Com outros olhos (degustação)

By EscritThatiMachado

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"Com outros olhos" é um livro independente, disponível em formato digital (Amazon) e impresso (nemteconto.org... More

ATO II - O pesadelo de Julieta Capuleto

ATO I - Minha velha nova vida

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By EscritThatiMachado


Mais uma manhã de domingo. Não havia nada de especial nos domingos. Exceto naquele. Havia uma agitação fervorosa dentro de mim, impedindo-me de ficar na cama até mais tarde. Eu queria levantar e movimentar o corpo; fazer coisas. No dia seguinte eu daria um grande passo e eu estava apavorada! Eu havia decidido dar um passo, que muitos julgavam ser maior que as minhas pernas. Eu ouvi dos médicos e também dos meus pais que eu poderia fazer o que quisesse, mas que precisava começar a aceitar minha recente condição. Bom, eu aceitava minha recente condição, mas havia escolhido uma forma diferente de lidar com ela. Eu não pretendo atrair a atenção de ninguém por pena. Pretendo atrair atenção pelo meu trabalho. É demais alguém querer isso?

Estiquei o braço direito para encontrar Med na cabeceira da cama. Ele era um excelente companheiro, eu já havia lhe explicado isso um bocado de vezes. Apesar de se tratar de um objeto, eu acreditava que Med tinha sentimentos, e eu os respeitava. Ele era muito bom para mim... Sempre me ajudando nos meus novos passos inseguros e temerosos. Eu esperava que ele tivesse compreendido que eu não o esconderia por vergonha... Era apenas uma necessidade pessoal de ser reconhecida pelo meu trabalho e por nada mais.

− Você revelaria a minha condição em um instante, Med – expliquei-o há alguns dias.

Com meu fiel companheiro no braço direito, segui para fora do quarto, em direção à porta da frente. Duas batidas e logo pude ouvir a porta se abrindo. Abri um sorriso e posso afirmar com segurança que ele me sorriu de volta.

− Ansiosa, eu imagino – arriscou certeiramente.

− Muito – confirmei animada. – Podemos treinar mais um pouco? Ainda estou insegura sem o Med.

− É claro que sim. Podemos começar agora mesmo.

Assim que senti o braço do Leo se encostar ao meu, agarrei-o como se fosse minha tábua de salvação. E bem, talvez fosse. Eu não tinha palavras para agradecer tudo que ele estava fazendo por mim. Deixei que ele tirasse Med da minha mão direita e então respirei fundo. Como estávamos em casa, tudo era um pouco mais fácil, afinal, eu me lembrava perfeitamente de cada centímetro daquele quadrado de dois andares que chamamos de lar. Não foi difícil descer as escadas. Onze degraus e eu já estava na sala. Eu sabia que a dificuldade aumentaria em um ambiente novo e desconhecido, e era exatamente isso que andava me deixando ansiosa.

Já na sala, viramos à esquerda e então finalmente chegamos à cozinha, onde o piso era frio e não acalentava meus pés como o carpete do resto da casa. Senti o cheiro das panquecas e respirei fundo para reconhecer o outro cheiro que por ali pairava. Café, percebi rapidamente. Dei dez passos antes de sentir o metal frio da cadeira e soltar o braço de Leo.

Nossos pais nos saudaram com um "bom dia" murmurado. Com certeza eles estavam engajados demais em suas atividades. Eu ouvia o farfalhar das folhas de jornal do meu pai. Ouvia também os movimentos hábeis de minha mãe enquanto preparava suas incomparáveis panquecas. Senti um calorzinho se aproximando, e sabia que Leo havia posto a xícara de café fumegante bem à minha frente. Agradeci-lhe.

O café-da-manhã em família fora agradável... Algo que apenas um domingo podia proporcionar. Minha mãe parecia ainda inconformada com a ideia de eu não usar Med nos ensaios da companhia de teatro. Quando eu reclamava por seu zelo excessivo, ela retrucava dizendo que esse era o papel de uma mãe, uma verdadeira mãe. Papai havia desistido de gastar saliva com essa discussão.

