immaculate sin of the lovers...

By ohtommoyeah

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Nem mesmo nos mais tenebrosos pesadelos Harry e Louis imaginariam que, ao invés de renunciarem os próprios co... More

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duodēvīgintī
ūndēvīgintī
vīgintī
vīgintī ūnus
vīgintī duo
vīgintī trēs
vīgintī quattuor
vīgintī quīnque
vīgintī sex

sēdecim

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By ohtommoyeah

– Você tá… diferente - Horan observa assim que o garoto senta-se no banco de passageiro. 

Harry quase pergunta se isso é ou não um elogio, porém, além dele já desconfiar da resposta, algo lhe diz que ele irá descobri-la quando chegar em casa. Sendo assim, limita-se a confirmar, jogando toda a  culpa na rotina do seminário.

A dor de cólica que - provavelmente - havia sido suprimida pelo nervosismo de escapar sem ser pego de repente volta a ser sentida. É apenas um embrulho leve, sim, mas que imediatamente o faz reconsiderar os muffins de minutos atrás. Devia ter comido só um, ele reflete. 

Por sorte, a curiosidade do homem em ficar por dentro dos seus últimos meses o distrai um pouco. Claro, há certa falta de entusiasmo no seu relato, mas o outro se esforça para tornar-lo o mais agradável possível.

– Aprendi um pouco de francês e latim também.

– Virou um poliglota, então?

Harry vocaliza um som de incerteza – Acho que não é pra tanto.

– Como não? Poxa, já tava imaginando você sendo nosso tradutor na França e no Vaticano - retruca, falsamente inconformado.

– Olha, em nenhum momento eu disse que não posso me virar com o que já sei.

– É assim que se fala - Horan aprova.

Nas vias principais de Holmes Chapel dificilmente há trânsito; em finais de semana, então, as chances são praticamente zero. Isso não quer dizer, porém, que o pai de Niall pode afundar o pé no acelerador para chegar a casa dos Styles num piscar de olhos. Como as calçadas são comicamente esteiras - tanto que duas pessoas não conseguiriam andar lado a lado nelas -, os veículos precisam dividir a rua com pedestres. 

Aos domingos, por exemplo, acaba sendo muito mais prático ir aonde se precisa ir a pé ou de bicicleta pois, com tantos transeuntes circulando de um lado para o outro e crianças brincando nas ruas, dirigir acima de quarenta quilômetros por km/h é correr um enorme risco.

Essa lentidão de movimento permite que o papo descontraído chegue ao cerne da questão mais latente.

– Você não voltaria só no verão? 

Não é uma pergunta que desconcerta Harry. Ele já vinha se preparando mentalmente para enfrentá-la a qualquer instante. Sabia que o retorno inesperado teria que ser justificado, então é bom que isso tenha início com Horan.

Muito mais fácil ter que lidar com ele antes de encarar sua família.

– Eu também - diz – Na verdade, eu deveria estar lá agora… Mas não ia dar certo, eu acho.

– Sério? Aconteceu alguma coisa? Ou simplesmente não gostou? 

O garoto dá de ombros – Eu até que tava levando bem no começo - ok, não faz mal ele ser generoso assim consigo mesmo – Mas… a coisa acabou se tornando ainda mais difícil. Acho que não era pra mim.

– Que pena, você estava tão animado com isso - lamenta – Todos nós estávamos, na verdade.

E então ele comenta de um sonho que teve meses atrás, em que todos iam à igreja testemulhar a primeira pregação de Harry.

– Foi tão bonito, você se saia tão ficava iluminado pelo brilho de sua áurea - comenta, nostálgico.

Um sorriso involuntário se forma na boca de Harry. 

Não porque ele se vê nessa imagem. Não. A cena que se forma em seus pensamentos é o vislumbre que teve, tempos atrás - pode ser que tenha sido até na mesma época, quem sabe até no mesmo dia do sonho de Horan -, de Louis ocupando essa posição.

 O homem continua: 

– Mas, enfim, se não era pra ser, é melhor que você tenha descoberto isso logo e não daqui há cinco ou quinze anos. De toda forma, você é só um menino ainda. Tem tanto pra viver, tanto pra descobrir. Tenho certeza que vai encontrar seu lugar no mundo no tempo certo.

Quando Horan enuncia coisas desse tipo, Harry custuma ficar constrangido. É como se sente agora. Não obstante, também sente-se honrado pela compreensão e afeto vindos dele.

Isso o faz pensar em como gostaria que seus pais fossem mais como ele, que expressassem abertamemte seus sentimentos ao invés de guardá-los possessivamente consigo.

Harry os ama, obviamente, mas tem noção do porquê não sentiu tanta saudades deles. Apesar de morarem debaixo do mesmo teto durante toda a vida, Harry sente que mal os conhece e vice-versa; sente que eles nunca conversaram honestamente, nunca revelaram seus interior, nunca tiveram um momento de profunda vulnerabilidade. Essas falhas abriram fissuras enormes na relação deles.

– Niall que vai adorar saber disso - Horan o trás de volta para o presente – Toda vez que ele vem aqui, pergunta se você já voltou.

Simples assim, a mísera menção do nome de melhor amigo faz espirrar respingos da magnificência do melhor amigo em Harry, e acalenta-lhe o espírito magoado, atormentado.

No final das contas, ao contrário do que temia, Niall não lhe deu as costas nem o esqueceu. Em vez disso, o aguarda ansiosamente. Deseja um reencontro tanto quanto Harry. 

A felicidade infla com essa constatação, quase extinguindo por completo a sensação de desamparo que, por todo esse tempo, ele mal havia percebido sentir.

O contentamento e o alívio ascendem-lhe o semblante.

– Ele tem vindo muito aqui? - pergunta, ansiando rever Niall o mais breve possível.

– Não tanto quanto eu gostaria - responde o pai, resignado – Mas a gente entende, sabe. Ele tá sempre muito atarefado. Até quando vem pra cá dizendo estar de folga, passa a maior parte do tempo estudando. Tô gostando de ver ele realmente dedicado a algo importante; era isso que faltava na vida dele, uma responsabilidade para focar. Mas não posso negar que o distanciamento é um ponto negativo.

Harry concorda.

– Mas ele tá se saindo bem? Quero dizer, tá gostando das aulas? Lembro que, umas semanas antes de ir embora, ele viu a grade de aulas e só falou disso o tempo todo.

Horan balança a cabeça, curvando um sorriso orgulhoso.

– Que tal ligar e perguntar isso diretamente pra ele? Sei que você prefere ouvir essas coisas da boca dele. E vai ser uma boa surpresa ele descobrir que você finalmente está de volta.

Sem esperar por uma resposta, o pai do amigo já vai tomando o celular do painel do carro e, após desbloqueá-lo, o entrega para o rapaz.

Enquanto procura pelo contato dele, Harry se esforça para não abrir um sorriso de rasgar os cantos da boca, entretanto, no instante em que a chamada é atendida com um preguiçoso e aí?!, a alegria torna-se tão irresistível e deslumbrante que não lhe resta saída além de se render miseravelmente

Por um momento ambos ficam em absoluto silêncio antes de Niall tentar uma nova abordagem:

– Pai, tá aí?

Harry continua sem abrir a boca pelo simples motivo de não ter ideia do que dizer. 

Passou-se bastante tempo desde a última vez que conversaram, tanto que ele sentiu como se tivessem há anos, não meses. A saudades foi tremenda. Quantas vezes desejou ouvir o grave cursivo da voz dele outra vez… Quantas vezes sentiu o peito contorcer-se pelo medo de nunca mais escutá-lo novamente.

Mas ali ele estava, do outro lado da linha, soando - o que Harry julga - um tom mais grave do que antes. Frustrantemente distante, sim, mas emanando o mesmo conforto de que se estivessem lado a lado. 

