VERMELHO DO CAOS • jjk + pjm

By ORUMAITOU

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[EM ANDAMENTO] Park Jimin carece de grandes aventuras, preso por um relacionamento abusivo e traumas antigos... More

[CONSIDERAÇÕES]
Epígrafe
01. O Cinza torna-se Vermelho.
02. O Ardor da Paixão.
03. Moço de Neve.
04. Primeiro Passo.
05. O Mar.
07. Céu Azul.
08. Ainda.
MAGIC BOOK!

06. Mesmo Assim.

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By ORUMAITOU

[NOTAS] oiê rs quem é vivo sempre aparece (tô morta por dentro mas aparentemente meu corpo ainda funciona :0).

A bichinha aqui quase morreu no ano mais difícil da faculdade e agora to no último KKKK os dias de glória vieram aos gays. Bem, vou deixar pra conversar com vocês nas notas finais, por enquanto só desejo uma boa leitura e peço desculpas infinitas pela demora!

[RECAPITULAÇÃO DO ÚLTIMO CAPÍTULO PQ SOU UMA CACHORRA E DEMOREI DEMAIS]: Jimin foi pra praia com o namorado na festa do Namjoon pra qual o JK o convidou. Rolou a treta toda com o Kyuhyun e o EVIL. Kyuhyun foi embora e o Jimin ficou. Jizinho chorou na frente do JK. Acabou o capítulo. Agora descubram o que rolou depois IAJAIJSIAJIS

boa leitura, gente! tô meio insegura com o capítulo, mas espero que gostam :D

p.s: prestem atenção no nome do capítulo

#MorangoCanhoto

***

"É que sou feito de sonhos e num sopro me desfaço. Eu sei, já é tarde: sou tão seu quanto sou carne, ossos pútridos e um coração que bate."

Samanda, 2020.

Mar das Pérolas, 23h30.

Ele olhava diferente para mim.

A dúvida transfigurada no rosto pálido de uma terrível constatação foi o que me fez pensar, mais instintiva que deliberadamente, que alguns segredos eram mais traiçoeiros que outros. Era mais que a reprodução do óbvio, e menos que um juízo descabido de valor. Parecia flutuar num plano de abstração que não era tocável até que nossos olhos se cruzassem. Uma projeção particular vista a tempo, algo que não era verdadeiro até que se desse um lugar confortável para o depósito desenfreado de expectativas de algo tão estranho e tão familiar.

Os olhos verdes de Jungkook, às vezes, pareciam como recortes enfeitados de um diário adolescente. Eles assistiam às confissões mais indecorosas, ouviam os sussurros gritantes e gritos sussurrados por trechos secretos em caligrafia preguiçosa e canetas brilhantes. No ínterim em que suas pálpebras apagavam as írises claras, o eclipse delicado parecia o único momento em que meus segredos eram apenas meus.

Mas daquele ângulo, naquele instante, eu não ligava que me desvendasse; tudo que me importava eram seus cabelos escuros caindo no descanso do banco do motorista. Ele olhava pela janela, em silêncio, o mar escuro se perdendo no azul profundo do horizonte. Um dos braços descansava sobre as pernas enquanto o outro pendia para fora do carro, quase tão branco sob a luz perolada da lua que pensei, sorrindo comigo mesmo, que talvez ele tivesse saído diretamente dali, do Mar das Pérolas.

— Jungkook... — chamei, minha voz quase dançando com as notas discretas de Lay All Your Love On Me, do ABBA, que soava baixo dos alto-falantes do seu carro.

— Hm?

Ele não me olhou, continuava compenetrado em algum deus invisível à distância. Talvez venerasse o mar.

— Sabe a lenda da Dama de Pedra? — perguntei despretensiosamente.

Jungkook se virou devagar, cinematográfico como um pássaro cortando o céu.

— Já ouvi falar, mas não me lembro muito bem. Por quê? — Sua voz rouca, pouco usada na última hora, arrastou-se para fora dos lábios bonitos.

Eu, esparramado com uma liberdade questionável no banco do passageiro, apenas suspirei. Uma ressaca moral parecia à espreita.

— É minha lenda tradicional preferida de Samanda — revelei, esfregando as pontas dos dedos no tecido do assento quase involuntariamente. — Lembrei dela com essa música do ABBA. Você sabe um pouco sobre a história dela?

O banho de escuridão voltou a engolir parte do seu braço quando ele o recolheu para dentro do carro. As luzes fracas da noite afora e os LEDs tímidos do rádio faziam pouco em iluminá-lo, mas eu ainda conseguia distinguir o verde vítreo dos seus olhos. Jungkook se virou o suficiente para ficar de frente para mim, aconchegado no banco ajustado para trás.

— Ouvi pouco em uma conversa ou outra, acho. É uma lenda trágica que aconteceu em alguma praia, não? — perguntou, curioso. Ele parou por um momento e balançou a cabeça. — Quer dizer, não tenho certeza. Não conheço muitas lendas daqui.

A confusão me abateu tão logo percebi que ele estava genuinamente perdido. Por isso, precisei de pouco mais que alguns segundos para me lembrar do que Taehyung contara no dia seguinte ao encontro fortuito no Jude's: JK não era de Samanda, era claro que ele não estaria familiarizado com a lenda mais famosa da cidade. Ele próprio não havia me dado essa informação, no entanto — eu a ouvira de outrem. Não sabia quão delicada era a questão ou se já tínhamos entrado numa zona suficientemente confortável para que eu perguntasse sobre seu passado, então resolvi me abster. Não poderia arriscar o frescor da atmosfera entre nós.

— Não, não, você está certo. É realmente uma história trágica que aconteceu na praia. Nesta praia — contei, gesticulando minimamente assim que dei sossego ao tecido do assento. As pontas dos meus dedos ardiam. Era sempre um prazer contar aquela lenda, e eu não tinha lá tantas oportunidades estando cercado de samandenses. Todos eles já sabiam a história. — É sobre uma moça que se chamava Samanda. Daí o nome da cidade.

— Eu não sabia disso. — Jungkook ergueu ambas as sobrancelhas antes de se aproximar um pouco mais à medida que se ajeitava no banco. Seu rosto descansava na palma direita, espremida no encosto. — E o que mais? Fiquei curioso.

— Bem... — Um pouco sem rumo pela carga densa da sua atenção, senti a iminência dos tropeços que minha língua poderia dar se eu não me concentrasse. Era quase impossível me articular com alguma destreza quando ele me encarava tão fixa e atentamente. — Ela, hã... Digo, Samanda era uma mulher extraordinária, especial, e morava aqui, à beira da praia, quando a cidade estava começando a ser povoada. Ela tinha um dom: as lágrimas dela se transformavam em pérolas. Vivia sozinha porque, naquela época, isso foi considerado bruxaria e a família dela a deserdou pela ameaça de repressão da aldeia. Samanda passou a vagar sozinha e prometeu que guardaria tudo para si mesma, que nunca mais demonstraria qualquer sentimento de dor ou alegria. Ninguém poderia saber da aberração das pérolas. E ela viveu assim, apática, isolada, longe de relações humanas para não desencadear qualquer emoção. Até que... houve alguém. Uma moça.

Meu estômago já borbulhava. A lenda era simples, curta, mas me acessava em partes secretas e dolorosas. Eu adorava contá-la tanto quanto me retorcia ao fazê-lo.

— Danderia. É a avenida onde acontece o Festival de Verão. Você deve lembrar — comentei, e o vi assentir. — Danderia era uma jovem órfã que cresceu sozinha e roubava para sobreviver. Ela era bem talentosa, muito hábil, e cometia crimes aqui e ali por dinheiro. Ela foi contratada pela família de Samanda para procurá-la e aprisioná-la. Eles não contaram para Danderia, mas queriam Samanda de volta para roubarem suas pérolas e saírem da pobreza. Prometeram pagamento em pérolas para Danderia, então ela foi: procurou por Samanda em cada canto obscuro e inabitado por um ou dois meses. Uma noite, chegou a esta praia e viu Samanda nua, solitária, tomando banho de mar enquanto cantava uma cantiga antiga para alguns peixinhos. Danderia soube na mesma hora que era a criatura mais fascinante que já tinha visto na vida, então ficou ali, de longe, observando a mulher inofensiva que ela deveria sequestrar. Samanda cantou por horas e mais horas, até que todos os peixes fossem embora e ela ficasse, de fato, completamente sozinha.

"Danderia não conseguiu evitar: vendo Samanda isolada de todos, com uma família que a odiava, ela lembrou de si mesma: uma estranha que nem a própria família quis, largada para viver sozinha. Não sabia por que a queriam presa, mas soube que era incapaz de fazer isso. Era incapaz de fazer qualquer mal àquela garota solitária que cantava para peixes porque não tinha mais ninguém."

Pausei por um momento apenas para respirar fundo. Jungkook permanecia em um silêncio sepulcral, tão compenetrado por tudo que eu dizia que pensei que não piscaria. Ele esperou pacientemente que eu retomasse fôlego para continuar.

— Danderia esperou até a manhã para abordá-la. Estava com medo de assustá-la surgindo de forma brusca pela noite. Mas, de todo modo, esse medo durou alguns dias. Ela estava tão encantada que demorou para tomar coragem, mas quando finalmente aconteceu... Samanda ficou em pânico, porque não via quase ninguém há muito tempo. Quando viu Danderia sair de trás das árvores ao longe, pensou em fugir, se afundar no mar ou qualquer outra coisa. Ela estava pronta para sumir outra vez até Danderia tirar um dos braços de trás do corpo e mostrar... uma flor. — O sorriso quente dilatou nos meus lábios. — Um flor para Samanda, a moça fascinante que cantava para peixinhos.

"Bem, elas... se aproximaram. Dia após dia. Danderia já não conseguia lembrar da sua vida miserável antes de achar Samanda, e Samanda já não sabia como voltar a viver em exílio agora que conhecia Danderia. Elas estavam apaixonadas. Profundamente apaixonadas. Quando Danderia se confessou, finalmente entendeu o motivo pelo qual a família de Samanda queria aprisioná-la: pérolas brilhantes e muito espessas pingaram na areia da praia assim que as lágrimas dela alcançaram o chão."

— E o que ela fez? — Jungkook perguntou baixinho, como se temesse quebrar minha linha de raciocínio. Ele parecia intrigado. — O que Samanda fez quando chorou na frente dela?

— Ela teve medo — expliquei antes de suspirar longamente, como se pudesse vislumbrar frame por frame uma dor que, no fundo, também era minha. — Começou a pedir desculpas porque achou que Danderia a deixaria como a família a deixou. Ela tinha aprendido que não deveria sentir, ou demonstrar que sentia. Mas Danderia já estava tão apaixonada, tão bêbada de paixão, que apenas segurou as mãos dela e disse que tudo bem, que não se importava. Disse que... se Samanda não tinha onde despejar seu amor, seus sentimentos, que despejasse nela. Ela receberia todo o amor, todas as emoções que Samanda escondeu. Então Samanda chorou, mas, dessa vez, de alegria. E as pérolas nunca estiveram tão brilhantes...

Meus olhos escorregaram para a janela aberta, por onde uma brisa gelada entrou. Meu timbre vacilou, pois eu sabia bem como a história acabava e, por um instante, quis parar por ali, na superfície do felizes para sempre. Acabou me ocorrendo, subitamente, que tudo aquilo era muito cruel: as lendas, a vida, o amor. E que era, apesar disso, muito bonito, também.

Talvez o mundo fosse assim. Talvez eu fosse sensível demais.

— Elas... viveram bem. Naquele dia, Samanda chorou muito, chorou tanto que encheu o mar de pérolas grossas, pesadas, muito brilhantes. Ela despejou toda dor de viver em exílio, a angústia de não se querer. Mas era um choro muito feliz, também, porque amava Danderia e ela a amava de volta, daquele jeito mesmo, com olhos mágicos que choravam pérolas. Foram felizes por bastante tempo, vivendo na praia e cantando para peixes de noite. Mas... Danderia deixou uma missão inacabada para trás, embora não se lembrasse, ou não se importasse o suficiente. A família de Samanda ainda a procurava e estavam muito bravos. Eles precisavam das pérolas dela para ascender socialmente e sentiam muita raiva do descaso de Danderia.

— Ah, não... — Jungkook desencostou o rosto do banco. Estava mais alerta, agora.

— Eles mandaram outras pessoas atrás delas, é claro... — Sorri, triste, espremendo os lábios em uma linha tensa antes de continuar. — Mas demoraram para achá-las. O lugar era afastado e muito deserto, até um tanto perigoso para quem não tinha experiência. Eram três mercenários que ficaram seduzidos pelo pagamento em pérolas. Elas estavam colhendo frutas quando as encontraram, e souberam de imediato quem era Samanda pela descrição da família. Conseguiram pegá-la desprevenida, mas Danderia... Danderia ficou possuída de raiva quando eles apertaram Samanda, que não sabia lutar e só queria viver em paz. Danderia era forte, hábil, muito incrível mesmo, mas eles eram três... e queriam as pérolas.

— Eles...?

— Quando ela se soltou do aperto de um deles para defender Samanda, o terceiro, escondido nas árvores, a apunhalou com uma adaga enferrujada pelas costas. Sem honra, sem compaixão. Nada. — A brisa pareceu mais fria. Foi como se a praia me ouvisse; como se a vida escorrendo dos olhos de Danderia também doesse no mar. — Eles precisavam de Samanda viva, então não fizeram nada a ela. Mas percebendo que Danderia estava letalmente ferida, Samanda gritou. Um grito visceral... cheio de dor. Um grito de uma perda, sabe? Os olhos começaram a encher de forma assustadora, mas ao invés das pérolas que cabiam na palma da sua mão, as lágrimas se transformaram em pedras. A dor era tanta que as pedras cresceram, e cresceram, e cresceram, até que os mercenários se assustaram e tentaram fugir. Bem... era tarde.

