Os Descendentes e a Ferida da...

De brunohaulfermet

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A Ferida da Terra precisa ser contida. O tempo corre. A situação piora. Mas o que ela é, Ian não sabe. Ele nã... Mais

Periodicidade das postagens
Amazon e Skoob
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1 - Você Não Devia Estar Aqui, Menino
Capítulo 2 - A Casa da Costa
Capítulo 3 - Corpo Gelado
Capítulo 4 - Meninas Más Morrem Primeiro
Capítulo 5 - As Pequenas Luzes
Material de divulgação do livro - Imagens (I)
Capítulo 6 - A Fuga dos Irmãos
Capítulo 7 - Trio Encrencado
Capítulo 8 - A Excursão
Capítulo 9 - A Reunião dos Improváveis
Capítulo 10 - A Planta no Meio do Vale (I)
Capítulo 10 - A Planta no Meio do Vale (II)
Material de divulgação do livro (II)
Capítulo 11 - Descendentes
Material de divulgação do livro (III)
Capítulo 12 - Festa Julina às Avessas (Parte I)
Capítulo 12 - Festa Julina às Avessas (Parte II)
Capítulo 13 - O Castelo de Sorin
Capítulo 14 - Outros Descendentes
Capítulo 15 - A Adaga Infinita
Capítulo 16 - A Ferida da Terra
Capítulo 17 - Os Quatro Dirigentes
Capítulo 18 - Corrente Cósmica Universal (I)
Capítulo 18 - Corrente Cósmica Universal (II)
Capítulo 20 - A Floresta das Lágrimas
Capítulo 21 - Um Contra Cem
Capítulo 22 - O Maior Medo de Norah
Capítulo 23 - A Espada Celestial
Capítulo 24 - A Suspeita
Capítulo 25 - Pelúcias
Capítulo 26 - Luz e Água
Capítulo 27 - A Calmaria Antes da Tempestade
Marcadores de "A Ferida da Terra" - Brinde por tempo limitado
Capítulo 28 - O Rompimento
Capítulo 29 - O Rabisco
Capítulo 30 - A Véspera
Curiosidades sobre A Ferida da Terra
Capítulo 31 - A Partida
Capítulo 32 - Em Família
Capítulo 33 - Ele
Capítulo 34 - Sombra Contra Luz
Capítulo 35 - O Fim e o Começo
Capítulo 36 - A Volta (FINAL)
A Ferida da Terra e os leitores: o que vem depois.
BÔNUS - A Saga da Descendência {Livro Dois}
Estudos Ilustrados para Capa Definitiva
[VOTE] Imagem final de um dos cinco.
Color Script
Ilustração e Capa Definitiva - Livro Um
Curiosidades [Parte 2]
Primeiro Encontro Oficial do Wattpad
Livro Dois - Nome e Sinopse
Encontrão do Wattpad - Bienal do RJ 2017
Prêmio Deusa Lendari / Finalista

Capítulo 19 - A Zona Escura

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De brunohaulfermet


A cabeça de Ian dava sinais de que não estava bem. O garoto lutava para não deixar que tudo começasse a rodar. A faixa em torno do ferimento o estava incomodando, depois de alguns dias usando-a praticamente direto. Andava poucos passos atrás de Cosmos e observava-o de costas.

A capa marrom do traje de Regente era bonita, imponente e mexia com discrição, conferindo um respeito esmagador àquele homem. O garoto tinha tomado um susto ao descobrir que seria treinado pessoalmente pela Autoridade máxima daquele continente e de certa forma estava feliz em ser instruído por alguém que tinha plantado admiração nele.

Diante de toda a calamidade que estava se anunciando, Cosmos conseguira manter a mente centrada e seguia sereno em suas atitudes.

Depois de saírem da quadra do ginásio, pararam no corredor que ficava no nível de cima. Eles andaram pela lateral, chegando até uma das extremidades do ginásio. Ian percebeu, ali, um grupo de portas lado a lado. Eram lisas e discretas, como o material do bebedouro e não possuíam maçanetas. Uma moldura fina as adornava e o Regente parou na frente de uma delas.

