Flor da meia-noite

By ThalitaFagundes

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Dizem que quando estamos prestes a morrer, um filme da nossa vida passa na nossa cabeça. Mas não foi bem isso... More

1. Brisa de (i)realidade
2. Adina Hale?
3. Ninguém gosta de quem sabe demais
4. O que é ser um humano, afinal?
5. Visitas do passado
6. Asas. Magníficas... asas
7. Doses e algum Caído para acompanhar
8. A historia toda? Acho que não
9. Sofrimento adora companhia
10. Ligações perigosas
11. Quase uma rainha
12. Um adeus, a coroa, e o mestre
13. Barreira
14. Qual o seu tipo de psicose?
15. Anjos do FBI
16. Vamos esclarecer as coisas
17. Anjo da guarda?
18. Adina Hale
19. Um baile de máscaras é sempre um bom lugar para expor alguém
20. Não desista de mim de novo
21. O Mestre mente
22. Ache os Arcanjos. Mate Jordan Benacci
23. Marie Blake
24. Cinco minutos
25. Vamos jogar
26. A rainha do baile
27. Adina de Riverland
28. A última dança
29. A chave
30. Vingança é um prato que se come frio
31. Primeiro você sonha...
32. ... depois morre
33. Isso é magia, Allyson
34. Amor, eu so sirvo pra despedaçar o seu coração
35. Hora de voltar pra casa
36. Lar, terrivel lar
37. Não minta para um mentiroso
38. A nova ordem da esperança
39. Amor. Uma palavra cortante.
40. Pandemônio
41. Vida cega e inconsciente
42. O cadáver de Allyson Hale
43. Colcha de retalhos
44. Antes do pôr do sol
45. Eu sei o que você fez no verão passado
47. Ainda estou aqui

46. Terra Prometida

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By ThalitaFagundes

Eu não me lembrava de nada, não me lembrava de quem eu era, de onde eu tinha vindo, para onde eu estava indo. A única coisa que eu sabia, que eu sentia naquele momento era que o fogo me consumia. Fogo nas minhas pernas e nos pulmões, fogo dilacerando cada nervo e cada célula do meu corpo.

Pensei: "Então é assim que eu nasço de novo", não sabia o porquê, mas foi assim, em agonia: emergindo da escuridão e do calor sufocante. Forcei passagem por um espaço escuro e úmido de ruídos e odores estranhos.

Levantei os olhos e percebi que estava em uma floresta densa.

Corro e, quando não consigo mais correr, sigo mancando, e quando não consigo nem mais mancar, rastejo, centímetro por centímetro, cravando as unhas no solo como uma minhoca que desliza pela vegetação alta de uma selva nova e estranha.

Senti um líquido espesso debaixo dos meus braços e parei para observar o que estava vestindo. Uma calça escura, estava rasgada em diversos lugares, uma blusa de tecido leve que suspeito que antes era branca, mas agora está manchada em um tom de vermelho escuro. Sangue. Estou sangrando. O fogo vem de um ferimento nas costelas. O lugar onde fui atingida estava preto. Eu conseguia enxergar minhas veias subindo pela barriga em direção ao coração.

Ver tanto sangue, a pele arrancada, torna tudo real: este lugar novo, a vegetação densa, monstruosa por todos os lados, o que aconteceu, o que deixei para trás? O que não consigo me lembrar?

Estou com fome, desconfio que não tenho nada no estômago, e mesmo assim vomito. Tusso e cuspo alguma lama preta nas folhas que me rodeiam. Não me lembro de quem eu sou, mas me lembro de instintos de sobrevivência. Onde aprendi? Com quem aprendi?

Pense garota, pense.

Tiro a blusa, que já está destruída em alguns pontos, rasgo uma tira da barra e amarro a parte mais limpa abaixo do peito, com força, a dor que se segue quando o tecido toca o ferimento é aguda. Grito ao vazio, mas amarro com toda a força que consigo. Não sei por que, mas sinto que isso vai parar o sangramento.

Não faço ideia de onde estou, tampouco sei para onde estou indo. Meu único pensamento é seguir em frente, continuar rastejando, adentrando cada vez mais a mata, seguindo para longe das... das o que? Não consigo me lembrar. Não consigo me lembrar!

Passo a passo, luto contra espinhos, abelhas e mosquitos, afasto os galhos grossos e cheios de ramos, atravesso nuvens de pernilongos e a bruma que paira no ar. Em determinado momento chego a um rio: estou tão fraca que quase sou arrastada pela correnteza. À noite, cai uma chuva forte e gelada; fico encolhida junto às raízes de um carvalho enorme enquanto, à minha volta, animais que não enxergo gritam, chocalham e estalam na escuridão. Estou apavorada demais para dormir; se eu dormir, vou morrer.