"Elas tinham matado o amor da vida dela, então ela devia cobrar da mesma forma: com suas vidas. As pedras, de tão grandes, eventualmente esmagaram dois deles. Um único lugar da praia não foi atingido por elas: o corpo de Danderia. Quando teve certeza de que estava segura, Samanda a carregou, já morta, até o mar, e chorou mais pedras, agora pequenas e espinhosas, que ardiam. Cantou a música que cantavam juntas para os peixes, e deixou que o corpo de Danderia voltasse à natureza pelo caminho das ondas. Na noite daquele mesmo dia, Samanda se despiu e caminhou até o mar novamente, então chorou uma última vez antes de afundar e, lentamente, ser transformada em pedra. O último desejo dela foi estar junto a Danderia outra vez."

Era apenas uma lenda; eu sabia. Histórias trágicas de casais homossexuais permeavam toda a maldita trajetória do nosso mundo. Às vezes, parecia que era tudo ao que tínhamos direito: um final excruciante. Eu sabia disso; sabia que lendas eram lendas e entendia todas as implicações sociais daquele tipo de história tradicional. E mesmo assim... mesmo assim, ainda enchia os olhos toda vez que me lembrava.

— Um dos mercenários, o que sobreviveu, contou a história com muito horror aos outros aldeões. Samanda ficou conhecida como a Dama de Pedra — terminei, finalmente deixando meu corpo descansar no banco. Abracei meu próprio tronco, consumido por um calafrio repentino ao tentar sustentar as íris claras de Jungkook, cujo silêncio começava a me inquietar. Lay All Your Love On Me havia há muito parado de tocar. — Lembrei da lenda por causa do refrão da música...

Não desperdice suas emoções... — Jungkook cantarolou numa voz baixa e gentil. Ele entendera imediatamente o que eu queria dizer.

Coloque todo seu amor em mim... — conclui, sem poder fazer nada além de derreter num sorriso bobo e um pouco emotivo. — Sim, exatamente essa parte. Lembra delas.

— Eu subestimei quão trágica era a história. Acho que vou ter que criar um universo paralelo para elas na minha cabeça, agora — ele observou, e eu ri logo em seguida. Era fácil demais esquecer de histórias tristes perto dele. — As pessoas precisam parar de inventar lendas tristes só porque mulheres amam mulheres e homens amam homens. Não fique triste por isso, Cindy. Tenho certeza que Danderia e Samanda foram muito felizes e eles estavam com inveja, por isso inventaram essa lorota.

Meu coração instantaneamente acelerou, como se já não coubesse naquele espaço ridículo do peito. O sorriso fácil nos lábios vermelhos de Jungkook pareceu carimbar pequenas estrelas no céu opaco da minha cabeça. Foi como se eu nunca tivesse experimentado amargor antes; como se o doce fosse tudo que eu conhecia e haveria de conhecer.

— Tem razão — sussurrei, sem nenhum motivo em particular para falar tão baixo. Talvez quisesse que o mundo não me ouvisse; só ele, só o Jungkook. — Elas devem ter sido felizes para sempre.

— Talvez não para sempre. — Ele riu, curto e suave como a onda que se quebrou ao fundo. — Mas ser feliz, mesmo que em poucos momentos, já vale muito a pena.

— Será?

— Eu torço para que sim.

O silêncio confortável nos engoliu outra vez. Ao invés de círculos ansiosos no banco, dessa vez, tracei um caminho sorrateiro até o pingente preso à chave do carro. Era um dragão preto como o do brasão do seu uniforme de trabalho, o mesmo que vestia horas atrás. No rádio, os blues de algum artista que eu não conhecia começaram a flutuar sobre nós como rabiscos gentis que viajavam para lá e para cá. Eu piscava, de novo e de novo, numa busca interminável pela comprovação da minha sanidade. Só conseguia torcer para que tudo aquilo fosse real, que não fossem projeções piedosas de um desespero indomado.

Algum tempo havia se passado desde o incidente próximo à fogueira, embora eu não pudesse precisar o quanto. O rastro de lágrimas estava seco, mas pulsavam ocasionalmente num toque gelado, como beijos condescendentes de um fantasma de mim. Eu tinha absoluta certeza de que meu rosto estava inchado pelos destroços nos quais me transformei entre os braços de Jungkook, mas tinha resistido à ideia de confirmar. Ver em ruínas a maquiagem pela qual tanto me dediquei não me faria bem algum, já bastassem os problemas infinitos que tinha com meu próprio rosto. Estava convencido de evitar espelhos até chegar em casa, onde poderia deixar que preocupações tolas me consumissem. Era apenas natural trocar o golpe letal pela ruína progressiva quando a cura não estava em pauta; eu só convertia dores maiores em lamúrias cotidianas, emendando ossos desfeitos como se o esqueleto fosse mais do que apenas um esqueleto.

Parte de mim quase cedeu à sensação amarga que ameaçava se alastrar tão logo eu a desse vasão, mas Jungkook esteve ali o tempo inteiro e eu apenas soube que ele não me deixaria afundar. Ele era o único solo firme num deserto de areia movediça; a certeza bonita num oceano de verdades desoladoras. E ele só... esteve ali. Quieto, quente, amável, sempre calmo e tão dolorosamente respeitoso que eu não conseguia parar de sentir que não merecia, porque era bom e real demais para ser meu. Porque as coisas boas sobre mim eram todas inventadas.

Era estranho. Eu podia tocá-lo se me esticasse; podia ver os poros dilatados nas maçãs do rosto, o carmesim diluído na ponta do nariz, esmaecendo nos contornos das bochechas; podia sentir o cheiro cítrico de um campo de morangos frescos e notas gentis de um perfume masculino que não sabia nomear. Decerto, eu preencheria um álbum inteiro com descrições extensas dos seus detalhes, mas, no fim do dia, eram só detalhes. Uma coleção de fragmentos.

Jungkook estava bem ali, bem ao meu alcance, e constantemente me escapava. Quem sabe fosse da sua natureza incognoscível e ele tivesse sido criado para se pulverizar quando menos se esperasse.

— Obrigado por ter ficado comigo enquanto eu chorava. — Fui eu a vocalizar ao concluir que era justo que ele ouvisse de mim. Virei o rosto na sua direção, mas não o encarei. Estava envergonhado demais para isso. — E obrigado por me trazer aqui para ouvirmos músicas e ficarmos quietos. Eu não estava muito bem para voltar para a fogueira com os meninos... mas, hã... eles são muito legais! Eu só precisava me recompor, sabe? Da briga...

Vendo de soslaio, notei que ele cobria os olhos com o antebraço esquerdo. Suas tatuagens eram perfeitamente nítidas daquele ângulo. Por alguns segundos, a música baixa e sua respiração serena foram os únicos sons naquele carro.

— Sou eu quem deve agradecer por me deixar fumar perto de você — ele brincou com um sorriso sutil desenhando os lábios. — Não é todo mundo que suporta o cheiro.

Isso parecia ser algo dele: o sarcasmo elegante, ainda que muito bem-intencionado. Jungkook não se levava nem um pouco a sério e isso o dava uma sutileza que era, ao mesmo tempo, muito afiada, como se ele tivesse pleno governo de si, do mundo e das possibilidades.

— Eu não sou fã de cigarros, mas pude fazer esse sacrifício por você... — arrisquei, devolvendo a brincadeira com um sorriso leviano. Ouvi sua risada arrastada soprar entre os dentes, e me senti orgulhoso da tranquilidade com que completei: — Mas... falando sério, hyung... obrigado. Mesmo.

— Jimin-ah. — Prestei aguda atenção ao movimento discreto dos seus lábios enquanto pronunciava meu nome. O timbre estava mais grave, embora notavelmente meigo. Só então seus olhos se revelaram: arrastou as costas da mão ao queixo ainda que prendesse um pequeno pedaço da pele do dedo indicador entre os dentes, soltando-o apenas para dizer: — Preciso que saiba algo sobre mim.

Sequer tive tempo de reagir; quando meus olhos o alcançaram sob o fio de luz cândida que perpassava a janela, Jungkook já estava tão perto que era possível distinguir o aroma do seu shampoo. Os cabelos lisos e escuros caíram perturbadoramente ordenados pelas maçãs do seu rosto até o queixo, preto e vermelho sobrepostos como cortinas translúcidas. Ele se movia tão sorrateiramente que quase não consegui acompanhar quando capturou a ponta do meu nariz entre os dedos e pressionou-a gentilmente.

— Não lido muito bem com elogios, ou agradecimentos. — Eu ainda podia vê-lo pelos espaços entre seus dedos. Um sorriso oblíquo praticamente imperceptível repuxou a boca bonita quando o toque se findou, mas ele permaneceu ali, próximo demais. — Não sei se você percebe como minha cara inteira fica vermelha quando você me agradece com tanta... doçura, mas acho importante que você saiba que fico absolutamente sem rumo com isso. Minha reação automática é fazer alguma piada idiota pra desviar do assunto. Mas não é por mal, eu só...

Ele riu, os dentes de coelho à mostra. Seu rosto parecia ainda mais queimado agora.

— Só fico tímido quando acontece, porque você é... fofo. E eu não sei lidar com isso. — As írises verdes fugiram para o painel do carro. Ele riu de novo enquanto franzia o nariz. — Isso foi esquisito pra caralho, né? Desculpa.

Um comichão engraçado começou a beliscar minha barriga, foi quando constatei que não precisava saber se era a ansiedade ou o entusiasmo ébrio me fervilhando inteiro de pura entrega. Talvez fossem os dois. Talvez fosse isso e mais.

— Não foi esquisito — comentei, risonho o bastante para saltitar entre as palavras. A língua pulava na boca como se eu ainda estivesse aprendendo a falar. — Ok, foi um pouco...

O sorriso no seu rosto se alargou. Em algum ponto, nossas risadas mancharam uma à outra como se fossem uma só.

— Tô brincando, não foi esquisito... — Fui parando de rir quando, num movimento espontâneo, toquei meu ombro com o seu.

— Foi, sim.

— Foi bonitinho.

— Ah, é? Bonitinho? — Num murmúrio sugestivo, quase manhoso, ele enterrou as esmeraldas em mim como se exibisse o quão pouco precisava para me solucionar. A sobrancelha esquerda se arqueou à medida que um riso soprado e ligeiramente perverso escorregou dos lábios profanos e bateu no meu rosto. — Você me acha bonitinho?

E lá estava. De novo.

— Eu... te acho, sim. Tem algum problema nisso? — Estava incerto sobre minhas próprias intenções. Àquela altura, só queria continuar falando com ele.

— Não exatamente. — Perdi alguns segundos de atenção no volume que seus braços faziam quando ele os cruzava sobre o peito. Com o ar preso na garganta, acompanhei o traço de uma veia proeminente no bíceps direito. — Eu só gostaria de ser mais que "bonitinho".

— Hyung... — A intenção era que soasse como um alerta, mas não consegui sustentar. O sorriso complacente não saía do meu rosto.

— O que você sugere, Cinderela? — Jungkook suspendeu ambas as sobrancelhas enquanto batia no braço esquerdo com o dedo indicador. O ônix incrustrado na prata lisa do seu anel balançava num ritmo pêndulo hipnotizante. — O que eu posso fazer pra ser mais que bonitinho?

— Jungkook-ah... — Com os olhos apertados, não pude segurar uma risada nervosa. Naquele momento, não havia espaço para me importar com a falta do honorífico, eu já estava envolvido demais pela trama oculta, pelo jogo sujo que travávamos ali. Jungkook pareceu perceber a mudança de atmosfera, pois seus olhos lampejaram no mesmo instante. — Por que você se importa se eu te acho bonitinho?

Dessa vez, ele se inclinou. Menos que cordas de realidade me mantinham em terra firme; eram mais como fiapos num esforço patético para me puxar do que quer que aquele sentimento brutal significasse.

— Cindy, Cindy... — Mas Jungkook já havia dado o primeiro passo, o timbre cantarolado como um cântico de premonição. Ele era mais forte, mais cortante e perigoso que tudo que eu, deus, ou o mundo poderíamos esperar. Seus cílios subiram e desceram, lentos, delicados, como se não encobrissem olhos mortíferos. Como se não tivessem o dono que tinham. — Tem segredos que devem permanecer como segredos. Eles são fatais se os falarmos em voz alta.

Ele sabia. Ele sabia.

Sabia daquela coisa, daquele algo, como um fonema à beira da língua, pendurado, pronto para sair; como a resposta de um enigma coberta por um véu prestes a esvoaçar. Tive a súbita sensação de que não suportaria mais um segundo daquela forma, trêmulo sob os ramos dourados dos seus olhos. Apenas me parecia, quando ele me olhava assim, diferente, que era mais fácil se o mundo explodisse e nos devorasse. Era mais simples se tudo ruísse e eu não precisasse tolerar mais um único maldito instante como apenas seu amigo.

Em momentos assim, tão perto e tão longe, era absolutamente insuportável que tivéssemos nos conhecido. Doía tudo: corpo e alma, cada parte miseravelmente minha e fatalmente dele.

