As Pontes Invisíveis

By castellox

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"Se as pessoas soubessem tudo sobre você, será que você ainda teria amigos?" Esse é o drama vivido por Charle... More

As Pontes Invisíveis
Regresso
Imersão
Transição
Negação
Raiva
Medo
Resistencia
Súbito
Inércia
Loucura
Malicia
Vulnerabilidade
Insanidade
Paciência
Silêncio
Susto
Solidão
Sete
Solidão pt. II
Surpresa
Partida
Retorno
Adrenalina
Alivio
Se7e
Culpa
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AOS LEITORES

Nostalgia

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By castellox

            O dia começou com o celular de Jennifer despertando, Charlie não comentou o assunto até ela dar lhe presentear com um beijo e ter acesso as suas novas memórias.

- Meu deus Charlie! – dizia ela apavorada. – Esse homem está nos seguindo, quem é ele?

A pergunta era retórica, ela sabia que nenhum dos dois poderiam saber quem aquele homem era, estava ficando cada vez mais comum ver ele por ai.

- Talvez ele não tenha nada a ver com isso tudo isso – disse Charles. – Talvez seja um ladrão.

- Nossa, estou bem mais aliviada – disse a irônica Jennifer.

- Não há motivos para ficar se preocupando tanto – disse Charlie por fim.

Os dois chamaram um taxi e foram para o endereço onde Charlie leu na internet que ficava as ruinas do sanatório do tempo. Segundo o fórum "thetimealysum.com" o sanatório ficava seguindo a rua Lavor por cerca de doze quilômetros, depois entravasse em uma pequena rua estreita e perdida pelo tempo, essa rua não tinha nome oficial, mas foi apelidada como a rua da morte. A rua era feita de vários tipos de pedras e tinha vegetação crescendo entre elas. Aliás era bem afastada da cidade e o que mais tinha era vegetação, eles chegaram até um muro avermelhado com inúmeras pichações, no centro da rua havia um enorme portão de ferro que havia pelo menos uns três metros, o portão abria do meio, havia duas partes porém uma não estava mais no lugar, havia desabado no chão.

- Obrigado – disse Charlie ao taxista. – Pode ficar com o troco.

Desceram do carro e enquanto o taxista manobrava eles já passavam por cima do portão de ferro caído. Estava enferrujado e vegetação já crescia entre ele, provavelmente estava assim a muito tempo. Depois do portão havia uma pequena rua de pedra que levava até o edifício no alto de uma colina não muito alta.

Quando Charlie viu o sanatório do tempo seu estomago se revirou, quando ele leu sobre as ruinas do sanatório, acreditou que tudo que sobrava era ruinas, mas aquele lugar parecia inteiro. Havia pichações por todos os cantos e nas janelas manchas pretas que provavelmente haviam sido feitas pelo fogo, mas de modo algum aquilo parecia uma ruina, somente uma mansão abandonada pelo tempo.

Os dois andavam pela pequena rua quase invisível por causa do mato sem dizer uma palavra. Jennifer pegou na mão de Charlie e viu seus pensamentos, ele não gostava daquele lugar, havia algo ruim ali e até ela sentia isso.

- Podemos ir embora – Disse ela. – Não temos necessidade de entrar.

- Eu preciso – disse ele.

No chão haviam latas de spray vazias e eles passaram por algo que provavelmente foi uma fogueira. No topo da colina a rua de pedra formava um circulo e havia um chafariz no meio, ou pelo menos o que restava do que já havia sido um. Seu interior estava seco e cheirava a urina e carniça, haviam pedaços de tecido e coisas pretas que era impossível de se definir. Não havia sinal das grandes portas duplas que davam acesso ao lugar, haviam sido arrancas e levadas sabe-se lá para onde.

- Vamos – disse Charlie, Jennifer concordou sem falar nada.

Ele deu o primeiro passo para dentro do edifício, o lugar que um dia foi um saguão tinha as paredes pretas por causa da sujeira e humidade, na de trás havia o símbolo da sociedade do tempo cravejado em pedra. Não havia sinais de nenhum móvel, só latas de cerveja jogadas ao chão e pedaços de madeira.

- Pode ser algum local pra uso de drogas – disse Jennifer. – Vamos ter cuidado

- Claro – os dois praticamente sussurravam, mesmo talvez sem ter motivo.

Era praticamente impossível ver o chão por baixo de tanta sujeira, eles seguiram por um corredor escuro, olhavam por entre as portas, mas sem entrar, nada demais, apenas mais sujeiras e algumas partes de velhos eletrodomésticos. Talvez as pessoas usassem aquele lugar como deposito de lixo.

- O que exatamente estamos procurando? – Perguntou Jen.

- Algo – disse Charlie, sem a mínima ideia do que estava fazendo.

Os dois se depararam com uma escada, ia tanto para baixo quanto para cima.

- Pra onde? – Perguntou ela.

            - Vamos descer primeiro – respondeu ele com hesitação. Eles desceram as escadas devagar, mesmo sendo oito e meia da manhã, a cada degrau ficava mais escuro, estavam indo para o subsolo. Charlie se arrependeu de ter escolhido aquele caminho, porém não voltou. Puxou do seu bolso um isqueiro, a escada fazia uma curva e descia mais, agora o breu era completo a não ser pela iluminação do isqueiro, que não ia longe. Jennifer puxou o seu celular do bolso e ligou sua lanterna.

- Eu sou muito burro – disse Charlie. Ela riu, aquele meio-sorriso que estava meio-iluminado deixou Charlie confiante, ela era simplesmente linda.

- Me sinto em um daqueles documentários de caça fantasmas – disse Jennifer.