Leo abriu a porta do carro para mim. Eu já conseguia entrar sem precisar tatear nada. Aquilo era um avanço e tanto. Colocar o cinto de segurança havia se tornado uma tarefa fácil também. Quando ele ligou o som e uma música do Nirvana começou a tocar, eu já me sentia mais relaxada. A imensa escuridão costumava me assustar, pelo menos nos primeiros meses após o acidente. Agora eu já estava mais acostumada a ela... O escuro não era algo ruim... Era algo libertador. Havia tantos cheiros, sons e nuances que só agora eu percebia. A visão é mais fácil, é claro que sim, mas ela faz com que pequenas coisas incríveis pareçam banais... Será que isso faz algum sentido?

− Trezentos e sessenta e cinco... – Leo murmurou quando finalmente reduzia a velocidade. Eu não fazia ideia de onde estávamos, com certeza exploraríamos um lugar inédito. Dessa forma eu e Leo poderíamos treinar nossa sincronia e confiança mútuas.

− Trezentos e sessenta e cinco dias na escuridão... – Eu sabia que hoje completava um ano desde o trágico acidente com meu ex-namorado, Lucas. Espantou-me o fato de Leo também o saber.

Do lado de fora do carro, Leo e eu caminhávamos de braços dados, como um casal. Muitas pessoas achavam que éramos um casal, na verdade. No começo eu me preocupava em explicar que éramos apenas irmãos, atualmente eu não me dava tanto ao trabalho. Tudo bem se achassem que éramos namorados... Talvez seja realmente difícil acreditar que dois irmãos possam ser tão próximos. Nós sempre fomos próximos, desde crianças. Leo é apenas dois anos mais velho que eu, e sempre foi muito protetor em relação a mim. Depois do acidente seu instinto protetor nos aproximou ainda mais. E quando eu contei a ele que queria entrar na companhia de teatro Raoul sem usar o Med, Leo prontamente se ofereceu para ser meus olhos. Desde então havíamos adotado uma sincronia sem igual.

− Pequeno degrau a dez metros – Leo sussurrou ao meu ouvido. Levantei um pé. Depois o outro. Não foi difícil. – Pare – ele murmurou de repente. No início, ao ouvir a palavra "pare" eu freava meu corpo de forma brusca, e era óbvio que isso entregava que havia algo de errado. Agora, no entanto, eu parava de forma mais sutil e confiante. Eu sentia o corpo de Leo parar ao meu lado e acompanhava seus movimentos. – Um cachorro passou correndo... – explicou, em seguida.

Leo e eu jogamos bola e brincamos com algumas crianças antes de finalmente nos entregarmos a exaustão. Estávamos no maior parque ao ar livre do estado. Como era um domingo ensolarado, ele estava lotado. Sentamo-nos no gramado com dois sacos de pipoca doce. O sol era acolhedor e reconfortante. Era bom sentir a minha pele esquentar gradativamente. Em determinado momento, Leo não disse nada, mas pude sentir como seu corpo pareceu tenso de repente.

− O que foi, Leo? – perguntei, parando de comer minha pipoca.

− Nada, Lana. Não se preocupe – suas palavras diziam para eu não me preocupar, mas seu corpo dizia exatamente o contrário. Talvez suas palavras pudessem me enganar antes, mas não mais. – Dê o fora daqui – Leo esbravejou em meio aos meus pensamentos. A ausência do calor do sol batendo diretamente em meu rosto revelou que havia alguém parado diante de mim. Pelo tom que Leo usou, eu sabia de quem se tratava.

− Não perca seu tempo, Lucas – murmurei de forma cansada.