Harry agora compreende porque algumas pessoas choram quando reencontram alguém que amam.

Ele pagaria para que, pelo resto do dia, não tivesse que fazer nada além de ficar com a orelha coladinha no celular, ouvindo Niall se desmanchar em palavras.  

Seria maravilhoso não quer ter de se preocupar com mais nada. Não para nunca, é tudo que quer dizer pra ele.

Mas não é assim que vai funcionar, Harry sabe. 

Daqui a pouco a ligação terá que ser cortada pois falta pouco para o carro chegar na casa no início da Violet Way, e Niall precisa de um retorno.

O seminarista está preocupado com como se revelar. Sente como se não fosse falar com a pessoa que melhor lhe conhece no mundo, mas sim com um desconhecido que quer impressionar. 

Assim, parece inadequado iniciar com um simples oi. Mas ele também não quer ser previsível ao ponto de dizer “advinha quem tá falando” bem como não cometerá o risco de soar carente e melodramático ao perguntar se o amigo ainda se lembra dele.

Ora, que baita desafio ele foi arranjar para si mesmo! 

Acontece que, quando Harry quer impressionar um desconhecido, se manter calado é sua escolha predileta. Se não há nada inteligente para ser dito, que nada nada seja dito, é o que pensa. 

E isso é o oposto de como ele é com Niall.

Portanto, para o seu próprio bem, Harry precisa parar de inventar embaraços e simplesmente agir como se não tivesse notado o tempo que passaram separados.

– Já que você tá estudando essas coisas, quais as chances de um peixe ser alérgico à água?

Os segundos seguintes também são despendidos em silêncio. 

Harry não esperava que fosse diferente. 

Niall é difícil. Nunca nasala uma risada para suas bobagens. É injusto, na verdade, porque o amigo não cede nem para as boas. Mas tudo bem. Harry não pode dizer que detesta esse traço de personalidade dele.

Quando Niall enfim se pronuncia, ignora completamente a pergunta:

– Sabia que até na prisão as pessoas têm direito a ligações? Na prisão, Harry. Criminosos que roubam e matam ligam pra família! E nem isso você podia.

O seminarista instantaneamente lembra de Mitch fazendo um comentário dessa mesma natureza.

– Por incrível que pareça, já ouvi alguém comparando as regras da Congregação com a de uma prisão então, foi mal, mas sua crítica não foi nada original - devolve Harry, e depois o corrige: - Além disso, se você quer saber, me deixaram ligar pra casa uma vez.

Uma vez?! Grande merda - o outro dá uma risada sem humor - E você ainda se gaba disso como se fosse o acontecimento do ano.

– Se eu quisesse me gabar, diria que fui um dos únicos que teve essa oportunidade… você deveria estar orgulhoso de mim por isso.

– Eu te daria esse crédito se você tivesse ligado pra mim também - replica – Mas falando sério agora, já não adiantava ficar preso num convento rezando e olhando pra cara de macho o dia todo, precisava desse isolamento todo? Sem celular e internet, beleza, eu entendo, eu mesmo não deixaria porque com certeza vocês iam passar a noite inteira vendo pornô…

– Nem todo mundo é como você - Harry o corta.

–… Mas sem falar com conhecidos?! - Niall prossegue –  Tipo, qual o sentido? Ah, não, isso já é um absurdo sem pé nem cabeça.

– Pelo jeito você ainda não superou essa sua indignação.

– Não superei mesmo. E não sei como você foi capaz de se submeter a uma situação dessas.

Eu também não, Harry pensa.

– Pareceu a coisa certa. 

Niall espera um instante por uma explicação melhor, mas como ela não vem, acaba permitindo que fique por isso mesmo. 

– Então é isso? Ficou no passado, né, você não vai continuar? - é a única coisa que precisa saber por enquanto.

– Não.

Esse é o plano de Harry, pelo menos, mas ainda há uma família para lidar daqui a pouco. No pior dos casos, ele será obrigado a reconsiderar a decisão… Parece improvável, mas é necessário estar pronto para tudo.

