ATO I - Minha velha nova vida

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Mais uma manhã de domingo. Não havia nada de especial nos domingos. Exceto naquele. Havia uma agitação fervorosa dentro de mim, impedindo-me de ficar na cama até mais tarde. Eu queria levantar e movimentar o corpo; fazer coisas. No dia seguinte eu daria um grande passo e eu estava apavorada! Eu havia decidido dar um passo, que muitos julgavam ser maior que as minhas pernas. Eu ouvi dos médicos e também dos meus pais que eu poderia fazer o que quisesse, mas que precisava começar a aceitar minha recente condição. Bom, eu aceitava minha recente condição, mas havia escolhido uma forma diferente de lidar com ela. Eu não pretendo atrair a atenção de ninguém por pena. Pretendo atrair atenção pelo meu trabalho. É demais alguém querer isso?

Estiquei o braço direito para encontrar Med na cabeceira da cama. Ele era um excelente companheiro, eu já havia lhe explicado isso um bocado de vezes. Apesar de se tratar de um objeto, eu acreditava que Med tinha sentimentos, e eu os respeitava. Ele era muito bom para mim... Sempre me ajudando nos meus novos passos inseguros e temerosos. Eu esperava que ele tivesse compreendido que eu não o esconderia por vergonha... Era apenas uma necessidade pessoal de ser reconhecida pelo meu trabalho e por nada mais.

− Você revelaria a minha condição em um instante, Med – expliquei-o há alguns dias.

Com meu fiel companheiro no braço direito, segui para fora do quarto, em direção à porta da frente. Duas batidas e logo pude ouvir a porta se abrindo. Abri um sorriso e posso afirmar com segurança que ele me sorriu de volta.

− Ansiosa, eu imagino – arriscou certeiramente.

− Muito – confirmei animada. – Podemos treinar mais um pouco? Ainda estou insegura sem o Med.

− É claro que sim. Podemos começar agora mesmo.

Assim que senti o braço do Leo se encostar ao meu, agarrei-o como se fosse minha tábua de salvação. E bem, talvez fosse. Eu não tinha palavras para agradecer tudo que ele estava fazendo por mim. Deixei que ele tirasse Med da minha mão direita e então respirei fundo. Como estávamos em casa, tudo era um pouco mais fácil, afinal, eu me lembrava perfeitamente de cada centímetro daquele quadrado de dois andares que chamamos de lar. Não foi difícil descer as escadas. Onze degraus e eu já estava na sala. Eu sabia que a dificuldade aumentaria em um ambiente novo e desconhecido, e era exatamente isso que andava me deixando ansiosa.

Já na sala, viramos à esquerda e então finalmente chegamos à cozinha, onde o piso era frio e não acalentava meus pés como o carpete do resto da casa. Senti o cheiro das panquecas e respirei fundo para reconhecer o outro cheiro que por ali pairava. Café, percebi rapidamente. Dei dez passos antes de sentir o metal frio da cadeira e soltar o braço de Leo.

Nossos pais nos saudaram com um "bom dia" murmurado. Com certeza eles estavam engajados demais em suas atividades. Eu ouvia o farfalhar das folhas de jornal do meu pai. Ouvia também os movimentos hábeis de minha mãe enquanto preparava suas incomparáveis panquecas. Senti um calorzinho se aproximando, e sabia que Leo havia posto a xícara de café fumegante bem à minha frente. Agradeci-lhe.

O café-da-manhã em família fora agradável... Algo que apenas um domingo podia proporcionar. Minha mãe parecia ainda inconformada com a ideia de eu não usar Med nos ensaios da companhia de teatro. Quando eu reclamava por seu zelo excessivo, ela retrucava dizendo que esse era o papel de uma mãe, uma verdadeira mãe. Papai havia desistido de gastar saliva com essa discussão.

Leo abriu a porta do carro para mim. Eu já conseguia entrar sem precisar tatear nada. Aquilo era um avanço e tanto. Colocar o cinto de segurança havia se tornado uma tarefa fácil também. Quando ele ligou o som e uma música do Nirvana começou a tocar, eu já me sentia mais relaxada. A imensa escuridão costumava me assustar, pelo menos nos primeiros meses após o acidente. Agora eu já estava mais acostumada a ela... O escuro não era algo ruim... Era algo libertador. Havia tantos cheiros, sons e nuances que só agora eu percebia. A visão é mais fácil, é claro que sim, mas ela faz com que pequenas coisas incríveis pareçam banais... Será que isso faz algum sentido?

Com outros olhos (degustação)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora