Os Descendentes e a Ferida da...

De brunohaulfermet

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A Ferida da Terra precisa ser contida. O tempo corre. A situação piora. Mas o que ela é, Ian não sabe. Ele nã... Mais

Periodicidade das postagens
Amazon e Skoob
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 2 - A Casa da Costa
Capítulo 3 - Corpo Gelado
Capítulo 4 - Meninas Más Morrem Primeiro
Capítulo 5 - As Pequenas Luzes
Material de divulgação do livro - Imagens (I)
Capítulo 6 - A Fuga dos Irmãos
Capítulo 7 - Trio Encrencado
Capítulo 8 - A Excursão
Capítulo 9 - A Reunião dos Improváveis
Capítulo 10 - A Planta no Meio do Vale (I)
Capítulo 10 - A Planta no Meio do Vale (II)
Material de divulgação do livro (II)
Capítulo 11 - Descendentes
Material de divulgação do livro (III)
Capítulo 12 - Festa Julina às Avessas (Parte I)
Capítulo 12 - Festa Julina às Avessas (Parte II)
Capítulo 13 - O Castelo de Sorin
Capítulo 14 - Outros Descendentes
Capítulo 15 - A Adaga Infinita
Capítulo 16 - A Ferida da Terra
Capítulo 17 - Os Quatro Dirigentes
Capítulo 18 - Corrente Cósmica Universal (I)
Capítulo 18 - Corrente Cósmica Universal (II)
Capítulo 19 - A Zona Escura
Capítulo 20 - A Floresta das Lágrimas
Capítulo 21 - Um Contra Cem
Capítulo 22 - O Maior Medo de Norah
Capítulo 23 - A Espada Celestial
Capítulo 24 - A Suspeita
Capítulo 25 - Pelúcias
Capítulo 26 - Luz e Água
Capítulo 27 - A Calmaria Antes da Tempestade
Marcadores de "A Ferida da Terra" - Brinde por tempo limitado
Capítulo 28 - O Rompimento
Capítulo 29 - O Rabisco
Capítulo 30 - A Véspera
Curiosidades sobre A Ferida da Terra
Capítulo 31 - A Partida
Capítulo 32 - Em Família
Capítulo 33 - Ele
Capítulo 34 - Sombra Contra Luz
Capítulo 35 - O Fim e o Começo
Capítulo 36 - A Volta (FINAL)
A Ferida da Terra e os leitores: o que vem depois.
BÔNUS - A Saga da Descendência {Livro Dois}
Estudos Ilustrados para Capa Definitiva
[VOTE] Imagem final de um dos cinco.
Color Script
Ilustração e Capa Definitiva - Livro Um
Curiosidades [Parte 2]
Primeiro Encontro Oficial do Wattpad
Livro Dois - Nome e Sinopse
Encontrão do Wattpad - Bienal do RJ 2017
Prêmio Deusa Lendari / Finalista

Capítulo 1 - Você Não Devia Estar Aqui, Menino

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De brunohaulfermet


O espelho preso na porta do armário refletia a imagem de Ian. Segurando a camisa no alto, o menino tinha o olhar fixo em um arranhão extenso, delimitado por sangue pisado, na lateral da barriga. O calor castigava os poros e fazia o cabelo castanho, escuro e liso, grudar na testa pelo suor. O peso não ajudava: para um jovem de quinze anos, Ian estava acima das medidas saudáveis, com noventa quilos distribuídos ao longo do corpo.

Passando a mão nos fios avulsos e encharcados, jogou-os para trás, sem tirar os olhos do ferimento superficial. A mente, no entanto, vagava distante. Pensava no motivo daquilo estar lá, adornando a pele. Atracara-se com um dos meninos da escola, depois de um grupinho ter se juntado para zombar de seu corpo. Uma prática que era quase rotineira.

Mergulhado na lembrança de forma hipnótica, Ian não sentiu a camisa abandonar os dedos, tornando a esconder a barriga.

— Você não aprende, né, Leitão do Universo? – uma voz surgiu na porta do quarto, que estava aberta.

