Heróis de Boreatia: A Perfídi...

By Goldfield

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Uma tempestade assolou recentemente o mundo de Boreatia... No decorrer de alguns séculos, a potência militar... More

BOREATIA - Cronologia
BOREATIA - Deuses
BOREATIA - Principais Raças
BOREATIA - Geografia
BOREATIA - Ordens e Organizações
Introdução
Prólogo
Capítulo I: Ventos de Outono
Capítulo II: Aqueles que vão a Feritia
Capítulo III: Um navio de histórias
Primeiro Interlúdio
Capítulo IV: A comitiva de Kal Sul
Capítulo V: Apuros em Tileade
Capítulo VI: A ponte do riacho Wildeen
Capítulo VIII: As clérigas de Tyrnan
Capítulo IX: Na calada da noite
Capítulo X: O imediatismo do imediato
Capítulo XI: Rimiryn e os orcs
Segundo Interlúdio

Capítulo VII: O palácio do rei herege

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By Goldfield

Capítulo VII

"O palácio do rei herege"

A marcha dos fugitivos de Tileade prosseguia, seus pés já cansados chegando ao fim da extensa ponte de pedra sobre metade do rio Northar, pisando agora a terra da ilha em seu centro.

O local possuía aparência aterradora – e tal impressão não se dava somente devido ao sinistro palácio ainda de pé sobre si. Enquanto as duas margens do curso d'água eram cobertas por grama verde e abundantes arbustos, a vegetação rasteira da ilha parecia presa em eterna agonia, seus tons marrom-acinzentados conferindo à relva o aspecto de plantas mortas, mas que devido a uma negação da natureza permaneciam vivas em estado decrépito. As árvores próximas, por sua vez, eram totalmente secas, seus galhos desnudos de folhas contorcendo-se e curvando-se em macabras ramificações, assemelhando-se aos braços retorcidos de alguém que se debatera com intensidade antes de expirar. Para completar, a construção de dois andares, com seu telhado esburacado, paredes imundas, portas e janelas quebradas e vedadas com tábuas, pintura descascada e sinais de umidade – com liquens e musgos a se estenderem por sua estrutura até quase o topo – não parecia nada convidativa. Para falar a verdade, atormentava o íntimo do grupo a idéia de nem sequer tentar contornar aquela construção, recuando pela ponte à procura de outro caminho para atravessar o rio. As chances de encontrarem alguma patrulha vinda do forte, porém, impelia seus integrantes a continuar.

Caleb, olhando ao redor com atenção ao mesmo tempo em que avançava a passos lentos junto com seus companheiros, coçava o queixo barbado analisando cada detalhe da ilha misteriosa. Olhando para a esquerda, no sentido do qual vinham, visualizou, numa reentrância situada próxima a uma das esquinas da edificação e em meio a um par de colunas carcomidas, uma porta dupla de entrada, feita de madeira podre – outrora nobre. Ergueu um pouco os olhos... fitando acima dela um símbolo cravado na alvenaria – agora tomado pelo musgo e tendo assim perdido a nitidez e imponência do passado. Talhado com cuidado, representava um corvo, com as asas abertas, sobre a figura de uma espada com a lâmina voltada para baixo. Ao assimilar a antiga representação, o druida estremeceu.

Seria aquela a ilha de que ouvira falar tanto através de seus pais, algumas poucas vezes, quanto por intermédio dos relatos dos viajantes que cruzavam a Floresta Negra? Julgando pela localização e pelo recém-identificado emblema, tudo levava a crer que sim.

- Esta é a Ilha Rankan! – afirmou ele de súbito.

- Como é? – Lisah replicou sem entender.

- A ilha do rio Northar que foi submersa pelas águas, devido a uma onda gigantesca, durante o Crepúsculo dos Deuses – explicando melhor, Rosengard consultava suas mais remotas memórias. – Um lugar pouco amistoso, para dizer o mínimo.

- E esse palácio? – questionou Kirinak, intrigada. – Algum motivo em especial para estar dessa maneira? Uma razão para seus adorados deuses o terem arrasado assim?

- Esse era o palácio de veraneio de Volanir V, o último rei da malfadada Liga do Norte – Caleb revelou, bufando diante da petulância da clériga fugida. – Um dos maiores alvos da ira divina. Isso explica, talvez, o destino que essa construção acabou encontrando...

- O rei estava dentro desse palácio quando ele foi tragado pela onda? – questionou Hachiko, que não conhecia bem os acontecimentos envolvendo o cataclisma de vinte e dois anos antes.

- Não, não. Ele se encontrava na capital, Borenar, que foi igualmente arrasada; e o monarca, junto com sua guarda de Cavaleiros da Espada Longa, enviado para as regiões infernais, o Helmus. Mas, pertencendo a Volanir, este palácio foi visado pelos irados deuses assim como tudo mais que ergueu em vida.

- Deuses, deuses... – Kirinak murmurou baixinho numa careta.

Seguiu-se um instante de quietude, os quatro aventureiros encarando receosos a construção, sem saberem bem de que modo agir, até que Lisah deu voz às suas dúvidas:

- E então, vamos avançar?

A resposta não foi dada por nenhum deles – e nem ao menos foi verbal. A elfa de Astar, que se encontrava mais à frente do grupo junto com Caleb, àquele momento, saltou por reflexo para trás, recuando cerca de um metro e meio. Sua loba, tão ágil quanto a dona e percebendo o mesmo que ela, também retrocedeu, estendendo as patas dianteiras e assim se colocando em posição de defesa. Os demais, aturdidos, acabaram também recuando devido à rápida ação de Lisah, só depois olhando para frente na tentativa de compreender o que ocorrera... E viram, fincada ao solo em meio à grama seca, uma flecha que visara a jovem – errando o alvo graças aos velozes movimentos desta. Provavelmente fora disparada de algum ponto dentro do palácio que haviam pensado, até então, estar abandonado.

Todos se agitaram. Hachiko, sempre de prontidão, apontou seu arco para o alto da estrutura e, com seus olhos élficos, manteve-se atenta às janelas na tentativa de encontrar o agressor ou agressores, podendo assim responder ao ataque. Lisah retirou das bainhas sob seu traje as duas belas espadas que há pouco revelara possuir, portando uma em cada mão como antes. Kirinak, talvez a mais desesperada entre eles, abriu a bolsa que trazia e, abaixando-se, passou a revirá-la em busca de algo que pudesse utilizar – mas carregava nela tantas coisas, boa parte delas cacarecos, que a procura se mostraria no mínimo demorada. Caleb logo percebeu isso, erguendo seu bordão e olhando de soslaio para o interior do recipiente.

- Não há tempo para reação! – exclamou. – Ou tentamos contornar o palácio, ou entramos nele!

- Contorná-lo com flechas sendo lançadas contra nós? – inquiriu Lisah. – Não me parece muito boa idéia...

Mal concluiu a frase, um outro projétil foi cravado no chão, a poucos centímetros de seus pés. Outro veio também quase ao mesmo tempo, mas aquele que o disparara mostrava-se dono de uma péssima mira: passou a vários metros acima deles, indo perder-se nas águas do rio bem atrás.

- Não podemos ficar parados! – alertou Hachiko, ainda tentando descobrir a posição de ao menos um dos arqueiros numa das janelas vedadas.

- Então vamos! – bradou o druida, impelindo o grupo adiante tanto com seus braços, empurrando-os, como com suas pernas, correndo.

Assim colocaram-se em movimento. Pisavam a grama desgastada o mais rápido que conseguiam, sua receosa atenção se alternando entre o palácio e o caminho. Guiados por Caleb, tomaram a esquerda, aproximando-se mais e mais da porta de entrada anteriormente avistada por ele. As flechas seguiam caindo, zunindo pelo ar e sendo enterradas na terra da ilha ao redor deles – nenhum dos atacantes, felizmente, parecendo bom o suficiente para atingir os alvos. Os lobos acompanhavam seus donos, Hachiko continuava fazendo mira... até que acreditou ter avistado um vulto numa das janelas do segundo andar, contra-atacando então com uma flecha. Esta, no entanto, foi detida por uma das tábuas que cobriam a abertura, nela permanecendo fincada. Ainda sob o olhar da arqueira, um bracinho esverdeado revelou-se num dos vãos da janela, manejando um arco que parecia malfeito... e novo projétil foi desse modo lançado contra os viajantes.

- Cuidado! – a elfa de Kartan alertou.

A seta singrou o ar, descendo veloz pela distância que a separava daqueles que deveria atingir... e, quase de imediato, um gemido foi ouvido.

Todos olharam para trás, percebendo que o ritmo dos passos de um deles havia subitamente diminuído... deparando-se com Hachiko, tendo agora uma haste presa junto a um de seus ombros, sangue minando do local sob suas leves vestes.

- Oh não! – exclamou Kirinak.

- Não se preocupem, eu agüento continuar correndo! – afirmou ofegante a elfa de cabelos prateados, mas sem deixar de se deslocar e mantendo seu arco ainda apontado para o palácio. – Vamos!

Dessa forma prosseguiram, flechas e mais flechas chovendo sobre eles. Devido às nuvens escuras no céu, não se surpreenderiam se os ameaçadores projéteis estivessem sendo liberados pelo próprio firmamento. Tudo parecia conspirar contra eles desde o início daquele dia: assim, não seria de grande espanto se gotas d'água acabassem se convertendo em pontas afiadas.

Continuaram seguindo Caleb pelo território hostil, aproximando-se do ponto em que a parede externa da construção – que até então acompanhavam – fazia uma curva. O druida aparentou ficar incerto, por um momento, acerca da direção que deveriam tomar... e acabou se decidindo pela porta do palácio, rumando até ela e passando por entre as desgastadas colunas que a envolviam uma de cada lado. Nem todos os demais concordaram com a decisão, porém não o deixaram de acompanhar. Correndo, Rosengard e seu lobo lançaram-se contra uma das divisórias da entrada... que, apodrecida, cedeu facilmente ao peso de seu corpo, lascas e fragmentos de madeira sendo projetados em volta sonoramente. Lisah bateu com uma das mãos em sua testa: ela pensara em tentarem adentrar o local furtivamente, por conta dos inimigos que deviam se esconder em seu interior. Bem, agora tal curso de ação fora descartado...