Lucas fora o culpado pelo acidente que me tirou a visão. É claro que eu também tive a minha parcela de culpa. Naquela época eu valorizava coisas diferentes. Sabia do poder da minha beleza e usava-o como bem entendia. Meus longos cabelos castanhos, meus olhos grandes no mesmo tom, minha pele branca e meu corpo magro recebiam a merecida atenção. Apesar dos seios pequenos – que me incomodavam, mas que eu pretendia resolver com um pouco de silicone – eu era a garota que todo cara gostaria de ter ao seu lado. Linda, inteligente, popular... E Lucas era o cara que toda garota gostaria de poder exibir. Alto, forte, loiro, atleta e popular... Nós éramos o casal mais quente do ensino médio. E como todo jovem autoconfiante demais, nós achávamos que éramos imunes a acontecimentos ruins... Que nada poderia nos atingir. Foi com essa crença idiota que saímos de uma festa em direção à casa do Lucas. Ele havia bebido algumas cervejas, mas garantia que estava sóbrio. Eu não me preocupei em argumentar. Entramos no carro e seguimos em direção a casa dele, que não era muito longe de onde estávamos. Em um cruzamento tranquilo, uma van se chocou contra o carro do Lucas, atingindo o lado do carona que eu ocupava. Tudo ficou preto. Dias depois, quando acordei no hospital, tudo continuava preto. E assim permaneceu.

Foi difícil lidar com a escuridão, confesso. Eu fiquei apavorada. Eu não pretendia culpar Lucas pelo acidente. Nós dois havíamos sido culpados, no fim das contas. E daríamos um jeito. Nós dois. Juntos. Era no que eu acreditava. Lucas não foi me visitar no hospital e quando finalmente atendeu seu celular, ele me estimou melhoras e me tratou como se fôssemos meros desconhecidos. Isso acabou comigo. Deixou-me arrasada. Eu não conseguia entender tamanha crueldade. Lucas terminara comigo porque eu já não era tão cool; Porque não havia mais nada de especial em me exibir por aí. No fim das contas, tudo se resumia a aparências. Maldita aparência. Ela era o que eu tinha, e não um amor de verdade. Agora eu percebia o quanto era ridículo me preocupar com o tamanho dos meus seios.

− Eu quero saber como você está... – murmurou com sua voz insegura. – Não está com a bengala – notou. – Está recuperando sua visão?

Lucas tinha razão para estar inseguro diante de nós. Não por minha causa, eu garanto. Eu era um estorvo do qual ele já havia se livrado... E perguntar se eu estava recuperando a minha visão era apenas uma forma de avaliar se ele havia tomado a decisão certa ou não. Afinal, se eu voltasse a enxergar, retomaria minha vida pré-acidente... Popularidade, festas, bebidas, sexo... Bom, isso na cabeça do idiota do meu ex-namorado. A verdade é que mesmo que eu recuperasse a visão, jamais seria aquela Lana novamente. A minha percepção sobre absolutamente tudo havia mudado. A insegurança de Lucas ao falar comigo me fazia perceber isso ainda mais claramente. É claro que sua insegurança tinha a ver com a surra que Leo lhe dera... Eu havia insistido que não era preciso, mas confesso que fiquei muito feliz quando meu irmão mais velho acabou com ele bem em frente ao colégio. Não pude ver os detalhes, mas Leo me garantira que se tratara de uma surra inesquecível.

Sem resposta, Lucas se afastou e percebi que meu irmão estava sorrindo. Quis saber o motivo e nem precisei perguntar. Ele se aproximou de mim até que pude sentir sua respiração em meu ouvido.

− Ele ficou com uma cicatriz bem feia perto da boca... – comentou em meio a risos. Não resisti e acabei rindo também. Não que eu desejasse o mal do Lucas ou algo assim, mas ele havia saído ileso do acidente que me tirou a visão e ainda me abandonara quando eu mais precisei de apoio. Uma cicatriz feia era o mínimo que ele merecia!


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