A escada dava em um corredor estreito, as paredes ali embaixo não estavam tão sujas quanto as de cima e o chão também parecia mais limpo. Parece que pouca gente teve coragem de descer até ali. Haviam várias salas, todas com portas e numeradas, porém vazias.

- Eu estou com medo. – Disse Jennifer.

- Eu também. – Respondeu Charlie sem diminuir o passo, no final do corredor havia outra escada, Charlie olhou para Jen como em um pedido de permissão, ela balançou a cabeça positivamente e ele se pôs a descer, a escada terminava em uma única sala, porém era enorme, a luz do isqueiro zippo que ele carregava não chegava até as paredes, Charlie deu alguns passos até esbarrar em alguma coisa, iluminou com o celular – era uma maca. – Conforme ele andava percebeu que a sala era repleta de macas, um papel retangular no chão o chamou atenção e ele o pegou.

"Young, Louis"

Era uma etiqueta, um frio subiu pela sua espinha e ele conseguiu imaginar Richard Black deitado na pilha de corpos no fim daquela sala escura.

- Vamos voltar – Disse Charlie.

- Tem certeza? – Perguntou ela.

- Agora – os dois subiram as escadas novamente, quando chegaram no térreo sentiram um alivio inexplicável.

- Vai acabar com a bateria do meu celular – reclamou Jen. – Vamos ver lá em cima de uma vez e acabar com isso. Já estou ficando com fome.

Os dois subiram as escadas para o segundo andar, as escadas davam em um corredor que ia tanto para a direita quanto para esquerda, os dois lados igualmente sujos. Eles foram pela direita, haviam várias portas de ferro numeradas que Charlie não fez questão de entrar, o cheiro naquele lugar era horrível. O final do corredor deu em uma sala grande com as paredes marrons. Ainda haviam algumas mesas e cadeiras velhas, haviam filtros de cigarros no chão e algumas garrafas de bebida. Charlie andava pela sala em direção a janela quando pisou em uma camisinha usada, a ideia de transar naquele lugar dava nojo a Charlie. A janela continha grades e a visão dava para um lugar aberto, parecendo uma quadra de futebol, só que com o chão de cimento e muros enormes. Aquela sala onde eles estavam era a sala de socialização, havia sido ali que Richard conversara com o homem sem nome – George. – E os dois haviam decidido como fugir daquele lugar.

            Eles voltaram pelo corredor e subiram mais um lance de escadas até o terceiro andar, naquele andar haviam apenas quartos com portas de ferro e Charlie procurou o de numero treze. Ficava no final do corredor, os dois entraram, a porta rangeu ao ser puxada mas não houve dificuldades. Mesmo após cem anos ela ainda poderia manter alguém trancado ali, o quarto parecia provavelmente a mesma coisa que era cem anos atrás, exceto pela falta do colchão e a humidade que tomava conta das paredes. Charlie olhou pela janela e observou a única vista que Richard Black teve do mundo por muitos meses, e provavelmente a ultima vista que muitos tiveram do mundo para sempre.

- Foi aqui que Richard Black ficou – disse Charlie.

- Eu sei – respondeu Jennifer. – Mas é meio deprimente ficar aqui.

- Talvez – disse Charlie. – Mas eu sinto uma conexão – Charlie subiu em cima da estrutura de ferro onde ficava o colchão e arrancou a pequena prateleira de madeira que ficava acima da cama.

- Que vândalo – disse Jen com sorriso. – Gostei, vamos botar fogo no lugar todo?

- Já fizeram isso – disse Charlie sorrindo. – Olha aqui – Charlie apontou para a inscrição feita na madeira, provavelmente com uma faca ou algum objeto pontudo.

"A casa Albert Hills tem as portas abertas para poucos, eles entram sãos mas saem todos loucos."

- Eu tenho uma teoria – disse Charlie.

- Ah é? – Disse Jennifer intrigada levando sua mão até o queixo. – Então conte-me, Sherlock.

- Acho que existe um novo sanatório. Talvez algo até maior como um hospital, não sei. Eu acho que eles me levaram para esse lugar, talvez eu tenha ficado lá e talvez, só talvez, eu devesse morrer, mas então eu de algum modo consegui fugir. Talvez eles tivessem tentando fazer algum tipo de lobotomia em mim e eu fugi no meio do tratamento, por isso esse negocio das memórias e também a falta delas.

- Eu vejo alguns erros nessa sua teoria – disse Jennifer enquanto se sentava na cama sem colhão. - Faz um pouco de sentido – disse ela fazendo um gesto com os dedos indicador e polegar – Só um pouquinho.

- Eu queria entender o motivo, sabe? – disse Charlie. – Na época, cem anos atrás, acho que esse lugar era o método deles manterem a cidade limpa, sabe? Um prefeito ou politico decide tirar todos os pobres, mendigos e indigentes da rua. Tranca-los em algum hospício, aqui só havia pessoas que ninguém sentiria falta – Charlie fez uma pausa. - Assim como eu.

- Para com isso, eu sentiria sua falta – disse ela. – Mesmo antes de nós nos conhecermos de verdade, eu sentiria sua falta no Vanilla. Se você desaparecesse eu ficaria pensando: Cadê aquele barbudo bobão, por onde ele anda?

- Para com isso – ele riu. – Vai me fazer ficar vermelho.

- Sabe o que eu acho? – disse ela. – Que esse lugar funcionava como um serviço, tipo "Pague essa quantia e prendemos a pessoa odiada pra você."

- Também acho que pudesse ser isso.

- Você tem inimigos? – perguntou Jennifer.

- Não que eu saiba. – disse Charlie.

- E o Chuck? – perguntou ela .