Todos passaram pela entrada, Kirinak desviando de uma última flecha que por pouco não lhe acertou a cabeça. Já que a porta dupla tivera uma metade quebrada, não havia como fechá-la. Isso no entanto não representava grande problema, já que os arqueiros se encontravam dentro da edificação e provavelmente se deslocariam através de seus corredores para rechaçar os indesejados visitantes. O perigo viria das próprias entranhas daquele perturbador palácio.

Recobrando o ar, o quarteto viu-se numa espécie de vestíbulo. Existia, à direita da entrada, um armário desmoronado de cujo interior ainda pendiam para fora peças de roupa rasgadas ou, se inteiras, inutilizadas pela água. Os aventureiros conseguiram distinguir, em meio à desordem de tecidos, capas, túnicas, broches... resquícios de um outro tempo. Exatamente diante da porta que haviam atravessado, existia uma outra de madeira, também dupla, que por certo levava aos primeiros cômodos propriamente ditos do lugar. As paredes de alvenaria cinza e revestimento original quase nulo – este agora substituído por extensas camadas de liquens em várias seções – ostentavam, até quase o nível do teto, um tom escurecido, úmido, demarcado de forma reta, com raras oscilações – revelando a altura que o líquido que invadira a estrutura lograra atingir. Tudo cheirava a mofo e a bolor, a desgraça e a decadência. E tudo lhes indicava que o que existia além da porta seguinte cheirava a problemas – não poucos.

Com cuidado, Hachiko sentou-se junto a uma parede e, de forma lenta, cerrando os dentes, removeu a seta que fora afundada perto de seu ombro. A haste, levando consigo a ponta ensangüentada, foi retirada com a máxima precaução, Kirinak aproximando-se em seguida da elfa e lhe oferecendo alguns ungüentos cicatrizantes que trazia consigo, para que com eles tratado o ferimento fechasse mais rápido. A arqueira aceitou, e pouco depois a perfuração encontrava-se devidamente medicada e envolvida pelas tiras de um curativo. Poderiam continuar.

Caleb e Lisah chegaram mais perto, com seus lobos, da porta seguinte; um posicionando-se de cada lado dela, junto às paredes. Fazendo uso de sua audição élfica superior, a dama de Astar aproximou um dos ouvidos da madeira da entrada, tentando captar com atenção qualquer ruído feito no ambiente atrás desta. Conseguiu, sem muita dificuldade, escutar passos apressados e algo como grunhidos – estes chegando, em menor intensidade, também ao conhecimento dos demais. Hachiko logo murmurou, levantando-se do chão após terminar de tratar sua ferida:

- Goblinóides...

- Tem certeza? – replicou o druida.

- Quase absoluta. Eles devem ter tomado este palácio desocupado, convertendo-o em esconderijo e base de operações para ataques às redondezas.

- Então... nós iremos limpá-lo?

Um incômodo silêncio se prolongou por alguns instantes, os quatro aventureiros refletindo sobre a pertinente questão levantada por Rosengard. Agora já haviam entrado no local, para se abrigarem em meio à chuva de flechas, e por certo seria mais fácil eliminar os agressores ali dentro, surpreendendo-os em suas posições, do que tentar atingi-los à distância do lado de fora. O problema é que não sabiam quantos existiam ao certo no interior do palácio, nem faziam idéia dos outros perigos que poderiam aguardá-los. A elfa de Kartan, porém, também se dirigiu até a porta ainda fechada e, pronta com seu arco, falou:

- Já que estamos aqui...

Lisah e Caleb assentiram movendo a cabeça. Kirinak, mantendo-se até então de pé junto à saída, bufou contrariada, mas acabou também chegando perto dos companheiros. Sabia que necessitaria deles para se manter viva e livre... mas não era apenas isso. Ela, mais e mais, passava a confiar em suas pessoas e em seus julgamentos.

Hachiko encostou-se a uma das duas seções da porta, arma mantida com a corda esticada. Fitando-a, o druida rapidamente compreendeu o que ela pretendia. Assim, segurou uma maçaneta enferrujada da entrada e empurrou de leve, para frente, uma de suas metades... liberando uma pequena fresta entre a madeira podre para que a arqueira pudesse através dela observar o aspecto do lugar – e até mesmo lançar uma de suas setas.

Com apenas um olho – que lhe era suficiente – a elfa de cabeleira prateada examinou o ambiente. Tratava-se de uma sala ampla, com no mínimo três portas além daquela – visíveis àquele ângulo. Um tanto escura, iluminada esparsamente apenas por raios de claridade penetrando através das frestas entre as tábuas das janelas e uma ou outra tocha presa às paredes, possuía sinais de uma outrora requintada vida cortesã – agora dominados pela decadência, como tudo mais dentro daquela estrutura: as mesas redondas impecáveis e cadeiras antes donas do máximo conforto eram agora móveis descarnados e bambos, muitos já destruídos pela umidade e a própria força do tempo. As paredes ostentavam escudos com emblemas de famílias nobres e valorosos batalhões militares, tudo coberto agora por musgo e limo – representando, além de uma decrepitude material, a derrocada do antigo círculo real e bélico da Liga do Norte, extinguido do mundo assim como seu vil culto ao deus Swordanimus. Para completar o desgastado quadro, três goblins, portando armas, escudos e armaduras aparentemente tão maltratados quanto o resto do lugar, patrulhavam a área resmungando – sem terem, felizmente, percebido o pequeno movimento da porta de entrada.

- Você acha que consegue acertá-los por aí? – Lisah cochichou para Hachiko.

- Vejamos...

Mordendo os lábios, a elfa de Kartan puxou ainda mais a corda do arco, inserindo-o na brecha entre as duas divisórias e tentando mirar na cabeça do inimigo mais próximo. A pouca luz não lhe apresentava dificuldade, e assim conseguiu facilmente apontar a flecha para o ponto fraco do alvo. Este caminhava lentamente junto a algumas mesas, distraído, e justo quando voltou seus olhinhos selvagens para a porta dupla...

VAP!

O projétil cortou o ar e enterrou-se bem na sua testa, pouco acima dos olhos. Sangue preto escorreu, o corpo descontrolado do goblinóide vagando sem rumo por dois segundos, até precipitar-se sobre um dos móveis podres, o peso não muito grande da criatura bastando para solapar as pernas e fazê-lo desmoronar. O barulho bastou para atrair de vez a atenção dos outros dois sentinelas, um brandindo furioso sua espada torta enquanto o outro, buscando refúgio junto a um velho armário que por escárnio divino ainda se mantinha inteiro, preparava um precário arco para disparar setas na direção dos intrusos.

Agora não havia mesmo mais motivo para ser discreto: chutando a porta, Caleb adentrou correndo o recinto, seguido pelos outros. Mal avançou, apontou para o goblin portando espada e exclamou para seu lobo:

- Pegue-o, Anuk!

A fera investiu contra o oponente, que não pôde esboçar grande reação: tentou repeli-la com dois chutes, mas acabou derrubado e tendo sua garganta estraçalhada pelo lupino. Seus braços se agitaram, tentando perfurar o animal com o sabre... porém logo se aquietaram, sem vida.

Já o goblin de arco foi perseguido por Hachiko e Lisah. A primeira lançou contra ele uma flecha – a criaturinha abaixando para se esquivar e o projétil sendo cravado na parede atrás de si. A elfa de cabelos pretos, por sua vez, aproximou-se com suas duas espadas em punho. Desviou de uma seta disparada contra si, rolou pelo chão de pedra para reduzir de forma mais rápida a distância que a separava do adversário... nesse ínterim a arqueira tornando a atacar, e mais uma vez errando. Coube assim à outra jovem liquidar o salteador, investindo com um dos sabres: o alvo de início conseguiu defender-se colocando o arco diante de si, a lâmina acabando por ser travada pela empunhadura de madeira. Não contava, porém, com a segunda espada, manuseada com destreza por Lisah... que acabou enterrada em seu peito mal-protegido pela precária armadura.

O vigia estrebuchou. A sala estava limpa.

O druida e as duas elfas convergiram para o centro do local, podendo agora examiná-lo com mais atenção: além da porta de entrada, existiam quatro outras, e não apenas três, como Hachiko há pouco julgara. Todas, com exceção de uma, encontravam-se numa mesma parede, conduzindo provavelmente a salas pequenas ou então interligadas. A restante, que levava ao sentido leste da construção, aparentava ser aquela dando acesso às demais dependências – considerando o que haviam observado com pressa do lado de fora. Deveriam decidir qual caminho tomar primeiro...

Mas... onde estava Kirinak? Nenhum deles a vira participar do ataque aos goblins!

Olharam ao redor. De início não a encontraram, julgando que talvez fugira do palácio, já que se mostrara claramente contrariada à decisão de entrarem. Porém, instantes depois, visualizaram uma figura de capuz abaixada junto a uma das mesas destroçadas pela umidade. Chegaram mais perto... constatando se tratar realmente da clériga, que abrira e colocara no piso a bolsa em que carregava suas inúmeras coisas... nela depositando duas pernas do móvel, razoavelmente conservadas, que acabara de apanhar.

- O que está fazendo? – questionou Rosengard intrigado, denotando certa impaciência em sua voz.

- Pegando algo que pode ser útil! – a moça respondeu um pouco encabulada, mas sem se intimidar.

- E em que duas pernas podres de mesa vão ser úteis a nós?