Quando não consigo mais seguir em frente, nem sequer um centímetro, deito a cabeça no chão e espero a morte. Estou cansada demais para sentir medo. Acima de mim há escuridão, e tudo ao meu redor é escuridão, os sons da floresta são uma sinfonia que canta minha despedida deste mundo. Já estou em meu enterro. Estou sendo baixada para um espaço estreito e escuro, vejo pessoas ao meu redor, uma mulher de cabelo castanho e outras garotas e garotos, jovens, eles choram, mas não sei quem são. Não os conheço.

Ei. Ei.

Acorde.

— Ei. Acorde. Vamos, vamos.

A voz me arranca do túnel, e por um momento fico muito decepcionada quando abro os olhos e encontro outro rosto distinto e nada familiar. Não consigo pensar; o mundo está todo em pedaços. Cabelo preto, um nariz pontudo, olhos verdes intensos: peças de um quebra-cabeça que não consigo montar.

— Isso mesmo, fique comigo. Pryia, cadê a droga da água?

Alguém sustenta meu pescoço, e, de repente, a salvação. Uma sensação gelada, líquido escorrendo: água enche minha boca, minha garganta, escorre pelo meu queixo, remove a poeira, o gosto de fogo. Primeiro eu tusso, engasgo, quase choro. Depois sorvo, engulo e sugo, enquanto a mão permanece sob meu pescoço e a voz não para de sussurrar palavras de encorajamento:

— Isso mesmo. Tome o quanto precisar. Você está bem. Está tudo bem agora.

Cabelos pretos e soltos, uma tenda a meu redor: uma mulher. Não, uma garota; uma garota de boca fina e tensa, com rugas nos cantos dos olhos e mãos ásperas como o tronco de um salgueiro e grandes como cestas. Eu penso: Obrigada. Eu penso: Mãe.

— Você está segura. Está tudo bem. Você está bem.

É assim que os bebês nascem, afinal: aninhados nos braços de alguém, sugando, indefesos.

Depois disso, a febre me domina de novo. Meus momentos de vigília são poucos, e minhas impressões, desconexas. Mais mãos e mais vozes; sou erguida; um caleidoscópio de verde acima de mim e desenhos fractais no céu.

Mais tarde sinto cheiro de fogueira e uma coisa fria e úmida ser pressionada em minha pele, há fumaça e vozes sussurradas, e uma dor lancinante na lateral do corpo, depois gelo, alívio. Uma maciez deslizando pelas pernas.

No meio disso tudo tenho sonhos, não me lembro de algum dia ter sonhos, sei o que são, mas nunca tive. Lembro que alguém me disse uma vez que sonhos são a janela da alma. Também não me lembro de almas. Os sonhos são cheios de explosões e violência: sonhos de pele derretendo e esqueletos queimados até virarem fragmentos pretos.

Quase todas as vezes que acordo ela está lá, a garota de cabelo preto, me mandando beber água ou pressionando uma toalha fria em minha testa. Suas mãos cheiram a fumaça e cedro.

E por baixo de tudo, por baixo do ritmo do despertar e dormir, da febre e dos calafrios, está a palavra que ela repete sem parar, fazendo-a penetrar em meus sonhos, afastar parte da escuridão que lá existe, puxar-me quando estou me afogando: Segura. Segura. Segura. Você está segura agora.

A febre enfim cede, depois de não sei quanto tempo, e acabo recuperando a consciência, agarrando-me a essa palavra, uma viagem de volta delicada e suave, como se fosse levada por uma única onda até a praia.

Antes mesmo de abrir os olhos, ouço pratos batendo e o murmúrio de vozes, sinto o cheiro de fritura. Meu primeiro pensamento é de que, de algum jeito, estou em casa, a diferença é que não tenho casa, não tenho família.

Um nome me vem com violência, abro os olhos de súbito e tento me sentar. Jordan. Quem é Jordan? Mas meu corpo não me obedece. Só consigo erguer a cabeça; parece que estou presa sob um bloco de pedra.

A garota de cabelo preto, que deve ter me encontrado e me trazido até aqui, seja lá que lugar for este, está de pé no canto, junto a uma pia grande de pedra. Ela se vira rapidamente quando me ouve me mexendo na cama.

— Calma — Diz ela, tirando as mãos da pia.

Seus braços estão molhados até os cotovelos. Seu rosto é astuto, extremamente alerta, como o de um animal. Seus dentes são grandes, o que faz sua boca ser grande também, e consequentemente, seu sorriso. Ela cruza o aposento e se agacha ao lado da cama.

— Você passou o dia inteiro inconsciente.

— Onde estou? — Pergunto com um gemido. Minha voz está rouca, percebo que não sei como é minha voz, se realmente é assim.

— Na base não regulamentada — Responde a garota. Ela está me observando com atenção — Bem, é como nos chamam. Mas a gente chama de Abrigo.

— Não sei... — Estou tentando entender o que aconteceu depois que acordei sozinha no meio da mata — Não sei do que se trata.

Uma expressão de desconfiança, talvez, cruza rapidamente o rosto dela.

— Estamos em uma zona livre, dos Caídos e dos Arcanjos — Diz ela com cuidado, e então fica de pé e, sem dizer outra palavra, afasta-se da cama e desaparece por uma porta que leva a uma parte escura.

De algum lugar do prédio ouço vozes indistintas. Sinto uma leve pontada de medo, pergunto-me se cometi um erro ao confessar que sou frágil, pergunto-me se essas pessoas são confiáveis.

Mas não. Sejam elas quem forem, essas pessoas devem estar do meu lado; elas me salvaram, durante dias me tiveram inteiramente nas mãos.

Consigo me erguer um pouco e ficar quase sentada, então apoio a cabeça na parede de pedra atrás de mim. O aposento todo é de pedra: piso de pedra áspera, paredes de pedra com uma fina camada de mofo crescendo em algumas partes, uma pia de pedra em estilo antigo com uma torneira enferrujada que claramente não funciona há anos. Estou deitada em um leito estreito e duro, coberto com colchas velhas. É a única mobília que vejo, além de alguns baldes de metal em um canto debaixo da pia velha e de uma única cadeira de madeira. Não há janelas, nem lâmpadas, apenas dois lampiões à pilha que enchem o quarto com uma luz azulada fraca.

— Você estava quase morta quando a encontramos — Diz, sem rodeios, a garota de cabelo preto quando volta para o quarto. Ela leva nas mãos, com cuidado, uma tigela de cerâmica — Mais do que quase. Pensamos que não fosse sobreviver. Mas achei que devíamos ao menos tentar.

Ela me lança um olhar duvidoso, como se não tivesse certeza de ter valido a pena o esforço, e por um momento me vejo lembrando de uma garota, do modo como ela colocava as mãos na cintura e me examinava exatamente do mesmo jeito, preciso fechar os olhos rapidamente para impedir que aquilo tudo me inunde mais uma vez: uma vida que agora se foi.

— Obrigada — Digo.

Ela dá de ombros, mas diz com aparente sinceridade:

— Não foi nada.

Ela puxa a cadeira de madeira para perto da cama e se senta. Seu cabelo é comprido e está embaraçado acima das orelhas.

Tento me sentar ereta, mas preciso me recostar, exausta, depois de apenas alguns segundos de esforço. Sinto-me como uma marionete que ganhou vida apenas parcialmente. Sinto uma dor lancinante atrás dos olhos e, quando abaixo a cabeça, vejo que minha pele ainda está marcada com uma teia de cortes e arranhões, picadas de insetos e feridas.

A tigela está cheia de um caldo praticamente transparente, tingido de verde-claro. Ela faz menção de passá-la para mim, mas hesita.

— Você consegue segurar?

— É claro que consigo — Respondo, mais rude do que pretendia.

A tigela é mais pesada do que eu supus. Tenho dificuldade em levá-la à boca, mas acabo conseguindo. Minha garganta está arranhando como lixa, e, ao engolir o caldo, a sensação é divina; apesar de deixar um gosto estranho de musgo na boca, no final tomo tudo com avidez.

— Devagar — Diz a garota, mas não consigo parar. De repente a fome se escancara dentro de mim, negra e infinita e desmedida. Assim que o caldo acaba, fico desesperada por mais, apesar de imediatamente meu estômago começar a doer — Assim você vai ficar enjoada – Continua ela, balançando a cabeça, e pega a tigela vazia das minhas mãos.

– Tem mais? — Pergunto, rouca.

– Daqui a pouquinho.

– Por favor.

A fome é uma cobra, atacando-me a boca do estômago, consumindo-me por dentro. Ela suspira, fica de pé e desaparece para a área escura além da porta. Tenho a impressão de que as vozes que vêm do corredor estão mais altas, amplificadas. E então, abruptamente, silêncio. A garota de cabelo preto volta com uma segunda tigela de caldo. Pego-a de suas mãos, e ela se senta de novo e puxa as pernas na direção do peito, como uma criança. Seus joelhos são ossudos e marrons.

— Então novata, qual o seu nome?

— Eu não sei.

— O pessoal acha que você é a Filha da Profecia.

— Profecia? — Bebo um pouco da sopa — Que profecia? Quem são vocês?

— Há uma profecia, de que uma Nephilim nascerá para salvar todos nós.

— Nephilim? O que é um Nephilim? Vem cá, vocês são algum tipo de seita de sacrifícios? Eu juro que eu não queria incomodar, e certamente não quero ser fruto de nenhuma Profecia que...

— Interessante, você não faz ideia do que é. Bom, se o Veratrum te afetou, você só pode ser uma Nephilim, e os seus olhos... estão todos apostando sobre você no almoço.

— Veratrum? Meus olhos?

— Tá, vou te contar uma história. Eu vivo nesse acampamento há muito tempo, é um refúgio, cresci ouvindo histórias de uma guerreira chamada Adina que morava há quilômetros daqui, no castelo em Argos, ela foi morta e uma maldição a perseguiu por anos e anos, ela sempre morria aos dezoito até encontrar um corpo verdadeiramente puro e sincero, assim a maldição acabava e seríamos livres.  Vinte e cinco anos atrás conheci uma jovem com nome de Ayla, ela era órfã e acabou chegando aqui por acaso, fiquei amiga dela na hora, percebi que seus olhos tinham a magia da Adina, eram iguaizinhos aos seus, então preciso saber quantos anos tem.

— Eu não sei, eu juro, por favor, me deixe ir embora – Choramingo. Aquela mulher era louca — Espera aí... se há vinte e cinco anos atrás você a conheceu adolescente, porque parece que não mudou nada?

— Nós, Nephilins, temos essa vantagem de demorarmos a envelhecer, quanto mais perto do castelo, mais tempo demora, ele é como uma fonte infinita de vida, sabe, depois que você atinge certa idade. E os Caídos não podem se aproximar daqui, temos uma barreira mágica.

— Moça, estou em um tipo de hospício? Vocês são um povo estranho.

— Você está na Grécia, no acampamento, já disse.

— Ela acordou? — Uma menina minúscula aparece na porta, hesitante sobre a decisão de entrar, mas vem a passos leves até mim — Não sabíamos seu nome, então começamos a chama-la de Azul, sabe, por causa dos olhos. Oi, sou a Pryia.

— Eu não estou entendo nada. Não sei de profecia nenhuma, olha pra mim, sou uma garota fraca, sem memórias, sem absolutamente nada. Preciso saber exatamente onde estou, e o que estou fazendo aqui.

— Também queremos descobrir — A morena diz — Sou meio que a chefe daqui, fora o conselho, é claro, e espero que fique bem para que possamos ajudar uma à outra.

— Acho... — Mal consigo forçar as palavras a saírem; estou tentando engolir a náusea — Acho que vou...

E então me inclino na cama e vomito no balde que ela colocou ao meu lado, o corpo tomado por ondas de enjoo.

— Eu sabia que comendo daquele jeito você ia acabar vomitando — Diz a garota, balançando a cabeça. Em seguida desaparece no corredor escuro. Segundos depois, enfia a cabeça pelo vão da porta — Aliás, eu sou Ava.

— Aparentemente, sou Azul — Digo, e a palavra provoca uma nova onda de vômito.

— Azul. Eu gostei — Repete ela. Ela bate uma vez na parede com os nós dos dedos — Bem vinda ao acampamento.

Em seguida ela some, e eu fico sozinha com o balde e Pryia, que não para de me olhar e sorrir.

═══ ◖◍◗ ═══

Mais tarde; Ava reaparece, e tomo o caldo de novo. Dessa vez vou mais devagar, e consigo manter a comida no estômago. Ainda estou tão fraca que mal consigo levar a tigela à boca, então Ava me ajuda. Eu deveria estar envergonhada, mas não consigo sentir nada. A náusea desaparece e é substituída por um entorpecimento tão completo que é como afundar em água gelada.

— Muito bem — Diz Ava, em aprovação, quando tomo metade do caldo. Ela pega a tigela e desaparece de novo.

Agora que estou acordada e consciente, só quero dormir de novo. Aqui, neste mundo, não tenho nada: nem família, nem casa, nenhum lugar aonde ir. Não consigo chorar. Minhas entranhas viraram pó. Relembro aquele nome que parece se espreitar pelos cantos da minha mente.