– Melhor assim, você vai ver.

– Espero que sim.

– E onde você tá?

– Quase chegando em casa. Pedi pro seu pai uma carona. Acabei de chegar em Holmes.

– Entendi… Que saco, você bem que podia ter voltado antes, tipo na quinta, ou na sexta - ele expira ruidosamente – Se amanhã não tivesse um teste eu iria praí agora - antes que Harry consiga responder, ele sugere: – Ou você podia vir pra cá, o que acha? Tem lugar pra você dormir aqui.

– Até parece.

– É sério, vem. Vai ser divertido, vou te apresentar umas pessoas e a gente sai pra dar uma volta em uns lugares legais.

– Não viaja, Niall, você conhece meus pais. E, além de tudo, eu literalmente acabei de chegar, não tão cedo eu vou poder sair de novo.

– Tá bom - cede o amigo – Na sexta nos vemos então.

– Certo.

– Cara, tenho tanta coisa pra te falar.

– Imagino - ele mal pode esperar para ouvir – Mas me conta só quando você vier.

– O que? Repete isso - dispara o outro – Vou gravar e te mandar toda vez que você me encher o saco porque não se aguenta de curiosidade.

– Isso não vai rolar, você vai ver. Sou uma nova pessoa agora.

– Tá bom - debocha.

– Juro!

– Aposto que não vai se segurar até o fim do dia.

– Já vou pensar no que você vai ter que me pagar quando perder… - e então murmura: – Preciso desligar, já chegamos.

– Beleza. Até mais.

Assim que a ligação é encerrada, Harry teme de repente acordar com o bater de sinos e perceber que ainda está na Congregação. 

Os últimos acontecimentos foram tão bons e favoráveis que parecem surreiais. E se tudo não passar de um sonho? A decepção seria insuportável.

De qualquer forma, pode ser que essa maré de sorte esteja prestes a se recolher no alto mar de incertezas pois, e se seus pais não aceitarem a sua decisão e o ordenarem a voltar atrás? E se o levarem de volta a Congregação? 

Harry não tem certeza, mas vagamente lembra-se deles dizendo que ir para o seminário era um caminho sem volta. E se isso significa que eles não o permitirão desistir assim, de uma hora pra outra, sem mais nem menos? Porque está fora de questão dar uma explicação maior do que a que deu para Horan. 

Harry não pode contar o que o fez mudar de ideia. Nunca. Francamente, ele prefere retornar para Congregação e seguir enfrentando aquilo em segredo a ter que se expor desse jeito.

Céus, que a sorte não o abandone nesse momento crucial. Não quando ele está prestes a apagar de sua história tudo o que viveu lá.

O coração palpita acelerado quando o pai do amigo encosta o carro no meio frio e buzina fraco.

Harry devolve o celular, despede-se e sai do veículo.

Não vão me mandar embora, garante a si mesmo, devem ter sentido minha falta e vão amar me ter antes do esperado. Esses pensamentos lhe dão confiança para seguir em frente.

Exatamente como supôs, o Ford do pai não está na garagem aberta ao lado da casa de teto inclinado, fachada de tijolos expostos de cor marrom-mascavo e janelas pequenas de vidro e madeira delicadamente pintadas de branco.

Poucos passos no concreto e ele alcança o par de degraus da varanda coberta por um telhado modesto.

O exasperar da mãe é a primeira que chega-lhe aos ouvidos:

– Que horas você pretende levantar? Você prometeu me ajudar hoje.

E, em seguida, ele a vislumbra dar uma espiadela pela janela da sala à esquerda antes de se dirigir à saleta para abrir a porta da frente.

A mulher veste uma calça de pano azul-escuro e um moletom bege, seus cabelos estão presos no alto da cabeça e uma flanela laranja pende no ombro, mas o pouco de maquiagem que usa e os brincos elegantes denunciam que ela saiu em algum momento nesta manhã.