Fazendo tal questionamento, Caleb perguntou-se se aquela jovem seria mesmo a pessoa de aura maligna vista em seu sonho profético. Nada nela remetia a maldade, seu comportamento no máximo gerando alguma irritação ao grupo devido à sua impetuosidade. Como, então, explicar o fato de a destruição por ele vislumbrada ter parecido provir dela? Seria possível que alguma entidade inferior poderosa se aproveitaria da ingenuidade daquela clériga para possuí-la, ou algo similar? Essa era uma hipótese que começava a ganhar credibilidade no íntimo do druida...

Sem nada responder, Kirinak guardou os pedaços de madeira consigo e se levantou, aguardando os próximos movimentos de seus companheiros.

Lisah, por sua vez, retornou até a entrada da sala para chamar alguém que ficara para trás, até então sem que os demais houvessem percebido: sua loba Kiche. Ela conduziu o animal de volta até junto dos outros, Rosengard indagando:

- Não gosta que ela lute?

- Não, não – a elfa respondeu sorrindo. – Kiche é de estimação, alguém que amo muito. Considero-a quase uma irmã. Prefiro por isso que ela fique fora de combates, a não ser que a situação seja extrema. Eu daria minha vida por ela.

- Compreendo – assentiu Caleb que, sendo um druida, conhecia bem os vínculos entre as diferentes formas de vida, muitas vezes fortes a tal ponto.

Tornaram, então, a se juntar, com uma questão a decidir: qual porta cruzar primeiro.

- Para onde vamos agora? – Lisah manifestou a dúvida.

Passaram um momento ou dois fitando as portas, até que Hachiko falou:

- Creio que somente a porta que leva para a direita conduz ao resto do palácio e ao segundo andar, onde encontraremos os arqueiros que nos atacaram. As demais entradas devem dar acesso apenas a salas secundárias sem qualquer importância. Opto pela primeira alternativa.

- Eu já acho que deveríamos averiguar tudo por aqui antes de seguirmos para a outra parte do palácio – afirmou o druida. – Como entramos aqui e até já derrotamos alguns desses goblins, melhor seria tornarmos este lugar seguro para que eles não mais disparem flechas contra os viajantes. O problema é... nós podemos dar conta de todos esses bandidos?

- Estando aqui, poderíamos tentar, ao menos – a elfa de Astar, com suas duas espadas ainda em mãos, disse calmamente.

Ou ela demonstrava mais uma vez, no mais fundo de seu íntimo, lutar pelo bem; ou estava interessada nas riquezas que os goblins provavelmente escondiam ali...

- Continuo achando que deveríamos visar os arqueiros no andar de cima, que nos atacaram diretamente, e então irmos embora daqui – insistiu a elfa de Kartan.

- Vamos nos separar em dois grupos, então – propôs Caleb. – Um explora as portas que devem levar aos cômodos vizinhos a esta sala, enquanto o outro segue pelo caminho que aparenta conduzir ao restante do palácio. Seria até mais prático, pois assim averiguaremos bem mais rápido o local. O que me dizem?

- Não acho boa idéia nos separarmos assim num lugar desconhecido e cheio de homenzinhos querendo nos derrubar – manifestou-se Kirinak. – Por mim, nós ficaríamos todos juntos.

- Ora, este palácio não pode ser tão perigoso assim, pode? – sorriu Hachiko.

- E então? – inquiriu Rosengard, batendo a ponta inferior de seu bordão contra o piso num gesto impaciente.

- Vamos nos dividir então! – Lisah apoiou o plano. – Quem vai para aonde?

O druida, sem mais nada dizer, apenas se dirigiu com seu lobo até uma das portas situadas numa mesma parede – no caso a mais distante, primeira da fileira. Deteve-se diante dela numa pose imponente, encarando os demais com um olhar que cobrava deles uma decisão.

A elfa de cabelos negros, junto a Kiche, seguiu na mesma direção que Caleb. Kirinak, após um breve instante de incerteza durante o qual alternou sua visão entre os dois e a elfa de cabelos prateados... acabou optando pelo grupo maior, caminhando igualmente rumo à porta selecionada por Rosengard.

Hachiko, sozinha, permaneceu de pé junto à entrada que escolhera. E pareceu não se importar.

- Vai avançar por aí mesmo? – questionou o druida.

- Sim – ela replicou convicta. – Não deve haver grandes riscos por aqui com que eu não possa lidar.

- Bem, vamos nos reencontrar aqui então, daqui algum tempo – sugeriu Lisah. – Quem voltar primeiro espera o outro. Caso um dos grupos precise de ajuda, basta gritar. Não temos mais o fator surpresa, então creio que não será grande problema acabar atraindo a atenção dos goblins se assim agirmos.

- Certo – assentiu a clériga.

- Tudo bem – a arqueira também concordou.

O trio liderado por Caleb atravessou a porta que se dispôs a examinar, a mesma encontrando-se destrancada e tão podre quanto o resto do lugar. Já Hachiko ainda se manteve algum tempo na mesma sala – na mesma posição – ouvindo com atenção os passos e vozes de seus companheiros se distanciando do outro lado da parede. Foi então que, checando seu arco e munindo-o de mais uma seta, voltou-se para uma outra porta... mais precisamente uma situada na mesma direção tomada pelos demais, que ela antes se recusara a adotar; a última entrada da fileira de três. Constatando se encontrar também destrancada, adentrou-a com cuidado, movida por motivos escusos...

O grupo de Rosengard, Lisah e Kirinak entrou numa sala pouco menor que a anterior, logo constatando que a porta ao lado da que haviam atravessado também dava acesso àquela sala: ou seja, somente a terceira porta na mesma parede levava a um local distinto. Aquele recinto aparentava ostentar ainda mais um luxo agora decrépito, aparentando se tratar de um antigo ambiente destinado a cortesãos ou algo do tipo. Móveis antes requintados, trazidos de fora do continente, agora jaziam entre destroços ou, se inteiros, viam-se consumidos pela mais intensa podridão. Tapetes detalhados trazidos das Ilhas Kartan e de Barbety eram agora apenas emblema de desgaste e decomposição, suas costuras impecáveis e belos desenhos agora nada mais que representações desordenadamente desfiguradas. Do teto de pedra esverdeada, por entre as frestas do revestimento, gotas de água turva insistiam em gotejar, depositando-se sobre crescentes poças pelo piso. O contínuo ruído de tal fenômeno, após poucos instantes, já começara a irritar os recém-chegados.

- Parece não haver nada ou ninguém aqui... – murmurou Caleb.

- Talvez devêssemos procurar melhor – afirmou Lisah, caminhando pelo cômodo.

A elfa pôs-se a inspecionar o lugar, junto com sua loba, como se um instinto quase sobrenatural lhe dissesse que poderia haver algo ali oculto. Sob os olhares intrigados dos colegas, começou a empurrar a frágil mobília – alguns de seus componentes ainda de pé acabando por se fragmentar com o contato – remover os tapetes de suas posições, inspecionar as paredes... até que, ao retirar uma peça cobrindo o chão de um dos cantos da sala, revelou haver nele um alçapão de madeira, razoavelmente conservado, trancado com um cadeado do tamanho de uma mão.

- O que você é afinal? – indagou o druida. – Uma caçadora de tesouros?

- Longe disso – ela replicou. – Apenas empreguei meus conhecimentos a respeito de castelos e palácios. Esta sala, aparentemente, servia como espaço de sociabilidade entre cortesãos. Em locais assim, é comum haver acesso direto a uma adega ou depósito similar de bebidas, para que durante festas ou cerimônias os convidados possam ser servidos continuamente. Muitas vezes essas adegas se situam embaixo ou ao lado desse tipo de sala. Neste caso, parece ser realmente embaixo...

Os outros dois encontravam-se espantados diante da esperteza demonstrada por Lisah, ao que ela, parecendo ignorá-los, apenas complementou:

- Mostrei a vocês mais uma opção de caminho. Cabe a nós agora decidirmos tomá-lo ou não.

Caleb e Kirinak se entreolharam. De acordo com o que a elfa dissera, descendo por aquele alçapão só encontrariam mesmo uma adega. Ou será que poderia haver algo mais? Valeria mesmo a pena correr o risco?

Sem aguardar a resposta dos companheiros, Lisah abaixou-se junto ao obstáculo e, retirando de suas vestes alguns pequenos objetos metálicos semelhantes a grampos, inseriu-os na tranca do cadeado. Girou-os para lá, para cá... e instantes depois o artefato encontrava-se aberto, a elfa em seguida erguendo o tampão de madeira que fechava a abertura, revelando sob si os primeiros degraus de uma escada que sumia na escuridão, um intenso cheiro de umidade dela provindo.

- E então, vamos descer? – ela tornou a inquirir.

Os outros dois aventureiros tornaram a se olhar: o druida sério, enquanto a clériga tinha o semblante dominado por uma travessa expressão de curiosidade... Ambos, então, deram um passo à frente.

Hachiko logo constatou que atrás da porta que abrira havia uma cozinha. Pequena e um tanto simples, encontrava-se imersa em decadência como tudo antes ali já visto. Diante da porta estendiam-se duas compridas mesas de madeira onde presumivelmente eram no passado preparados e dispostos os pratos destinados à realeza e sua corte – superfícies agora cobertas por musgo e ostentando inclusive cogumelos aqui e ali, como se compusessem requintada iguaria gastronômica à espera de alguém que os preparasse para o jantar. Ao fundo havia uma mesa menor, redonda, com algumas travessas e panelas sobre si no mais extremo estado de abandono – algumas delas tendo em seu interior substâncias esverdeadas que a elfa achou melhor nem tentar deduzir o que eram. Atrás dela existia um grande armário repleto de portas e gavetas – quase intacto – e ao seu lado um forno de pedra cujo interior crepitante mostrava que, ao contrário do resto, ele ainda era utilizado.

Aquele que exercia tal ação também se encontrava ali, na metade do recinto, entre a recém-chegada e o aparato para cozinhar. Um goblin, que, de costas para Hachiko, preparava uma porção de carne no dito forno, jogando-a crua ao fogo sem o menor cuidado ou minúcia. Uma refeição para si e seus companheiros, presumivelmente. O que aquele meliante não sabia, porém, era que ao menos três deles já haviam tombado. E agora só comeriam grama pela raiz...