Jordan.

Não há nada a fazer exceto me deixar levar. As horas me cercam, envolvem-me por completo.

•••

– Espera aí, você nem se lembrava do seu nome? De ninguém? Mas se lembrou da Jordan? – Hazel me interrompe jogando as mãos pra cima – Quem é Ava? Que raios de acampamento era esse? O que tudo isso tem a ver com Elise ou sei lá o quê? Por que nunca me contou?

– Calma, eu ia contar na hora certa – Suspiro e me deito na cama, encarando o teto, pensando em como continuar.

•••

Pouco depois ouço passos arrastados, e então ecos de risada e conversa. Isso pelo menos me dá alguma coisa em que me concentrar. Tento diferenciar as vozes, adivinhar quantas pessoas são, mas o máximo que consigo é identificar alguns tons graves (homens, garotos) e algumas risadinhas agudas, além de uma ocasional gargalhada. Em um momento ouço Ava exclamar "Tudo bem, tudo bem", mas na maior parte do tempo as vozes são ondas de som, tons apenas, como uma canção distante.

Fecho os olhos, respiro fundo, tento mais uma vez me forçar a descer as camadas de consciência e ser levada pelo sono.

— Muito bem, Pryia. Fora daqui. Hora de dormir.

— Ah, qual é Ava, quero ganhar essa aposta.

— Eu vou cancelar essa aposta, pode avisar para os outros, Azul não é um brinquedinho, ela é uma das garotas da profecia, agora, como eu disse, fora daqui e vá dormir.

— Não estou cansada — Diz a garota, os olhos fixos em mim. Ela pula de um pé para o outro, mas não chega a entrar no quarto — Preciso ganhar essa aposta Ava, quero o almoço do Holland.

— Nada de discussão — Replica Ava, batendo com o quadril na garota, de brincadeira, ao passar — Fora.

— Mas...

— Qual é a regra número um, Pryia? — A voz de Ava fica séria. A menina leva o polegar à boca e rói a unha.

— Obedecer Ava — Murmura ela, claramente emburrada.

Sempre obedecer Ava. E Ava diz que é hora de dormir. Agora vá.

Pryia me lança um último olhar pesaroso e então sai correndo. Ava suspira, revira os olhos e puxa a cadeira para perto da cama.

— Sinto muito — Diz ela — Todo mundo está louco para ver você.

— Quem é todo mundo? — pergunto. Minha garganta está seca. Não consegui ficar de pé e ir até a pia, preciso de água.

— Bom, todo mundo. Aqui a gente aprende a se virar — Diz Ava, com uma espécie de orgulho — Construímos coisas do nada, usando restos e lixo e construções, temos até uma horta. Você vai ver.

Olho para o novo prato em meu colo. Estou com fome, mas a palavra lixo me deixa nervosa quanto a comer. Ava deve entender o que estou pensando, porque ri.

— Não se preocupe — Diz ela — Não tem nada de nojento. É modo dizer, não temos ajuda do Castelo.

— Ahn, tudo bem.

Que raios de Castelo?

— Desculpe, é que você é tão parecida com a Ayla, menos o cabelo, o cabelo dela era castanho. Jordan adorava o cabelo dela.

— Jordan? — Quase cuspo — Conheço esse nome.

— Deve ser porque você já a encontrou nessa vida, mas não se lembra, ela é basicamente a sua alma gêmea, o amor de você atravessa gerações.

— Então Jordan é uma garota. Eu fico cada vez mais confusa.

— Eu sei, Azul, mas vamos dar um jeito, daqui a pouco Holland aparece pra checar você.

•••

— Então você já conhecia o Holland antes de vir? — Hazel franze as sobrancelhas — É o Holland da lista?

— Sim, ele foi o meu primeiro amigo de verdade no acampamento, me ajudou quando eu mais precisei. Bom, ele, Ava e Pryia, mas Ava vivia ocupada e Pryia era meio... sufocante, enfim...

•••

Quando entro no que parece ser a cozinha, a conversa é interrompida abruptamente: dezenas de olhos se viram em minha direção, e de repente me dou conta de que só estou vestindo uma camiseta grande e suja que não passa do meio da minha coxa. Há homens no aposento também, sentados lado a lado com as mulheres. Pessoas de todas as idades. É algo tão estranho e distorcido que quase me tira o fôlego. Fico petrificada. Abro a boca para falar, mas nada sai. Sinto o peso do silêncio, o calor de todos aqueles olhos.

Holland vem em meu socorro.