O susto bombardeou Ian.

— Há quanto tempo você está aí, Miguel? – ele perguntou ao olhar com reprovação para o irmão. Sentou na cama, ofegante.

— Que piada! Apanhou de novo?

Ian tentou respirar fundo, enfrentando a respiração acelerada.

— O que você quer, Miguel?

— Mamãe está te chamando.

— Para quê?

Sem dar a mínima importância ao irmão, Miguel virou as costas e desapareceu. Ian gastou alguns minutos para recompor o ritmo respiratório e dissolver o princípio de raiva que se estabelecera pela atitude do irmão. Quando sentiu que estava mais tranquilo, saiu, fechando a porta.

Seu quarto era simples, um anexo da garagem sem carros que ficava no primeiro andar de uma casa humilde. O garoto cruzou o espaço até uma escada que levava ao andar de cima. O fim dos degraus revelava um corredor pequeno que tangenciava a sala. Com desprazer, Ian notou um monte de papéis espalhados pelo lugar, que ele usara mais cedo para nos estudos, mas que havia esquecido. O ventilador de teto já os havia lançado longe e algumas folhas se mexiam com leve barulho. Desligou o interruptor e logo ouviu a voz de Miguel surgir:

— Está maluco? Deixa isso ligado! Não está sentindo o calor, ô imenso?

Irritado, o irmão mais novo mexia impacientemente no cabelo, que era igual ao de Ian no tom e na textura, embora atingisse os ombros.

O anúncio de confusão trouxe à porta do lado oposto uma mulher de meia idade. Usava um avental manchado de cremes frescos e coloridos por cima de uma roupa batida e casual. O cabelo castanho escuro e liso estava preso no alto da cabeça em um coque. Olhos castanhos tão claros e brilhantes quanto os de Ian e Miguel.

— O que é que está havendo aqui, eu posso saber? – perguntou Joana, limpando um resquício de pasta cremosa no avental.

— Eu estou morrendo de calor e esse Bate-teta desligou o ventilador!

— Miguel, isso é maneira de falar do seu irmão?

— É só para juntar a papelada, mãe – Ian respondeu, ignorando solenemente o mais novo.

— Junta logo!

— Por que você não vai tomar conta da sua vida?

— Ah, cala a boca.

— Miguel, você não ia tomar banho? – perguntou Joana.

— Eu já vou. Ah, mãe... – ele fez uma pausa desdenhosa, enchendo o peito de satisfação. – você sabia que o Ian se meteu em briga de novo?

Joana franziu a testa e olhou para Ian, esperando uma explicação. O rosto do menino empalideceu. Ian não tinha grandes problemas em lidar com a zombaria na escola, mas encarar sua mãe não era tarefa das mais fáceis.

— Foi só um arranhão passando pelo portão. Miguel fala demais.

Eu falo demais? Só digo o que vejo ou o que sei. E o que sei é que você é um dos esquisitos do primeiro ano e só arruma encrenca com o...

— Falou o homem maduro da oitava série! Você nem saiu das fraldas. Mal estuda e só joga futebol. Se eu fosse você, teria vergonha.

— Se eu fosse você, faria dieta.

— Chega! – Joana interveio. – Miguel já para o banho e Ian, junte logo esses papéis porque preciso de uma ajuda sua.

O filho mais novo bufou em reprovação, caminhando até o pequeno corredor e entrando em uma das três portas que havia nele.

Com rapidez Ian reuniu as folhas escolares e voltou a ligar o aparelho. Ele mesmo derretia com o bafo quente que se apoderara da casa. Olhou para o relógio na parede: passava das onze da noite. Ficara o dia todo comendo biscoito, bebendo refrigerante e fazendo o trabalho para entregar na escola, enquanto a mãe preparava recheios diversos. Miguel ficara boa parte da tarde e da noite jogando futebol e havia chegado fazia pouco tempo. Ian foi até cozinha:

— Mãe, o que você quer de mim?