— Quarto andar da Ala Principal, o mais próximo da Sala da Regência - disse Cosmos.

Por um breve momento a porta desapareceu, restando apenas sua moldura, e um incrível cenário se revelou do outro lado. Os dois atravessaram a passagem, que se fechou atrás deles. Ian ficou perplexo de ver como aquilo poderia estar ali.

Uma pequena ponte plana feita de pedras regulares, ligava o lugar onde estavam até outra passagem. O corrimão ornamentado seguia por todo o trajeto, inclusive contornava o chão que se expandia em forma de círculo, no meio da travessia. Ali, o garoto pôde notar algo semelhante à um coreto, com uma cúpula semicircular bem trabalhada, sustentada por pequenas vigas finas de metal.

Uma cachoeira alta no lado direito despejava água com força e a corrente passava por baixo da ponte até algum lugar que Ian não conseguiu ver. Todo o ambiente era enevoado e ele não conseguiu assimilar detalhes para onde quer que olhasse. No fim da ponte uma passagem luminosa aguardava por eles.

— Que lugar é esse? Vamos treinar aqui?

— É assim que atravessamos distâncias curtas aqui no castelo de Sorin. São as portas de travessia, que também ligam nosso castelo à outros lugares pelo continente, até certa distância.

— Como a Casa da Costa?

— Sim.

— Que legal!

Cosmos sorriu. Enquanto andava através do caminho de pedra, Ian sentiu algumas gotas vindas da cachoeira respingar em partes do seu corpo, junto com um vento fraco que era causado pela força das águas em movimento. A refrescância o fez se sentir bem.

Ao atingirem a passagem da outra extremidade, os dois estavam no quarto andar da Ala Principal. A pouca movimentação já estava fazendo com que Ian se acostumasse ao ar misterioso daquele pavimento.

Eles caminharam pouco até chegar aos guardas que protegiam a antessala e avançando, estavam finalmente na Sala da Regência. O menino colocou a mão na testa, pressionando de leve a atadura e sentindo o latejar do corte.

— Cosmos... essa dor... como vou conseguir treinar assim? Meus olhos ardem desde a semana passada. A dor vai e volta.

— Sinto muito, meu jovem, mas com dor ou sem, vamos começar. Zero não vai esperar sua ferida sarar para continuar com seu plano de vingança. Repouse por cinco minutos e então continuaremos.

A cabeça do menino doía com tanta intensidade que ele custou a perceber o incômodo da atadura no corte. Ele sentiu que aquilo pressionava o ferimento e acabou por desatar o nó na parte de trás da cabeça, desenrolando a curativo.

Ele amarrou a tira no punho e imediatamente sentiu alívio, embora a dor continuasse ali. Ao colocar a mão de leve, sentiu que o corte na horizontal tinha se curvado um pouco para baixo. Não era mais um corte reto, mas em formato de meia lua.

Naquele momento Ian constatou que o ferimento estava piorando, desde que Isla o tinha ajudado na semana anterior. Ele encostou no gabinete da Dirigente Pinka e então deu conta de como a Sala da Regência era suntuosa:

Todos os móveis eram de mogno e estantes longas ficavam atrás dos gabinetes, repletos de livros e alguns objetos. Alguns Ian reconheceu. Ampulhetas, pequenas esculturas, itens que ele encontraria fora daquele continente com facilidade, ainda que estivessem com uma aparência mais secular.

No teto estava pintado um mapa que percorria toda a extensão da sala. Era estreito e alongado. A arte o fazia cercado de fitas em algumas partes onde claramente podiam ser lidos os nomes dos Sollos. Ian estava diante do mapa de Terraforte.