Eu não saberia o que dizer nem se pensasse e repensasse por mais centenas de noites. De toda forma, não me via compelido a dar uma resposta; Jungkook tampouco me exigia uma. Ele não esperava nada, nenhuma reflexão profunda ou tirada espertalhona sobre algo que nenhum de nós se atrevia a nominar. Ainda que, naquele terreno incerto, ele parecesse tão mais confortável que eu, trazia-me certo conforto pensar que, no fim das contas, estávamos sobre o mesmo terreno; e se essa era uma pressuposição ingênua ou vaidosa, não me cabia responder. Eu era melhor apenas sentindo.

O breve intervalo de silêncio no casulo úmido de tensão que nos enclausurou foi abruptamente rompido, mas não pela música, ou pela outra coletânea de sons suaves que quase esmaeciam se não prestássemos muita atenção a eles. Foram as mãos longas de Hoseok, espalmadas no capô do carro, a interjeição que precisávamos para voltar aos eixos. Dei um pulo acanhado no banco do passageiro, de repente muito tímido por sentir que ainda estava exposto demais para qualquer um que não fizesse parte da bolha invisível que nos cercava. Não olhei para Jungkook por vergonha, mas ele — como sempre — soou imperturbado quando perguntou:

— O que você quer?

Ele se referia a Hoseok e ao sorriso preguiçoso nos dentes branquíssimos, o que poderia indicar que esteve bebendo ou fumando demais. A luz fora do carro era pouca, porque estávamos consideravelmente distantes do resto da festa e Jungkook havia estacionado no início do chão de areia, para lá do comércio que há muito estava fechado. Automóveis só eram permitidos na Praia das Pérolas em faixas de areia afastadas da parte onde a circulação era maior, e estavam estritamente autorizados somente para estacionamento. A fiscalização era mais intensa nessas regiões e os carros não podiam avançar muito mais que alguns metros praia adentro para evitar danos generalizados.

— Por que você sempre estaciona tão longe, Jeiiiqueiiii? — Hoseok deu a volta no carro e veio até a janela ao meu lado, sorrindo sem parar. Mesmo com a pouca luz, seus olhos vermelhos eram perceptíveis. — Jimin-min-min! Você está bem? Está melhor?

— Estou mais calmo. Obrigado por se preocupar, Hobi. Hã... posso te chamar assim? — Sorri, já bastante à vontade com Hoseok, pois era praticamente impossível não estar à vontade perto dele.

Seu rosto acendeu com o que eu disse. Seus cabelos ruivos pareceriam feitos de fogo.

— Claro, claro! Todos me chamam assim. — Ele se apoiou na janela enquanto alternava o olhar entre Jungkook e eu. — Escuta, gente, não queria interromper, mas vocês não querem comer ou beber alguma coisa? O Joon e o Gui começaram com aqueles papos sociológicos, filosóficos, sei lá, e eu tô sobrando. Mandei mensagem pro Taehyung, mas ele tava... como é mesmo?

— Tendo aula — completei seu raciocínio, lembrando o porquê de Taehyung não estar ali. — Ele faz aquele curso de comunicação no centro da cidade. Já deve ter terminado, aliás. Acho que ele já está em casa.

— É, é isso mesmo! — Hoseok concordou exacerbadamente em gestos abertos e muito agitados. Havia algo de muito estranho nele naquela noite, mas talvez fosse a bebida (e a maconha que ele quase certamente havia fumado). — Eu só queria companhia. Vocês topam?

— Topo — Jungkook respondeu logo na sequência. — Tudo bem por você, Cindy?

— Claro! — Mexi a cabeça sutilmente e sorri de novo para Hoseok. De algum modo, eu sentia que ele precisava da garantia de que todos estavam bem para estar também.

Saímos do carro pouco depois, e imediatamente amaldiçoei a mim mesmo por captar os poucos sinais de que estava certo sobre Hoseok, pois Jungkook pareceu muito preocupado quando o tocou nas costas e apertou carinhosamente seus ombros. Eu não os conhecia bem o bastante para dar sentenças, mas intuição podia ser um castigo quando algo saía do lugar, e eu apenas soube que as coisas não estavam como deveriam. Foram fagulhas aqui e ali, um arranjo equivocado de cores que não combinavam. A matemática disso me soou simples: os vestígios da briga ainda o perturbavam.

Ninguém falou nada, no entanto. Nenhuma menção ao ocorrido.

Seguimos tranquilamente pela areia. As tentativas de Hoseok de manter a conversa casual eram quase dolorosas, àquele ponto. Jungkook, caminhando no meio, adicionava um comentário ou outro ao que ele dizia, tentando — ou parecendo tentar — conscientemente não forçar a barra. Eu, um outsider, sequer ousei trazer o elefante à tona, ainda que todos o víssemos rolar para lá e para cá enquanto ria e nos esmagava. Demos nosso silêncio de sacrifício num pacto taciturno e, agora, agíamos como se nada terrível estivesse acontecendo.

— Você deveria ver um ensaio nosso qualquer dia desses, Jimin. — Hoseok abanou as mãos com entusiasmo, caminhando de frente para nós e de costas para a fogueira que se aproximava. Por pouco não notei o olhar furtivo que ele deu a Jungkook, pois eu estava muito atento a qualquer obstáculo que pudesse surgir e fazê-lo cair. Sibilei para que Hoseok tomasse cuidado e tentei, ao mesmo tempo, indicar que ainda o ouvia. — O Jungkook ia adorar que você fosse. Fala aí, Jungoogão

Minhas pupilas dilataram como pontos de manteiga dissolvendo na língua. Demorei apenas um ou dois segundos para olhar para Jungkook, como se estivesse esperando a manteiga se desfazer completamente para recebê-lo como deveria. A risada de Hoseok tintilou no fundo e estava sincronizada ao semblante contido de Jungkook, com aquele lábio carmesim preso entre os dentes enquanto ele ria, incrédulo, e punia Hoseok com os olhos verdes de rios áureos. Sua cabeça tombou sutilmente para o lado antes que, sem me olhar, ele dissesse:

— Eu adoraria, sim.

— Ele amaria.

— Hoseok — alertou, severo, embora muito suave. A risada incrédula e perturbadoramente atraente soou de novo quando ele me encarou, vencido. — Mas... é. Eu... realmente adoraria que você fosse, Jimin.

Abri e fechei a boca, sem saber o que dizer, pois era difícil traduzir a sensação agradável de ser convidado. Isso não me ocorria com muita frequência, meus "amigos" eram os amigos de Kyuhyun e eu não tinha, exatamente, um grupo só meu. Taehyung era a única pessoa fora do antro com quem eu mantinha contato, devia a ele todos os bons momentos que vivi na adolescência e, agora, no início da vida adulta. Se não fosse sua boa vontade e a persistência em permanecer ao meu lado mesmo depois de se formar na escola, eu provavelmente não teria com quem contar além de Kyuhyun e a corja de amigos nojentos que me tratavam como seu chaveiro.

Por isso, fiquei ali, tentando achar as palavras certas, as reações mais adequadas, a forma menos exagerada de mostrar que eu estava grato pelo convite.

— Eu posso mesmo ir? Quer dizer, não é algo super particular? — Decidi que era melhor buscar pela confirmação de que eles falavam sério. A última coisa que eu queria era que estivessem me chamando por cordialidade ou obrigação. — Seria incrível, mesmo! Mas não quero atrapalhar...

— Ah, não, imagina, Jiminitito! — Hoseok voltou a caminhar ao lado de Jungkook, curvando-se um pouco para me olhar. — O Taehyung vivia falando de você pra gente. Ele comentava que queria te trazer pros ensaios pra te tirar da bolha pop e te introduzir no mundinho do rock alternativo. Palavras dele, não minhas!

Eu ri, porque sabia o que Taehyung queria dizer com aquilo. Ele estava sempre tentando me tirar de casa para mostrar novas pessoas, músicas e ambientes.

— Ele comentou do EVIL comigo, eu só não tinha parado para pesquisar ou saber mais sobre. Sou muito apegado à minha zona de conforto — expliquei, muito concentrado em mexer distraidamente na costura da minha camiseta. — Mas gostei bastante da apresentação no Jude's. O Festival de Verão também foi muito legal. Acho que o EVIL conseguiu furar minha bolhinha pop, tenho até as músicas de vocês baixadas.

— Mentira? Sério? Você ouviu isso, Goo? — Ele apontou para Jungkook, depois para mim e para Jungkook de novo. Um sorriso terno tomou espaço no meu rosto com sua animação. — Mais um motivo pra você ver nossos ensaios, Jimin. A gente tá com umas músicas novas pra esse próximo semestre e precisamos da opinião de alguém que não seja da área. Um ouvinte casual, sabe? Cacete, Jungkook! Achamos nosso novo crítico!

— Você tá chapado pra caralho, Hobi. — Jungkook riu e balançou a cabeça em negação. Ainda assim, concluiu: — Mas tem razão. Sua opinião seria muito valiosa pro álbum, Cindy. Se você topasse ouvir, é claro.

— Eu topo! — Nem respirei antes de responder, o que, naturalmente, rendeu um ligeiro arrependimento subsequente que tentei camuflar com algumas tossidas. — Quer dizer, hã, preciso saber onde vocês ensaiam, os dias e os horários em que eu poderia aparecer.

— A gente ensaia na minha casa e às vezes na do Gui. — A resposta veio de Hoseok, que apontava para frente enquanto balançava o corpo como se dançasse uma música longínqua que só existia na sua cabeça. — Que tá ali terminando com meu baseado, aquele safado. Yoongi! Meu beck, porra!

Yoongi estava pouco à frente, sentado numa cadeira de sol ao lado de Namjoon, que bebericava de uma lata de cerveja. Eles estavam mais afastados da fogueira do que os poucos convidados que restavam e pareciam conversar em meio às tragadas profundas de Yoongi e os goles longos de Namjoon. Havia uma harmonia singular os envolvendo, ninguém poderia dizer que tinham sido figuras marcadas num cenário de horror. Yoongi parecia em paz ali, e só então constatei ser a primeira vez que o via sorrir. Era um sorriso gengival e extraordinariamente doce para alguém tão... afiado, a princípio.

Quando estávamos perto o bastante para que Yoongi não pudesse mais ignorar os protestos de Hoseok, ele nos olhou com certa preguiça, o sorriso esmaecendo quanto mais era puxado à realidade ao seu redor. Namjoon, em sua costumeira tranquilidade, acenou na nossa direção e virou o resto da cerveja. Colocando a latinha ao lado da cadeira, sobre o chão de areia, ele comentou:

— Seu beck foi ver Jesus. — Deduzi que falasse com Hoseok, que reclamava numa voz alta e, ao mesmo tempo, muito mole.

— Caralho, o Yoongi tá uma chaminé da porra! — Sua queixa saiu manhosa, muito similar a uma criança pidona e insatisfeita.

— Você soca maconha no cu toda semana. Me esquece, vai. — A aspereza de Yoongi terminou de moer os vestígios de sorriso no rosto delicado e bonito. A ponta chamejante do baseado que levava à boca ardeu com mais intensidade quando ele puxou a fumaça para dentro.

No segundo seguinte, ele estendeu o cigarro na minha direção, os olhos tão escuros como o horizonte negro paralelo à linha do mar.

— Quer?

— Eu? — Que pergunta idiota, Jimin. O sangue subiu para o rosto instantaneamente. — Ah, eu não... não fumo. Mas obrigado.

Ele deu de ombros e jogou o corpo no encosto da cadeira. Hoseok foi o primeiro de nós a se sentar na areia, e logo o seguimos. Yoongi passou o cigarro para Jungkook assim que ele se ajeitou ao meu lado.

As serpentes nebulosas rastejando da sua boca entreaberta me deixaram zonzo. Aqueles olhos semicerrados pareciam prontos para me encurralar com a mesma dedicação com que acompanhavam a fumaça subir e desvanecer. Ele ficava terrivelmente atraente com aquele cilindro mortal preso entre os lábios, pulsando brilhante como um farol no Inferno.

— Onde vocês se enfiaram? — o baterista perguntou despretensiosamente. Ele, como eu, assistia Jungkook tragar com muita atenção.

— No meu carro — respondeu, curto e simples, sem devolver o olhar. — Ouvindo música.

Fiquei tão tenso que me forcei a encarar o chão. Eu não sabia que prezava tanto pela simpatia de Yoongi até congelar pelo medo de que ele me odiasse. A ideia de que ele teria raiva da minha proximidade com Jungkook era assustadora — talvez boba e ilusória, na mesma proporção —, e eu não queria receber mais um fardo de rancor. Não ter a menor dimensão dos sentimentos remanescentes me causava certa ansiedade, pois eu nunca sabia o que esperar. Só desejava que Yoongi percebesse que eu não tinha intenção de magoá-lo, e que Jungkook tampouco era alguém possível para mim.

— Ainda tem camarão. Você não comeu nada, né, Jimin? — Era a voz de Namjoon. Levantei o rosto, mas não fiz contato visual com ninguém e foquei no laranja vibrante da fogueira ao fundo. — Vou lá pegar uns petiscos.

— Ah, não precisa! Mesmo! — garanti, agora fazendo força para encarar Namjoon. — Eu posso ir buscar.

— Relaxa, eu já ia pegar outra cerveja. Vai querer beber alguma coisa? E tu, Jungkook?

— Uma cerveja, também. — Jungkook passou o cigarro de maconha para Hoseok e apoiou os braços sobre os joelhos antes de virar para mim. — O que você quer beber, Cindy? Tem suco, água, refrigerante. Tem alguns drinks, também.

— Gosto de suco — respondi, pois não arriscaria me aproximar de uma gota sequer de álcool naquela noite.