Ao reencontrar o filho, a órbita dos seus olhos duplicam de tamanho e a boca se entreabre pelo espanto

– Harry - ela meio que exclama meio que indaga.

A mão úmida envolve um dos ombros do cacheado quando o abraça apertado. Ele sente o perfume doce de sua numa enredado no forte odor de alvejante.

– Oi, mãe.

– Encontrei esse rapaz perdido na estação, conhece ele? - Horan brinca de dentro do carro.

– Até demais - replica ela, desfazendo o abraço – Mas hoje ele me pegou desprevenida, não imaginava revê-lo tão cedo.

– Ele sabe fazer uma boa surpresa.

— Sabe mesmo… Obrigada por trazê-lo - agradece ao homem que acena em despedida e parte com o carro. E então se volta inteiramente a Harry: – O que houve? - o sorriso em seu rosto é cauteloso e as sobrancelhas franzem-se em confusão – Onde estão suas coisas?

– Eu perdi.

É a desculpa mais esfarrapada que poderia pensar, e mesmo assim ele ousou verbalizá-la.

Felizmente a mãe está mais preocupada em trazê-lo para dentro do que com isso.

– Como assim, perdeu? - até questiona, mas então ela própria se corra: – Beryl, olha só quem está aqui - anuncia, adentrando a porta da sala.

Harry, seguindo seu encalço, depara-se com a avó de frente para a TV deitada em sua poltrona com um novelo de lã vermelha e agulhas de tricô caídas no colo e óculos na ponta do nariz adunco. 

A senhora exclama de emoção enquanto o neto se aproxima. 

O misto de alegria, receio e confusão que ondula dentro de Harry agita-se ainda mais por percebê-la diferente. 

As olheiras escuras e o rosto inchado e redondo dão à idosa um ar debilitado que poucas vezes Harry presenciou.

Ele se inclina para beijar-lhe a testa e depois se ajoelha para abraçá-la e falar com ela, não escondendo sua preocupação.

Rapidamente fica sabendo a causa do mal que a corrói: hiportiroidismo. Assim que o nome assustador é proferido, o garoto sucumbe a um terror que não se abranda por nada. Não importa o quando a mãe assegure que ela está bem e que logo vai melhorar, a mente dele só se atém aos olhos avermelhados, os dedos roliços, aos reclames de fadiga, insônia, constipação e fraqueza da idosa.

Ele luta contra as estrelas ardentes que brilham em sua linha d'água e contra o embargo na voz enquanto mãe e avó afirmam que, apesar de tudo, não é grave, nem fatal e que já está sendo devidamente tratado.

Harry jamais teria a frieza de encenar essa situação visando qualquer vantagem, mas ao menos esse transtorno o poupa de um interrogatório. 

Com a cabeça deitada nas pernas dela, Harry recebe afago nos cabelos e, quando desce, Gemma saltita até se juntar a ele no chão, agarrando-o, beijando seu rosto e implicando com sua comoção, tratando-o como uma criancinha até que irritá-lo.

– Sai de perto, você vai me matar com esse bafo - ele resmunga com o nariz enterrado na perna da vó.

– Só preciso matar a saudades do meu maninho querido - diz ela, tentando desviar das mãos que bloqueiam suas investidas de cócegas – Vai me dizer que você também não sentiu minha falta?

– É sério. Por favor. Eu tô ficando sufocado.

A mãe, de volta a sala, pede no tom monótono de quem já repetiu a mesma coisa um milhão de vezes: 

– Deixa ele, Gem.

– Só se ele disser que também sentiu minha falta.

Ele tenta se esquivar atacando: – Então vinha de você esse cheiro de defunto que senti de lá de fora!? Há quanto tempo você não toma um banho, desde que eu saí?!

– Você só tem que dizer - ela repete, inabalável.

– Tá bom. Eu senti. Agora vai embora. 

– Sentiu o quê?

– Senti sua falta.

– Pronto - ela diz, afastando as mãos dele – precisava desse drama todo?