Um lustre delicado pendia do meio da sala, parecido feito de linhas. Dividido em muitas camadas que diminuíam o diâmetro à medida que eram mais próximas do teto, era um objeto composto por uma infinidade de luzes em miniaturas que em conjunto iluminavam todo o ambiente, tendo suporte de outros lustres menores e menos destacados.

De tudo, porém, o que mais chamara a atenção de Ian era o que havia atrás do gabinete de Cosmos, algo que ele já tinha reparado e se maravilhado desde a primeira vez que entrou naquele lugar.

Uma grande janela circular permitia a entrada de luz externa, mostrando lá fora, parte da torre que ficava nos fundos da Ala Principal. A janela era antes de tudo uma peça de arte, dividida entre partes iguais de vidro como uma pizza, onde todos os pontos convergiam para o centro da circunferência.

Um brasão do continente estava aplicado em vidro colorido: com quatro pontas, o vértice de cima se unia aos dois mais abaixo por uma curva côncava em cada lado. O último vértice, bem mais abaixo, era alinhado com o do topo.

No interior as imagens de Erin e Sorenta, de corpo inteiro e perfil estavam frente a frente sobrepostos à um fundo que lembrava o mesmo desenho pintado no teto daquela sala. Quando Ian ouviu a voz de Cosmos chamá-lo. ele teve a impressão de que os cinco minutos passaram em dez segundos.

— Vamos, por aqui - disse o Regente, virando-se para a parede onde ficava a enorme janela circular.

Ian viu que ao lado do enorme círculo de vidro com o brasão estavam dispostas duas portas, uma em cada extremidade. Eram quase invisíveis, já que se camuflavam por serem feitas do mesmo material da parede e não possuíam nada além de uma discreta maçaneta.

Cosmos girou uma delas, abriu a porta para dentro e entrou, seguido pelo garoto. Ian se viu do lado de fora da Ala Principal, diante de uma escadaria que ligava diretamente aquele andar ao primeiro. Era tão larga que sua extensão percorria toda a largura do castelo.

Ele observou a vista: o caminho não muito longo, no primeiro andar, era salpicado com algumas pedras e muitas árvores. Levava à torre que ele vira quando chegou voando com os outros ao morro em formato de C.

Àquela distância, a torre dos fundos da Ala Principal era gigantesca e o pouco espaço entre ela e o castelo dava a sensação de que Ian poderia estender seus braços e conseguir tocá-la. O garoto estava maravilhado. Uma brisa correu por seu rosto, fazendo seu cabelo liso mexer devagar.

— Não paro de me surpreender com este lugar. Achei que iríamos treinar na Ala Pólux, já que é o castelo erguido em homenagem ao Erin...

— É só o começo, jovem descendente. Você ainda vai ter muitas surpresas por aqui. Boas, espero. Você poderá conhecer a Ala Pólux um outro dia. Hoje temos assuntos mais interessantes a tratar aqui mesmo, nos fundos da Ala Principal.

Os dois desceram a majestosa escada de pedra até o curto caminho que levava à torre. Ao chegar no primeiro andar, Ian teve a real noção da imponência daquela construção inacessível do castelo.

— O acesso a esse lugar é apenas pela Sala da Regência?

— Certamente.

Pela resposta objetiva de Cosmos, Ian concluiu que aquela não era uma área para qualquer pessoa transitar.

— Sabe, meu jovem - Cosmos falou, enquanto ambos caminhavam por uma trilha de pedra cercada de árvores e arbustos. - de todos os descendentes, sua história é a mais peculiar.

Ian franziu a testa.

— Quando descobrimos que a lenda de Zero era real, dezesseis anos atrás, nós começamos as buscas por todos os descendentes que estavam vivos no intuito de avisá-los e protegê-los. Não eram muitos, embora fossem em maior quantidade se comparado aos dias de hoje. Alguns morreram naturalmente e outros foram alvos de ataques, como os que estamos sofrendo agora. No primeiro ano após a morte de Caroline, para falar a verdade, estivemos sob forte pressão entre encontrar descendentes e evitar que morressem. Depois desse ano, porém, os ataques cessaram.