            - Chuck? – Ele pareceu surpreso. – O Chuck é meu amigo!

- Não acha que ele tem sido seu amigo demais? – Perguntou ela.

- Agora que você mencionou – ele disse. – Ele não me tratava tão bem assim antes, agora parece que fica tentando me agradar, mas por que ele iria querer eu preso?

- Não sei. Você divide a casa com ele a noiva, talvez ele quisesse privacidade.

- Você não acha que seria mais normal ele pedir pra eu me mudar ao invés de mandarem me prender em algum lugar?

- Sei lá Charlie, tem gente que é doida, além disso, Chuck tem bastante dinheiro.

- Para Jen, o Chuck não faria uma coisa dessas comigo. – Charlie falou sério. – Não foi ele.

- Se você tem tanta certeza – Disse Jen.

Charlie observava a janela quando viu em uma das extremidades um pequeno pedaço de ferro com uma ponta, estava enferrujado e velho porém ele soube na hora que se tratava do pedaço de mola que Richard usou para escrever na parede. Ele olhou as paredes, não era possível ler nada escrito, no final das contas, não havia tanta coisa para se ver ali.

- Achou o que procurava? – Perguntou Jennifer.

- Não – respondeu Charlie. – Acho que não tem nada aqui mesmo.

Um clarão tomou conta do quarto e fez o coração dos dois acelerar. Um homem de camisa branca olhava-os pela porta e segurava uma câmera na mão.

- Caralho, que susto! – Disse Jen – Quem é você?

- Vocês sabem que não podem entrar aqui, né? – Perguntou o homem.

- Quem é você? - Repetiu Charlie.

- Meu nome é Dave Edson – Respondeu ele.

- E se a gente não pode estar aqui, você também não deveria estar – retrucou Jen.

- De fato é verdade – disse ele com um sorriso. - Mas eu gosto de lugares abandonados, gosto de fotografa-los, parece que essas paredes contam histórias.

- Você nem imagina – disse Charlie baixinho.

- Vocês não são aqueles casais esquisitos que gostam de transar em lugares esquisitos né? Isso seria esquisito.

- Não – respondeu Charlie rapidamente. – Na verdade, um parente distante foi internado aqui, faz muito tempo, eu estava procurando alguma conexão, não sei.

- Acredito que ele não era louco, certo? – perguntou Dave.

- Não, não era – respondeu Charlie.

- O que sabe sobre esse lugar? – perguntou Jennifer.

- Não mais que todo mundo – disse Dave sorrindo. – Sei que era um lugar onde deviam ser internados gente doida, mas era comandado por gente doida, vai entender.

- O que sabe sobre Leon Brown? – Perguntou Charlie.

- Nada – disse ele. – Bem... Havia uma estatua, fotografei alguns anos atrás, mas agora roubaram ou destruíram, ficava no topo do chafariz – Dave ligou sua câmera e pegou um dos vários cartões de memória que tinha na mochila. – Aqui, olha

A estatua de Leon Brown não tinha nada demais, era um homem jovem comum, talvez um pouco forte, mas essas eram as únicas características que podiam ser concluídas através daquela foto da estatua.

- Tinha o nome dele na base – Disse Dave. – Isso é tudo que tem dele aqui dentro, já explorei cada canto desse lugar.

- O que encontrou lá embaixo? – Perguntou Charlie.

- Bem... – Dave sentou-se na estrutura de ferro junto com Jennifer. – Eu não gosto de ir lá embaixo, mas já fui, tem uma grande sala, parece que é a única coisa que tem lá, porém também há alguns tuneis. Havia um túnel de terra que dava para os fundos do hospício, onde havia uma linha de trem. Mas tanto a linha de trem já foi desativada quanto o túnel já desabou, além disso existem algumas pequenas passagem secretas que dão para outras salas lá embaixo, e não são poucas, contei cerca de vinte salas escondidas no subterrâneo – ele respirou. – Mas não fique animado, aventureiro, seja lá quem e o que faziam lá, limparam tudo antes de ir embora, todas essas salas estão vazias.

- O que acha que pode ser? – perguntou Jennifer.

- Nenhuma dessas salas foi mencionada no relato – disse Charlie.

- Que relato? – Perguntou Dave.

            - Bem – Charlie olhou para Jennifer. – Meu parente, fez uma carta contando como foi a estadia nesse lugar – disse Charlie.

- Deixe-me ver? – Pediu Dave. – Você não tem ideia de quanto tempo faz que eu fotografo esse lugar e imagino em minha mente as coisas que aconteciam aqui, eu só quero ler, eu leio rápido, se estiver com ele ai eu leio e já devolvo.

Jennifer fez que sim com a cabeça e Charlie pegou o relato da mochila e entrou a Dave. Ele pegou as folhas de papel com a delicadeza de quem pega um diamante, voltou a sentar-se e leu tudo em poucos minutos, Charlie e Jennifer viram sua face indo de um sorriso para o espanto e novamente para o sorriso, quando terminou ele abaixou as folhas e sorriu.

- Isso é incrível – disse ele. – É horrível, mas é incrível.

- Pois é – disse Charlie.

- Escuta, eu vou te dar meu cartão, se eu descobrir qualquer coisa que possa te ligar com seu parente eu te ligo, mas se você descobrir mais alguma coisa sobre esse lugar, quero que você me ligue, eu me sinto conectado a esse prédio também, a noite, parece que ainda dá pra ouvir os murmúrios nos quartos.

- Credo – disse Jennifer. – Eu não venho aqui a noite nem se me pagarem – Disse ela.