— Azul! Senta aqui comigo. Você deve estar com fome — Diz ele, levantando-se — Senta aqui, pirralha, vou colocar seu almoço — Sorri com o apelido, puxei a camiseta um pouco para baixo e me sentei onde ele estava antes.

Uma loira ocupava o lugar ao lado dele. A garota me olhava como se me reconhecesse de algum lugar, o que me leva a pensar que, talvez, eu e a tal da Ayla éramos realmente parecidas.

— Tudo bem, a Eve não morde — Holland sorri — Aqui a gente aprende a controlar.

•••

— Eve?! A piranha que seduziu o Apollo alguns anos atrás?

— Hazel, me deixe terminar.

•••

— Desculpe, mas você me conhece? Sabe quem eu sou? Sabe meu nome? — Pergunto quando Holland sai para buscar um prato para mim.

— Ah, não, conheci a Ayla. Bom, eu e meus irmãos morávamos aqui há alguns anos — Eve sorriu com doçura.

— E onde eles estão? São todos... vampiros?

— Eles morreram — Chego mais para frente, com uma feição preocupada, ela deve considerar um estímulo para continuar a história — Fui passar um tempo na America, sabe onde fica?

— Não tenho certeza.

— A situação dos Nephilins por lá estava meio fora de controle, meus irmãos eram dois idiotas querendo uma recompensa. Havia essa garota, o nome dela é Allyson, ela os atraiu para a floresta e fez a amiga dela, Hazel, completar o serviço. Quando cheguei, as cabeças deles estavam arrancadas.

— Meu Deus, isso é horrível — Digo. Eve suspira, e pego sua mão — Eu sinto muito.

— Tudo bem, quase conseguir me vingar uma vez, e agora sinto que estou mais perto que nunca.

Holland volta à mesa com uma tigela de plástico nas mãos, dentro há uma sopa com a aparência um pouco melhor do que a que eu vinha comendo. Sinto que todo mundo voltou a olhar para mim, mas não me importo, dispenso a colher de madeira que está ao lado e bebo tudo com avidez.

— Temos uma vencedora! — Holland grita e todo o pessoal ri com ele, batendo as mãos nas mesas. Pode parecer besteira, mas mesmo que esteja aqui há apenas duas semanas, já sinto como se fosse meu lar desde sempre.

— Muito bem — Ava diz ao se levantar — Ao trabalho — A cozinha se agita com pessoas se levantando ruidosamente dos bancos — Como está se sentindo? — Abro os olhos e a vejo de pé na minha frente, as mãos apoiadas na mesa.

Pryia ainda está sentada ali perto de mim, ela dobrou uma perna apoiada no banco e está abraçando o joelho.

— Bem melhor, obrigada — Respondo sinceramente e levanto o braço para olhar as costelas, é como se eu nunca tivesse sido atingida.

— Faz parte do que você é — Ava percebe minha careta — Do que nós somos. Pryia, procure uma calça no depósito para a Azul, ela não precisa ficar desfilando por aí seminua.

Sinto que estou ficando vermelha de novo, e por reflexo, começo a mexer na barra da camiseta, puxando-a para baixo até as coxas. Ava flagra meu movimento e ri.

— Não se preocupe, — Diz ela — não é nada que já não tenhamos visto antes. Não temos disso aqui, somos todos iguais.

Em seguida ela sobe a escada dois degraus de cada vez e some.

Holland fica de me mostrar o lugar oficialmente, então andamos lado a lado por um terreno arenoso, há algumas árvores aqui e ali, e também alguns vagões de trem antigos e marcados pelo tempo... como se diz? Enferrujados? Poucas pessoas descansam ali na frente, alguns até estão enfeitados, imagino que a maioria esteja trabalhando. Há também algumas construções que vieram abaixo, mas algumas partes se mantêm intactas, eles também a usam como abrigo. E a maior dela, feita toda de pedra, tem dois andares, é onde funciona a cozinha, o escritório, a enfermaria e coisas assim.

— Então, qual a história da Ayla? — Decido perguntar.

— Ela apareceu aqui do nada, com pouco mais de doze anos, era afoita como a Pryia, tinha perdido os pais em um acidente, todo mundo a amava, era uma espécie de luz, sabe? Mesmo sendo humana, e não Nephilim. Ava e ela... tinham uma conexão especial. Depois de uns anos veio a Jordan. Alguns dizem que a Profecia é só mais uma história de amor e guerra, mas era intenso demais, a paixão delas. No dia do aniversário dela de dezoito, ela ficou doente, ficou de cama o dia inteiro, e então, exatamente às seis e vinte e dois da noite, a hora que supomos que ela nasceu, ela simplesmente parou de respirar. Quer dizer, já sabíamos que ia acontecer, ela era uma garota da profecia, afinal, até ela sabia, viveu a vida ao máximo, e mesmo assim foi um choque.