— E recomeçaram agora, né?

Cosmos assentiu:

— Falhamos terrivelmente. Temos tentado localizar aquele que seria o responsável pela continuidade da linhagem de vocês...

— Meu pai... - Ian interrompeu, arregalando os olhos ao ouvir - vocês... encontraram meu pai?

Cosmos ficou em silêncio, negando com a cabeça. Ian suspirou com tristeza.

— Ele foi embora quando éramos pequenos e não deu nenhuma satisfação para a minha mãe. Simplesmente sumiu. Nem sequer temos uma foto. Minha mãe disse que ele não deixava que tirassem fotografias dele. Só o conheço pelas histórias que a minha mãe conta, porque eu tinha um ano quando ele se foi, nada suficiente para me lembrar do rosto.

— Nós também não o encontramos, mesmo com nossos recursos. Mas temos a certeza de que ele é descendente de Erin. Sua mãe nunca comentou nada com vocês? Ela não sabia?

— Não. Ela nem imagina que estou aqui no meio de um castelo, sabe-se lá em que parte do mundo.

— Suas técnicas são voltadas para a classe lúmina, o que quer dizer que tudo é voltado para a luz – Cosmos ponderou.

— É... disparar aquela flecha na sala da adaga foi assustador...

— Vamos lapidar isso. Acho que você já percebeu que sua dor nos olhos é uma herança mágica, não?

— Desconfiei.

— E esse ferimento na testa também.

Por esse comentário Ian não esperava. Jamais passara por sua cabeça que um corte horrível daqueles poderia ser uma herança. Principalmente porque ele surgiu de um ataque da criatura elóica de Marcus.

— Mas Cosmos... esse corte foi causado por Marcus. Na verdade, foi um ataque da criatura elóica dele.

— Não tenho tanta certeza se foi coincidência.

— O quê? Como assim? - Ian estava assustado.

— Naturalmente você reparou que Erin possuía olhos por todo o corpo. Seus descendentes costumam herdar essa característica... digo, não necessariamente olhos pelo corpo inteiro mas um olho, no mínimo, já que esse era um traço dominante em sua genética.

— Não entendi.

— Possivelmente você começou a manifestar essa herança com um terceiro olho na testa. E sabendo disso, Marcus o atingiu nesse local.

— Por que ele faria isso?

— O poder que vem junto com a manifestação de um terceiro olho pode ser muito grande. Erin controlava dimensões com seu conjunto de olhos sendo o mais forte o que tinha no meio da testa.

— Mas o Marcus nunca me viu, Cosmos. Nem eu mesmo sabia sobre isso.

— Mas ele sabia sobre você. Qual é a probabilidade de alguém ser atingido na testa sendo um descendente de Erin por alguém que teoricamente não o conhece?

Ian ficou pensativo. Fazia sentido.

— Então Marcus se adiantou? Me atacou para não correr o risco de que isso pudesse se manifestar em mim?

— Acredito que sim.

— Ele cumpriu bem sua missão. Zero deve estar contente porque a dor que sinto é terrível.

— Se ele cumpriu bem a missão ou não nós vamos descobrir hoje.

— Na verdade, Isla já tinha comentado sobre meu ferimento na testa não ser comum, quando estive pela primeira vez na Casa da Costa. Tudo se encaixa - concluiu o menino.

Os dois pararam de andar. Estavam diante da colossal torre dos fundos. A porta, trancada, era feita de uma madeira grossa que Ian lembrou ter visto uma igual na entrada do castelo da Ala Principal. E a julgar por isso, não seria fácil entrar sem uma chave ou uma técnica.

Força bruta dificilmente valeria de algo ali. Cosmos tirou uma pesada chave enferrujada de dentro da capa, a colocou na fechadura e deu dois giros, que ecoaram naquele lugar deserto. Ian sentiu um arrepio na espinha com o som.