- Cada louco com suas manias. – Disse Dave sorrindo, era estranho pensar que tanta gente morreu querendo sair daquele lugar e hoje em dia haviam pessoas que sentiam prazer em estar ali.

- Obrigado Dave, acho que já vamos. – Disse Charlie.

- Tem certeza?

- Sim – Disse Jennifer. – Até mais.

Então os dois saíram daquele edifício abandonado, Charlie nunca ligou para Dave e ele também nunca ligou para Charlie. O universo tem desses momentos únicos. Algumas vidas se entrelaçam apenas por alguns momentos antes de se separarem para sempre.

- Você não achou aquele cara meio – Ela procurou as palavras certas – Estranho?

- De certa forma, somos todos estranhos de alguma forma. – Respondeu Charlie.

Charlie não encontrou o que procurava. Os dois almoçaram em um restaurante vermelho com branco chamado "Marie". Foram bem recebidos e a comida era boa, visitaram o museu do louvre e passearam pelas ruas de paris sem um rumo certo, Charlie olhava as ruas quase vazias e permanecia quase todo o tempo calado.

- Tu parece um velho as vezes – disse Jennifer.

- Eu sei – ele deu um sorriso torto.

- Eu gosto – disse ela.

- Não gosta. Para de bobagem.

- Você tá assim porque não encontrou nada, eu sei, mas tudo bem. Tu tem que aproveitar mais o momento e parar de arrastar tua mente para o passado e para o futuro.

- Desculpa – disse ele.

- Não se desculpe – disse ela. – Faça alguma coisa.

            Charlie então parou de andar, olhou bem nos olhos da Jennifer, seu cabelo laranja balançava com o vento e ela sorria de um jeito fofo e provocador ao mesmo tempo.

- O que você quer que eu faça? – perguntou ele erguendo os braços.

- Vejamos – ela levou o indicador a ponta do lábio. Um gesto que Charlie adorava. – Eu te desafio a fazer uma coisa estúpida.

- Uma coisa estúpida? – perguntou ele.

- Exatamente – ela riu. – A primeira coisa que você pensar, aliás, não pense, só faça.

Charlie olhou para os lados, não podia resistir a um desafio. Os olhos dela brilhavam e o sorriso continuava lá, ela não acreditava que ele faria algo idiota, aliás, nem ele mesmo acreditava. Mas ele faria, olhou para o chão e perto do seu pé direito havia uma pedra quase do tamanho de seu punho fechado. Charlie pegou essa pedra e sem pensar jogou em qualquer direção. A pedra atravessou a vidraça de uma loja e acertou uma manequim vestindo uma blusa vermelha, Charlie ficou imóvel, quando olhou para onde Jennifer estava viu que ela já havia saído correndo. Demorou mais dois segundos até ele perceber que deveria sair correndo também, ele se pôs a correr atrás de Jennifer. Estava atrás dela mas podia ouvir ela gargalhar.

- Eu – ela ria. – Não – ria mais. – Acredito – morria de rir.

- Você duvidou – dizia Charlie ainda correndo atrás dela.

Jennifer correu mais uma quadra antes de entrar em uma pequena rua e se encostar na parede com a respiração ofegante. Ela ainda não conseguia parar de rir e foi escorrendo na parede até cair sentada no chão.

- Por que tu fez aquilo? – perguntou ela com um sorriso gigante.

- Uma coisa estúpida – ele estava sério. – Foi o que você disse.

- Tem razão, você ganhou essa – ela sorriu. – Vem, vamos embora antes que você seja preso.

- Certo – ele riu.

Os dois passearam pela cidade sem fazer nada de especial até anoitecer. Charlie olhava os lugares e Jennifer tirava fotos de casas, hidrantes e placas. Foram caminhando até a torre Eiffel que brilhava como um milhão de diamantes em direção ao céu naquela noite estrelada.

- Não é meio clichê? – Perguntou Jennifer. – Estar aqui, sentada na cama perto da torre Eiffel a noite, como turistas.

- Mas somos turistas – disse Charlie com um sorriso.

- Eu sei – ela riu. – Eu era pra ser uma garota diferente. Por que eu gosto de esta aqui, fazendo isso? Eu deveria estar visitando as catacumbas de paris e roubando crânios, esse é meu negócio – Dizia ela rindo.

- É – disse Charlie. – Parece bem mais a sua cara.

- Mas as vezes eu gosto sabe – ela soltou seu corpo pra trás e deitou-se na grama. - As vezes eu gosto do comum, do clichê. Gosto daqueles filmes que a gente sabe o final, gosto daquelas musicas de três acordes, eu gosto da tempestade, mas também sei apreciar a calmaria.

- Eu sei – disse ele. – Mas eu sou meio viciado na calmaria, acabo não conseguindo lidar com a tempestade.

- A tempestade vem sem pedir opinião. Você pode velejar ou deixar seu navio afundar.

- Acho que estou afundando – riu Charlie.

- Você que pensa – ela riu. – Está navegando feito um verdadeiro marinheiro – seu sorriso poderia convencer Charlie de qualquer coisa.

- As vezes você parece mágica – disse ele.

- Bruxaria – ela disse com aquele sorriso. – Esse é meu segredo.

Os dois riram juntos, Jennifer abriu uma garrafa de refrigerante, ofereceu a Charlie com um gesto, que recusou pegando um cigarro do bolso e colocando na boca.

- Acho que você devia parar de fumar – disse ela.

- Mas tu fuma. – Disse ele.

- Faça o que eu digo, não o que eu faço – ela disse se levantando. – Vamos até o topo!

- Sério? – Perguntou Charlie.

- Vamos fazer alguma coisa idiota lá.

- Chega de coisas idiotas por hoje – disse Charlie.

- Só mais uma.