A elfa preparou seu arco. Uma flecha bastaria – ainda que não lhe acertasse a cabeça, penetraria facilmente através da armadura enferrujada que o alvo usava. Além do que estava de costas, parado distraído diante do forno. Simples, bem simples.

Se ele no último momento não houvesse se virado...

Hachiko errando o disparo, com a seta indo desintegrar-se no fogo aceso, tendo passado a poucos centímetros do pescoço do goblin que mudara sua posição.

- Que canalhagem! – berrou a criaturinha com sua voz estridente, empunhando o pequeno machado que trazia consigo ao mesmo tempo em que partia correndo na direção da invasora.

Suspirando, a arqueira manteve sua arma pronta e apontada para o inimigo. Só precisava mirar num ponto de seu corpo em que, se atingido, fosse detido com somente uma flecha. Teria de se apressar, todavia, já que o goblinóide cobriria por completo a distância que o separava da oponente em questão de pouquíssimos instantes. Hachiko estava longe de perder a calma, porém: aprendera, durante seus muitos anos de treinamento com o arco, que a habilidade de quem o manuseava não vinha de sua força, nem mesmo de uma visão aguçada. O que se mostrava realmente decisivo para se manejar bem aquele instrumento era um misto de concentração e empatia com o meio, permitindo que o arqueiro fizesse um pacto em conjunto com a seta e o próprio ar do local, de modo que todos fizessem sua parte para que o alvo fosse atingido. Algo um tanto místico e abstrato que seus mestres haviam lhe ensinado, mas que se mostrara uma estratégia efetiva até o momento. Assim, manteve-se tranqüila e centrada, contribuindo para que a união de forças mais uma vez surtisse efeito...

Súbito, soltou a corda, liberando o projétil.

Estando já a poucos passos da elfa, preparando-se para golpeá-la com o machado, o adversário teve uma flecha cravada em cheio em sua cabeça, entre os dois olhos. Caiu de imediato, suas pernas descontroladas escorregando no chão úmido e o corpo prostrado acabando por deslizar até os pés de Hachiko; esta simplesmente o ignorando e, transpondo-o, indo averiguar o resto da cozinha.

Passou pelas mesas vazias, sua atenção se focando no armário. Suas intenções ali não eram difíceis de adivinhar: estava interessada em possíveis tesouros. Todo recurso seria útil em sua viagem até o extremo norte do reino, e de nada se arrependeria saqueando as riquezas de um bando de bandidos goblins. Abriu as gavetas uma por uma, procurando algo que ao menos não estivesse tão desgastado. De início viu-se frustrada na busca, até deparar-se com um lampejo dourado num dos compartimentos, vindo de algo embrulhado num trapo. Desdobrou-o... e deparou-se com, apesar de maltratados, valiosos talheres de ouro – o peso de cada peça não deixando enganar. Colheres, garfos, facas... todos possuindo talhada em seus cabos a insígnia da Liga do Norte. Um belo achado, que a elfa tratou de guardar cuidadosamente consigo, numa das bolsas em que trazia suas coisas. O recipiente teve seu fundo visivelmente expandido pela nova carga, mas Hachiko não deu ao fato grande importância. Julgando poder vender aqueles artefatos por um ótimo preço na primeira cidade por que passassem, deixou a cozinha, determinada a continuar explorando o antigo palácio do rei Volanir.

Retornando à sala anterior, constatou que os demais ainda não haviam regressado de sua jornada pela outra porta. Melhor para si: poderia seguir averiguando as salas sem ter de se ater às decisões dos outros, nem precisar dividir o que encontrasse com eles. Dirigiu-se agora à porta que desejava atravessar primeiramente, a mesma que seus companheiros deviam pensar que ela cruzara. Via-se curiosa em relação ao que o resto daquela construção poderia lhe reservar. Constatando também se encontrar destrancada, seguiu pela entrada com seu arco sempre pronto e o olhar sempre atento – tanto quanto a inimigos, quanto a objetos brilhantes...

A escada encontrada na sala dos cortesãos não conduzia a uma simples adega.

Os degraus de pedra escorregadia terminavam num corredor escuro onde ainda mais água gotejava – e o som agora parecia vir de todo lugar. O local estava imerso na mais completa escuridão; apenas Lisah, capaz de enxergar na total ausência de luz, conseguindo visualizar o caminho. Existia somente uma porta de madeira, dupla, ao final do trajeto, fechada. Nenhum sinal de vida ou perigo.

A elfa, no entanto, foi tomada por uma terrível sensação ao fitar as paredes de alvenaria. O aspecto delas não a agradava nem um pouco... e não era devido ao limo, umidade ou qualquer coisa similar; e sim por conta das inscrições, feitas sobre o revestimento a carvão e uma tintura que parecia sangue, portando frases ali registradas aparentemente no mais profundo desespero. "Swordanimus nos proteja", "Rogamos a ti, Senhor da Espada", "As asas do corvo salvarão Boreatia", "Swordanimus velará por nossas vidas"... Clamores desesperados de pessoas não mais naquele mundo. Seres enlouquecidos acuados naquele subsolo enquanto o palácio era alagado e que confiaram ao deus que tanto adoravam o ato misericordioso de impedir que morressem. Nada pudera salvá-los, todavia, da ira de Northar e seu panteão. E nem mesmo os restos mortais dos autores daquelas inscrições podiam ali ser encontrados, tendo sido varridos para sempre daquela existência – fadados ao inferno.

- Não consigo ver nada! – queixou-se Kirinak, sua voz inesperadamente ecoando pelo ambiente de forma soturna.

- Vou acender minha pederneira... – informou Caleb.

Ouviu-se em seguida, em meio ao breu, o som causado pelo atrito de metal contra pedra, pequenas faíscas sendo liberadas ao redor e iluminando parcialmente os arredores para o druida e a clériga... Até que, após algumas tentativas, o pequeno fragmento de rocha amarelada na mão direita de Rosengard gerou uma contínua chama, sua claridade tornando nítidos os aspectos mais próximos no corredor. Foi então que os dois humanos também conseguiram identificar as perturbadoras inscrições, Caleb chegando até a recuar alguns passos em espanto. Já Kirinak, por mais incrível que parecesse, não se intimidou. Fitando com atenção os clamores ao deus da guerra, chegou a tatear algumas das marcas... fechando os olhos numa expressão de alívio ao fazê-lo.

- O que está fazendo? – desejou saber Lisah, intrigada, ao notar o estranho comportamento da fugitiva.

- Err, eu... – subitamente, a garota não sabia o que responder. – Toda a... História, neste lugar! Pessoas que passaram por aqui de geração em geração, deixando seus rastros nestas paredes. É tão... interessante, ter contato com tudo isso!

- Eu não diria que "interessante" é a melhor palavra para descrever este lugar... – murmurou Rosengard.

De fato, o recinto era um dos mais sombrios de que eles conseguiam se lembrar. A incômoda umidade, unida ao incessante gotejar de água lodosa e à quase completa ausência de luz, contribuía para que o corredor, com suas inscrições maléficas, parecesse ter saído diretamente de um pesadelo claustrofóbico. Para piorar, a temperatura caíra de forma um tanto drástica depois de terem descido pela escada, Kirinak quase sentindo necessidade de se abraçar devido ao frio. O local era por certo nada convidativo, e até mesmo os lobos Anuk e Kiche demonstravam insegurança em avançar.

Todos eles, entretanto, avançaram, mantendo-se próximos ao foco de luz gerado pelo druida; e detiveram-se em frente à porta dupla.

- Vamos entrar? – questionou Caleb.

- Agora que já descemos até aqui... – falou Lisah, examinando a tranca.

Aberta.

A elfa empurrou lentamente uma das seções da entrada...

A sala seguinte também estava dominada pela escuridão, mas a jovem de Astar conseguia ver. A julgar pelos armários com divisórias, suportes para armaduras e banquinhos, aquele lugar costumava ser o arsenal do palácio. Dentro dos compartimentos via-se diversas armas enferrujadas, de adagas a espadas, pouquíssimas podendo ainda ser brandidas de algum modo com eficácia – ainda assim duvidosa. Equipamento para ataque à distância também ali existia, representado por arcos e bestas, mas tudo igualmente inutilizável. O estado das armaduras e escudos, agora mais ricos em liquens do que metal, não precisa ser descrito em pormenor.

Tal ambiente possuía mais duas portas: uma para a direita e outra para a esquerda.

- Podem entrar, está tudo limpo – informou Lisah.

Os outros dois assim procederam, a chama de Rosengard iluminando o que podia. Diante dos armários semi-abertos portando armas e mais armas corroídas, a atenção de Kirinak foi logo fisgada... e quando seus companheiros deram por si, ela já estendia os braços até uma espada pendurada no interior de um deles, seus olhos brilhando de curiosidade na penumbra.

- O que está fazendo? – indagou Caleb.

- Pode ser útil... – ela replicou com uma voz sumida, já sabendo que seria repreendida.

- Espadas enferrujadas? Bem, para condenarem você à morte no meio de um combate ao quebrarem, sim, elas são bem úteis!

Um pouco vermelha, a clériga afastou suas mãos do sabre, em seguida bufando baixinho. Aquilo não era justo. Não estava vendo muita diferença entre suas vidas dentro e fora do santuário de Wella...

Havia duas portas a serem checadas, e o grupo de início demonstrou certa indecisão a respeito de qual seria a primeira. Sempre acabando por tomar a iniciativa, Caleb, seguido de Anuk, rumou para a entrada à direita de onde tinham vindo. Destrancada. E o druida entrou.

