Já era quase meio dia quando as 17 mulheres entraram nas três primeiras carruagens estacionadas no grande pátio do palácio. Agitavam pequenos panos brancos em direção a multidão que formara-se para despedir delas e desejar sorte para a nova jornada.
A felicidade era palpável! Era como se tivessem ganho uma segunda oportunidade e quisessem segurar nela com todas as forças. Poderiam recomeçar as suas vidas em uma cidade diferente e quem sabe algum dia serem felizes.
As carruagens deram a partida e os cavalos relincharam em direção ao portão doirado. A viagem para o Feudo Nordenha seria longa, mas com certeza não importavam-se com isso.
O rei e o duque espreitavam a partida do segundo andar e acenavam para as pessoas.
Gina segurava nos braços da minha sobrinha e fitava o portão com um semblante triste. Ofereci-lhe um aceno de mão e ela retribuiu com um sorriso forçado estampado no rosto.
— Gina, tudo bem? — Perguntei-a e ela negou com a cabeça olhando para o chão.
— Queria tanto ir para a Nordenha. — A sua voz falhou e manteve a cabeça baixa.
— Ela não conseguiu uma vaga. — Alina sussurrou baixinho no meu ouvido e olhei para ela com pesar.
— Então vamos combinar uma coisa. — Peguei-a em suas mãos e captei a sua atenção. Ela encarou-me fazendo os seus olhos azuis escuros dilatarem em contato com os pequenos raios de sol que atravessavam a cúpula invisível. — Assim que as coisas melhorarem iremos todos para Nordenha e tu irás connosco. —Ela deu de ombros e escondeu um pequeno sorriso que se formava no seu rosto.
— Obrigada Maly. — As suas bochechas ruborizaram assentando ainda mais a sua pele doirada queimada pelo sol de Dóminus. — Eu vou cobrar essa dívida. — Ela acrescentou por fim pegando mais uma vez nos braços de Alina. A tristeza ainda não tinha saído por completo do seu rosto, mas parecia melhor.
Mais quatro carruagens posicionaram-se a frente do grande salão de bailes e alguns soldados ajudavam algumas pessoas a subirem, principalmente aqueles que ficaram com alguma sequela do incidente.
Marta posicionou-se do meu lado segurando na sua bengala e olhou para as carruagens que levá-la-iam para o Feudo Sacratus.
— O rei pediu para que os feridos fossem deslocados para Sacratus. — Ela sussurrou. — Ali terão mais assistência. Os monges são experientes na arte da cura e com certeza irão ajudar muitos de nós a recuperarem. — Ela olhou para a sua própria perna e uma pontinha de esperança iluminou um pouco os seus olhos. Olhei para ela e ofereci-lhe mais um abraço de despedida, não semelhante ao da noite anterior, mas ainda sim sentido.
— Vamos sentir muito a sua falta. — Falei e ela apertou-me ainda mais. Senti uma sensação prazerosa há muito não sentida por mim, o amor de uma mãe por uma filha.
— Tenham juízo meninas. — Ela voltou para as duas garotas do meu lado e afagou os seus cabelos, arrancando risadas dessas, como se quisessem dizer que isso era impossível.
Os seus olhos cintilaram quando voltou para a minha irmã e depositou um beijo nas suas mãos.
— Obrigada por tudo Cecília. — A minha irmã não segurou-se e abraçou a mulher a sua frente. Ao afastarem, Marta voltou para o Horácio, oferecendo-lhe um aperto de mãos e depois fez um pequeno gesto de cabeça ao Lucas. Esse retribuiu-o e ela voltou para a Clarinha. — A minha pequena! — Ela ajoelhou-se com dificuldade e fez um pequeno carinho nas bochechas da minha sobrinha mais nova.
Clarinha tentou segurar os soluços sem sucesso e agarrou-se a mulher, escondendo o rosto nos seus ombros descaídos. Marta abraçou a pequena de volta e afagou os seus cabelos com ternura.
A minha sobrinha afastou-se um pouco e sussurrou algo nos ouvidos dela, abrindo as mãos logo em seguida, revelando um pequeno ramo de margaridas. Marta arregalou os olhos e Clarinha colocou o dedo indicador nos seus lábios, pedindo silêncio.
— É segredo. — Ela sussurrou e depois piscou para mim. Pegou o pequeno ramo e depositou com delicadeza nas orelhas de Marta.
Um olhar quente queimou a minha nuca e levantei o olhar encontrando os olhos do rei fixos na minha sobrinha. Paralisei, tentando calar a voz no meu interior que insistia em fazer uma determinada pergunta "será que ele viu alguma coisa?".
— Para nunca esqueceres-te de mim. — A voz da minha sobrinha tirou-me do êxtase, fazendo-me prestar atenção nela e na Marta. Ela abraçou a mulher mais uma vez, fazendo-a sorrir.
O Horácio ajudou a mais velha a levantar-se e ela ajeitou as suas vestes, pegando a sua pequena trouxa.
— Nunca esquecerei de ti minha menina. — Ela tocou na pequena Margarida na sua orelha, olhando fixamente para a Clarinha. — Algum dia estaremos todos juntos de novo. — Acariciou o queixo da Clarinha uma última vez e acenou para nós indo em direção a última carruagem. Os veículos deram a partida e desapareceram igualmente pelo portão doirado deixando um pequeno silêncio para trás.