Os dois subiram pelas escadas, Jennifer estava animada e sorrindo, puxava Charlie pelo pulso e ele ia quase forçado.

- Uma dose de ânimo nesse corpo, homem! – Disse ela.

            Os dois chegaram ao topo, Charlie respirando rapidamente para tentar suprir o ar que seus pulmões pediam, Jennifer estava relaxada.

- Eu adoro lugares altos – disse ela. – Fazem eu me sentir no topo do mundo.

- Eu gosto de lugares no chão mesmo – disse ele.

- Se eu um dia eu for me matar, vai ser aqui – disse ela.

- Só não faz isso agora, eles iam me obrigar a limpar.

- Cala a boca! – ela riu e abriu sua bolsa. Pegou algo de dentro.

- Pensa bem no que tu vai fazer – Disse Charlie. O objeto na mão de Jennifer era um caderno vermelho, bem, na verdade mesmo era um diário. Tinha a inscrição "J. L. Saint" na capa escrita com um canetão preto. A letra de forma lembrava a de uma criança, porém não deixava de ser bonita.

- É meu diário – ela disse.

- Notei.

- A Jennifer vai cometer suicídio hoje – disse ela. Assim mesmo, na terceira pessoa. Jennifer olhou para o abismo depois da mureta de proteção, abriu seu diário e folheou do inicio ao fim, sem ler, apenas passando de página em pagina rapidamente. Dando uma última olhada. – Me ajuda? – perguntou ela. Antes que Charlie pudesse dizer qualquer coisa ela começou a puxar as folhas rabiscadas e desenhadas e joga-las ao vento, que levavam para o sentido contrário de onde ela apontava.

- Tá certo então. – Charlie começou a puxar as folhas junto com Jennifer, sem olhar para as folhas, não queria parecer bisbilhoteiro, apenas puxava com força e as soltava no ar.

- Adeus, velha Jennifer – sussurrou ela ao vento. – Que a brisa te leve pra longe.

Eles pegaram um taxi para o hotel, Jennifer até queria ir de pé, porém Charlie fez aquela careta que ela conhecia a tão pouco tempo mas já entendia bem: Não estou a fim.

O saguão, com exceção da recepcionista estava vazio. Subiram pelas escadas e foram para o quarto. Jennifer como de costume não demorou muito para pegar no sono, já Charlie ficou acordado, não por opção, claro, mas por realmente não conseguir dormir. Ele ficou deitado um tempo no escuro, depois disso se levantou, tomou café, abriu a janela, fumou um cigarro, leu novamente o relado de Richard Black e fumou outro cigarro. A noite estava tranquila e as estrelas haviam aparecido, Charlie começou a pesquisar na internet do celular por qualquer coisa relacionada a sociedade do tempo: Nada de novo.

Quando finalmente conseguiu dormir já passava das três da manhã. Teve uma noite curta, não sonhou com nada, foi uma daquelas noites que parece mais que você piscou o olho e o tempo passou. Quando acordou Jennifer já estava de pé, vestia um roupão e uma tolha no cabelo, segurava uma xicara de café na mão esquerda e um jornal na direita.

- Olha que fofo, eles deixam o jornal na porta – ela sorriu. – Se eu soubesse francês...

- Que horas são? – perguntou Charlie.

- Quase meio dia – disse ela.

- Droga, eu devia ter acordado mais cedo.

- Relaxa – disse ela – Nem temos nada pra fazer hoje mesmo.

- Ah é – Charlie coçou a cabeça. – O que você quer fazer hoje? É nosso último dia em paris – disse Charlie. – E não diga uma coisa estúpida – Jennifer olhou pra ele e levantou a sobrancelha direita junto com um sorriso no canto da boca.

- Na verdade eu não sei – disse ela. Charlie respirou aliviado.

- Pensei que iria querer botar fogo em algum lugar ou coisa assim.

- Não é má ideia – disse ela com um sorriso.

Os dois saíram do hotel e andaram pelas ruas, assim como no dia anterior. Jennifer tentou convencer Charlie a sair da sua zona de conforto mais uma vez e fazer alguma outra coisa estúpida, mas dessa vez não funcionou. Os dois andaram até encontrar um barzinho e lá comeram batata frita e refrigerante.

- Eu quero ir na casa do Alexander Dupret. O escritor preferido de meu pai – disse ele. – Tem uma história interessante lá.

Eles pegaram o taxi até a mansão dos anjos. Agora era um museu, tinha um enorme muro de pedra e um portão de ferro que estava aberto, eles desceram do taxi e andaram até o portão. Do outro lado havia um jardim florido belo e bem cuidado e um grande carvalho carregava um balanço em seu maior galho. Eles andaram pelo caminho de pedras até a varanda quando um homem surgiu abrindo a grande porta dupla. Era jovem e tinha a barba por fazer.

- Me desculpe – disse o homem. – Estamos fechados hoje.

- Poxa – disse Jennifer. – Meu amigo aqui queria tanto dar uma olhadinha, Dupret era o escritor preferido do seu pai. – O homem abriu um sorriso, Jennifer sabia mesmo como convencer alguém a fazer alguma coisa.

- Bem – disse ele. – Acho que vocês podem dar uma olhada – Ele saiu da frente da porta.

Charlie seguiu calado, atravessou a porta em direção a grande sala. Era um cômodo enorme que tinha uma escada gigante que se dividia em duas. O tapete roxo e preto decorava todo o lugar, havia um lustre gigante acima deles, do seu lado esquerdo junto a lareira haviam não um, mas dois pianos de cauda.

- O lugar era do meu tio-avô – explicou o homem. – Aliás, sou Fried Fountaine.