O aspecto úmido era mais intenso no estreito recinto, por certo devido ao reservatório de água existente diante do pequeno pátio de pedra que o compunha. Possuindo teto mais baixo e tendo como revestimento a própria rocha do subsolo, a cisterna iniciava um complexo de cavernas que, terminando numa vaga luz ao longe, parecia desembocar no rio pela encosta da ilha. Caleb imaginou que tal passagem era um dos antigos pontos fracos do palácio, um reduzido destacamento de um exército inimigo sendo capaz de nele se infiltrar por ali, subindo então até seu interior através da escada. Separando a plataforma do lago subterrâneo que continha agora somente líquido turvo, havia um complicado conjunto de maquinário constituído de válvulas, canos e engrenagens, todos enferrujados, aparentando se tratar de um antigo sistema de bombeamento de água. Aquele reservatório compunha fonte de abastecimento para a construção, outrora. E nada ali existia de útil.

Rosengard retornou, sem que as duas jovens o houvessem seguido, e revelou:

- Nada aqui. Apenas uma cisterna.

Elas assentiram, voltando-se então para a outra porta. Só nesse momento notaram uma tira de tecido podre enrolada em torno das duas maçanetas da entrada dupla, numa vã tentativa de selá-la. Com um leve movimento de uma de suas espadas, Lisah rompeu de vez o inútil lacre, as duas tiras partidas e decompostas indo ao chão suavemente. Dessa vez foi a elfa quem primeiro avançou, abrindo uma das divisórias sem causar qualquer ruído, e espiando discretamente para dentro...

Viu um cômodo que se assemelhava a uma sala de reuniões – tendo por certo constituído uma no passado. Ao centro, uma comprida mesa retangular de pontas curvas encontrava-se cercada por várias cadeiras, e num dos cantos da sala que Lisah conseguia ver, um antigo armário continha grande número de pergaminhos e mapas aparentemente semi-intactos. Um destes últimos, aliás, encontrava-se pendurado numa parede, retratando uma divisão política de Boreatia que ainda remetia aos últimos anos da Liga do Norte, o rígido domínio dos boreais então se estendendo por praticamente todo o mundo conhecido. Mas, tirando o aspecto lúgubre do ambiente, algo específico nele perturbou-a em especial: um alto e volumoso vulto caminhava através do local, emitindo grunhidos, e aproximava-se mais e mais da porta de entrada, aparentando ter percebido a presença da elfa.

- Cuidado! – ela gritou.

Lisah por reflexo saltou para trás... os outros dois igualmente recuando enquanto algum tipo de arma metálica destroçava metade da porta de madeira, estilhaços voando para o arsenal enquanto um objeto esférico de pontas, nítido sob a luz da pederneira, pendia para fora... manuseado pela mesma figura ameaçadora vista dentro da sala, agora descoberta também pelos demais.

Do outro lado da porta Hachiko encontrou um extenso corredor, com várias novas portas na parede à sua direita. Como previra, aquele caminho levava mesmo às outras dependências do palácio. A iluminação era mínima, fornecida apenas por poucos raios de claridade advindos do céu nublado do lado de fora, penetrando como podiam através das janelas vedadas. Mal deu um passo pelo novo trajeto, um forte trovão propagou-se pela área, anunciando a iminente chuva. Ignorando a impetuosa manifestação da natureza, a elfa de Kartan, com seu arco pronto, aproximou-se da primeira entrada.

Era uma porta de madeira simples, destrancada. Empurrou-a de leve, ouvidos e olhos atentos a possíveis sinais de goblins... e nada havia, felizmente. Adentrou em seguida o cômodo, que constituía um dormitório – devido às suas modestas condições, provavelmente antes tendo sido usado pela guarda do local. Duas fileiras de camas iniciavam-se junto à entrada e terminavam ao fundo do recinto, criando um vão no centro pelo qual era possível andar – este, por sua vez, tendo seu fim num armário onde os antigos soldados deviam manter seus pertences. Tudo ali se encontrava razoavelmente conservado, levando a crer que os goblinóides vinham utilizando aquele espaço para dormir. Hachiko, de imediato, dirigiu-se até o último móvel descrito, abrindo suas portas e gavetas em busca de algo valioso. Nada encontrou além de uma das armaduras miseráveis daqueles bandidos e algumas peças de roupa rasgadas. Teria de tentar a sorte nas salas seguintes, que desconfiava também se tratarem de dormitórios.

Aproximou-se da segunda porta. Abriu-a levemente, com o mesmo procedimento. Teve um lampejo de mais camas enfileiradas, constatando o recinto ser mesmo igual ao anterior... a única diferença sendo o goblin nele presente que, percebendo o ocorrido, apanhou berrando sua espada enferrujada, partindo correndo na direção da intrusa.

A elfa bufou. Aquilo já a estava cansando. Apontou o arco e disparou uma flecha... mas errou.

Não contava com tal falha. Apesar de estar em movimento, o alvo encontrava-se numa linha reta em relação a si: dificilmente errava em tais condições. Agora aquilo se transformara numa questão pessoal. Com o inimigo se aproximando mais e mais, lançou outra seta...

E errou de novo, o projétil passando por cima da cabeça da criaturinha, fincando-se no armário.

Agora era tarde demais: o oponente chegara muito perto para que ela continuasse a tentar acertá-lo com flechas. Saltando para trás, Hachiko esquivou-se de uma investida da espada do goblin – conseguindo, com o tempo ganho, guardar rapidamente o arco e apanhar seu sabre, visando lutar com o adversário de igual para igual. Além de sua arma de longa distância, sempre trazia consigo uma lâmina para combate corpo-a-corpo, sabendo que o mesmo muitas vezes se mostrava necessário. Não era, no entanto, uma espada característica das Ilhas Kartan, a que se chamava comumente Katana, mas um sabre élfico com algumas adaptações, possuindo em seu bojo inscrições nos ideogramas de sua terra natal. Significavam "Coragem" e "Perseverança". Palavras que acreditava descreverem bem sua pessoa.

Investiu contra o goblinóide, procurando ceifar-lhe o abdômen. Mas o ágil salteador desviou, contra-atacando com uma estocada. A elfa evitou-a saltando de novo para trás, sentindo então uma pontada em seu ombro ferido. Esquecera-se disso, mas o ferimento provavelmente acabaria prejudicando seu desempenho naquele combate. Não havia mais tempo para outra solução, entretanto: Hachiko seguiu atacando, tentando acertar o goblin pelos dois lados... e errando ambos os ataques. Na vez dele, pulou para frente procurando enterrar a lâmina oxidada no peito da oponente... com igual insucesso. Nesse confronto em que ninguém atingia ninguém, os dois contendores foram se deslocando para fora do dormitório, o bandido aos poucos encurralando a elfa junto a uma das paredes do corredor. Ela seguia se defendendo e procurando surpreender o adversário nos intervalos entre suas investidas; até que a ferida em seu ombro, num dado momento, pareceu gritar... e todo o seu corpo estremeceu. Com isso o goblin encontrou espaço... e cravou a espada no ventre de Hachiko.

A elfa caiu com as costas amparadas pela parede atrás de si, sua visão turvando-se e seus ouvidos sendo obrigados a escutar uma zombeteira risada do inimigo. Privada de forças, soltou sua espada, arrependendo-se profundamente de ter tentado utilizá-la: não era mesmo tão boa com ela quanto era com o arco. Melhor seria ter tomado distância e eliminado aquele monstrinho com uma seta, sem demais problemas.

Antes de perder a consciência, porém, conseguiu somar ímpeto em sua garganta para bradar:

- Socorro!

E, finalmente, perdeu os sentidos.

No subsolo, o assustador e grande vulto seguia quebrando a porta, esmigalhando com fúria o que ainda dela restava usando o que parecia ser uma maça de haste longa.

Aos poucos o obstáculo foi totalmente destruído, os três aventureiros a postos enquanto a figura se revelava. Mais de dois metros de altura, corpo musculoso coberto por ásperos pêlos num tom marrom-amarelado. Vestia trapos e enferrujadas partes incompletas de armadura, protegendo-se assim de forma precária. Mãos e pés expostos terminavam em garras pontudas, porém não muito consistentes. A face era característica de um goblinóide, a boca repleta de descontínuas presas afiadas, e o nariz achatado lembrando muito o focinho de um urso. Daí provinha o nome pelo qual aquela criatura costumava ser denominada: "bugbear".

Grunhindo, o grande ser avançou por sobre os destroços da porta rumo ao trio de invasores, maça pronta para esmagá-los dolorosamente. Lisah apressou-se em ordenar a Kiche que ficasse imóvel, a loba ainda assim rosnando para a hostil criatura. Já Caleb não conteria Anuk, preparando também seu bordão para lutar com o novo inimigo – a pederneira ao mesmo tempo mantida acesa em sua outra mão. Kirinak, encolhida num canto, não se encontrava necessariamente assustada, mas intimidada e ao mesmo tempo surpresa com o aspecto do goblinóide. Jamais vira algo parecido. E julgava ser apenas o primeiro monstro realmente ameaçador que encontraria permanecendo na companhia daqueles viajantes...

A elfa de Astar avançou com suas duas espadas, tentando retalhar o peito do adversário. Ele, todavia, repeliu-a usando um dos volumosos braços, empurrando-a para trás sem maiores danos. O druida ordenou que seu lobo atacasse, este correndo na direção do bugbear e abocanhando o mesmo membro que ele utilizara para defender-se de Lisah. A fera enterrou seus caninos na pelagem do oponente, sangue vertendo, mas ele logo em seguida atirou-a contra uma das paredes, Anuk nela colidindo num ganido.

- Não! – exclamou Rosengard, temendo pela vida de seu fiel companheiro.

Kirinak permaneceu onde estava, abrindo sua bolsa e procurando nela algo, sem ser notada pelos dois colegas em luta...