— Suco de melancia parece bom, Ji? — Namjoon já se levantava e recolhia a latinha ao lado da cadeira.

— É um dos meus preferidos. — Sorri, e olhei para Hoseok, que estava completamente fora de órbita com o resto de baseado na boca. — Acho que uma água pro Hoseok seria bom, também...

— Nossa, sim. Bem lembrado. — Os olhos do baixista revistaram Hoseok de cima a baixo. A careta de Namjoon me fez rir suavemente e esquecer um pouco a tensão à qual eu me agarrava.

— Ele precisava mesmo era ir pra casa, tomar banho e dormir oito horas completas de sono — Yoongi adicionou. Fiquei menos aflito quando notei que sua voz não estava mais ou menos áspera do que o usual. Ele parecia igual. — E comer mais vegetais.

— Mas isso até você, né, anarcogatinho. — Anarco... o quê?

Não captei o apelido, mas não perdi — e nem poderia perder — a carranca imediata nas quais os traços delicados de Yoongi se converteram.

— Vai tomar no cu. Pega logo a porra das bebidas, Namjoon. — Ao fim da frase, Namjoon já explodia de rir. Jungkook parecia achar tudo muito engraçado com os olhos atentos e um sorriso largo.

O baixista nos deixou ainda aos risos, confirmando uma última vez o que deveria pegar antes de sair do pequeno círculo que havíamos formado. Jungkook cutucou meu joelho e meus olhos encontraram os seus quando ele fez toda questão de me explicar a graça do apelido de Yoongi. Eu já nem prestava tanta atenção, porque me bastava que ele se importasse o suficiente para não me deixar de fora e que se esforçasse para me introduzir nas piadas internas do EVIL.

— Yoongi é anarquista. Ele tem ideais políticos bem radicais, no melhor sentido da palavra. "Anarcogatinho" vem disso e do fato de que ele se comporta como um gato. — Aproveitando o fato de que ele parecia disperso demais para nos ouvir, encarei-o enquanto Jungkook me contava.

Eu não entendia nada de política, mas sabia que Yoongi não poderia ser menos do que era: firme e radical. Sentia-me como um adolescente fascinado por um ídolo distante e descolado demais para cidades pequenas.

— Yoongi hyung é muito legal — verbalizei, piscando devagar para não perder detalhe algum.

— É engraçado. Você chama todos pelos nomes, mas adiciona "hyung" no dele. E no meu, às vezes. — Jungkook precisou fazer aquela observação para que eu notasse que não sabia a idade dos outros meninos e que, até então, chamava-os pelos nomes como se tivéssemos alguma intimidade. — Não precisa fazer essa cara, eles não levam essas regras tão a sério e Samanda é muito liberal nesse sentido.

— A gente não costuma pegar no pé com honorífico — Yoongi, que eu não imaginava que estivesse prestando atenção em nós, comentou. — Mas não dispenso, não.

— Acho mais seguro usar... E eu nem tinha percebido que quase não usei com os garotos. Me sinto envergonhado agora. — A pior parte, no entanto, era pensar que Yoongi havia possivelmente escutado meu comentário juvenil ao seu respeito.

— Desencana, garoto. Eles nem devem ter percebido.

Depois de alternar o olhar entre o baterista e eu, Jungkook finalmente pousou as esmeraldas sobre mim e me empurrou suavemente com seu joelho. Com um sorriso espirituoso, sussurrou para que apenas eu o ouvisse:

— Viu? Ele não é tão assustador quanto parece.

Tem razão, pensei, e meu coração se abrandou com a ternura desse reconhecimento. No mesmo instante, com uma vasilha de camarões empanados em uma mão e duas cervejas na outra, Namjoon apareceu pressionando o copo com suco e uma garrafa de água no espaço entre os bíceps e o antebraço. Uma comoção imediata ebuliu na roda, comentários difusos que variavam entre alertas para que Namjoon tomasse cuidado e lembretes de tragédias passadas envolvendo uma suposta habilidade inata para derrubar coisas. O suco chegou ileso, e a cerveja de Jungkook foi posta sã e salva entre suas pernas. Um dos camarões não pôde sobreviver à movimentação e caiu num baque abafado na areia, mas Hoseok — cujo baseado acabara — garantiu que aquilo era uma vitória.

— Lembra quando ele derrubou a bandeja de batata e ela rachou? Tipo, no meio. — Era muito curioso como Hoseok ria com o corpo inteiro.

— Daí comprou uma nova na semana seguinte e quebrou de novo. — As risadas de Jungkook eram mais discretas e moderadas, mas a superfície cristalina dos seus olhos não mentia. As películas aquosas e cintilantes que tremeluziam ao vislumbrar seus amigos pareciam quentes, familiares, e se pudessem falar, eu tinha certeza de que diriam: "Isso é lar".

Assistindo-os em silêncio, pensei que talvez não houvesse tradução suficientemente fiel daquele laço. Era o tipo de experiência que não cabia nessa ou naquela combinação simplória de palavras. Eles riam e se provocavam e riam de novo e de novo e de novo, porque sabiam — e essa era apenas a minha dedução — que não pertenciam a nenhum lugar senão ali, uns com os outros, e que rir de novo e de novo não era nada além do que faziam aqueles que estavam onde pertenciam.

O suco de melancia mantinha-se praticamente intocado enquanto eu tentava entender por que não conseguia sentir inveja, ainda que tivesse inúmeras razões para isso. Era estranho; eu estava tão acostumado com aquele caminho, tão familiarizado com meu próprio funcionamento que suspeitava de mim mesmo. Por que não sentia inveja? Por que não doía?

Veio depois, quando eu estava distraído comendo camarões e Hoseok começou a provocar Namjoon sobre como ele deveria ter aulas de moda comigo.

Foi um estalo morno, apesar da abertura profusa de horizontes infinitamente mais coloridos. Meus braços, ombros, pernas, tudo pesou, mas no melhor dos melhores sentidos; eu estava, de novo, em terra firme. Não pude fazer nada, não soava correto fazer nada além de rir de mim, da situação, e da conclusão de que, ora, como podia sentir inveja? Eu estava feliz só de saber que não era um chaveiro, de que era uma pessoa, um garoto — mais novo e ingênuo, é verdade — recém introduzido naquele mundo e, no entanto, recebido sem maldade, sem desprezo, sem julgamento. Eles só queriam que eu me sentisse à vontade. Só isso. Não precisei ter um conhecimento avançado de rock, entender muito sobre política, fumar maconha ou beber cerveja. O EVIL me trazia à conversa sem que eu fizesse um esforço consciente para estar entre eles, pois aquilo... aquilo era apenas quem eram: pessoas calorosas e gentis. Genuinamente gentis.

Fiquei tão contente que deixei Hoseok experimentar minhas presilhas e passei bons minutos dando pulos eufóricos com as diferentes combinações que ele arrumava no seu cabelo curtinho. Namjoon estava tão intrigado com a capacidade que elas tinham de adornar que quis tentar também. Ele me pediu ajuda quanto ao manuseio, pois morria de medo de quebrá-las, embora eu garantisse que eram baratas e que tinha um bocado em casa. Curioso, mas distante, Yoongi observava os arranjos e opinava vez ou outra. Ele acabou sendo convencido por mim de que presilhas eram uma forma bonita e prática de tirar a franja dos olhos, mas disse que não combinavam com ele e que preferia apenas colocar um boné quando o cabelo não estivesse como queria.

Tínhamos engajado em uma conversa sobre o uso de maquiagem como expressão artística — Namjoon havia introduzido a questão — quando notei que Jungkook estava em silêncio havia algum tempo. Ele era mais observador do que falante, mesmo entre os amigos, mas fazia pontuações assertivas e muitas vezes absolutamente hilárias para quem já havia entendido seu vício em sarcasmo. Não era de se entusiasmar demais, mas estava sempre ali, presente, contribuindo de alguma forma.

Não muito atento, e particularmente afobado pelo assunto que eu entendia e amava, por pouco sua quietude não me fugiu. Num desvio discreto, tão breve quanto fosse possível, decidi arrastar meus olhos até ele apenas para assegurar que ainda estava ali — apesar de saber que estava e de ser impossível não o notar mesmo em circunstâncias como aquelas. Os pelos da minha nuca reagiram com tanta obediência que pareceram minúsculos filetes ensaiados num efeito dominó reverso. Foi como se, por alguns segundos, tivesse me esquecido do quão inescapavelmente vulnerável estava e, de repente, fosse devorado pelo sentimento que eu mesmo alimentei em segundo plano, quase acidentalmente.

As clavículas expostas chegaram até mim somente após uma jornada demorada pelo caimento covarde daquela camiseta larga, recuada em posição arriscada no braço direito. O rosto carimbado de exposição solar descansava na palma da mão, e as jades maculadas por pequenas auréolas estavam fixas em mim como se decorassem meus segredos mais sórdidos.

— O que foi? — perguntei num sopro de voz, sem real expectativa de uma resposta, pois não era capaz de esperar por nada além de uma epifania. Qualquer movimento poderia ser fatal.

— Nada — ele respondeu com um estalo de língua melodioso e sorriu, pupilas dilatadas em duas lagoas negras prestes a me drenar. Com o rosto ainda descansando sobre a mão, deslizou a ponta do mindinho até tocar o lábio. — É fascinante te ver falar do que gosta.

— Ah... — soltei instintivamente, apenas parcela do ar que prendi sendo liberta. Tinha tanta certeza de que ele se divertia que fechei os olhos, como se isso pudesse me proteger. — Eu falo muito quando tô empolgado.

Jungkook ergueu o rosto, deixando que o braço caísse para o colo.

— Não é uma reclamação. É a primeira vez que te vejo falar tão apaixonadamente de algo — garantiu, com um zelo palpável na voz. O cuidado para não me assustar era muito bem-vindo na forma como usava as palavras. — Eu acabei me dando conta de que não sei se você tem um sonho, o que ama, e o que detesta. Só sei que, se quiser, e quando quiser, eu adoraria ouvir sobre.

Sobre mim. Ele adoraria ouvir sobre mim.

Nunca achei que houvesse algo especial nas coisas que eu amava, ou que o fato de as amar me distinguiria da infinidade de pessoas que também o faziam. A relação era de pura satisfação, um prazer particular sem compromisso com um objetivo de vida maior ou necessidade de reconhecimento externo. Eu amava o que amava incondicionalmente — de graça, sem exigências, num mundo de paixões capitalizadas. Talvez por isso não tivesse qualquer intenção de compartilhar meus prazeres; eles não teriam qualquer validade se não estivessem atrelados a um projeto grandioso e socialmente bem-quisto.

Tive medo de que minha reação fosse desproporcional. Morria de vergonha de demonstrar que coisas tão bobas como falar dos próprios gostos era novo para mim, e que sentia meu coração sangrar de entusiasmo só por sua breve demonstração de interesse. Eu ainda era apenas um jovem à deriva, criado a ferro e fogo pela ideia de que não era especial o bastante para que qualquer coisa sobre mim merecesse atenção. Uma série de trancas reforçadas me impedia de despejar todas aquelas paixões, mas a prevenção não era absoluta e estava sempre sujeita à corrosão.

E Jungkook as corroeu. Fácil, rápido, simples, sem artimanhas ou estratégias, somente olhos verdes e um sorriso bonito.

— Bom, eu... gosto de maquiagem, de moda, de tudo que envolva beleza — contei baixinho, praticamente numa confissão, e desviei os olhos para a areia. — Eu também gosto de escrever, e não sei bem se isso tem a ver com beleza, mas comecei a gostar de poesia por causa da beleza das palavras. Acho que acaba se conectando.

Eu não o olhava e cheguei a pensar que isso poderia ser rude, mas tinha certeza de que Jungkook entenderia, pois ele continuava atento e eu apenas sabia que o sorriso permanecia ali.

— Eu deveria saber que você escreve — pontuou apenas depois de um tempo em silêncio, garantindo que eu havia terminado de falar.

— Hm? Por quê? — Por notar que ele conduzia tão delicadamente a conversa, acabei me soltando um pouco mais. Arrisquei encará-lo de canto. Com o indicador, fiz um círculo torto na areia. — Eu pareço alguém que escreve?

— Não sei se existe algo como "parecer que escreve", mas eu posso te imaginar perfeitamente como um escritor pela forma como você se comunica. É bonita, eloquente, sensível... — Uma a uma, as sílabas caíram em blocos na brisa marítima que o atingiu. As pálpebras desceram pelos instantes em que a corrente fresca de vento nos beijou o rosto. — Só parece certo, sabe? Que alguém tão complexo como você tenha algo a dizer e que escreva sobre isso.

— Não escrevo nada profundo ou importante. — Senti a súbita necessidade de minar quaisquer fossem suas expectativas a respeito disso. Não queria que ele criasse um ideal genioso de alguém tão simples como eu. — Só coisas bem aleatórias e turbulentas, como inquietações do dia, trechos de poemas que gostei, letras de músicas. Às vezes narro coisas cotidianas e reescrevo memórias.

— E o que te faz pensar, Jimin-ah... — iniciou em tom de pergunta, com os dedos viajando até a ponta do meu nariz — que isso não é profundo ou importante?

Risonho pelo aperto brincalhão que já havia virado sua marca registrada, eu me encolhi, divertido, e respondi sem muito pensar:

— Porque sou eu.

Sua mão já estava distante quando estreitou os olhos e franziu levemente o espaço entre as sobrancelhas. Sua expressão não era severa, mas estava longe de ser displicente.