- É lindo – disse Charlie.

            - É um lugar bonito sim, mas essas paredes já viram mais sangue do que conseguiriam aguentar. Depois que Gerard, irmão do meu avô morreu, ele até pensou em vende-la ou destruí-la, mas não conseguiria. Eram tantas memórias e além disso Gerard amava esse lugar, como poderia destruí-lo? Meu pai transformou em um museu, para os fãs de Alexander Dupret ou fãs de uma boa história de terror.

Charlie passou o que sobrava da tarde vagando pelas bibliotecas de Dupret e escreveu uma mensagem em um livro de visitas.

"Pai, você amaria isso aqui."

Eles tomaram o trem no final da tarde de volta para Londres, conforme o trem começava a andar eles conseguiam sentir as luzes da cidade do amor ficando para trás.

- Foi ótimo – disse Jennifer. – Obrigada por me trazer aqui.

- Podemos voltar – disse Charlie, porém eles nunca mais voltariam.

O trem parou em Londres duas horas e meia depois. A noite garoava e a estação não estava lotada, as pessoas conversavam em voz baixa e era possível ouvir as gotas de chuva caindo no chão. Charlie gostava de estar em sua cidade novamente, mas algo dentro dele as vezes sussurrava que ele não pertencia a aquele lugar, algo dizia que ele já não tinha mais um lar.

- Vamos para minha casa – Disse Jennifer. – Você nunca foi.

Eles pegaram o taxi em direção a rua West River, a casa de Jennifer era consideravelmente grande. Tinha uma cerca branca na frente e a parede era feita com tijolos de pedra, haviam duas janelas no primeiro e duas janelas no segundo andar, ambas assim como a porta, brancas.

- Sua casa é bonita. – Charlie disse.

- Obrigada – ela sorriu. – Minha tia-avó deixou para mim, tento cuidar como ela gostaria.

Jennifer abriu a porta e eles entraram na sala de estar quente e acolhedora. Jennifer apertou o interruptor e a luz se acendeu, havia uma televisão dos anos noventa e três sofás, um pequeno lustre com pingentes transparentes e um tapete com uma estampa marrom e preta. As cortinas brancas vinham do teto até o chão cobrindo as janelas e na mesa de centro descansava um maço de cigarros e um controle remoto.

- Sinta-se em casa – disse Jennifer.

- Obrigado – disse ele, sentando-se no sofá.

- Vou fazer um café pra nós, o que acha? – perguntou ela.

- Ótimo.

- Ainda tem um bolo na geladeira – disse ela. - Só um minuto que eu vou lá em cima trocar de roupa, se quiser pegar algo na geladeira não precisa ter vergonha – ela sorriu e subiu as escadas.

Charlie olhou ao seu redor, a casa era aconchegante porém lembrava a casa de uma velhinha, até parecia a casa onde morou com seu pai, que era de sua vó. Tinha aquele jeitinho especial e organizado que só as vós conseguem fazer. Jennifer tinha feito um bom trabalho em manter a casa daquele jeito.

O telefone de Charlie tocou: Numero não identificado.

- Alo? – disse Charlie.

- Você precisa sair dai – disse a voz. Charlie reconheceu aquela voz, era a mesma voz que havia ligado para ele antes de ir à Paris, a mesma voz do homem mascarado que assaltava o banco.

- Escuta, quem é você? – Perguntou Charlie.

- Precisa ficar longe dela, você não quer que ela se torne um alvo – disse a voz.

- Me fala, você é o homem de mascara no banco, certo? É você?

- Estou tentando te alertar, a escolha é sua – o homem desligou, a linha virou um silêncio e a conversa um monologo.

- Alo? – dizia Charlie – Alo? Tá ai ainda?

Ninguém respondeu, Charlie olhou o celular mas nenhum numero apareceu nas ligações recentes. Um frio correu pela sua espinha, será que era o mesmo homem que de Paris, o homem de preto? Claro que era, agora tudo se encaixava, mas qual o motivo de ele estar seguindo Charlie?

"Você não quer que ela se torne um alvo."

Ele estava tentando alerta-lo, talvez ele quisesse realmente ajudar, talvez houvesse outra pessoa, ou pessoas, no plural, atrás dele.

- Puta merda – Charlie falou para si mesmo, precisou se levantar e começou a andar de um lado para o outro na sala. Estava nervoso e não sabia o que fazer, será que deveria ir embora, talvez devesse ficar longe de Jennifer por um tempo, só por precaução.

Ele não conseguiria. ela estava descendo as escadas, vestia uma calça de moletom cinza larga e um sutiã cor-de-laranja combinando com seu cabelo. Sua barriga estava a mostra e ela tinha um sorriso em seus lábios.

- Está com fome? – perguntou ela.

- Não, perdi a fome – respondeu ele, voltando a sentar no sofá.

- Vou fazer café pra mim, você come se quiser – Debochou ela.

Uma sombra pulou em cima de Charlie e ele soltou um pequeno berro agudo, ela correu até a sala e soltou uma gargalhada.

- Vejo que conheceu a Ellie – disse Jennifer se abaixando e chamando a gatinha preta que veio a seu encontro. – Quem é a bonitinha da mamãe?

- Desculpa – ele riu. – É que foi inesperado.

- Sei – ela riu.

Jennifer voltou para cozinha e Charlie continuou olhando as paredes avermelhadas sem ter certeza do que faria. A gata pulou no sofá e se encostou em sua perna, ele fez cafuné na Ellie porém isso não fez com que ele ficasse menos nervoso. Ele não conseguia ver pela janela, mas podia ouvir o barulho da chuva batendo no vidro, isso o acalmou um pouco de alguma forma. A chuva sempre teve esse poder no Charlie, ele pegou o maço de cigarros que estava em cima da mesa.