A porta abriu, revelando um lugar completamente escuro. Ian não conseguiu ver nada lá dentro, exceto um trio de janelas retangulares, altas e arqueadas na ponta, do lado oposto de onde estava. Elas eram a única fonte de luz ali.

A torre tinha um diâmetro tão grande que as três janelas estavam muito distantes e embora entrasse alguma luz, de nada adiantava para ele, de onde estava. O lugar era uma completa escuridão. Pela luz que vinha de onde estavam ele conseguiu ver um pequeno pedaço de pedras acinzentadas, um filete de água que escorria por uma delas e algumas plantas pequenas.

— Entre - disse Cosmos. - rápido.

— Rápido?

— Vamos.

Sem dar tempo do menino responder, Cosmos o guiou para dentro, segurando em seu ombro. Ao entrarem, a porta foi fechada e o garoto ouviu o som da tranca sendo ativada. Ian achou que Cosmos fosse acostumado a fechar a porta por dentro, já que era impossível enxergar alguma coisa e o Regente a tinha fechado com muita destreza.

O garoto olhou na direção das janelas na esperança de que a luz o ajudasse a ver alguma coisa e ficou frustrado ao ver que aquilo e nada eram a mesma coisa. Ele sentiu os tênis ficarem úmidos e percebeu que estava pisando em uma poça.

— Onde estamos, Cosmos?

Ninguém respondeu.

— Cosmos? Onde estamos? - ele insistiu.

— Estamos no lugar de seu treinamento - disse Cosmos.

A voz do Regente não estava mais próxima do garoto. Ela ecoava pelo lugar e parecia vir de todos os cantos.

— Mas eu não enxergo!

— Minha primeira instrução, descendente de Erin: faça silêncio. Isso vai poupar sua vida. Não somos os únicos neste lugar.

Ian sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha.

— O que Cosmos quis dizer com isso? – ele pensou ao mesmo tempo que não ousou abrir a boca.

Ian ouviu algo se arrastar devagar pelo chão, à distância, perto das janelas. Levou as mãos até a boca, tampando-as e reforçando para si mesmo que não deveria emitir mais nenhum som a partir daquele momento.

A voz de Cosmos surgiu mais uma vez:

— Você está na zona escura, o primeiro andar desta torre. A única fonte de luz vem das três janelas no outro lado. A visibilidade é praticamente nenhuma, o lugar ideal para você despertar seu poder. Faça sua luz brilhar, literalmente. E isso vai te tirar daqui.

— Mas o que eu... - Ian interrompeu a fala. Ele quis perguntar o que deveria fazer. O som de algo se arrastando estava mais perto.

O garoto não sabia o que pensar. Fechou os olhos para se concentrar melhor, mesmo sabendo que se tivesse mantido eles abertos não faria grande diferença. Começou a controlar a respiração para ficar menos nervoso e pensar melhor em uma solução.

Ele ouviu, do lado de fora da torre, sons de pássaros e bater de asas, mas ali dentro o silêncio quase absoluto era apavorante. E pior era pensar que tinha algo ali dentro com ele, algo que se arrastava e que ele não fazia ideia do que era ou onde estava.

A única certeza que Ian tinha era a de que algo estava se mexendo em sua direção e esbarraria com ele a qualquer momento.

— Pense na corrente cósmica universal - a voz de Cosmos ecoou. - pense na sua coronal. Você já fez isso antes na sala da adaga.

— Como se fosse fácil em um lugar desses - pensou. - preciso pensar com calma. Vou sair da direção da porta, essa coisa deve vir direto pra cá.

Ele deu alguns passos para o lado com muita dificuldade. Tentava não fazer barulho e ao mesmo não tropeçar na superfície irregular e escorregadia. Mais pedras. Rezava para não estar indo pelo mesmo lado que a coisa. Ergueu os braços para a frente, torcendo para não tocar em nada que estivesse vivo.

Nada.

