto no meio de tantas figuras de gelo, dada sua altura incomum. O busto era perfeitamente visível e sua barba e cabelo ruivos brilhavam ao sol. Higino ficou extremamente desnorteado sobre o que estava sentindo e o que deveria fazer.

— Eu te apresento o exército de gelo, menino descendente! Hohohoho.

Higino permaneceu imóvel e incrédulo.

— Cem homens! - bradou Debas, ofegante. - cem!

— Enlouqueceu, Debas? - gritou, com medo de despertar algum tipo de raiva nos homens de gelo e com isso fazê-los avançar.

— Seu treinamento hoje será esse! Simples... não vou usar nenhuma outra técnica. Essa é suficiente. Derrote-os. Todos! Ou eles vão matá-lo.

Higino sacudiu a cabeça em negação, custando a acreditar que aquilo realmente estava acontecendo.

— Impossível eu conseguir sozinho! E sem treinamento!

— Não quando se manipula a corrente cósmica universal de forma consistente. E este é o seu treinamento. Você já sabe sobre tudo que necessita. Manipular a corrente depende apenas de seu pensamento e vontade. Sincronize-os com o apoio de sua coronal. Você poderá fazer o mesmo que eu.

Higino gostou da ideia de ter uma luta de cem contra cem, embora não se achasse capaz de erguer um exército de gelo naquele momento. Não do jeito que estava, apavorado.

— Fazer o mesmo que você... barbudo idiota - disse, baixo.

— Ataquem! - gritou Debas.

O comando fez Higino tremer. Não tinha nenhum plano e o instinto o fez correr na direção contrária, enquanto os homens de gelo avançavam sem alarde.

— Difícil se concentrar e manipular a corrente desse jeito - pensou.

— Pode correr o quanto quiser, menino! Uma hora você vai cansar. Hohohoho!

Higino já sabia disso. Não aguentaria correr por muito tempo. Sua forma física não ajudaria. Rafaelo conseguiria suportar mais tempo já que era um dos bonitões malhados do primeiro ano. Até mesmo sua irmã ou Mabel teriam mais condicionamento para fugir.

Ele sentiu um conforto momentâneo ao perceber que Ian conseguiria tanto quanto ele, e sorriu. O garoto magro demais e o garoto gordo demais, os que sempre se davam mal. Era assim na vida e estava se repetindo naquele momento.

— Como Ian está se saindo no treinamento? – ele conseguiu pensar no meio daquele misto de sensações apavoradas.

Ele olhou para o horizonte, na direção do morro em forma de C, como se buscasse uma resposta, mas tudo que sentiu foi uma mão gelada agarrar-lhe o pulso esquerdo. Um dos homens de gelo o alcançara - ele não soube como, já que estava correndo o máximo que podia - e ambos caíram no chão.

A sensação de queimação típica de gelo na pele era aterrorizante. Higino se debateu com força enquanto o homem tentava imobilizá-lo. Reunindo forças, se colocou em posição fetal e, armando um chute certeiro, rompeu um dos antebraços que o segurava.

Ele levantou apressado e viu os homens de gelo mais próximos. Aquele que o tinha segurado era o único que estava mais adiantado. A criatura levantou, sem demonstrar nenhum sentimento pelo braço destruído.

O menino ergueu os punhos, colocando-os à frente do rosto em defesa. A silhueta de gelo avançou com um soco, mas o garoto conseguiu esquivar. Ficou tão surpreso e contente pelo feito que, distraído, não notou a aproximação do exército.

Duas criaturas seguraram seus os ombros e outras duas seus braços. Ele deu um grito estridente enquanto sacudia-se. A pele reclamava do contato com o gelo. Um mar de criaturas estava ao seu redor. Higino era apenas um ponto no meio de tantas silhuetas. Do lado oposto, Debas permanecia parado, observando.

— Me soltem! - gritou o menino. - os pés, ainda livres, chutavam o ar.

O homem de gelo com o braço destruído se colocou à frente dele, segurando uma das pernas do garoto que mexiam inutilmente.

— Me... solta! - gritou mais um vez, forçando a perna livre na direção da criatura.

O homem de gelo inclinou a cabeça para o lado, como se tentasse entender as atitudes do garoto. Uma sexta criatura terminou de imobilizar Higino, que não desistiu de se soltar.

— Como é que eu vou conseguir manipular a corrente desse jeito? Pensamento e vontade... pensamento e... vontade – ele pensou.

Os homens de gelo foram se amontoando próximos dele e um o acertou na barriga com um soco. Uma dor excruciante percorreu seu abdômen e se espalhou para as costelas. Se um soco humano doía, um de gelo era sentido ainda mais.

— Von... tade - ele disse, baixo. - isso não me falta.