— Não concordo com você. — Arqueou uma das sobrancelhas, com o lábio repuxado em algo que não chegava a ser um sorriso. — Não que isso importe, não sou ninguém. Mas discordo.

— Eu também discordo de você. — Atrevido, fiz um estalo descontraído com a língua. — Você nunca conseguiria ser "ninguém". Você é muito alguém para ser ninguém.

Só percebi a bagunça de palavras quando suas bochechas inflaram e uma gargalhada fez menção de eclodir na sua garganta. Seus lábios apertados seguravam a melodia lá dentro.

— Isso não fez nenhum sentido, né? — perguntei, àquele ponto já quase cedendo ao contágio da sua risada iminente. — Eu falei absolutamente nada e mais uma série de nadas. Hyung... ei! Não ria!

— Desculpa. — No fim, ele riu. As vibrações se ramificaram até seus olhos e seu rosto inteiro riu junto. Ele parecia um sonho daquele ângulo (talvez de todos eles). — Isso sou eu tentando digerir a sua genialidade.

— Seu conceito de genialidade é estranho...

— Chegamos ao nível de intimidade em que você começou a ofender minha capacidade de apreender conceitos? É isso? — Jungkook levou o indicador até o queixo com uma careta séria.

Abanei as mãos em profunda inquietação.

— Não, não foi isso!

Tão logo surgiu, a seriedade se desmanchou num sorriso descarado.

— Tô te zoando, Cindy. — Assobiou travessamente e se aproximou o bastante para soprar minha franja. Já tão perto que as notas de morango me embriagavam, Jungkook lançou uma piscadela cínica antes de murmurar como se segredasse uma profecia: — Pode me ofender outras vezes.

— Hyung!

— Ok, ok. Parei. — E se afastou, agora rindo mais sutilmente. — Mas, falando sério, te acho mesmo genial. Não tenho razão nenhuma pra mentir sobre isso.

Eu sabia que não. Jungkook não parecia do tipo que precisava provar algo a alguém.

— Sei que não. Só é... sabe? Difícil pra mim. Quer dizer... — Zona perigosa. Balancei a cabeça na tentativa de espantar minhas angústias e evitar que aquele diálogo evoluísse para onde não deveria. — Não sei. Não costumo receber elogios, acho que também lido mal com eles.

— Acho que nós dois temos que trabalhar nisso, então. — Quando percebi, ele já havia enganchado o dedo mindinho ao meu. A prata fria do anel e o quente da sua pele me causaram pequenos choques. — Prometa tentar que eu prometo também, Cinderela.

Como se eu pudesse negar, pensei, como se eu tivesse qualquer opção de não tentar quando você me pede assim, Jungkook.

— Prometo.

Era muito provável que fosse apenas algo da minha cabeça, mas, naquele segundo, juraria por toda minha vida que senti nossos dedos eletrizarem completamente, uma pontada aguda nos ligando por algo que nem era possível descrever.

Pela conversa de plano de fundo, eu sabia que o assunto continuava independente da nossa reclusão temporária. Não tive receios de ficar daquela forma um pouco mais; mesmo os perigos dos toques oblíquos e palavras dúbias pareciam toleráveis — prazerosos, a rigor —, porque Jungkook, como eu, conhecia os limites aos quais deveríamos nos deter.

Se me perguntassem, não saberia responder onde teríamos parado se os soluços de Hoseok não houvessem chamado nossa atenção — talvez tivéssemos ficado parados por um bom tempo, de qualquer modo. Entre agradecer e lamentar, escolhi não ponderar nenhuma das opções; agora, um dos amigos de Jungkook chorava e havia sido tão súbito que, pegos de surpresas, nós dois viramos na direção dele sem pensar tanto no que acontecia antes.

— Desculpa, peguei vocês de surpresa... — Foi tudo que consegui distinguir na voz quebrada de Hoseok. Ele estava sentado no colo de Namjoon e escondia o rosto enquanto Yoongi se inclinava o suficiente para arrastar os dedos sobre seu joelho. — Foi mal, galera.

— Cala boca. Para de pedir desculpas por isso — Yoongi grunhiu na sua forma tão atípica de demonstrar apoio.

Surpreso, e sentindo, de algum modo, que eu não deveria estar ali, permaneci em silêncio. Desejava profundamente respeitar aquele momento, dar a Hoseok o espaço que me foi dado quando chorei na praia com Jungkook, mas não seria delicado sair dali. Doía vê-lo daquela forma, como se tivessem lhe arrancado uma peça insubstituível, pois se Hoseok, em toda sua alegria e esplendor, estava tão exposto à angústia quanto todos nós, era assustador o que poderia acontecer dali em diante. Não parecia certo que alguém como ele sofresse assim. Eu não gostava sequer de pensar no que poderia machucá-lo naquela intensidade, e não sabia se estava preparado — ou se tinha qualquer direito — de entender.

Quis me aproximar, mas olhei para Jungkook antes de fazer qualquer movimento. Ele ainda estava ao meu lado, não muito surpreso, embora inteiramente atento ao amigo e estendendo a mão apenas o bastante para tocá-lo na panturrilha. Logo percebeu que eu o olhava, e sem necessidade de qualquer palavra, meneou a cabeça num incentivo singelo para que eu chegasse perto de Hoseok.

A princípio, eu não disse nada. Não sabia o que o feria, qual a origem ou o significados de todos seus demônios, e entendia mais do que ninguém a importância de zelar pelo seu momento. Sua liberdade deveria ser terminantemente respeitada. Se era chorar e ficar em silêncio o que ele precisava, não estava em qualquer posição de forçá-lo a elaborar suas dores. Por ora, parecia-me suficiente estar ali enquanto ele sentia e desaguava.

— Hobi... — chamei baixinho, não com qualquer intenção de que me respondesse, mas desejando que ele soubesse da minha presença e tivesse espaço para me pedir para sair se assim desejasse. No final, eu ainda era um quase estranho entre eles. — Tô aqui, tá?

Com o rosto fundo entre os dedos longos, ele soluçou:

— Jimin-ah, d-desculpa...

— Não, não! Tá tudo bem, tá tudo bem! Não pede desculpas e nem precisa se explicar, tá? — À sua frente, quando finalmente tomei coragem para me aproximar, ajoelhei na areia e toquei seu braço com muito cuidado. — Eu também chorei agora pouco, e me fez muito bem. Só deixar ir, tá? Deixa ir. Não precisa explicar nada.

Embora não tivesse esperança de que ele se revelasse tão cedo, Hoseok ergueu o rosto molhado por curtos segundos. Não esperava que compartilhasse aquela vulnerabilidade comigo, eu não era exatamente um amigo próximo naquele instante, mas saber que ele confiava o suficiente em mim para me dar o vislumbre triste de seus olhos vermelhos me tocou.

— Você é mesmo tão gentil quanto o Taehyung contou.

Depois de me dar os instantes da pouca sobriedade que o restava, Hoseok voltou a se encolher, dessa vez no peito de Namjoon, com alguns soluços fracos e promessas de que aquilo "logo pararia". Fiquei estático, quente pelo elogio e, apesar disso, devastado pela situação. Não era como se algum mapa viesse acoplada às expectativas dessa ou de muitas outras noites, e mesmo com plena ciência disso, a cada nova curva eu tinha impressão de que um novo precipício estava à espreita.

Havia me custado menos que um exercício intuitivo para saber que algo estava errado com Hoseok, mas nenhuma hipótese nos preparou ou tornou suas lágrimas menos dolorosas. Seus amigos não estavam de todo impressionados pelo desfecho, mas a preocupação era palpável e deduzi que apesar de terem uma ideia do que poderia acontecer, a proporção que as coisas tomaram os assustou.

Namjoon era o que mais levava jeito com as palavras e, portanto, o que mais falava entre eles. Yoongi e Jungkook esperaram pacientemente até que o baixista tivesse sucesso em acalmá-lo para fazer alguma coisa; enquanto isso, eu continuava por perto, em silêncio, com os lábios apertados e uma impotência terrível.

— Toma, bebe mais água — Jungkook quem falou, alcançando uma garrafa metade cheia para entregá-lo. Agora, Hoseok já tinha parado de soluçar.

— Você quer falar sobre isso? — A voz de Yoongi estava ainda mais grave do que o usual quando ele perguntou.

Depois de terminar com o restante de água da garrafa, Hoseok respondeu sem olhá-los:

— Hoje não, ok? Outro dia, mas hoje não. Tô chapado demais.

Todos concordaram. De novo, o silêncio se instalou.

Eventualmente, a água, a quietude e o apoio surtiram algum efeito: Hoseok estava mais lúcido e tinha parado de chorar. Namjoon foi absolutamente indispensável para que o clima se dissipasse, pois não saberíamos o que fazer se ele não estivesse ali; nem Yoongi ou Jungkook pareciam muito bons em lidar com aquele tipo de situação, e eu não conhecia Hoseok o bastante para isso.

A conversa ressurgiu aos poucos, com algumas piadas idiotas aqui e ali sobre as — segundo Jungkook — "surpresas exóticas de uma noite no mínimo emocionante". Não muito depois, Yoongi nos chamou atenção para o fato de que já passava da meia-noite e que estávamos praticamente sozinhos. Parte da festa tinha sido tão proveitosa que não vi o tempo passar, e agora, com a praia quase vazia e uma fogueira à beira da morte, lembrava-me do pequeno — e crucial — detalhe de que eu não tinha mais carona para voltar para casa.

— Vou precisar ficar pra organizar as coisas — Hoseok disse, alguns rastros de lágrimas ainda presentes no rosto mesmo que ele se esforçasse para esconder. — Namjoon tá de folga amanhã, né?

— Graças a Deus. — Com as mãos erguidas, Namjoon riu e agradeceu. — Eu fico pra te ajudar. O Gui e o Goo trabalham amanhã.

— E o garoto? — Yoongi apontou com o queixo para mim.

— Eu levo. — Antes que eu dissesse que pretendia voltar de Uber, Jungkook me olhou, um sorriso pequeno repuxando seus lábios vermelhos. — Se você quiser, Cindy.

Ah, que coisa...

— Posso ir de Uber, não precisa se incomodar — adiantei, pois parecia muito abuso fazer com que ele me levasse tendo expediente no dia seguinte. — Não moro tão longe assim daqui, nem fica caro.

— Sua casa é caminho. Não seria incômodo nenhum.

— E você sabe onde ele mora? — Namjoon ergueu uma das sobrancelhas. Sua voz tinha algumas notas contidas de riso.

— Verdade. Você sabe onde o Ji mora? — Foi Hoseok, dessa vez.

O sangue do meu corpo inteiro se aglutinou no rosto. Não sabia nem por onde começar a digerir aquele pânico bobo que me sufocou tão rapidamente. Por instinto, encarei Jungkook, que parecia tão calmo quanto prestes a cometer alguma atrocidade indizível.

— Boa noite, grandões — ele respondeu, cínico, sem fazer nenhuma questão de se explicar. O braço tatuado percorreu meus ombros com uma graciosidade impressionante e ele apenas me puxou delicadamente para longe. — Até mais.

— Óia, que cara de pau... — Ouvi Hoseok acusar. — Tchau, Jiminnie!

— Ah, hã.. — Perdido, em pânico interno e bêbado na proximidade com Jungkook, apenas acenei. — Tchau, gente! Obrigado pela festa, desculpa qualquer coisa...

— Tchau, Jimin! Manda o safado do Jungkook responder a gente no chat depois! — As risadas de Namjoon me fizeram fechar os olhos de tanta vergonha.

— Jungkook mandou avisar que tem mais o que fazer do que responder o chat. — O próprio Jungkook acabou jogando a provocação de volta enquanto revirava os olhos com tédio e certa impaciência. Com os olhos fixos à direção oposta de onde os amigos estavam, ele girou o corpo, levando-me junto. — Desculpa os meus amigos, Cindy.

— Imagina. Tá tudo bem — comentei, vendo, por cima do ombro, Yoongi acenar sem dizer nada conforme nos afastávamos. Meu coração começava a acelerar demais no peito.

Muitas informações iam e vinham sem parar, frenéticas e instáveis como pipocas descontroladas na panela. Em partes, eu sabia que estava sobrecarregado pelo dia intenso, não queria me exigir tanta clareza quando era tão óbvio que não estava habituado ao ritmo em que minha vida começava a andar. Na mesma proporção, ficava angustiado e ansioso com a sensação de que não havia filtrado o que deveria, ou organizado suficientemente meus sentimentos para conciliá-los com as inúmeras possibilidades que não paravam de surgir e se misturar a cada sucessão confusa de eventos.

Não era minha responsabilidade ter respostas prontas para perguntas amplas e imprecisas — racionalmente, eu sabia bem disso. Parecia impossível, entretanto, navegar com tranquilidade sem uma âncora, solto num mar infinito sem saber para onde ir ou por onde começar — era precisamente como me sentia, fraco e imaturo, à mercê de um mundo complexo que eu não havia nem mesmo começado a entender, e que certamente não tinha bravura para enfrentar.

As dores de Hoseok, a raiva de Yoongi, o medo de Kyuhyun. Era tudo demais. A noite havia sido conturbada e eu me sentia inteiramente encarregado de abraçar tudo que podia, caso contrário, seria muito egoísta de sequer olhá-los outra vez.

Em determinado momento, Jungkook tirou os braços dos meus ombros sem dizer nada. Ele era realmente muito bom naquele departamento curioso dos "silêncios confortáveis", que eu nem imaginava existir para além da minha amizade com Taehyung. Talvez eu nunca o dissesse com todas as palavras, mas agradeceria pelo resto dos meus dias que ele oferecesse tantos espaços seguros mesmo quando não tinha qualquer intenção de fazê-lo. Eu já estava começando a me acostumar com a ideia de que era um talento inato que muitas vezes se manifestava inconscientemente.