Lisah atacou mais uma vez, agora conseguindo efetuar um corte na barriga do salteador. Ele emitiu um gemido grosso, enquanto era atingido de lado pelo bordão de Caleb. Anuk, já recuperado, investiu novamente contra o monstro – errando seu salto. Já o alvo, mesmo estando acuado, moveu sua maça duas vezes visando os inimigos, estes se abaixando e assim conseguindo se esquivar dos contra-ataques. A elfa e o druida estavam prestes a novamente avançar, quando viram um objeto misterioso voar por suas costas até a cabeça do bugbear... acertando-a em cheio num baque metálico. Os olhos da criatura piscaram confusos, seu corpo perdeu o balanço... e a colossal massa de músculos e fúria desabou sobre o chão do arsenal, pouco à frente da porta destroçada... uma frigideira caindo num estalo ao seu lado, revelando ser a arma utilizada para desmaiá-lo.

Caleb e Lisah olharam para trás... Kirinak então acenando para ambos num sorriso.

- Você só nos surpreende... – o druida afirmou com uma voz carregada de sarcasmo.

A elfa deu uma risadinha desconcertada, já seguindo até a sala de reuniões agora segura. Foi acompanhada por Rosengard e por fim pela clériga – que recuperou o utensílio no caminho, guardando-o de novo em meio às suas bugigangas.

O recinto antes guardado pelo bugbear devia no passado ter sido a sala de estratégia onde o antigo rei Volanir V se reunia com seus comandantes. A mesa, apesar de podre, mantinha-se relativamente firme sobre suas bases, assim como as cadeiras de estofamento desgastado, que décadas antes por certo eram bastante confortáveis. Documentos e mapas rasgados podiam ser encontrados pelo chão, e existia num outro canto do lugar um segundo armário não-percebido por Lisah, onde nada havia além de entulho. No móvel visto anteriormente, Caleb pôs-se a examinar os pergaminhos, detendo sua atenção num em especial que, alvo de maior cuidado, fora mantido protegido dentro de um estojo. Abrindo-o, apanhou o documento que ostentava o selo real e ia colocar-se a lê-lo, quando todos ouviram um grito feminino longínquo, emitido na superfície por uma voz que julgavam conhecer...

Socorro!

- É a Hachiko! – Lisah afirmou prontamente.

- Será que está em perigo? – perguntou o druida, bem mais interessado no achado que tinha em mãos.

- Provavelmente.

- Bem, vamos subir...

Rosengard guardou o pergaminho consigo, deixando para examiná-lo depois, e pôs-se com as duas jovens a retornar até o nível superior do palácio. Ao menos deixariam a escuridão total e a incômoda aura que aquele subsolo possuía...

Não havia ninguém na sala definida como ponto de encontro, a não ser os três goblins anteriormente derrubados. Aquilo era mau, pois então o grupo de Caleb teria de procurar pelo palácio até encontrar o local onde Hachiko se envolvera em apuros. Ela poderia estar em qualquer parte dele, e a edificação não era nem um pouco pequena. Ao menos possuíam um dado importante acerca de seu paradeiro: ela atravessara a porta que achava conduzir às demais dependências. E foi por ela que decidiram começar a busca.

Felizmente, os deuses estavam com eles: mal ganharam o corredor ao qual conduzia a entrada, depararam-se com a elfa de cabelos prateados inconsciente, caída sentada com o corpo apoiado numa das paredes. Encontrava-se de frente para a porta aberta do que parecia ser um quarto, e a região de seu ventre encontrava-se toda banhada em sangue. Ao longe, grunhidos irritantes eram ouvidos. Devia haver mais goblinóides à espreita, talvez incluso o que fizera aquilo.

- Temos de tirá-la daqui para tratar dela! – afirmou Caleb. – Alguém me ajude a levá-la para a outra sala!

Kirinak prontificou-se a auxiliar o druida, pegando Hachiko pelas pernas enquanto ele o fazia pelos braços. Lisah, por sua vez, permaneceu atenta ao corredor ao mesmo tempo em que os outros dois carregavam a jovem ferida até o recinto anterior. Ela era mais pesada do que eles haviam suposto que seria, perguntando-se se isso não se dava devido a algo que trazia em sua carga. Ignoraram o fato naquele momento, porém, e logo a deitaram com cuidado no centro do local, perto de uma das mesas quebradas. Quando a clériga abaixou os braços para soltar as pernas da elfa sobre o piso, no entanto, acabou cumprindo a tarefa de forma desajeitada, fazendo cair a bolsa que a desmaiada trazia junto à cintura... e alguns objetos com isso despencando sonoramente para fora dela.

Os três aproximaram-se para ver melhor: tratava-se de colheres, facas, garfos... apesar de um tanto consumidos pelas condições adversas predominantes no palácio, eram constituídos do mais puro e valioso ouro. Algo que Hachiko muito provavelmente encontrara andando sozinha pelos corredores, manifestando seu real interesse naquele lugar.

- Ela estava à procura de riquezas, afinal de contas... – murmurou Caleb.

- Será que ela pretendia dividir essas peças conosco? – questionou Lisah, examinando em suas mãos um dos belos talheres.

- Duvido muito... apesar de eu não ter qualquer interesse em tais bens materiais.

Removendo parcialmente as vestes da elfa na área do abdômen – as mesmas já se encontrando rasgadas devido ao golpe que causara o ferimento – Kirinak iniciou o tratamento da perfuração como podia. Primeiro limpou e estancou o sangue, já que o mesmo até então ainda jorrava pela abertura aos borbotões, e Hachiko perdera dele uma quantidade considerável. Depois untou a ferida com algumas ervas medicinais que trazia consigo: apesar de abominar Wella e seu culto à natureza, tinha de reconhecer que várias de suas práticas curativas se mostravam bastante eficientes. Em seguida usou mais uma vez seus ungüentos cicatrizantes e envolveu o ventre da moça com ataduras. O procedimento durou vários minutos, ela continuando inconsciente. Mas, por sorte, mais nenhum goblin surgira.

- É o que posso fazer com o que tenho – informou a clériga ao terminar.

Os outros dois viam-se admirados: a jovem fugitiva era mesmo muito boa naquilo. Ao que parecia Hachiko agora teria apenas de descansar um pouco, para logo recobrar os sentidos. Do lado de fora, os trovões tornavam-se mais freqüentes e o clarão de relâmpagos podia ser vislumbrado parcialmente através das janelas tampadas. A tempestade logo se iniciaria. E eles pareciam longe de ter enfrentado todos os perigos daquele palácio...

O tempo foi passando e, antes do que previam, a elfa de Kartan começou a dar os primeiros sinais de ter recuperado a consciência, movendo os membros devagar e gemendo baixinho. Abriu os olhos e ergueu o tronco, constatando que fora encontrada e salva pelos companheiros. Estes, todavia, não a olhavam com semblantes felizes, apesar de Hachiko ter despertado da morte certa. Ela de início não compreendeu, massageando o ventre dolorido... até visualizar os talheres dourados jogados pelo chão. Emitiu então um gemido mais alto – que não se sabia ao certo se fora causado pelo ferimento ou por desagrado...

- O que houve? – indagou Rosengard.

- Estava explorando este andar quando fui atacada por um goblin... Ele acabou me derrubando. Tive sorte de não ter me executado. Por certo pensou que eu já estivesse morta quando desmaiei.

- E essas peças? – Lisah inquiriu implacavelmente, braços cruzados, apontando para os achados.

- Foi algo que encontrei por acaso na cozinha... – Hachiko esclareceu de forma evasiva, fazendo uma careta de dor.

- Pretendia dividir conosco? – a elfa de Astar insistiu.

Passou-se um momento de silêncio antes que a elfa de Kartan respondesse, soando um pouco contrariada:

- Podem pegar o quanto quiserem.

- Vamos dividir em quatro partes iguais – propôs Lisah.

- Em três! – corrigiu o druida. – Não quero nada.

- Está bem...

Assim procederam, distribuindo entre si os itens de ouro. A divisão em três acabou por se mostrar a mais acertada, já que os participantes terminaram todos com a mesma quantidade de talheres, não tendo sobrado nenhum. Pouco depois Hachiko já conseguiu se levantar, ainda que andasse com certa dificuldade, e uniu-se aos outros na continuidade da exploração do palácio, rumando através do mesmo corredor em que tombara. Encontrava-se agora munida com o arco: não cometeria o mesmo erro mais de uma vez.

O corredor acabava por se desdobrar em outro... e este em mais outro. Abundavam portas por toda a extensão do trajeto, e o grupo adentrou as que conseguiu. Uma das maiores salas se tratava de uma espécie de depósito, com alimentos e outros produtos há muito estragados, no qual um goblin solitário foi eliminado com facilidade pelas espadas de Lisah. No último dormitório não-explorado, o terceiro do corredor inicial, Hachiko encontrou no armário algumas flechas em bom estado que tomou para si, já que as suas começavam a acabar. Vistoriaram também alguns quartos bem menores e mais modestos que os da guarda, destinados provavelmente aos antigos serviçais da realeza. Ao final, restaram somente três portas a serem abertas: uma dupla, que parecia conduzir a um local maior e que por certo possuía acesso ao andar superior, e outras duas menores, ambas trancadas, aparentemente levando a um mesmo cômodo.

Como já haviam examinado todo o andar, acharam prudente adentrar a sala menor antes de subirem rumo ao próximo piso – Lisah conseguindo liberar a tranca de uma das entradas sem a menor dificuldade, utilizando suas pequenas ferramentas semelhantes a grampos, e os demais se perguntando a respeito de como ela adquirira tal habilidade...

O caminho foi liberado, a elfa de Astar empurrando a porta lentamente. Não entendeu bem o porquê, mas mesmo sem ver o que havia depois dela, o desconhecido recinto lhe causou imenso mal-estar. Recuou, dando espaço para que algum dos companheiros o adentrasse à sua frente. O druida assumiu tal função, batendo seu bordão contra o piso e ganhando o local sem se intimidar.