Mexendo as mãos de um lado para o outro, só conseguiu ter contato com o ar.

— Vamos lá, Ian – ele pensou. - coronal, corrente cósmica universal, manipulação dos fluidos... - ele levou uma das mãos até a cabeça, na direção da pineal.

Enquanto se concentrava, percebeu um som fraco de água corrente. O menino julgou ser um filete bem próximo dele. Olhou para o trio de janelas e desejou que elas estivessem mais próximas, bem mais próximas, para que pudesse ver algo.

— Fazer brilhar a minha luz - pensou. - na sala da adaga eu fiquei com medo, desesperado, foi isso que gerou aquela flecha. Aqui também estou com medo. Por que a luz não vem?

Retirou a mão da cabeça com calma, evitando fazer movimentos bruscos que pudessem gerar ruído. E então ele escutou. Um estalar contínuo o paralisou de terror da cabeça aos pés. O som era emitido pelo ser misterioso da torre.

— Sua vantagem aqui é estar no escuro, mas isso também é sua desvantagem, Ian - disse o Regente. - a criatura que te faz companhia neste momento é cega. O que não faz diferença aqui. Por isso sua audição é mais apurada, o que vai te encontrar sem dificuldade.

— Ele disse criatura? - continuou a pensar o garoto. – criatura?

— Concentre-se! Você tem o poder de um rei nas mãos!

Ao término do som da voz de Cosmos, um grunhido estridente percorreu toda a zona escura.

— Criaturinha grande – o pensamento de Ian fez seu corpo inteiro estremecer.

No meio do nada, ele desejou que pudesse sair dali, que o treinamento que acabara de começar terminasse logo. Não estava nem um pouco confortável em virar refeição de alguma criatura de outro continente.

E quando pensou em refeição, lembrou de Joana. Como ele queria estar em casa naquele momento, comendo o feijão bem temperado da mãe, enchendo o prato tantas vezes quanto quisesse e vendo Miguel fazer uma careta de reprovação. Ver um cenário como o de Terraforte apenas na tela da televisão, jogando seu vídeo game.

Queria estar de volta, tendo que lidar apenas com a zombaria dos outros alunos e não com alguém tentando matá-lo. Estar em casa, se preocupando apenas com a sua vida e não a de outros. Era muita responsabilidade e ele nem pediu por isso.

— Mãe, gostaria que você estivesse aqui – ele mentalizou Joana com força.

A imagem da mãe fazendo recheios veio com clareza à sua mente. Sorridente, caprichosa, fazendo seu trabalho com carinho. O coração de Ian apertou. A saudade acertou-lhe como um martelo. Se morresse ali, sem nem saber pelo quê, não voltaria a ver nada daquilo. Não voltaria para a vida que amava. A vida que ele acabara de descobrir que amava.

Ele olhou para a sua mão direita. Ela estava com um brilho fraco, intermitente. Surpreso, desejou que o brilho não apagasse. Sem perder tempo, colocou a mão na frente do corpo, esticando o braço e viu uma movimentação próxima dele. Atrás de algumas pedras escuras, um pedaço de uma longa cauda desapareceu, se arrastando. Preta, lisa e viscosa, fez o garoto tremer.

— Uma cobra. Das grandes. Mas que droga! - pensou. - ela está perto.

Com calma e tentando focar a mente na mão luminosa, ele conseguiu vislumbrar pedras sobrepostas misturadas com uma terra escura, fazendo um morro. Ali atrás estava a cobra. Ou parte dela. Evitando fazer barulho, ele foi pé ante pé subindo pelas pedras.

— E agora? Faço o quê? – pensou com urgência.

Deu mais alguns passos para olhar de cima o que estava atrás do monte de terra e pedras. Com um passo em falso, escorregou e caiu com estrondo num pequeno caminho de água que tinha no chão.

Era um pequeno rio que corria ali dentro. A queda e o barulho foram tão rápidos que Ian não teve tempo de pensar em nada. Escutando outro grunhido, se viu cara a cara com a criatura que aproveitou aquele som como um presente, encontrando-o.