— Quero que você prove estes recheios – ela disse, ao mostrar quatro tachos diferentes, cada um com um creme de tonalidade diferente. – seu irmão já deu a opinião dele.

Os olhos de Ian brilharam. Comida era sempre bem-vinda.

— É a primeira vez que faço essa prova. A Emília é exigente e tudo tem que estar perfeito no casamento dela. Seria o fim do mundo se o bolo estivesse fora do esperado.

— Ela não é exigente, mãe. Ela é fresca. E chata.

Joana deu um sorriso leve. Ian continuou:

— Aquela cretina vai conseguir dar o golpe no Ricardo, coitado – disse com uma risada de desdém.

— Para com isso, menino! – Joana chamou a atenção do filho, mas deu uma risadinha.

— Mas é verdade, mãe! Não bastasse a Emília ser feia, ainda é interesseira também.

— Feia ou bonita, vai nos pagar um bom preço pelo bolo de casamento deles.

— Se eu fosse você, colocava laxante nesse recheio.

— Coloco laxante e nunca mais vendemos um bolo sequer. Você é um gênio, meu filho.

Ian afrouxou uma risada longa e a mãe o acompanhou. O menino sentiu uma alegria irradiar pelo corpo. Não lembrava a última vez em que vira a mãe com tal expressão. Joana andava tão ocupada em seu trabalho confeiteiro que ultimamente dormia pouco. Desde pequeno, Ian viu sua mãe fazer bolos dos mais variados tamanhos, formatos e cores. Ele adorava ficar perto dela para comer as sobras de algum recheio ou raspar a tigela. Nos dias atuais a mulher era bem mais requisitada. Seu tempo estava mais escasso a cada dia e o garoto, com seus afazeres de colégio, quase não parava em casa, o que tornava o convívio direto com a mãe mais difícil. Miguel não era um exemplo de carinho e constantemente Ian sentia que apenas ele e Joana realmente moravam naquela casa, quase esquecendo a existência do mais novo. O pai desaparecera misteriosamente quando os dois eram pequenos e desde então Joana sustentava os três, trabalhando sem cessar para mantê-los.

Quando mergulhou a colher no tacho para saborear o primeiro creme, a campainha tocou.

— Quem será a essa hora? – Joana estava bastante surpresa.

— Não sei, mas quero que vá embora. Isso são horas? - irritado, deixou de lado o que estava segurando e caminhou para a sala. - deixa que eu atendo – resmungou.

Havia um segundo lanço de escada perto do sofá , que dava acesso à entrada principal, no primeiro andar. A campainha tocou de novo.

— Já vai! – Ian disse mais irritado e em tom mais elevado.

O garoto abriu a porta da casa e olhou para o portão. A distância era pequena. Ele cruzou o pequeno quintal, mantendo os olhos no ferro verde-escuro, já desgastado pelo tempo.

Viu duas mulheres. Uma era idosa, com o rosto enrugado, pele seca e muito marcada, cabelo branco e longo, preso em um rabo-de-cavalo achatado, olhos pequenos e castanhos. A roupa, que parecia tirada de um baú, era desbotada e manchada. As pernas finas acentuavam os chinelos gastos, um número acima dos pezinhos mirrados.

A mulher quase não se mexia.

A outra, jovem, um pouco acima dos trinta, usava uma tintura loira que berrava cafonice, com um cabelo cacheado na altura do queixo, olhos castanhos muito escuros e brilhosos. A maquiagem nas bochechas gritava em um rosa vibrante, conferindo àquela figura um ar teatral. A roupa era chamativa, desatualizada e valorizava as curvas. Brincos e pulseiras muito polidos causavam uma confusão estética perturbadora. Estava eufórica, e seu sorriso era assustadoramente feliz:

— Oi, querido! – o falso entusiasmo era facilmente percebido.

— Oi, Emília. Oi, Julliette.

A velha fez um aceno de cumprimento quase imperceptível com a cabeça.

— Viemos conversar com a sua mãe sobre o bolo do meu casamento. Na verdade, viemos provar os recheios! – disse, sem conter a agitação.