Ironicamente, a sala era a que até então possuía as janelas mais preservadas em todo o palácio; o céu escuro carregado de nuvens, ainda no entanto dotado de certa luminosidade, visível no exterior e clareando ligeiramente o interior do cômodo cheirando fortemente a mofo. Havia móveis de extinto luxo quebrados aqui e ali, musgo misturado às teias de estranhas aranhas pelas paredes e pelo teto, além da outra porta que realmente cedia acesso àquela mesma sala... Mas o mais aterrador encontrava-se num canto, ainda assim em destaque: uma espécie de altar, construído em pedra e metal, possuindo uma espada fincada com a lâmina voltada para baixo em seu topo. Com a estrutura incrustada de jóias vermelhas e verdes, a superfície superior plana do local de adoração possuía cálices, pratos e outros utensílios com resquícios apodrecidos do que parecia ser... sangue e órgãos humanos. Tais indícios não eram tão antigos quanto o Crepúsculo dos Deuses, levando a crer que rituais de culto haviam tido palco ali, presumivelmente às escondidas, tempos após a manifestação da ira divina – o que explicava o aspecto mais conservado daquela sala em particular. Uma capela dedicada ao deus da guerra caído Swordanimus. Antes privilégio da realeza da Liga do Norte, agora local oculto de adoração dos seguidores da divindade que ainda restavam.

Ao fitar o altar, Rosengard foi tomado pela mesma péssima sensação. Ao identificar os símbolos remetendo ao deus, lembrou-se de imediato das terríveis histórias contadas por seus pais a respeito de como os círculos de druidas haviam sido perseguidos e muitos deles dizimados pelos fanáticos adeptos da Espada, devido a prestarem culto a Wella e os demais deuses. E os sinais levando a crer que o local ainda era usado apenas intensificaram o incômodo, fazendo-o lembrar-se de sua visão e do mal que ainda ameaçava se manifestar naquelas terras.

Os outros acabaram por também entrar no lugar, calados e visivelmente perturbados – com exceção talvez de Kirinak. Os demais não perceberam, mas a garota pareceu mais leve e aliviada ao pisar na atroz capela, olhos fixos no altar. Suas pupilas até brilharam ao visualizarem a espada nele fincada, emblema de devoção àquele que era o único que realmente a compreendia dentre as hipócritas divindades tão veneradas pelos mortais.

- Não há nada para nós aqui! – afirmou Caleb, já retornando ao corredor. – Vamos!

Lisah e Hachiko o acompanharam sem qualquer tipo de objeção... apenas a clériga fugida ficando para trás, imóvel, a contemplar o local de adoração – antes de finalmente cair em si em relação ao que os outros pensariam e, apressada, deixando também o pequeno santuário... encostando a porta ao invés de fechá-la.

Restava somente a porta dupla a ser transposta naquele primeiro andar. Todos se posicionaram diante da entrada, preparados para um eventual combate. Com Lisah e Hachiko à frente, as duas moveram discretamente uma das divisórias... entrando quase ao mesmo tempo e atentas aos arredores. Também silenciosos, Caleb, Kirinak e os lobos vieram logo atrás.

Adentraram uma ampla sala, com aspecto de um hall, e estranharam não ser aquele o recinto de entrada do palácio, devido à sua suntuosidade. O local ocupava seções tanto do primeiro quanto do segundo andares, interligados por uma escada que tinha início no primeiro piso, dividia-se em duas na forma de um "T" e ambas terminavam no nível superior, compondo uma passarela com parapeito circundando o espaço. O revestimento do chão era xadrez, composto de lajotas rachadas e algumas já totalmente estilhaçadas. Móveis de diferentes tamanhos e aspectos, entre mesas, cadeiras e armários, ocupavam todo o lugar, alguns em estado miserável enquanto outros apresentavam razoável conservação. Do teto pendia um luxuoso e grande lustre escurecido, faltando-lhe algumas partes e portando mais quase nenhuma vela, porém um pouco da ostentação de outrora sendo ainda mantida em sua estrutura metálica forjada com esmero. O ambiente inteiro era dominado por diferentes tons de um azul-esverdeado, denotando extrema umidade. Musgos e liquens cobriam algumas partes das paredes, teto e escadas – como se almejassem, com o decorrer de mais alguns anos, expandir-se sobre todas aquelas superfícies. Já que não constituía área de entrada à construção, aquele lugar, pela sua grandeza, devia ter servido como salão de festas ou função similar...

De qualquer modo, nenhum deles teve tempo para examinar a sala com maior minúcia, já que um goblin munido de espada saiu correndo do vão sob a intersecção da escada; enquanto uma flecha, disparada do alto da passarela acima, por pouco não atingia Lisah no peito, o arqueiro goblinóide apoiado no parapeito praguejando devido a ter errado o alvo.

Os aventureiros se dispersaram para revidar. Lisah e Caleb focaram-se no inimigo que partia para o combate corpo-a-corpo, enquanto Hachiko apontava o arco para o que investia à distância e Kirinak, como antes, protegia-se num canto para abrir sua bolsa e retirar algo dela. Logo o primeiro oponente foi derrubado, cortado no abdômen por uma das espadas da elfa e tendo os sentidos definitivamente suprimidos com uma forte pancada do bordão do druida. Já o outro disparou duas setas contra a elfa de Kartan – errando – mas esta também falhou em acertar seus contra-ataques... cabendo à clériga, que começou a atirar pedras provavelmente encontradas na estrada contra o goblin, atrapalhá-lo a ponto de Hachiko conseguir atingi-lo em cheio com a flecha seguinte.

- Obrigado... – ela sussurrou para a humana, achando estranha sua forma de atacar.

Ela apenas assentiu, subindo pelas escadas junto com os outros e preocupando-se em recuperar as armas improvisadas, enfiando-as de volta na bolsa, ao chegar à passarela.

Iniciou-se, então, a exploração do segundo andar.

Constataram haver nele um corredor exatamente no mesmo formato, com as mesmas ramificações e localizado bem em cima do outro no piso inferior. A quantidade de portas e a localização destas também parecia a mesma, com exceção de uma ou duas entradas a menos. Revelava-se, assim, dedicado paralelismo na planta daquela edificação.

Averiguaram primeiro a porta diante daquela que haviam cruzado para deixar o hall, levando a uma sala situada sobre a sinistra capela vista há pouco. Pelo aspecto e camas, parecia se tratar de um quarto de hóspedes, já que não era tão simples quanto os aposentos da guarda ou dos empregados, nem tão requintado quanto o leito de um soberano. Ao final da mesma extensão do corredor encontraram uma porta de metal solidamente trancada – possuindo o estranho símbolo de um alaúde junto à tranca que nem mesmo Lisah conseguiu vencer. Devia se tratar de outro salão de festas, de qualquer modo.

Desceram pela passagem. Anuk e Kiche apressaram-se rumo a uma das portas fechadas e permaneceram cheirando junto à sua extremidade inferior, detectando a presença do inimigo atrás dela. A julgar pela agitação dos animais, o número de goblins naquele recinto devia ser grande; e pelo que Hachiko se lembrava durante a corrida do lado de fora, aquela aparentava ser uma das principais posições dos arqueiros.

Todos trocaram olhares receosos. O enfrentamento parecia ser o caminho menos recomendado naquele caso. Eles haviam tido sorte até então confrontando sentinelas solitários ou pequenos grupos, mas não um número muito grande de adversários. Decidido, Caleb apanhou seu bordão... e o inseriu entre as duas alças metálicas da porta dupla, selando-a. Sabendo que a medida, apesar de eficaz, não seria suficiente por si só, Lisah aproximou-se, apanhando mais um artefato que até então não aparentava carregar sob seu traje: uma corda. Manuseando-a com habilidade, enrolou-a em torno do bordão e das duas alças, imobilizando ainda mais a entrada. Havia, por certo, goblinóides dentro daquele cômodo... mas eles não sairiam dele tão facilmente. Ao menos não antes que os viajantes terminassem de examinar o palácio.

Mais seguros, continuaram avançando. Atrás de um par de portas, sobre os alojamentos da guarda no andar de baixo, derrubaram um goblin que vigiava uma sala repleta de mesas e armários ricamente decorados, os restos de vestidos e jóias jogados pelo chão levando a crer ser aquela a antiga sala destinada às damas de honra da rainha. Nada de aproveitável encontrando, rumaram para a porta seguinte. Um novo dormitório, semelhante aos dos soldados já vistos, porém um pouco melhor cuidado e espaçoso, Lisah deduzindo ser no passado ocupado pelos guardas de elite do rei. Nele derrubaram um goblin arqueiro, Anuk mordendo ferozmente seu peito enquanto era liquidado por flechas de Hachiko. E nada mais.

Somente uma porta restava no corredor. Trancada, estrutura reforçada, o símbolo de uma coroa sob a tranca. Provavelmente os aposentos da realeza. Lisah abriu caminho sem problemas, violando a fechadura, e eles entraram.

Aquele era sem dúvidas o maior quarto do palácio. Espaçoso, iluminado, as paredes descascadas portando resquícios de sublime pintura. Dois grandes armários encontravam-se junto às paredes, além de uma comprida e baixa mesa no centro, diante de uma luxuosa cama coberta com tenda... seu suporte carcomido de madeira há muito tendo desmoronado e a parte superior, coberta de lençóis furados, estando agora caída sobre o colchão de penas num grande e desordenado amontoado cinzento. Limo cobria as superfícies em grande quantidade. Ali existiam mais duas portas: uma para a direita e outra para a esquerda.

Antes que pudessem se decidir a respeito de qual checar primeiro, a entrada da esquerda foi aberta com violência, num chute, revelando atrás de si uma sacada com parapeito de pedra logo acima da entrada do palácio... posição de dois goblins arqueiros que agora apontavam suas flechas para o lado de dentro, surpreendendo os recém-chegados.