Mas não era uma cobra.

Uma salamandra estava diante dele. Todo o seu corpo era como a cauda exceto por seus olhos amarelos, leitosos e cobertos por finos vasos sanguíneos. Ian abafou um gritinho de susto ao mesmo tempo que sua mão apagava.

Estava de volta à escuridão total com a diferença de que agora ele sabia o que era sua companhia naquela torre. E o pior de tudo: sabia exatamente onde ela estava. Ele sentiu o bafo quente bem no meio do rosto, tão forte que fez seu cabelo voar. Com a baforada um pouco de baba caiu em sua bochecha.

Nesse momento Ian sentiu raiva de Cosmos. Ele estava ali, assistindo - se é que ele conseguiria naquela escuridão - o garoto brincar com a morte e não fazia nada. Precisava mesmo que as coisas fossem assim? A salamandra ficou um tempo imóvel, tentando perceber a presença do garoto.

Ele prendeu a respiração. Escutou um ronco e em seguida outro grunhido estridente. Ele tampou os ouvidos, apavorado, e saiu correndo sem saber para onde ia. Não se preocupou mais em fazer sons. Os passos estavam altos, entre pisadas na pedra, na terra e na água que corria do fino rio.

— Ela vai me pegar! - gritou. - Cosmos, ela vai me pegar!

Ele sentiu um golpe e foi arremessado, batendo em outro morro de terra. Com a pancada forte, caiu desorientado. Ian tinha sido acertado pela cauda, gosmenta e escorregadia. Ele cuspiu com nojo, enquanto tirava a baba do rosto. Estava sujo de terra e com alguns arranhões feitos por pedras menores.

Outro grunhido. A salamandra vinha em sua direção, ele tinha certeza. Então, como nunca antes, notou o ar diferente. Como se estivesse carregado de algo que ele não podia descrever. Não era pesado.

Pelo contrário, sentiu-se impregnado de uma leveza que nunca percebera antes. Ele era preenchido em cada poro por uma energia sublime e ele sabia o que era. Sua coronal estava respondendo: era a corrente cósmica universal.

Primeiro seus olhos brilharam. Depois sua testa e depois o corpo inteiro. Ian estava envolvido por uma luz amarelada, quase dourada. Sentiu a testa expandir-se. Um terceiro olho surgiu ali, igual ao de seu antepassado, Erin. Tinha o formato amendoado, maior que os olhos do rosto e com a íris amarela.

A dor tinha sumido. A ardência dos olhos também. Ele sentiu as forças se recarregando e uma coragem completamente nova se instalar em seu peito. Com a palma da mão virada para cima, ele invocou uma esfera de luz que lançou para o alto, fazendo-a expandir por toda a sala, iluminando por inteiro o primeiro andar da torre.

Ele ficou impressionado com a altura daquele lugar, especialmente por ser apenas o primeiro pavimento. Toda a zona escura era composta por relevos baixos feitos de terra escura misturada com pedras. Algumas plantas rasteiras cobriam boa parte do chão.

Imensos pilares se encontravam em um teto arqueado e pontiagudo, como uma catedral. O pequeno rio tinha uma origem desconhecida e corria por todo diâmetro da sala, passando por baixo de uma ponte destruída que ficava próxima das três janelas. Ian notou também próxima delas, uma escada de pedra que saía da parede e não possuía corrimão. Levava ao andar de cima.

Por um momento não houve medo.

O garoto estava maravilhado com aquele cenário perdido dentro de uma torre de castelo. As ruínas, a relva, tudo era encantador. Ele viu a salamandra ficar momentaneamente confusa por conta da luz. Mesmo cega a claridade causou uma sensação que a fez hesitar.

Era menor do que Ian imaginou. O medo o fez triplicar a criatura de tamanho, embora ela ainda fosse muito grande e sem dúvida faria um belo estrago com a carne bem distribuída do menino.