As criaturas, em sincronia, o arremessaram no chão. Um círculo de homens de gelo havia se formado em torno dele. Quase sem poder se mexer, ele aguardava o próximo golpe. Um chute na panturrilha direita e outro na coxa oposta.

Ele achou que, fisicamente, estava suportando mais do que poderia. E se vendo na situação desfavorável de cem contra um, lembrou de Caroline, tendo que encarar uma situação também desfavorável que cruzou seu caminho dois anos atrás: a morte.

Se a vontade não faltava para o garoto, o pensamento e o foco naquele momento também não. Visualizando em sua mente a imagem feliz da mãe, linda com seu cabelo loiro, liso e olhos como os dos gêmeos, ele se fortaleceu. Ela era tão jovem para partir. Foi arrancada de forma tão brutal do seu convívio. Caroline era sua força desde que ele nascera e continuaria sendo.

Um alvoroço tomou conta dos homens de gelo, que começaram a se agitar desordenadamente. De longe, Debas estranhou a movimentação e começou a caminhar sem pressa na direção do exército. Higino levantou e as criaturas se afastaram dele, quase que em uma coreografia perfeita.

Uma fumaça fraca saía de seus corpos. Em toda parte, cabeças, troncos, pernas e braços evaporavam devagar. Intrigado e ao mesmo tempo empolgado, Higino alimentou seu pensamento na mãe e em seguida as imagens de Norah e Ricardo surgiram na lembrança. Pedaços de gelo começaram a cair pela areia e isso significava apenas uma coisa: o garoto estava bem sincronizado com a sua coronal.

Debas viu grupos de cinco, dez, quinze criaturas de gelo sucumbirem enquanto Higino permanecia em pé, parado. Os passos pesados do general marcaram a areia molhada. Quando chegou perto do menino, restavam apenas duas silhuetas disformes que mal conseguiam se mover.

— Hohohoho! Isso é muito bom, garoto!

Higino abriu um sorriso. Sentiu as forças deixarem seu corpo devagar enquanto fazia esforço para puxar o ar.

— Ainda não acabou - retrucou Debas. - eu disse que você precisa acabar com todos e ainda consigo contar dois entre nós.

— Que droga, Debas...

— Manipular a corrente cansa. Ainda que um dia você a domine como ninguém, é apenas um ser humano colocando sua energia vital na berlinda. Ainda quer resfriar o sol?

— Quem sabe...

— Hohohoho. Você é dos meus. Vamos - disse o general para as criaturas restantes. - terminem o serviço!

Com dificuldade, os restos dos homens de gelo avançaram. As cabeças de ambos mostravam-se derretidas parcialmente, um deles sem nenhum dos braços e o outro com apenas o lado direito. Higino olhou para Debas e sorriu. Não precisaria de nenhuma técnica para acabar com eles. Mas decidiu por pura vaidade utilizar alguma. Uma energia azulada o envolveu.

— É gelo contra gelo - sussurrou com um sorriso de canto de boca. - Invernada Austral!

Uma luz cor de anil tomou a parte da praia onde eles estavam, tornou-se branca e em seguida uma explosão devastou as duas criaturas, atingindo-as com inúmeras farpas de gelo. Debas foi arremessado para trás por um vento gélido e sentiu uma das lascas resfriadas arranhar-lhe o rosto.

Higino ficou surpreso ao ver o estrago que tinha feito. Não imaginava que poderia fazer algo assim. A areia em volta tinha se transformado em um tapete brilhante de neve. O garoto deu um passo para pisá-la e sentiu o pé afundar de leve no solo fofo. Era estranhamente bela a nova e temporária paisagem formada após o golpe.

Debas levantou, sacudindo um pouco da neve que estava em seu traje de general. Contente, tocou o ferimento no rosto e viu que quase não sangrava.

— Acho que Zero vai ter trabalho para te matar, moleque! Hohohoho.

— Espero que sim - respondeu Higino ao respirar fundo o ar gelado que os cercava.

— Em breve toda essa neve vai derreter e esse frio vai sumir. Estou impressionado. Derrotar um exército de cem homens sozinho. Tinha mesmo que ser descendente da rainha.

— Pode anotar, Debas. Eu vou vingar a morte da minha mãe. É uma promessa.

Debas não respondeu. Completamente exausto, Higino sentiu os olhos pesarem e o corpo ficar dormente. O desmaio veio e antes de atingir o chão seu corpo magricela foi amparado pelo enorme general, que o jogou sobre o ombro bruto e segurando as pernas do garoto, começou a caminhar de volta para a Casa da Costa.

De longe, duas pessoas os observavam. Uma delas, incrédula ao ver o que tinha acabado de acontecer.





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