— Tem certeza que não vou te incomodar com a carona? — Vi seu carro pouco à frente e resolvi perguntar enquanto observava meus pés afundarem na areia só para ressurgirem de novo e repetirem todo o processo.

— Eu pareço incomodado, Jimin-ah? — Sorri imediatamente com o tom espirituoso e um tanto divertido da sua voz, quase como se os bons momentos daquela noite nebulosa repentinamente sobrepusessem todas as dúvidas azedas.

Olhei-o de canto e ri baixinho.

— Não sei dizer. Você é mais difícil de ler do que pensa, hyung.

Como logo chegamos ao carro, só pude ouvir o clique rápido das portas destravadas. Jungkook abriu a do passageiro com um sorriso sugestivo no rosto, esperando que eu entrasse para fechá-la e dar a volta. Inquieto sob o cinto de segurança, observei seu trajeto até que ele estivesse ao meu lado. Eu continuava sem entender de onde havia tirado o atrevimento para sustentar aqueles olhos tão abençoados quanto profanos.

— Você me acha difícil de ler? — Ele girou a chave e o painel se acendeu à sua frente. — Estou fazendo um bom trabalho, então.

Uma música que reconheci ser do EVIL começou tocar tão baixo no rádio que quase não a escutei. De todo modo, eu já estava imerso demais naquela conversa para dizer que era uma das minhas preferidas por causa dele, da voz angelical viajando entre os versos, rasgando o refrão intenso e flutuando no trecho final.

— Eu ainda vou conseguir — falei, e deixei que uma segurança ardilosa me estufasse, pois era perigoso e divertido demais entrar naquele jogo sem um propósito claro.

— Me ler? — ele perguntou, risonho. O ronco do motor vibrou sob nós.

— Uhum.

— Hm... mesmo? — Após dar a partida no carro, com uma única mão, Jungkook pressionou o volante e manobrou com uma facilidade perturbadoramente atraente. As mechas vermelhas cobriram um dos seus olhos no mesmo instante em que ele tombou a cabeça na minha direção, e percebi, quase ofegante, que havia algo de muito charmoso no modo como seu rosto virou para mim antes que seus olhos me achassem. Quando aconteceu, um assobio ecoou antes que ele dissesse: — Que marrento. Vai ser um prazer te ver tentar.

Lembro de ter pensado, assim que ele voltou a atenção para a estrada, no quanto era injusto que as coisas fossem daquela forma, no quanto era cruel que eu não pudesse sentir em relação a ele tudo que era suposto que sentisse por outro alguém. Não queria ser ingrato, sabia que o fato dos nossos caminhos terem se cruzado era o mais próximo que chegaria de um milagre, talvez por isso me sentisse tão bobo quando uma fagulha de esperança se acendia. Era como se estivesse traindo meu próprio destino, se é que existia algum.

Havia uma pluralidade de motivos pelos quais eu nunca permanecia tempo demais na penumbra da minha cabeça toda vez que estava com Jungkook, mas o meu favorito era — e talvez sempre fosse — o fato de tudo com ele ser fácil. Mesmo num universo verdadeiramente terrível, ele parecia sempre seguro na própria pele, andava por aí com a sutileza de alguém que havia entendido, na essência, que as coisas significavam tudo e, ao mesmo tempo, absolutamente nada.

Eu não sabia como ele não estava constantemente aterrorizado pela ciência aguda das coisas, mas acabei me conformando de que era um segredo que deveria buscar por mim mesmo, pois tudo indicava — eu tinha quase certeza — que esse era o único caminho possível.

— Você tem pressa de chegar em casa? — Não me assustei quando ele perguntou, porque estava pensando no quanto não queria que aquele momento acabasse. Sua fala pareceu uma materialização dos meus pensamentos.

— Nem um pouco.

— Tem uma loja de conveniência 24 horas perto do seu bairro. Uma tal de Pavita. Você deve saber onde é. — Eu sabia, então meneei a cabeça para confirmar. Jungkook só voltou a falar quando terminou de fazer uma curva à direita. — Quer tomar um sorvete antes de ir?

Minha resposta, naturalmente, foi a mesma que gritavam as cento e uma borboletas na barriga, clichê do qual não abdicaria em nome de nenhuma originalidade falsária ou presunção artística. Quão extraordinário era poder lembrar das passagens batidas de um romance qualquer e pensar, com suspiros adocicados por mel e açúcar, que fazia sentido; que todos os clichês vinham de algum lugar e, agora, você finalmente os conhecia.

Não seria difícil me debruçar interminavelmente sobre cada sensação vivida até que estivéssemos eternizados na memória bonita daquele exato instante, com colheres de plástico azul cheias de sorvete de pote, sabor torta de limão, sentados no meio-fio iluminado pela fachada da loja e um poste antigo. Ainda assim, durante aqueles segundos de conversas banais e risadas contidas, quis esquecer todo o plano de fundo, apertar um botão invisível que fizesse esvoaçar cada rastro até ali. Não precisava ser para sempre, não desejava nem que fosse por mais de uma hora; só queria mesmo, mesmo, que por alguns minutos não houvesse quaisquer formas — conscientes e inconscientes — de acessarmos o passado ou idealizarmos o futuro. Queria nos prender pela eternidade compacta de uma lembrança, mas no presente cru, puro, ali e apenas ali, nós e somente nós.

Que artifício engraçado havia sido aquele simples pote de sorvete. O estoque de picolés tinha acabado muito antes de chegarmos, o que era perfeitamente razoável para o verão samandense. À nossa disposição, os potes maiores eram os únicos — nenhuma possibilidade de acharmos casquinhas àquela hora da noite. Jungkook rodou o mesmo corredor uma porção de vezes atrás de colheres vermelhas, e eu só pude assistir com diversão o risco de frustração entre suas sobrancelhas quando ele percebeu que deveria escolher entre azul e verde. Para devolvê-lo alguma alegria, comprei um anel vermelho de açúcar cristalizado, alheio ao "deixa que eu pago" repetido inúmeras vezes. No fim das contas, consegui o que queria: entreguei o docinho simples e vi o sorriso fácil liquefazendo as ruguinhas de insatisfação.

Foi num piscar de olhos que me peguei hipnotizado pelas manchas de creme em contraste com seus lábios acerejados. O desafio era que trocássemos as mãos dominantes e perfurássemos o sorvete rígido com nossos braços menos coordenados; meu esquerdo e o direito dele. Jungkook fez uma pequena bagunça cavando com a mão direita — ele era incrivelmente desengonçado com ela e o fato de precisar fazer tanta força para tirar um pedaço dificultava tudo —, mas guiou as lascas disformes que conseguiu arrancar com tranquilidade até a boca. Devo ter encarado mais do que devia enquanto ele emitia grunhidos discretos de aprovação, pois, eventualmente, Jungkook parou, o lábio inferior pressionado pela colher à medida em que ele sorvia minúsculas fatias de limão. Seus dentes de baixo apareceram por breves segundos quando tirou a colher para falar e o lábio saltou sutilmente para cima.

— Não vai provar?

A sensação de que placas gelatinosas cobriam meus olhos durou mais do que o apropriado. Não vai provar? Senti a língua arder, só consegui prestar atenção ao borrão daquela boca convidativa se espalhando como um demônio opalescente que derretia sob minha visão turva. Não vai provar? Expirei em blocos, quase arfando, e lambi meus lábios secos para responder:

— Claro.

Tive raiva daquele poste idiota que o iluminava tão pouco e tão bem. Por quê? O pensamento veio feroz em resposta à tremedeira estúpida que me impediu de tirar a colher cheia de sorvete de dentro do pote. Torci muito para que Jungkook não notasse, estava desnorteado pelo medo irracional de que ele podia ler os pensamentos indecorosos que me perseguiam até no mundo dos sonhos. Maldita mão esquerda. Maldito sorvete duro. Eu não parava de tremer, não parava de pensar no irreal, no impossível, no...

— Quer ajuda? — Jungkook. O nome acendeu num fundo escuro dentro da minha cabeça. — Sua mão esquerda é pior que a minha direita ou o sorvete tá realmente tão rebelde?

Alternando meus olhos entre ele e o sorvete, pisquei algumas vezes e as coisas ficaram um pouco menos confusas.

— Hã... acho que a primeira opção...

Pfff... — caçoou, em tom de brincadeira e sem real intenção de me atingir. — Destros...

— Ei! O que é que tem?

— É assim que você agradece seu privilégio? Menosprezando um desafio com a mão esquerda? Que cruel, Cindy...

— Claro que não menosprezei!

— O que sua mão esquerda te fez para não receber o mesmo empenho da direita?

Descarado, ri comigo mesmo. Quão cômico era o fato de que nem meu nervosismo podia resistir ao seu charme?

— Em minha defesa, a colher é frágil e parece que vai quebrar se eu usar muita força. — Fui rápido em arranjar uma desculpa. A tremedeira havia parado, agora seria mais fácil pegar o sorvete.

Crack!

Então, a colher simplesmente se partiu.

Numa sequência digna de sitcom, nossos olhos buscaram uns aos outros. Silêncio. Encaramos o sorvete, depois o pedaço de plástico na minha mão, então o sorvete de novo. Apesar de ter aberto a boca para dizer algo, Jungkook a fechou de novo e inclinou a cabeça para a esquerda como se tentasse entender o que tinha acabado de acontecer.

— A colher...

— É — concordei antes que ele terminasse, agora atento ao plástico preso no sorvete.

À medida que digeríamos o ocorrido e arrastávamos os olhos de volta um ao outro, o que eram expressões blasé de um espanto previsto — mas anestesiado — finalmente dilataram em dentes à mostra. De um segundo ao outro, as gargalhadas explodiram, porque a situação era simplesmente muito ridícula, e éramos tão ou mais ridículos por sermos incapazes de levar qualquer coisa a sério enquanto dividíamos um sorvete de pote numa calçada aleatória de Samanda, a uma da manhã.

— Puta que pariu. — Jungkook já havia desistido de se segurar. Percebi que ele tinha o costume de alisar a testa e fechar fortemente os olhos quando ria com tanto fervor. — Não é possível.

— Tudo indica que é. — Não muito diferente, eu perdia gradativamente o controle do meu corpo. Sempre que ria daquela forma, começava a balançar de um lado para o outro.

— A colher não aguentou a doutrina destra.

— Porra — xinguei, sem pensar muito no fato de que não lembrava a última vez que tinha feito isso. — Hyung, ela não aguentou o drama canhoto, isso sim.

— Ultraje. Calúnia. Blasfêmia.

— Para! Minha barriga vai explodir! — Era uma súplica.

— Não paro. Vai ter que xingar de novo. Essa é a minha condição. — Os olhos...

Aqueles olhos libertinos e entorpecentes.

— Fico tosco xingando.

— Fica lindo. — As risadas foram atenuando até se tornarem cinzas. No estômago, as cento e uma borboletas devoravam libélulas selvagens e um caos generalizado se instaurou. Jungkook riu, piscando tão lentamente que os cílios brilharam contra a luz amarelada do poste. — Xinga, Cindy.

Merda. Merda. Merda.

— Nope... — A negação veio dos frangalhos da minha dignidade, um ato de resistência que mal suportou aquele pedido sedutor e indecente. — Vai precisar se esforçar mais que isso...

Jungkook levou a mão ao peito de num movimento cênico enquanto mais um assobio inexplicavelmente afinado o fugia.

— Cindy, Cindy... — cantarolou, ambas as sobrancelhas suspensas, a língua passeando dentro da boca como se pudesse carimbá-la. — Você já devia saber que não me importo nem um pouco de me esforçar por garotos bonitos.

Ter me conformado parcialmente com a ideia de que ele me achava atraente não fazia a menor diferença, eu continuava tão sensível como uma teia de nervos ao capricho do inevitável. Não era uma reclamação; mal chegava a ser um apontamento, na verdade. Por vezes, eu me sentia contemplar a paisagem distorcida pela velocidade de um trem, longe da sobriedade de um solo firme; estava sempre navegando, nunca certo sobre o que via. O que Jungkook queria dizer? Ele ao menos pretendia dizer alguma coisa? Eu sequer faria algo a respeito se a resposta fosse positiva?

Ainda era um tanto irreal que alguém como ele compartilhasse momentos tão únicos comigo. Que qualidade eu tinha além de um senso estético razoável? Jungkook era tão... ímpar, tão ele. Havia tanto a se desbravar, escrever e devanear sobre cada trecho seu. Eu era só... eu, sem personalidade, sem sonhos, sem nem uma faísca de coragem para mudar. Nada sobre mim valia um único verso; o mundo era dos que tinham propósito, e tudo que eu tinha era a autopiedade irritante e um coração partido.

Se isso era mesmo tão verdade como eu sabia ser, por que ele continuava ali?

Não fazia sentido, lógica, nada. E era bom, mas para quê? Para que eu me viciasse na mágica dos momentos de harmonia apenas para sobreviver das suas migalhas depois? Tinha medo de que fosse um teste. Nada tão bom vinha de graça, e felicidade não era um luxo pelo qual eu poderia pagar. Seria muito mais fácil lidar com esse temor se Jungkook não fosse ele mesmo, mas ele era. Não havia nada que eu pudesse fazer para fugir; tanto quanto um segundo jamais seria o outro, minha vida antes do Jude's não poderia ser recuperada. Jungkook era irreparável.