— Uma hora dessas? – ele sentia o sono chegar.

— Algum problema? – retrucou Emília, claramente contrariada com a pergunta.

— Combinamos com ela, garoto. Deixa a gente entrar e resolver logo isso – resmungou Julliette.

— É, deixa a gente entrar de uma vez que eu não tenho tempo a perder, moleque.

A irritação que cutucava o menino começou a crescer. Naquele momento ele desejou ter um cachorro grande e enfurecido para soltar em cima delas.

— Venham comigo. Ela está lá na cozinha. Ficou o dia inteiro testando sabores – e virou, subindo a escada. As duas o seguiram.

— Ah, ótimo! – comentou Emília, animada. – acho bom essa doceira trabalhar direito. Pelo dinheiro que Ricardo está pagando a ela...

— Você não poderia ter arrumado um marido melhor – ressaltou a mãe.

— Marido ainda não, mamãe, mas estamos quase lá. E quando nos casarmos, eu serei definitivamente uma mulher rica! – o descontrole na risada foi um motivo a mais para regar o desconforto de Ian.

— Vai é dar o golpe. Coitado – murmurou Ian, quase inaudível.

— Disse alguma coisa, Barrigudinho? – perguntou Emília.

— Mãe, Julliette e Emília estão aqui – anunciou o garoto, fingindo não ouvir a pergunta.

Joana surgiu da cozinha, surpresa com a visita inesperada:

— Boa noite! Aconteceu alguma coisa?

— Viemos provar os recheios – respondeu Emília, ainda muito efusiva e sorridente.

Ian assistia a cena com repulsa.

— Resolvemos nos adiantar. Amanhã teremos outras coisas para resolver. Você não se incomoda com a hora, não é mesmo, Janete? – perguntou Emília.

— Não, imagina – respondeu Joana, ignorando a troca de nomes.

Era nauseante ver Emília empolgada. Artificial. Quando Ian olhou para Julliette, percebeu com um susto interno que ela não tirava os pequenos olhos dele. O garoto esboçou um leve sorriso, sem dentes, muito envergonhado por notar o olhar repentino. Ela tinha um ar sério, enigmático.

Analisava-o, olhando-o de cima a baixo, sem mexer a cabeça.

Ian virou rapidamente para a mãe:

— Por que não leva elas para a cozinha, mãe?

— Claro, claro, venham comigo – disse Joana ao acenar para as duas e virar na direção de seu local de trabalho.

Emília a seguiu e Julliette foi atrás, depois de dar uma última espiada em Ian. Ele sentiu um frio na espinha. A anciã não tinha uma aparência muito amigável.

Nunca tivera.

Falara pouco e quando abria a boca era sempre muito ríspida. Todos na vila onde moravam tinham receio ao interagir com ela e até mesmo ficavam aflitos em esbarrar com a mulher pela rua. Nem Julliette, nem a filha eram alvos de simpatia, especialmente Emília, considerada insuportável pelos vizinhos desde que era adolescente, época em que mudara para a vila.

Após se recuperar do leve incômodo, o garoto sentou no sofá. Pensando em situações diversas, inclinou o corpo, encostou a cabeça e fechou os olhos por instantes.

Sentiu o rosto em chamas.

Teve a sensação de que os olhos pegariam fogo e derreteriam.

Uma dor insuportável percorria as córneas, fazendo as pálpebras sofrerem espasmos sutis. As têmporas latejavam e o suor, antes de calor, tornara-se febril.

Sem querer alardear a mãe ele desceu, trôpego, a escada que levava à garagem. Escancarou a porta do quarto e se jogou na cama, desejando que a dor passasse.

Não passou.

Ian levantou e se olhou no espelho. Não havia qualquer alteração facial aparente, exceto pela leve vermelhidão no globo ocular.