Senti uma ligeira tontura e segurei-me em Gina. Um gosto amargo inundou as minhas pupilas degustativas e tive vontade de vomitar. Um cheiro caraterístico inundou as minhas narinas transportando-me para um tempo distante, em que eu assistira a morte da minha mãe. O cheiro da morte retornara e qualquer um poderia ser a vítima.
Os meus olhos levaram-me para a figura da minha sobrinha mais nova e desmaiei.
...
Abri os olhos e não vi nada, apenas uma escuridão infinita a minha frente, querendo engolir-me. Algo pegajoso arrastou sobre os meus pés, fazendo-me levantar num pulo esfregando o meu corpo. O cheiro caraterístico da morte impregnava o ar e ouvi choros agourentos ao longe.
Um ponto de luz apareceu na minha frente e persegui-a tentando enclausurá-la nas minhas mãos. Mais pontinhos de luz apareceram e juntaram-se a primeira formando uma grande fogueira que agora estendia-se na minha direção querendo pegar-me. Corri na direção contraria e tropecei em um corpo carbonizado. Gritei e mais corpos amontoaram-se a minha frente.
Uma sombra arrastou-se do meio dos escombros, formando-se uma besta negra e obrigando-me a correr em direção ao fogo. O seu riso de escárnio feriu os meus ouvidos e cobri-os, ficando com as mãos encharcados de vermelho.
—Deixa-me em paz! — Gritei para o vazio e a minha voz transformou em ecos sussurradas em diversas vozes.
Não queria ouvir! Não queria ver! Piniquei o meu antebraço e nada aconteceu.
O fogo alcançou-me e envolveu o meu corpo, queimando a minha pele, arrancando de mim urros de dor. Senti o meu interior cozinhando, descamando e formando pequenas bolhas que explodiam conforme a temperatura aumentava. Tentei gritar por socorro, mas a minha boca já não mexia, tomando um formato escancarado que eternizara-se para sempre.
Acordei num grito e o meu corpo entrou em colapso. Um vulto embaçado apareceu na minha frente e segurou os meus braços impedindo os meus movimentos. Ele pegou um pano em uma bacia ao lado e levou-o para a minha testa, fazendo-me aperceber que eu estava ardendo em febre.
— Fica quieta cunhadinha! — Reconheci a voz melodiosa e a minha visão retornou aos poucos formando a imagem de Juliana a minha frente.
Desviei os olhos para os meus braços. Essas estavam cobertas de vermelhões e o sonho reviveu na minha mente. Eu sonhara mais uma vez com o fogo!
Fiz menção de levantar, mas ela impediu-me colocando uma mão sobre o meu peito.
— O que aconteceu? — Perguntei em uma voz fraca olhando ao meu redor.
Consegui identificar as poucas mobílias do dormitório e uma brisa fresca entrava pela janela entreaberta anunciando que o alvorecer reinava no local. Como aquilo era possível?
— Apenas desmaiaste no pátio ontem à tarde depois da partida cunhadinha. — Ela cruzou os braços e encarou-me com um olhar de reprovação. O apelido enervou-me mais do que o normal e senti o meu sangue ferver. — Mas que vergonha, hein! Uma mulher do teu tamanho dando espetáculo no meio da rua.
Cerrei os punhos sentindo os meus ossos estalarem e tentei ignorar a minha vontade de esbofeteá-la.
— O que estás a fazer aqui? — A pergunta que sufocava a minha garganta acabou por romper os meus lábios. Tentei esconder o tom irritado, mas isso era impossível.
Juliana estalou a língua no céu da boca e colocou um sorrisinho sínico, como se esperasse há muito tempo por aquela pergunta. Olhei para ela e não contive um revirar dos olhos, algo que acontecia sempre quando ela estava por perto.
— Eu sou a sua nova colega de quarto. Fiquei com a cama vaga da senhora que ficava aqui. Como era o nome dela mesmo? — Ela colocou uma das mãos no queixo como se estivesse pensativa.
A minha paciência esgotou-se. Ignorei a sua pergunta e tentei mais uma vez levantar da cama. Ela não iria impedir-me desta vez e eu precisava fazer algo a respeito do sonho. Não deixaria mais ninguém morrer e precisava avisar o palácio. O fogo precisava ser contido!
Cambaleei para a porta, mas Juliana tentou agarrar-me. Desviei-me dos seus braços e saí do quarto às pressas, gritando descontrolada.
— Fogo! Precisamos apagar o fogo! — As pessoas pararam nos corredores e encararam-me como se eu fosse insana. Respirei fundo e encostei-me em uma das paredes. A minha mente falhava, mas obriguei-a a acordar. — O fogo está vindo!
Uma senhora colocou uma das mãos sobre o meu ombro e olhou-me com um olhar de pena.
— Menina, não tem fogo nenhum. Isso já passou. — Encarei-a e identifiquei-a como uma das nossas vizinhas em Francinatis. Era próxima a minha mãe quando ela era sóbria e com certeza estava pensando que eu estava seguindo os mesmos passos da loucura que ela.
Algo começou a queimar no meu peito e cerrei os punhos enraivecida. Eu não era igual a minha mãe e podia provar isso! Desvencilhei-me das mãos da senhora e saí da ala leste correndo. Eu precisava avisar o rei. O fogo chegaria em breve e algo tinha que ser feito. Desta vez seria mais rápida e evitaria a tragédia.
Tropecei em uma pedra e caí sentindo o meu corpo amolecer. Pela segunda vez eu apaguei, sendo aconchegada pela escuridão do meu ser.