Eu precisava aprender a lidar com isso sem aproveitar demais, sem me arrastar para o calor afável de um abraço que nunca seria meu.

— Cindy?

Estremeci como se estivesse saindo de um transe. À minha frente, tornando-se mais nítido conforme eu voltava à realidade, Jungkook estendia uma colher nova, tirada do plástico que havia comprado, cheio delas.

— Ah, sim! Obrigado. — Morto de vergonha pela desatenção, peguei a colher desengonçadamente. Aproveitei para me concentrar no sorvete que tentava pegar com a mão esquerda mais uma vez, assim poderia me esquivar dele enquanto o respondia. — Não sou tão bonito assim, mas agradeço a preferência...

Esperava que Jungkook dissesse algo da referência que fiz ao que ele mesmo costumava dizer, mas percebi, sem precisar encará-lo, que estava preocupado com meu curto silêncio anterior.

— Jimin. — Eu soube instantaneamente que algo estava por vir. Tenso, ergui os olhos e o verde gentil me desestabilizou. Foi como se ele visse perfeitamente cada detalhe perturbador do me assombrava. — Me desculpa. Acho que nunca te falei isso e queria mesmo que você soubesse: pode me falar se algo que eu fizer ou disser te deixar desconfortável.

O sorvete rapidamente se tornou coadjuvante junto à dezena de elementos ao redor. Jungkook estava sendo dolorosamente sincero e notar isso fez com que doesse ainda mais, pois era apenas injusto demais que ele se preocupasse tanto ao ponto de designar a si mesmo como um problema.

— Não, não, hyung! Me desculpa, não quis dar a entender que estava desconfortável com você...

— E não teria o menor problema se estivesse. Pode acontecer. Eu entenderia. — Sorriu, amável e extraordinariamente compreensível.

— Mas eu não estou. — Meu braço se moveu sozinho quando toquei seu joelho, tão exasperado que não podia me preocupar menos com o domínio do meu próprio corpo. — Não estou desconfortável com você. Na verdade, eu... Puxa, hyung, me desculpa mesmo. Você nunca me deixou desconfortável, nunca mesmo. Eu só... não tô acostumado a ser tratado assim, com tanto... carinho e liberdade. Me dá um pane às vezes, porque o... ah, o meu namorado, ele... você sabe...

— Jimin-ah, fica calmo. Respira. — Senti seus dedos percorrerem a minha mão, ainda presa ao seu joelho, com uma ternura implacável. Jungkook observou com atenção o toque tímido das nossas peles. Pensei que ficaria perdido ali pela eternidade quando finalmente me encarou. — Não disse isso pra te desesperar, nem pra me vitimizar ou algo do tipo. Só acho importante saber se tô passando dos limites, mesmo sem perceber. É o mínimo. E sobre ser tratado com carinho e liberdade... o idiota do seu namorado pode ir se foder se te fez acreditar que você não merece isso.

Soltei uma risada sincera pelo xingamento. Sabia que, no fundo, ele estava certo.

— Ele pode ser um idiota às vezes...

— Pra caralho — Jungkook reforçou num riso ao mesmo tempo em que guiava minha mão de volta à colher fincada no sorvete. O toque durou pouco, mas pelo arrastar hesitante de peles, tive a impressão de que ele não queria se afastar. — Mas ele não tá aqui agora. O que tá aqui é esse sorvete derretendo. Você tem um desafio pra cumprir, não é?

O sorvete realmente derreteria se eu demorasse. Encarei Jungkook com firmeza e apertei a colher.

— Vou cumprir. — Ele não está aqui agora. — Mas o desafio não acabou, hyung! Temos um pote inteiro pra acabar.

Eu sorriria muitas outras vezes se isso significasse ver seu rosto se acendendo daquela forma. Ele não está aqui agora, a frase se repetiu por alguns instantes em ecos que começavam a sumir.

Mais tarde, poderia analisar e perceber que aquela era a primeira vez que chegava tão perto de realmente esquecer Kyuhyun. Sua imagem costumava pulsar ocasionalmente na minha cabeça, nem sempre seção principal, mas no mínimo marca d'água ou plano de fundo. Tomando o sorvete de torta de limão que Jungkook insistiu que já estava mole demais para representar um desafio, não me lembro de voltar a pensar nele, mesmo que por um segundo. Não houve um único momento após o breve esclarecimento com Jungkook em que seu nome me ocorreu.

Ele não está aqui agora.

Fui tão bem-sucedido em comer com a mão esquerda que Jungkook adiou nosso desafio. Eu nunca saberia se ele estava tentando marcar um encontro ou apenas me provocando — a segunda opção era mais realista. Descobri seu dom para implicância e a habilidade de se esquivar das consequências; fazer comentários absurdos com um rosto impassível e esperar que eu me questionasse se ele falava sério foi seu passatempo predileto enquanto raspávamos os restos de sorvete. Nenhum de nós comentou sobre como continuávamos comendo com as mãos menos coordenadas mesmo que o desafio estivesse suspenso, mas não era difícil usá-las com o sorvete mole, então talvez não tenhamos nos preocupado em trocar. Quando percebi, lembro de ter achado fofo, mas não falei nada. Estava perfeito daquela forma.

Para quem não parava de se empanturrar, conversamos bastante. Falamos da imprudência de estarmos na rua àquela hora, ainda que numa cidade tranquila; falamos de Danderia, Samanda e as lágrimas de pérola, o que nos conduziu ao conservadorismo estrangulador que ainda predominava na cultura do país. De assunto em assunto, chegamos ao EVIL, e foi quando toda a união entre eles pareceu ganhar substância no quadro incompleto onde eu depositava os fragmentos da pintura original.

Tínhamos acabado de comentar sobre as escolas de Samanda e o problema sério do bullying quando Jungkook me contou que todos os membros do EVIL haviam se conhecido no ensino médio. Ele não deu muitos detalhes, tomava muito cuidado com tudo que dizia por parecer preocupado com o quanto revelar de histórias que não eram apenas suas. Não questionei; para ser sincero, sentia-me infinitamente honrado por saber um pouco mais sobre ele, não importasse o quanto. Bastou que me dissesse com um sorriso manchado de sorvete que eram inseparáveis desde a escola e que haviam começado a banda no seu último ano, quando todos os outros já estavam na faculdade, para que eu sentisse, no seu timbre nostálgico e quase imperceptivelmente temeroso, que o EVIL talvez fosse uma das únicas coisas que ele tinha.

Naquele momento, Jungkook se pareceu mais com um garoto solitário do que com um guitarrista etéreo, inatingível num palco onírico.

Apesar dos esforços para não deduzir coisas sobre seu passado, alguns vórtices não poderiam ser evitados. De todo modo, o pensamento não me impediu de aproveitar os últimos instantes na calçada mal iluminada, com um pote vazio de sorvete e inúmeras colheres de plástico azul intocadas num saquinho. Rimos da colher quebrada mais uma vez enquanto jogávamos nossa bagunça no lixo e caminhávamos até seu carro do outro lado da rua.

Eu me esquecera muito facilmente de que aquela era uma noite atípica, e que rir com Jungkook não era meu dia a dia. Precisei de alguns minutos no carro, sob seus assobios melódicos conforme dobrávamos as esquinas de Samanda, para me dar conta de que estávamos preste a nos separar de novo. De novo. Parecia pior se eu pensasse assim, que seria de novo. Não havia nem um único dia desde que eu reunira coragem para contatá-lo após tanto tempo; agora, estava ali, desolado com a inevitabilidade de seguirmos nossos próprios caminhos.

Por que nos acostumamos com a felicidade tão rápido?, a reflexão me ocorreu na contemplação silenciosa da delicadeza com que seus cabelos se mexiam ao vento. A mão direita estava no volante, firme, e o braço livre apoiado na janela, dedos tatuados numa trilha pela sobrancelha esquerda. Parecia distraído, uma das poucas vezes em que o vira assim, o que talvez — não... certamente, não talvez — o deixava mais enigmático, mais distante e fantástico, no sentido restrito de existir apenas no campo da imaginação. Pensei em dizer alguma coisa só para ouvir uma resposta, provar a mim mesmo que o que vivíamos acontecia, mas ele estava tão absorto que não pareceu justo tirá-lo de si mesmo.

Assisti-lo estava de bom tamanho. Eu me sentia feliz só por ser permitido olhá-lo.

Querendo ou não, sua voz baixa era a prova de que não tinha sido completamente drenado dali. Jungkook ainda assobiava — às vezes cantava — as músicas no rádio com um domínio assustadoramente impecável, apesar da clara descontração e de ser perfeitamente possível notar que ele não se esforçava. Eu já o vira em dois shows, sabia distinguir a performance ensaiada do despojo naquele timbre casual, correndo livremente como uma criança colina abaixo, alheia à vitalidade que só se pode ter sendo criança, e que só se reconhece quando já não o é.

— O que foi? — A cantoria foi interrompida pela pergunta. Ele me encarou com um divertimento no rosto, mas logo se atentou à direção. — Por que está me olhando assim?

Porque você é a criação mais bonita que já vi em toda minha vida. Porque não quero que isso acabe.

— Só estou aproveitando o show particular... — brinquei e arqueei as sobrancelhas. Pela visão periférica, não pude escapar da familiaridade das ruas. — Você canta muito bem.

Notei como a boca vermelha se curvou num sorriso sacana, e tentei não pensar muito no enorme possibilidade de seus lábios estarem doces e gelados pelo sorvete.

— Agradeço a preferência, gatinho.

— Não me chama assim... — Era tão óbvio que eu não falava sério que chegava a ser vergonhoso.

— Por que não chamaria um gatinho de gatinho?

À próxima esquerda, eu sabia que encontraríamos minha rua. Torci os dedos do pé de nervoso.

— Porque não me acho um "gatinho". — O ar que soltei estava denso, trêmulo. Não queria ir embora. Não queria sair daquele carro. Não queria me afastar dele.

Chegamos à curva. De canto, os olhos verdes se fixaram em mim no para-sempre eletrizante de um único segundo.

— Você pode não achar — ele disse e suspendeu uma sobrancelha quando tombou a cabeça suavemente para o lado num movimento curto e charmoso. — Mas sou eu que estou dizendo. E eu acho.

Se olhasse para frente, encontraria minha casa a alguns metros, a mesma lateral onde fui docemente surpreendido por Jungkook horas atrás. Por alguma força interna, no entanto, evitei o vislumbre a todo custo. Sentia que poderia adiar o fim se não demonstrasse que sabia onde estávamos, ou que a realidade se transmutaria por pena e nos deixaria ficar ali somente um pouquinho mais.

Prendi-me à dança de luzes pelo rosto alvo; talvez tenha contado um, dois, três flashes engolidos pela velocidade do caro, e lembro de tê-los associado a fileiras subsequentes de vagalumes. Era adorável imaginar que estivessem beijando-o, ou homenageando-o de alguma forma, mas durou pouco demais; eu não poderia simplesmente ignorar o fato de que, agora, estávamos em frente à parede amarela da minha casa. Deveria deixar o sorvete, as colheres azuis e os vagalumes para trás.

Era como as coisas deveriam ser. O mundo sempre voltaria ao curso natural.

Por que nos acostumamos com a felicidade tão rápido?

— Seu castelo. — O carro finalmente parou. Não fosse o rádio, a voz de Jungkook talvez me doesse mais no silêncio da noite. — Está entregue, Vossa Alteza.

Ele não está aqui agora.

Mas Jungkook estava. Ele estava ao alcance do toque tímido dos meus dedos, à distância de um único braço, belo como uma estrela cadente em sua visita rara à Terra. Talvez pudesse capturá-la, vê-la brilhar entre os meus dedos. Eu a deixaria partir, jurava de pés juntos que sim; só precisava que me concedesse um pedido. Um só. Então eu estaria em paz.

— Obrigado por me trazer. — Ao passo em que tirava o cinto, tentava criar coragem para dizer qualquer coisa que traduzisse pelo menos um terço do que eu sentia. Eu devia isso a mim; devia isso a Jungkook. — Hã... hyung?

— Hm? — O som abafado que ele emitia em todo "hm?" era sempre adorável.

Com sua atenção inteiramente sobre mim agora que seu foco não era a estrada, pensei que acabaria desistindo. Até hoje, não sei dizer por que não o fiz; sendo sincero, havia mais razões para me calar do que para continuar. E mesmo assim...

— Antes de ir, eu... queria te dizer algo. É bobo, mas achei que seria bom que você soubesse. — Quem sabe fosse como nossa relação deveria ser, afinal: a objetivação de muitos "e mesmo assim's".

Seus lábios descolaram sutilmente um do outro. A pequena abertura, que provavelmente minha cabeça entorpecida fizera parecer que se expandia em câmera lenta, deu passagem ao rastro úmido da sua língua. Agora, sua boca cintilava.

— Sou todo ouvidos, Cinderela.

Diz, Jimin.

Você já está aqui. É só dizer.

— E-Eu... argh! Desculpa. É a timidez. — Sem saber se conseguiria sequer finalizar uma frase sem gaguejar, mesmo assim, eu continuei, porque mesmo assim, Jungkook me escutava. — A briga hoje mais cedo foi péssima, você sabe. Mas, nossa... me diverti tanto depois disso. Eu nem sabia que era possível me divertir depois de tudo aquilo. Não esperava, mesmo. E por isso, eu sou muito, muito grato a você e aos meninos do EVIL.

— Jimin-ah...