- Posso acender um cigarro aqui dentro? – perguntou.

- Pode, mas cuidado pra não deixar cinza cair no tapete – gritou Jennifer da cozinha, Charlie acendeu um cigarro e esticou as pernas. O cigarro deveria de alguma forma acalma-lo, mas nunca o fazia, ele nunca entendeu esses falsos sentimentos que o cigarro parece dar, mas nunca realmente acontece. Tudo na vida dele era uma mentira e agora ele era incapaz de mentir.

- Uma xicara pra você – Jennifer trazia uma bandeja com duas xicaras de café e dois pedaços de bolo. – E uma pra mim – ela sorriu.

Charlie estendeu a mão e tocou Jennifer, as memórias dos últimos momentos e da ligação passaram direto para ela, a dor de cabeça apareceu novamente.

- Nossa – disse Jennifer. – Fica longe desse cara.

- Parece que ele tá nos seguindo. – Concluiu Charlie.

- Ele é perigoso, ele está mentindo sobre alguma coisa. – Ela disse.

- Eu sei.

- Não vamos falar disso agora – ela sorriu. – Vamos focar em coisas boas.

Ela tirou a xicara da bandeja e colocou na frente de Charlie, junto com sua fatia de bolo. Era de chocolate com morango, o preferido dele, por mais que ele estivesse animado também estava preocupado. Apagou o cigarro no próprio braço e começou a comer.

Sempre achou estranho comer depois de fumar, o gosto de cinza ainda está na boca e você come algo que se mistura com aquilo, parece que você está comendo algo carbonizado. Mas ele não se importou. Jennifer sorria, ele sorriu pra ela também, mas por dentro ele era uma tempestade, mal sabia ele que ainda estava para conhecer a tempestade.

- Eu sei que você tá preocupado – disse Jennifer – Mas tenta relaxar, sério, ficar pensando nessas coisas não vai levar a nada.

- É verdade – Disse ele. – Você tá certa.

Eles comeram e logo depois foram para o quarto de Jennifer, se deitaram na cama e viram um filme juntos. Estava passando "Peixe Grande e suas histórias Maravilhosas". Jennifer dormiu antes do filme acabar, não que Charlie não esperasse isso, mas ele realmente queria que ela visse o final daquele filme, era um de seus preferidos. Como de costume Charlie estava sem sono, ele saiu da cama com cuidado para não acordar Jennifer e a gata Ellie que dormia aos seus pés. Abriu a porta devagar e andou no estreito corredor até a escada de madeira que rangia a cada degrau. Na sala pegou o maço de cigarros que havia ficado na mesa de centro, a casa era silenciosa e escura, o único som que Charlie ouvia era o dos próprios passos e de um relógio de pendulo. Lá fora a chuva batia com leveza no vidro, ele subiu as escadas novamente tomando todo o cuidado para não fazer barulho. Seus olhos já estavam acostumados com a penumbra do lugar. Charlie acreditava ser uma criatura da noite, acreditava que seu lugar era a escuridão. Provavelmente tinha nascido no meio da madrugada – nunca perguntou a mãe. – Charlie um dia lera um texto de um homem com sobrenome Hauzt, não conseguia lembrar o primeiro nome naquele momento, mas o texto falava sobre a relação com a hora do nosso nascimento com nossos hábitos diários com a vida. Dizia que aqueles que nasciam durante a manhã tinham mais facilidade com horários marcados e prazos apertados. Aqueles que nasciam durante a tarde seriam aquelas pessoas que sempre chegavam cinco minutos atrasados, perdiam o ônibus que acabou de passar e esqueciam suas comida no fogo. Os que nasciam a noite eram as pessoas precavidas, preferiam chegar antes para não se atrasar, o tipo de pessoa que realmente lê os manuais de instrução (Quem lê manuais de instrução?). Agora os que nasciam de madrugada, bem, esse era o tipo de pessoa que nunca teria horário pra nada, o tipo de pessoa que almoça as três da tarde e acha que a melhor hora para tomar banho é as três da manhã. O tipo de pessoa que não dorme durante dois dias e depois dorme um dia inteiro.

Por causa desse texto Charlie achava que havia nascido no meio da madrugada. Mas pra falar a verdade ele nem acreditava realmente nessas coisas, ele nunca acreditou em signos do zodíaco nem mesmo em figuras como papai noel ou coelhinho da pascoa. Mesmo quando era criança, Charlie sempre achou extremamente fácil compreender as outras pessoas, porém nunca conseguiu compreender a si próprio.

            Ele entrou no quarto com cuidado para a porta não fazer muito barulho. Passou pela cama e foi até a porta da sacada, era uma porta de correr, ele forçou porém a porta não abriu, ele girou a chave que estava na fechadura e ela deu um estalo, então ele forçou a porta novamente e ela cedeu. Ele saiu para rua, a varanda era coberta, a chuva caia e uma cadeira de balanço descansava ali. Charlie sentou-se na cadeira e puxou o cigarro do bolso, acendeu novamente o cigarro que havia apagado mais cedo. Olhou para o céu, não haviam estrelas, somente nuvens carregadas que vazavam sem parar. Ele esticou as pernas e cruzou os braços, o cigarro ficou na boca e ele sentiu um vento gelado passando pelo seu corpo. Aquilo sim era relaxante, não importa o que qualquer pessoa dissesse. Aquilo seria a coisa mais relaxante do mundo até o fim de sua vida, ele encarou a rua vazia, as luzes dos postes refletiam no chão molhado, ele pegou o celular e chegou a hora: duas e quinze da manhã.