Não iria avisar Joana. Não nas condições daquela noite. Não com Emília e Julliette pressionando a mãe com prazos e tarefas. Decidiu que ficaria deitado em silêncio, até que elas fossem embora e só então falaria com a mãe. Utilizaria um colírio, talvez, embora não achasse que tal medicamento resolveria. Revirando de um lado para outro, deitado, perdeu a conta de quantas vezes trocou de posição.

E de tanto se movimentar, sem dar conta adormeceu.

Se havia passado muito tempo, Ian não sabia. Estava outra vez sentado na beirada da cama, sentindo os olhos arderem.

Lacrimejavam.

Ele estava suando de febre.

Deitou outra vez, quase sem se mexer, na esperança de diminuir a dor, mas ela não parou. Pegou o travesseiro e começou a gemer, com sons abafados.

Deu-se por vencido e decidiu contar para Joana o que estava acontecendo.

Com passos cambaleantes, subiu a escada e foi até o sofá, sentando. Soltou um grunhido abafado de dor. Mexer a cabeça era quase impossível. Ficou imóvel por algum tempo, de olhos fechados, e sentiu que seria fácil desmaiar.

O barulho de um portão rangendo ao abrir chamou a atenção do garoto e ele abriu os olhos. Pela proximidade do som, seu instinto o avisara que era o portão da sua casa. Ian foi com dificuldade até a janela e espiou o primeiro andar por trás da cortina. Olhou no relógio de parede que estava próximo: já era madrugada.

Com surpresa, viu que não era o portão dele. Seu quintal miúdo estava deserto. Olhou para a ruazinha da vila. Ela estava prateada, inteira tomada pelo luar. As casas, todas com o mesmo formato e estrutura, estavam mais brancas pela incidência de luz. As sombras, mais escuras.

Ian não descobriu a origem do barulho de primeira. Ficou olhando de ponta a ponta da vila, sem resposta, até que mirou a sombra de uma grande árvore que ficava do lado de fora do conjunto de casas. Apertou os olhos para confirmar, já que estava muito difícil fazer qualquer distinção em meio à tantas formas escuras.

Havia uma mulher no meio daquela noite abafada.

Julliette.

Usava as roupas de horas atrás, quando visitara a casa dele. Pálida e lenta como sempre, estava parada na frente da árvore e falava algo, mas não havia qualquer ser humano além dela.

— O que é que essa velha está fazendo uma hora dessas na frente de uma árvore? – ele pensou, curioso e sentindo vontade de rir. A surpresa pela cena foi tamanha que até esqueceu sua dor por um momento.

Julliette continuava a mexer a boca. Levantou um pouco o braço direito, trêmulo, e apontou para o lado esquerdo, direção oposta da vila. Começou a andar passos curtos. Abaixou o braço e parou de falar.

Ian estava tomado pela curiosidade.

Esforçando-se para ignorar a dor, apressou-se em pegar um par de chinelos na área de serviço e saiu em disparada. Passou pelo quintal e continuou dando passos largos e silenciosos pela ruazinha. Fazia um calor anormal para uma madrugada.

Ian cruzou o portão individual da entrada e procurou Julliette. A rua que dava acesso à vila possuía poucas casas e árvores imensas.

Em meio àquele misto de luzes e sombras, o garoto conseguiu ver a mulher virando a esquina um pouco mais à frente, sumindo e aparecendo entre as sombras das árvores. Apertou o passo e a seguiu. Os troncos pareciam assustadores àquela hora, o que ficava ainda pior com o luar prateado.

O vento que quase não soprava fez com que Ian sentisse calor à medida que andava mais rápido para não perder Julliette de vista. Quando chegou na esquina que ela cruzara, escondeu o corpo atrás de um muro e inclinou a cabeça para espiar a outra rua. Viu Julliette caminhando na direção da Praia da Birutinha, uma pequena praia a dois quarteirões de onde moravam.

Sentiu fisgarem os olhos e lembrou que estava também com febre. Ian caiu de joelhos nas folhas espalhadas, com a respiração ofegante, em consequência de uma fraqueza súbita. Se arrependeu por ter saído de casa atrás de uma bisbilhotice. Colocou as mãos no chão e respirou pausadamente. Como já estava lá, decidiu ver o que aconteceria.