— Eu sei que você não sabe reagir a agradecimentos e elogios — interrompi, porque sabia que não conseguiria terminar se não dissesse tudo de uma vez. — Também sei que vai fazer alguma piada com isso e que vou rir porque você é fofo e engraçado. Mas eu preciso dizer que agradeço muito. Não dormiria bem se não dissesse. Bem, não é exatamente isso que quero dizer. Na verdade, isso também, mas tem mais, e... desculpa, tô nervoso.

Ele riu. Não era um riso maldoso, ou debochado; era apenas amável e compreensivo.

— Tudo bem. Estou te ouvindo.

Não menos inquieto, embora com mais fôlego para continuar, fechei os olhos e puxei todo o ar que conseguia, como se isso pudesse me dar certa elucidação sobre quais palavras usar. A ideia estava nítida, para mim; eu só não sabia se tinha o que era preciso para vocalizá-las, fazê-las entendíveis.

Bom, eu nunca saberia. Talvez nunca fosse o suficiente. Mesmo assim...

Mesmo assim, eu precisava tentar.

— Não sei como dizer isso de um jeito menos bobo do que... eu quero te ver de novo. Não quero perder contato, porque eu me diverti tanto e sorri tanto e ri tanto. Puxa, me fez tão bem. A gente... bem... — Não havia outra forma de fazer aquilo senão deixando que nossos olhos se desmontassem. Por isso, permiti que me lesse inteiro, tintim por tintim. — Eu sei que é muito bobo, mas isso é difícil pra mim, então não ri, tá? Só queria saber se você... se importa de nos falarmos com frequência, e nos vermos mais? Sem sumiços da minha parte ou grandes intervalos sem contato, dessa vez.

Eu disse!, foi tudo que me vi capaz de pensar, quase sem acreditar que estava dando mais um pequeno passo por um caminho ardiloso que um dia atrás não teria coragem de tomar. Não sabia para onde a estrada me levaria; era certo que caminhava de olhos fortemente fechados. Só podia torcer que meus pés me guiassem a um lugar bom. Bom, não: melhor. Era o bastante que fosse um lugar melhor, menos frio e desolador do que onde eu estava.

Rogue por mim, pedi a ninguém em particular. O mar, quem sabe? As águas salgadas poderiam me lavar como lavaram as pérolas de Samanda se eu orasse? Ainda não estava pronto, sem dúvidas possuía uma estrada sinuosa à frente, monstros que alimentei com minhas próprias mãos, com sede de angústia, sede de mim. Ignorá-los significava deixar que continuassem a existir, eu sabia perfeitamente bem que precisaria confrontá-los caso desejasse seguir a trilha. Que o mar zelasse por mim, então. Que eu pudesse chorar todas as minhas pedras para, em algum momento, num futuro incerto, transformá-las em pérolas.

De repente, o nervosismo não estava mais ali. O que eu tinha era uma esperança incomunicável de que as coisas ficariam bem. Era bastante provável que não tivesse a mesma sensação na manhã seguinte, mas isso também fazia parte — ou eu me consolava de que sim.

Não importa, importa? Eu estou aqui agora. Isso é o que sinto agora.

Jungkook limpou a garganta enquanto encarava o volante. Mais rápido do que eu podia prever, selou os olhos nos meus mais uma vez.

— A briga foi mesmo uma merda, e eu queria poder te esclarecer mais coisas, porque acho que você merece saber, mas... é delicado e preciso respeitar o tempo de outras pessoas, também. Por isso, antes de tudo, te peço desculpas por adiar essa conversa. Estava preocupado com Hoseok hoje e não quero forçar ninguém a reviver o que aconteceu antes do tempo. — À medida em que ele falava, percebi como não tinha dado tanta relevância àquele detalhe nas últimas horas. Toda minha curiosidade sobre a briga, as dores, os traumas, tudo isso havia se diluído em algum ponto. Essa era a magnitude do poder de Jungkook. — Não posso te dar muitas respostas quanto a isso, Cindy, mas posso, com todo prazer, te dizer que eu também me diverti muito depois e que acho adorável você ainda não ter percebido o quanto é óbvio que eu também quero te ver de novo.

Ele não esperou que meu coração parasse de sufocar nas próprias batidas, meu nariz já estava preso em seus dedos quando os dentinhos protuberantes saltaram para fora num sorriso ameno que simplesmente me nocauteou.

— Você é muito fofo — Jungkook disse conforme apertava a ponta gelada do meu nariz. Com uma piscadela e uma risada nasalada, murmurou: — É ainda mais fofo quando me pergunta algo que tá estampado no meu rosto.

Droga, Jungkook. Como eu poderia me despedir depois disso?

Como eu poderia não querer voltar atrás? Como ele me ensinaria a lidar com a sensação de que eu não aproveitara o suficiente, de que precisava reviver mais dezenas e dezenas de vezes os mesmos instantes para talvez me saciar? Havia um modo de fazer isso? Existia alguma maneira das nossas despedidas serem mais fáceis? Ele estava me dando a certeza da reciprocidade, a garantia de contato, e mesmo assim...

— Não quero ir embora. — A confissão escapou sôfrega e muito fraca. Parte de mim queria que ele me impedisse; a mais racional, por outro lado, sabia que era hora de ir. — Mas já tá tarde...

— Você precisa descansar. — Quis puxar sua mão de volta ao meu nariz no mesmo segundo em que se afastou, mas fiquei ali, parado, tentando resistir ao impulso de me inclinar até ele. — E eu não vou a lugar nenhum. Você pode me mandar mensagem quando quiser. Às vezes demoro pra responder, mas sempre respondo.

— Mesmo?

Mais um sorriso. Ele soprou minha franja.

— Mesmo.

Acabei soltando o cinto de vez. Minhas desculpas para permanecer ali haviam se esgotado, mas ao menos naquela noite, eu partiria na sombra de um "até mais" ao invés do vazio de um "adeus".

Senti um choque da maçaneta fria contra minha pele quente, determinado a não tomar mais do seu tempo. Jungkook tinha razão, precisávamos descansar — já era muito tarde e ele trabalhava no dia seguinte, cada segundo naquele carro o privava de um pouco de sono. Atordoado pela possibilidade de que ele não dormisse tão bem, fiz questão de me apressar: abri a porta sob cuidado dos mantras que elaborei improvisadamente para me tranquilizar.

Jungkook também quer me ver de novo.

E eu confiava profundamente nele.

Antes mesmo de virar para dizer "tchau", eu já sabia que ele me olhava; eram os verdes secretos e raiados, charme apolíneo de um quase-algo, o pecado hermético por um triz.

— Obrigado pela carona, hyung. — Ele olhava diferente para mim, mas eu também olhava diferente para ele. Tive certeza naquele instante: nenhum de nós admitiria em voz alta, e mesmo assim, algo estava ali.

Algo.

— Não há de quê, Cinderela.

Já de pé na calçada, fechei a porta do carro e me debrucei sobre a janela aberta. Apesar da pretensão inicial, caí na armadilha daquele perigoso sorriso de canto. Quase esqueci o que gostaria de dizer; se me aproximasse um pouco mais, tinha certeza de que me perderia para sempre.

— Você me avisa quando chegar em casa? — perguntei num timbre tão vulnerável e dengoso que não me reconheci. Havia descansado o queixo no braço e o olhava por entre os borrões dos meus cílios.

— Claro. — Se não o observasse com tanta devoção, ou talvez se eu não fosse quem era, não teria notado o instante célere em que sua guarda baixou. Foi por cerca de um segundo, pouco mais que um piscar de olhos; Jungkook pareceu suspenso por um fio tênue preste a arrebentar. No momento imediatamente posterior, voltou a si, de pupila contraída e respiração normalizada. — Até mais, Cindy. Durma bem.

— Até. — Aquela era minha deixa. Afastando-me do carro, acenei com uma serenidade conformada no rosto, sincero até as vísceras quando o desejei: — Bons sonhos.

Assim, a chuva de verão se foi; o frescor de terra molhada, porém, persistiu.

Não doeu quando vi seu carro sumir pelo caminho conhecido até o fim da rua. Nem pude dizer que estava, realmente, deixando o sorvete, os vagalumes e as colheres azuis para trás. De um jeito inexplicável, ainda os sentia comigo. Acho que, no fim, eles também faziam parte de mim.

Dancei pela escuridão da casa adormecida numa leveza que há muito não saboreava. Quis acordar toda minha família e contar sobre como estava bem, mostrar para mamãe que não precisava mais se preocupar, pois eu estava feliz. Ela sempre quis tanto que eu fosse feliz.

Teria os despertado se não estivesse tão fora de órbita. Tentei não fazer barulho ao abrir o chuveiro e tomar o banho mais agradavelmente dilacerante de toda minha vida. Não ligava de derreter na água quente; soava muito relaxante, para dizer o mínimo. Eu poderia sair do banheiro repleto de bolhas e ainda pensaria, suspirando, que o mundo era realmente generoso comigo.

O sorriso não me deixou nem quando vi toda a maquiagem destruída refletida no espelho. Havia uma beleza sublime na faísca de fé em meio aos escombros.

Esmaeceram no óleo de limpeza os poucos vestígios que restavam do banho. Amava me dedicar à maquiagem, mas amava ainda mais a liberdade do rosto nu. Meus produtos de cuidados com a pele estavam abandonados há algumas semanas, por isso, usá-los novamente no silêncio da madrugada foi minha forma de pedir perdão ao meu corpo. Negligenciá-lo como eu fazia pareceu muito cruel quando, no fim daquela noite caótica, ele continuava trabalhando tão duro para me manter vivo.

Talvez fosse mesmo uma anestesia.

Talvez, mais tarde, eu me soltasse daquele torpor. Não havia garantia de permanência. Talvez as coisas voltassem ao normal; talvez eu voltasse a negligenciar meu corpo. Talvez; que presunção. Era muito provável, na verdade. E mesmo assim... algo estava diferente, daquela vez. Agora, havia esperança; agora, ciente da incomensurabilidade de poréns, eu podia construir com calma os mesmo assim's.

Eu estava indo bem... não estava?

Não importa, reiterei. Eu estou tentando.

Estar tentando não era, afinal, estar indo bem?

Puxei o lençóis para me cobrir e concluí que a pergunta poderia esperar. A vida toda, eu vinha buscando um propósito, o motivo pelo qual continuar. Uma noite era pouco demais para uma alma cansada, e eu tampouco seria um bom receptáculo se não me forçasse a dormir oito horas redondas de sono. Precisava recompensar a mim mesmo pelas semanas árduas, aproveitar a euforia momentânea para colar gentilmente todos os meus cacos.

E mesmo assim...

Mesmo assim, abri os olhos instantaneamente quando o celular apitou. Mesmo assim, meu coração irrigou cada recanto possível de uma expectativa arrebatadora. Mesmo assim, o nome de Jungkook brilhando na tela, a notificação de que ele tinha mesmo cumprido o que havia falado, não me preparou para a certeza resoluta de que, se não fosse ele, não seria mais ninguém.

Sua primeira mensagem era uma foto do anel de açúcar que eu o dei segurado em frente ao olho esquerdo. Curtas linhas de expressão indicavam que ele sorria, a íris fresca como um crisântemo esverdeado no banho de lusco-fusco em Samanda. Na sequência, a mensagem curta escrita com simplicidade, um zelo tão sincero que me doía todo.

Em três mensagens breves, ele sentenciou, de vez, o mesmo assim esperançoso de uma vida repleta de adversidades.

Jungkook hyung:

Um anel de açúcar vermelho é mais legal que um sapatinho de cristal.

Espero quebrar colheres azuis com você outra vez.

Boa viagem ao mundo dos sonhos, Cindy. 

***

[NOTAS] E aí? Caguei no pau demais? O que acharam?

Confesso que tô insatisfeita com o capítulo, mas tentei me convencer de que era noia da minha cabeça. Tô tentando não me cobrar tanto porque isso me paralisa e me faz mal. Já falei pra vocês que tenho um perfeccionismo quase clínico (tipo, literalmente kkokoaok) então esse capítulo foi muito desafiador. Não sei se transmiti o que queria transmitir, nem se fiz valer a pena a demora, mas torço para que sim, porque vocês merecem. Só desejo poder melhorar cada dia mais e trazer coisas melhores pra vocês.

Somos 640K!!! Caralho, isso é muito absurdo. A fic só tem 6 capítulo, véi. Que mundo é esseeeeeeeeeeeeeeeeee?????

Gente, muito, muito obrigada por me esperarem, por ainda confiarem em mim e no que eu faço. Ando meio melancólica (que novidade), ainda mais agora que os meninos tão indo pro exército. Já tô morrendo de saudades, tô toda deprê pelos cantos murmurando um "saudades seokjiiiiiiiiiiiiiiiiiin", imagina quando for todo mundo? Bom, mas eu confio neles. Confio no amor deles por nós e no nosso por eles. Vou continuar aqui como continuei por esses 9 anos que sou ARMY. 

Ter esse espaço aqui pra escrever e compartilhar as coisas é uma das coisas que ainda me faz ter um motivo pra levantar. Agradeço de coração a compreensão e o carinho de vocês mesmo que eu seja uma esquisita desacreditada da vida. Vocês dão um pouco de vermelho pra essa minha vida cinza.

Vou tentar não demorar tanto. Esse ano pretendo me cobrar menos, então talvez os capítulos saíam com mais fluidez.

Quem sabe, né? No mais, até lá!

Sigam os personagens no twitter!!! Eles tão bem agitados lá rsrsrsrs.

Agora tenho uma conta de autora no Instagram onde compartilho coisas da fic, faço lives, converso sobre escrita muitas outras coisas!

É @ soliloquiopierrot no Instagram! Sigam lá <3

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