Passou pela sua cabeça que todos os últimos acontecimentos de sua vida não passavam de um mero delírio. Talvez ele fosse apenas um louco andando sozinho e falando consigo mesmo, talvez o numero de quem ligou não aparecesse no celular porque simplesmente essa pessoa não existia. Talvez a garota de cabelos cor-de-fogo que dormia na cama que ele podia ver pela porta da varanda entreaberta fosse apenas obra de sua fértil imaginação. Talvez todas as pessoas que ele conheceu nos últimos dias fossem apenas outras versões de si mesmo. Uma mente quebrada e dividida em mil pedaços como uma janela de vidro que se parte ao se chocar com uma pedra, talvez a razão de ele ler o relato de Richard Black fosse que ele mesmo fosse o tal homem, preso em um sanatório sem noção de que época está. Enjaulado em um quarto com uma só janela e uma cama mais dura que uma pedra. Talvez nesse momento estivesse olhando o teto com um sorriso no rosto, porque isso que os loucos fazem, os loucos sorriem em seus piores dias. Mas Charlie não era de sorrir, era de se prender e esconder seus sentimentos até onde conseguia. Era irônico que alguém que sempre fez de tudo para deixar seus maiores sentimentos escondidos no portão de sua alma fosse obrigado a compartilha-los com qualquer um que ousasse toca-lo. Era irônico e cômico ele estar em uma situação sem saída sem nenhum motivo aparente. Charlie soltou uma gargalhada na sacada em direção a solidão e vazio da noite chuvosa, um pássaro o respondeu de longe com um grito, ele não sabia o que aquele grito significava, podia ser "Eu te entendo" ou "Você realmente está louco" ou talvez fosse "Cala essa boca, eu quero dormir", de fato ele nunca saberia.

- Charlie? – perguntou a voz cansada na soleira da porta. – Você está bem?

- Há grandes chances de eu estar louco – disse ele.

- Sabe – ela fez uma pausa, como se ainda não estivesse totalmente acordada ela procurava palavras que não estavam disponíveis em seu acervo mental naquele momento
– Você é a pessoa mais pessimista que eu conheci na vida.

- Desculpe por isso – disse ele.

- Não se desculpe. Não peça desculpa por ser quem você é – ela sorriu. – O mundo tem que pedir desculpas a você – Charlie não entendeu, mas sorriu.

- Acho que você é mais louca que eu – disse Charlie.

- Eu sou mais louca que todo mundo – disse ela erguendo o braço e estendendo a mão para que ele o pegasse, e ele o fez.

Charlie sentiu os dedos quentes de Jennifer entrelaçando sua mão e nesse momento teve certeza de que não era louco. De que não estava em um quarto dentro de um hospício, ele estava ali, naquele exato momento fazendo exatamente aquilo ali. Por um momento inteiro havia deixado a paranoia tomar conta de sua mente e isso era um perigo, precisava manter o foco e seguir seu caminho com os pés no chão, ou acabaria se perdendo.

- Não acredito que você realmente conseguiu pensar que eu não existia – disse Jennifer, agora tendo acesso a seus últimos pensamentos. – Vem, vamos pra cama.

Ela puxou seu corpo e Charlie a seguiu. Ela se deitou na cama sem soltar a mão de Charlie. Depois do frio gelado da rua, as cobertas e o calor humano de Jennifer foram relaxantes em um nível que não era possível descrever em palavras. Naquele momento seus lábios encontraram os dela, sua pele tocou a pele pálida de Jennifer e os dois se conectaram de uma forma que, naquele momento, com aqueles toques suaves e a ponte de pensamentos que ia de um para o outro que os dois se tornaram um só. Os dois não se tornaram uma pessoa, mas se tornaram um momento que ficaria gravado nas suas memórias para sempre. Para ela então, ficaria gravado duas vezes, uma vez pelos seus próprios olhos e outra pelos olhos dele. A chuva batia no vidro da porta dupla deslizante e algumas gotas eram levadas pelo vento e chegavam a adentrar o quarto pela porta entreaberta, algumas delas ousavam ir ainda mais longe e tocavam os corpos nus dos dois entre o lençol branco e cobertor cor-de-rosa.

Se ele tivesse o poder de congelar o tempo ou qualquer momento, teria feito naquela hora. Teria parado ali e naquele lugar ficaria usufruindo do mais puro prazer inocente, o amor leve e sutil, a paixão que não pede nada em troca além de mais paixão, porém não funciona desta maneira, nunca funcionou e nem nunca funcionará. Se Charlie havia aprendido uma coisa na vida era que tudo acaba, não existe frase mais verdadeira que essa. Não existe frase mais relaxante e também não existe frase que cause mais medo: Tudo acaba.

Tudo que é ruim nesse mundo um dia irá acabar. Todos os momentos de dificuldade vão passar, todas as lágrimas um dia vão secar e o sol vai nascer novamente pra iluminar os céus e trazer luz ao mundo. Mas esse sol também um dia irá se acabar, as coisas boas não são isentas da poderosa lei do fim de tudo, porque quando tudo acaba, é porque todas as coisas que existem um dia acabarão. E até mesmo as que um dia virão a existir, até mesmo o mais belo e prazeroso momento, o mais tranquilo sono de um bebê, o mais puro amor e o mais inocente primeiro beijo de um garoto na quinta série, até nós acabaremos por um dia acabar, eu, tu, ele, nós, vós, eles e elas e todos que um dia virão a esse mundo habitar.

- Eu te amo, Charlie. – Sussurrou Jennifer no ouvido direito dele, um leve arrepio correu seu corpo.

- Eu também te amo.

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