— E Jordan? O que aconteceu com ela? — Sinto um gosto ruim na boca. Porque esse nome me parece tão familiar?

— Foi embora logo depois, o destino meio que sempre junta vocês duas, então ela deve ter sentido seu novo nascimento, Eve foi com ela, mas depois de um tempo voltou pra cá. Então nunca mais a vi, o que é estranho, pois ela deveria estar com você agora.

— Bom, eu não me lembro, de qualquer forma. É tudo sempre tão confuso assim por aqui?

— Você se acostuma — Holland ri, e me sinto infinitamente mais à vontade.

═══ ◖◍◗ ═══

Eu já estava no acampamento há três meses e minha memórias se recusavam a voltar. Eve me dava medo apesar de seus melhores esforços para ser minha amiga, e eu não podia reclamar, ela era a namorada de Holland. A boa notícia era que eu já tinha decorado o nome de todos. Eu ajudava a carregar água, cuidava dos pequenos, limpava a cozinha e ajudava Ava com os doentes.

Uma noite, abrimos uma garrafa de uma bebida alcóolica caseira que Fê tinha feito. Tinha um gosto terrível, e ela chamava de bafo de onça. Sinto um calor se espalhando na barriga quando tomo. Quando a garrafa chega às minhas mãos de novo, tomo um gole ligeiramente maior, e mais outro, e o calor se espalha para minha cabeça.

Mais tarde, estou vendo tudo fragmentado e fracionado, como uma série de fotos embaralhadas ao acaso. Holland e Eve no canto, braços entrelaçados, dançando, enquanto todos batem palmas; Pryia dormindo encolhida em um banco, depois sendo levada para o quarto, ainda dormindo, por Jesus, apelidado assim por ter um cabelo bem grande e barba. poucos aqui tem nomes de verdade, a maioria são apelidos, e me sinto especial com o meu, como se realmente fizesse parte disso. Ava de pé em um dos bancos, discursando sobre a liberdade. Ela está rindo, seu cabelo escuro como uma cortina brilhante, e então Espada a ajuda a descer: mãos morenas ao redor da cintura dela, um momento de suspensão em que ela pausa, no ar, nos braços dele. Penso em pássaros, e em sair voando.

Nunca mais quero ir embora.

Três meses e meio depois, descubro que gosto de correr, então corro, mas quando o faço é como se algo faltasse. Quase sempre olho para o lado, esperando ver alguém, mas o sorriso some.

No início eu tropeço e quase torço o tornozelo meia dúzia de vezes. É difícil acostumar com o terreno cheio de altos e baixos, mal enxergo na luz baixa e mortiça do alvorecer. Mas meus olhos melhoram, ou meus pés aprendem o caminho, e após mais um mês e algumas semanas, meu corpo se acostuma com as planícies e ângulos do chão e com a geometria de todas essas os caminhos que percorro.

Depois disso, é ir mais longe e mais rápido.

Seis meses.

Na manhã seguinte, enrolo os dedos em tecido, enfio os pés em um par de tênis gastos e vou correr de novo. Se você conseguir... só um pouco mais... só um pouco mais rápido... você vai ver, você vai ver, você vai ver.

Mas a questão é: quando estou correndo, sempre tem aquela fração de segundo em que a dor me rasga por dentro, mal consigo respirar e só vejo cor e borrões. E nessa fração de segundo, bem no ápice da dor, quando o esforço se torna demais e um branco toma conta de mim, vejo alguma coisa à minha esquerda, uma fagulha de cor — cabelos castanhos até a cintura, queimando, uma coroa de folhas —, e sei naquele momento que, se eu virar a cabeça, ela estará lá, rindo.

Jamais viro a cabeça, claro. Mas um dia vou olhar. Um dia vou olhar, ela vai estar de volta e vou lembrar de quem ela é.

E, até que isso aconteça, eu corro.

•••

— Sou eu? Eu sou a garota de cabelos castanhos? Ah Ally, eu sinto muito.

— Eu sentia sua falta até quando não deveria sentir. E nunca... nunca olhei para o lado, porque não era você, não de verdade. E eu precisava de você.

•••

— Oi Azul! — Ouço meu nome ser chamado e paro. Eve está encostada em uma árvore e mexe distraidamente no cabelo — Ou devo chama-la de Allyson? Belo teatro.