É esquisito.

Assombroso.

Harry havia premeditado as piores situações para quando chegasse em casa, menos uma em que ele é rapidamente absorvido pela normalidade cotidiana.

Ele se sente tentado a beliscar o próprio braço apenas para ter certeza de que tudo é real.

A mãe, tranquila, lhe entregando uma xícara de chá morno, perguntando se está com fome e depois retomando para a faxina. A avó alternando entre fofocas e o interesse pelo que Harry aprendeu durante o Seminário. Gemma, depois de higienizada, cantarolando e tomando café da manhã enquanto, simultaneamente, faz o almoço que a mãe ordenou.

A vida em casa foi sempre assim tão boa, ele só nunca percebeu? 

Pode ser… ou talvez a experiência temporária na Congregação tenha o forçado a valorizar o que ele tinha antes.

Talvez seja ambas as coisas.

Harry só espera que isso não mude tão cedo. Ou melhor, não mude nunca.

Se depender dele, o bom clima perdurará dali em diante para toda eternidade.

Por isso ele se mostra disposto a cooperar.

Enquanto a mãe passa um pano úmido na mobília da sala, ele comenta em voz alta, para que Anne saiba que ele também está se direcionando a ela: 

– Eu não me sentia mais feliz lá, por isso saí.

– Oh, meu querido - a vó diz – Tudo bem. Estou contente que você voltou. Você fez muita falta nessa casa.

A mãe não se pronuncia neste momento, porém, após o almoço, depois que Gemma sai para o trabalho e a avó sobe para tentar cochilar - aproveitando que finalmente sentiu sono -, ela pergunta:

– Quer ir no supermercado comigo? 

Ele levanta os olhos do celular e assente.

– Claro.

– Vou só trocar de roupa então… - ela ameaça ir embora, mas então se volta para ele outra vez – Tem algo que queira me contar?

Ela não usa um tom autoritário, mas um que expressa somente o desejo de que filho conte o que há de errado, porque claramente há algo de errado consigo.

Harry balança a cabeça e pressiona os lábios num sorriso acanhado.

– Tem certeza? - ela dá outra chance. 

O que aconteceu com a disposição de momentos atrás? A mãe está tentando confortá-lo, por que ele simplesmente não aceita?

– Desculpa por ter desistido. Grande parte de mim não queria, mas… não consegui me encaixar lá. Eu tentei, mas cada vez me sentia pior.

Suas sobrancelhas se franzem e, no fim, ela acena e esboça um sorriso de entendimento para só então subir.

Mas Anne não se chateou com sua declaração, e faz questão de demonstrar isso durante as compras, seja ao perguntar o que o filho quer levar, seja ao comentar o quanto está maior e o quanto seu cabelo cresceu.

– Vocês não cortam o cabelo por lá?

Harry ri fraco e afirma que no dia seguinte irá dar um jeito nisso.

Ela não se chateia nem quando, à noite, ligam do Seminário à procura dele. Nada de olhar inquisidor, nada de pressão para saber o que houve, ela apenas torna a se sentar no sofá assim que a ligação é encerrada.

Se não tivesse entreouvido a conversa, Harry nem saberia da ligação

[...]

Ele está no quarto no momento em que o pai e a irmã retornam do trabalho, por volta de meia noite. 

A mãe, que sempre deita cedo, dessa vez desce para recebê-los.

Uns instantes mais tarde Gemma aparece no quarto e, sem ligar a luz, se joga na cama÷ pega o celular.

– Tá dormindo? - quer saber.

– Nah. Como foi o trabalho?

Logo eles estão conversando sobre como passaram o dia. 

Bons minutos se passam até que se sejam interrompidos pelo pai, que adentra o cômodo ligando a luz. Ele pergunta a Harry como ele vai.

– Tô bem. Só ainda preocupado com a vovó.

– Ele chorou igual um bebezinho.

– Relaxa, ela tá ótima.

Gemma e o pai dizem ao mesmo tempo.