— Eca... você é bem pegajosa, né? Vem me pegar!

O grito ecoou pela sala e foi o suficiente para fazer com que a salamandra se precipitasse em direção ao garoto. Andando com velocidade, ela escalou um monte de pedras e com um pequeno salto parou metros à frente de Ian. A luz que mostrava todo o ambiente se apagou.

— Droga.

Ian ouviu os passos da criatura se aproximando e a raiva era percebida em seus grunhidos.

— Sinto muito - ele disse. - mas é você ou eu.

Seu brilho se intensificou e ele ergueu o braço direito, a mão apontada para frente. Estava se sentindo incrivelmente energizado. Uma flecha de luz se materializou e ele pôde ver com detalhes os feixes formarem a geometria daquela arma, graças ao terceiro olho. E vendo nada mais que um borrão se mexendo na sua frente, ele disparou:

Lampejo da Descendência!

O golpe de luz partiu com velocidade, mas o garoto viu a flecha se desfazer no ar. Uma outra esfera de luz surgiu no alto, mais forte e mais intensa que a de Ian, voltando a iluminar todo o lugar. Ele viu Cosmos no meio do conflito, parado e de costas para ele, com a salamandra à frente. A criatura tinha parado de avançar.

— Não é preciso que ninguém se machuque.

— Mas eu iria me machucar. Aliás, me machuquei. Olha isso - Ian mostrou os arranhões nos cotovelos e braços.

— Sabia que você conseguiria. É uma bela herança que você tem aí - o Regente apontou para o terceiro olho do menino.

Os olhos de Ian olharam para cima, instintivamente para tentar enxergar o terceiro olho, que também olhou para cima, em sincronia.

— Ah... tinha esquecido. Nem parece que tem algo na minha testa.

O brilho de Ian se desfez e ao comando sonoro de Cosmos, a salamandra se afastou, procurando um lugar para repousar em um dos cantos do grande ambiente. O garoto continuou:

— Isso vai ficar assim, como um letreiro na minha cara?

— É sua herança. Lide com ela.

— Como vou voltar para a escola desse jeito? Esse é o último fim de semana das férias!

— Encontraremos um jeito de mascará-la enquanto você estiver fora de Terraforte. Uma coisa de cada vez. Meus parabéns, Ian, você foi muito bem. Isso é apenas o começo. Espero que seus amigos também sigam da mesma maneira - o Regente sorriu.

— Tenho certeza que eles também conseguirão.

— Lampejo da descendência, é? É um bom nome.

— Foi o que veio na minha cabeça.

— Existem técnicas que podem ser desenvolvidas exclusivamente por uma pessoa, diferentes das opções que existem hoje em qualquer uma das nove classes. Sua flecha de luz é uma delas.

— Quer dizer que apenas eu posso usá-la?

— Sim, é uma técnica pessoal sua. Mas criar um magia exclusiva não tem nada de especial. Todos podem fazer isso. Claro que existe um custo, já que é preciso um empenho maior e se gasta mais energia vital. Afinal, é uma técnica restrita àquele que a conjura.

Ian olhou para as próprias mãos. Nem bem sabia manipular a corrente cósmica universal e já tinha uma técnica personalizada. Ele sorriu.

— Você também vai aprender a controlar seu terceiro olho e veremos se de fato ele não foi danificado pelo ataque de Marcus.

— Espero que não - disse o menino apreensivo.

— Também espero que não. Vamos voltar. Por hoje, é tudo.

Ian sorriu e acompanhou Cosmos até saírem da torre. A salamandra acompanhou os passos com a cabeça, dando uma baforada reprovadora. Ian desejou não entrar em contato com aquela pele pegajosa nunca mais.

Cosmos abriu a porta. O clarão feito por ele se desfez. E com alguns giros, a porta estava mais uma vez trancada e o primeiro andar da torre mais uma vez entregue à escuridão.



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