— Hey Eve! — Sorrio e então percebo. Allyson é o nome da garota que... — Espera, por que você...

— Isso mesmo, você os matou!

— Olha Eve, eu não faço ideia do que você está falando.

— Claro que não sabe, você continua patética, Allyson.

Eve parte para cima de mim. Não penso, e simplesmente fecho os olhos e levo as mãos para a frente do corpo, a fim de me defender. Instinto, penso, apenas instinto. Mas claro que não é bem isso o que acontece. Sinto um formigamento no peito e a sensação é que minhas mãos estão pegando fogo.

Quando abro os olhos de novo Eve está no mesmo lugar que estava antes, mas um pedaço da árvore estava atravessado em seu peito. Ela me encarava com olhos mortos, senti um enjoo na hora, e vomitei. Eu matei uma pessoa. Matei uma pessoa.

Não faço ideia do que aconteceu, então corro de volta para o acampamento o mais rápido que consigo, tropeçando no meio do caminho ainda em torpor. Assim que chego, percebo que tem alguma coisa errada. Uma mulher já de idade está ao lado de Ava, e a mesma tem um olhar gelado no rosto.

— Azul, fuja – Ava diz.

— Isso não vai ser necessário, a Allyson vai voltar conosco. Isso tudo aqui é uma loucura, Ava, você sabe disso. Ela tem que seguir seu destino, no castelo Dunluce. Ela passou mais tempo do que o necessário aqui.

— O que está acontecendo? Eu não sou Allyson, sou Azul.

— Meu nome é Elise – A velha diz – Sou a responsável por toda essa situação, tirei sua memória, e agora seu tempo no acampamento acabou.

Elise se aproximou de mim e colocou os dedos sobre minhas têmporas, ao passo que ondas e ondas de lembranças me invadem com violência, me causando uma dor de cabeça infernal. Não só memórias de casa, dos meus amigos e da minha família, mas de todas as vidas antes dessa, me lembro de Ayla.

— Oi Ally — Miriel surge atrás de mim e segura meus braços — Acredite, estamos fazendo o melhor pra você.

— Me solte, Miriel! Ava! Não deixe eles me levarem, não quero voltar.

— Desculpe, Azul — Ela murmura, abraça a barriga e entra para o abrigo.

Voltei para o castelo Dunluce naquela noite ainda me sentindo confusa. Não confiava mais em Miriel, confiava menos ainda em Elise. Liz passou a ser minha confidente, de novo. Nunca mais escrevi cartas para a minha família.

•••

— Mas afinal, como você foi parar lá? — Hazel agora anda em círculos.

— Ainda não me lembro direito, houve um conflito com algum grupo do submundo, Elise me levou para me treinar lá, levei uma flecha com veratrum e ela aproveitou a chance de me dar um perdido e testar como eu reagiria estando o mesmo lugar que Ayla esteve, criar raízes, para depois me torturar com mil anos de lembranças. Então me ensinaram a lutar, me transformaram em uma arma, em uma princesa de gelo, me deixaram igualzinha à Adina. E agora que estou desviando do caminho com David, Elise apareceu de novo.

— Bruxa idiota. E Miriel?

— Ninguém sabia, achavam que eu estava perdida, então Elise contou sobre seu plano depois de um tempo, quando ele tentou mandar um grupo de buscas. Miriel a contrariou e Elise aceitou, mas depois o convenceu de novo em me manter presa por um tempo, para me acostumar com as vozes quando voltei. Isso nunca aconteceu, claramente.

— Holland?

— Foi me visitar em Dunluce depois de uns dias, entendo que ele precisasse de um tempo, mas ele me perdoou e me pediu para encontra-lo aqui quando voltasse, estava vindo recomeçar e tal. Então eu contei da lista, e ele jurou que estaria à minha disposição quando a hora certa chegasse. Entende porque não posso deixar essas pessoas? Ava, Pryia, os garotos.

— Isso é tudo uma loucura. Eu já disse que odeio Elise? — Balanço a cabeça em concordância e ela suspira quando sorrio — Por que está me contando isso?

— Porque enquanto eu estava presa naquele quarto, apenas pensando e pensando, prometi a mim mesma que voltaria quando isso acabasse, vou acabar isso por eles, para salvá-los. Ava foi como uma segunda mãe, Pryia foi como uma irmã, vou atrás deles, vou acha-los. Não me importo com roupas caras ou com meu carro. Você iria adorar, Hazel, venha comigo. Vamos construir uma vida nova juntas.

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