Harry revira os olhos para ela.

– Você podia ter avisado que vinha hoje, eu teria te buscado.

Nesse momento a mãe, que atravessa o corredor, pede num murmúrio:

– Deixa as crianças descansarem, amanhã vocês conversam. 

O homem revira os olhos, deseja boa noite, desliga as luzes e se vai.

– O que será que deu na mãe hoje? - Harry balbucia.

– O que ela fez?

– Nada. Ela só tá… sei lá, meio estranha. 

– Estranha como?

– Sei lá. Estranha.

– Você que tá - rebate.

[...]

Harry deveria ter tido a melhor noite de sono que teve em tempos, mas ele quase não consegue pregar os olhos. 

Não existem mais motivos para passar a madrugada inteira acordado, mas é como se sua mente ainda não tivesse processado isso. 

Portanto, ele amanhece exatamente como sempre vem acordando às semanas: exausto e com a cabeça ao ponto de explodir. 

Seguindo o conselho da avó, depois do café da manhã ele liga para o Reverendo Julian e avisa que mais tarde irá na paróquia falar com ele. 

Para sua decepção, o pároco não parece muito surpreso pelo seu contato. 

Alguém já havia dito que Harry estava de volta.

Não pode ter sido sua família porque a mae, o pai e a avó tinham ido à primeira missa do dia anterior, quando Harry ainda nem havia embarcado no trem. Talvez possa ter sido um dos Horan. Ou qualquer membro que tenha visto na estação.

Enfim, isso não importa mais.

O padre marca o encontro para depois do entardecer.

[...]

Se a mãe ficou desapontada por Harry ter desistido, ela se esforçou para esconder.

Julian, em contrapartida, faz questão de evidenciar a decepção.

É como se ambos tivessem trocado de personalidade. Agora a mãe é mansa e tolerante, e o Reverendo é o taciturno, o frio.

Harry não tem um rencontro com seu semblante gentil e sorridente. A simpatia também é escassa. O Padre dá alguns rodeios, transita por um ou dois assuntos triviais mas não tarda em ir ao ponto. 

Trata o assunto com pouca delicadeza, por mais que pareça tentar se manter razoável. Ele quer que Harry esteja consciente do privilégio que está desperdiçando, a oportunidade única que deixou escorrer pelos dedos.

- Não consigo entender porque você fez isso - ele soa como se sentisse uma dor física - Abandonou o Seminário dessa maneira, fugindo sem dar explicações a ninguém. Todos lá ficaram preocupados com você e te esperaram reaparecer antes de entrar em contato para saber seu paradeiro. No mínimo você devia ter tido a decência de ter avisado alguém que iria embora.

Ele não aceita que Harry não lhe dê uma justificativa plausível. Ele pressiona e se frustra por não receber o que quer.

O que resulta disso são palavras difíceis de digerir. Elas descem tão amargas que os músculos do rosto do rapaz ameaçam se contrair numa careta de desgosto.

– Sim, você é muito jovem, mas eu acreditava no seu potencial, acreditava que você aceitaria de braços abertos a chance de redenção pelo erro que você permitiu que acontecesse… Eu me enganei, Harry?

É uma pergunta retórica. Ele não quer uma resposta, quer que Harry reflita sobre tudo o que está dizendo. Pelo menos é nisso que o garoto acredita.

Depois de um silêncio, cansado, o homem diz que o ama mas está triste por suas atitudes. Mesmo assim, ele garante que não quer desistir de continuar ajudando. 

– Eu só preciso ter certeza que é isso que você quer.

Harry confirma, balbuciando que apenas não serviria para ser padre. 

É assim que a conversa é encerrada.

– Antes de você ir, tenho algo para lhe entregar.

Então ele se ausenta por alguns segundos e, quando volta, trás nas mãos a mochila abandonada por Harry na Congregação.

O rapaz não pergunta como ela foi parar nas mãos dele, só a toma para si, agradece e sai dali com rumo ao jantar com a mãe de Niall.

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