Se pôs de pé com dificuldade e o mundo girou por um instante. Ele continuou caminhando, bem em tempo de ver a anciã atravessar uma pequena praça, descendo as escadas de um calçadão, indo para a areia. Ian se apressou em segui-la. Cada passo que dava parecia torná-lo mais distante de chegar até a praia, tamanha era a dor. Depois de muito esforço, ele parou no calçadão.

A praia era pequena e intimista, cercada de grandes pedras dos lados esquerdo e direito, com areia escura e uma vista abundante da Baía de Guanabara. Ian seguiu para o lado esquerdo, caminhando por uma ciclovia, ligeiramente camuflado pelas árvores, com a intenção de observar Julliette sem ser visto. Ela andava na direção das pedras, passando por elas com todo o cuidado, até ele perceber que a mulher caminhava para uma caverna, desenhada por diversas pedras sobrepostas, quase invisível naquele luar.

O menino sabia da existência do local, mas nunca tinha entrado ou sequer se aproximado. A maré sempre estava alta e a entrada costumava ficar parcialmente coberta. Naquele momento, no entanto, o mar estava calmo, quase sem ondas, e a caverna inteiramente acessível.

— Mas o que é que ela... ? – interrompeu a pergunta ao ver Julliette cruzar a passagem.

Ian questionou se aquilo estava mesmo acontecendo.

— Essa velha é louca. Se arriscar nas pedras desse jeito, com essa idade! Só pode ser sonâmbulo.

A ideia veio-lhe à cabeça de repente e soou como a mais genial do mundo. E tão logo Ian chegou àquela conclusão, resolveu descer ao lugar para levar Julliette de volta para casa, mesmo um pouco contrariado.

Retornou para o calçadão e desceu a pequena escada. Foi caminhando devagar pela areia quente até chegar às pedras. A água do mar estava morna e, de encontro a seus pés, fez Ian sentir um conforto momentâneo.

Ele subiu com cautela pelas primeiras pedras, revestidas de limo, para não escorregar. Foi se apoiando com as mãos e os pés em uma e outra, até que chegou à entrada da caverna. Ficou bem em frente à passagem e olhou para dentro, procurando Julliette.

Não a viu.

O lugar era escuro e abafado. Graças às luzes da lua e dos postes no calçadão, o garoto conseguia ver um pouco além da entrada. O cheiro de maresia se confundia com outro que ele supôs ser sangue.

— Julliette? – chamou baixinho. – Julliette...

Nenhuma resposta. Nenhum som, exceto o da água salgada lambendo as pedras.

— Julliette? – insistiu.

Ele não ouviu retorno. Forçou a vista, mas não conseguiu enxergar qualquer detalhe lá dentro. O mar bateu em uma das pedras com mais força e respingou em suas pernas. Só então ele percebeu que estava muito próximo da água.

Ian adentrou um pouco mais e reparou em dois pontos de luz muitos pequenos e fracos em um dos cantos, ao fundo. Deu mais um passo e pôde ver o rosto de Julliette olhando para ele, rígido como de costume.

Os pontos de luz eram suas íris brilhantes.

Assustado, Ian deu um passo para trás e escorregou no limo, caindo no chão.

— Você não devia estar aqui, menino – disse uma Julliette imóvel e fantasmagórica.

— O que... ?

— Ele vai chegar a qualquer momento.

— Ele? Quem é ele? Mas do que você está fal...

Ian não completou a pergunta. Percebeu, pelas luzes que vinham de fora, que alguém tinha chegado, ao ver uma sombra se formar na direção da mulher decrépita.

Ele não soube discernir qualquer detalhe naquela silhueta porque seus olhos latejavam.

A única certeza era que alguém estava parado atrás dele.

Ian não teve tempo de virar. Com a febre nas alturas e os olhos incendiados pela dor, a imagem borrada de Julliette e seus olhos brilhantes foi tudo que viu antes de desmaiar.



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