Um trovão ressoou ao mesmo tempo em que as setas eram disparadas. Uma das criaturinhas, mais ansiosa por acertar os intrusos, inclusive lançou duas ao mesmo tempo. Visavam Lisah, que, usando seus reflexos, saltou rolando pelo chão para trás da cama desmoronada, os projéteis passando por cima de si e se fincando na outra porta. O outro salteador disparou contra o druida, a ponta afiada da flecha ferindo-o de raspão num dos braços e lhe rasgando a manga da túnica, sangue voando; mas acabando por ser cravada na parede metros atrás. Hachiko revidou lançando também uma seta... que perfurou o peito de um dos arqueiros, fazendo-o cambalear para trás até colidir de costas com o parapeito, perder o equilíbrio e despencar rumo ao solo. Kirinak, por sua vez, arremessou pedras contra o outro – errando todas – mas o inimigo logo foi derrubado por Anuk, que desviou de uma flecha que o visava, e abocanhou o pescoço do oponente sem piedade.

Com a área limpa, eles puderam recuperar o fôlego.

Lisah foi averiguar, com cautela, a outra porta. Dava acesso, para sua surpresa, a uma espécie de casa de banho situada em pleno segundo andar, semelhante aos antigos termas e banhos públicos do Império Boreal. Concluiu, assim, que devia ser tradição dos monarcas da Liga do Norte, autoproclamados sucessores dos imperadores, contar com recintos como aqueles em suas residências. Todo revestido de pedra suave e bem-talhada, o lugar possuía em seu centro um tanque de cerca de um metro e meio de profundidade onde outrora o rei, a rainha e seus convidados mergulhavam na água quente e tratavam dos mais diversos assuntos por horas a fio. O líquido escuro e lodoso ocupando agora o recipiente só combinava mesmo com os novos inquilinos goblins do palácio, como a elfa logo associou. Nada útil havia ali, e assim ela logo retornou ao cômodo anterior para informar os companheiros sobre o que encontrara.

Estes, por sua vez, olhavam através da sacada do quarto. Já era noite lá fora, as nuvens escuras carregadas não tendo permitido que percebessem a retirada do astro solar. Os relâmpagos e trovões só se tornavam mais freqüentes, anunciando a próxima chegada da chuva. Diante de tais circunstâncias, e levando em conta que os últimos goblins ainda no palácio provavelmente se encontravam selados numa única sala daquele andar, melhor seria pernoitarem num local coberto, salvos da água que se precipitaria. Ou seja, deveriam dormir no palácio. Aquele quarto serviria muito bem, e talvez nem precisassem montar guarda. Lisah trancou novamente a fechadura, adotando também mais uma medida de proteção: utilizando uma corda emprestada por Kirinak, apanhou alguns dos escombros da cama e os pés de mesa pegos pela clériga no andar de baixo, montando uma arrojada armadilha junto à porta, de modo que se alguém pisasse na extremidade da corda deixada rente ao chão, bem em frente à entrada, a pilha de entulho cairia sobre sua cabeça. Algo longe de ser letal, mas que causaria barulho suficiente para acordarem e se defenderem.

Ainda que houvessem achado a idéia genial, todos continuavam se questionando a respeito dos conhecimentos que a elfa de Astar demonstrava possuir. Preparação de armadilhas, arrombamento de portas, agilidade fora do comum... o que ela fazia de sua vida, afinal? E o que queria em Behatar?

Preferindo o silêncio, no entanto, iniciaram os preparativos para uma refeição noturna e em seguida o repouso. Kirinak protestara não ser seguro, que preferia dormir em outro lugar – porém foi ignorada. Enquanto mordiscavam as frutas e outros alimentos que carregavam consigo, saboreavam, acima de tudo, a ironia da situação: jamais pensaram que um dia passariam a noite nos aposentos de um rei...

Todos comeram e aos poucos foram se ajeitando para dormir. Lisah retirou o colchão de penas de baixo da tenda quebrada da cama e, colocando-o sobre o chão, deitou-se nele junto com Kiche. Como era grande, comportava mais uma pessoa, e assim a elfa de Astar permitiu que Hachiko se acomodasse também nele. Kirinak retirou alguns lençóis do leito de Volanir e deitou-se em cima deles, enquanto Caleb, que nunca dormira em local parecido, optou pelo piso nu, acompanhado por Anuk.

O cansaço venceu a todos após algum tempo, exceto o druida. Apesar de ter sido um longuíssimo dia, todos tendo passado por diversos apuros de Tileade até ali, ele, ainda que igualmente exausto, não estava habituado mesmo a pernoitar num local construído por humanos, longe do toque da grama e das folhas das árvores. Aquele ambiente lhe causava profundo incômodo, sendo que virou para lá e para cá inúmeras vezes sem conseguir pregar os olhos. A situação piorou quando começou a chover: as gotas d'água, caindo sobre o telhado, passaram a penetrar dentro do palácio através de suas goteiras, que não eram poucas. Desse modo o pingar incessante da tempestade, somado aos raios, contribuía ainda mais para a insônia de Rosengard. Se ele estivesse na floresta, não se incomodaria de modo algum com o fenômeno, mas o problema era a construção. Aquela carcaça de pedra e alvenaria que o deixava cada vez mais nervoso.

Pensou até em ir passar a noite do lado de fora e regressar assim que o sol surgisse, porém teria de passar pela porta do quarto – não sabendo como destrancá-la e correndo o risco de acionar a armadilha de Lisah. Isso acabaria por despertar os demais – coisa que não queria – então achou melhor tentar se conformar com a situação. Cedo ou tarde o sono viria...

Foi então que pensou: alguma distração poderia ajudá-lo a cansar-se ainda mais, adormecendo com maior facilidade. Depois de um minuto ou dois raciocinando, sentado sobre o chão, lembrou-se do estojo contendo um pergaminho que encontrara no subsolo aquela tarde. Ainda não o lera, e aquele poderia ser o melhor momento. Decidido, acendeu sua pederneira, criando pequeno foco de luz, e com a outra mão pegou o antigo documento de bonita caligrafia, lendo-o com atenção:

A guerra contra os petulantes que se recusam a adorar o bondoso Swordanimus como único deus persiste... Logo os Cavaleiros da Luz e a Ordem de Gartur estarão extintos e o nobre Senhor da Espada será plenamente glorificado.

Eu gostaria, porém, de ter em minhas fileiras soldados como o bravo Kyrin, Cavaleiro da Luz, ótimo estrategista, perito em combate e capaz de morrer por sua fé, mesmo adorando falsos deuses... É tamanho desperdício ele fazer parte das forças que estão contra mim e a sagrada Liga do Norte! Até mesmo alguns de seus mais novos aprendizes, segundo os relatórios de meus espiões, como Rabesdin e o tal Göther, parecem guerreiros de incrível habilidade. Invejando-os assim, revelo o estado de marasmo e incredulidade em que boa parcela de minhas forças armadas caíram nos últimos anos, talvez devido aos supostos sinais divinos de calamidade.

Pretendo, porém, renovar nossas fileiras nestes tempos de necessidade. Alguns membros da Sociedade dos Colibris, como os descendentes dos infames irmãos Durgan, prometem colaborar conosco trazendo reforços do submundo – ainda que não sejam plenamente confiáveis. Novos recrutamentos entre os civis também se fazem necessários. Inclusive ontem recebi alguns novos aspirantes a cavaleiros na capital. Entre eles encontrava-se um jovem pastor das Terras Altas, chamado Macker. Nunca me esquecerei de seu grande entusiasmo. O garoto parecia disposto a tudo para me servir. Só posso esperar que ele passe nos testes.

Meu real desejo era ter Kyrin em meu exército... mas se isso não for possível... contentarei-me com o jovial Macker.

Volanir V, Rei do Sagrado Território da Liga do Norte.

Um apontamento do antigo soberano, tendo sido escrito por certo pouco antes do Crepúsculo dos Deuses. A questão era que Caleb via-se agora paralisado, dedos dormentes mantendo firme o pergaminho aberto em suas mãos. Macker. Aquele nome novamente. E de uma maneira por completo inesperada.

Sabia que a visita àquele palácio não fora por acaso, e que a benevolente Wella conduzia seus passos aonde quer que fosse. Mais uma pista para que conseguisse evitar a calamidade que se avizinhava. Já reunira quase todos os mortais presentes em seu sonho. Agora só teria de juntar as peças do quebra-cabeças para descobrir quem era realmente Macker, o que pretendia e como detê-lo.

Seu coração batia forte. Enrolou o documento e guardou-o novamente no estojo, sabendo que voltaria a consultá-lo. Um achado de suma importância em sua jornada. Em sua mente, somente agradecimentos sinceros à sua deusa. Ele impediria a catástrofe. Era capaz disso.

Ao inserir novamente o pergaminho em meio às suas coisas, olhou distraidamente pelo quarto, sob a claridade da chama na pedra... e notou algo estranho. O leito de Kirinak, composto pelos lençóis retirados da cama desmoronada, encontrava-se vazio. Observou com maior atenção os arredores do aposento, e ninguém viu além de seus outros companheiros. Só nesse momento sentiu um vento estranho pelas costas... notando que a porta da sala fora aberta, a armadilha de Lisah permanecendo suspensa intacta logo acima. Aos poucos compreendia tudo... a jovem humana deixara seu leito, aproveitando-se da distração de Rosengard lendo o documento, e agora devia se apressar através dos corredores do palácio. Que pretendia, afinal? Estaria indo embora por passar a noite ali contrariada? Ou fugindo em definitivo dos demais, temendo que a traíssem entregando-a às autoridades?

De um modo ou de outro, levantou-se e resolveu segui-la. Ordenou baixinho que Anuk ficasse para trás, transpondo com cuidado a corda no chão e também saindo pela porta.

Deslocou-se pelo corredor, ouvindo passos apressados mais à frente. Logo percebeu que estes desciam pelas escadas do salão de festas, deixando todas as entradas abertas pelo trajeto. Um descuido cometido por alguém que não acreditava que seria seguida. O druida acompanhou o rastro da clériga, que por certo ignorava o perigo representado pelos goblins ainda ali dentro... até o corredor do andar inferior. Mais precisamente, através da porta aberta da capela de Swordanimus.

A chuva caía com intensidade, num som quase ensurdecedor. Receoso, Caleb apoiou-se no batente da entrada, olhando com discrição para o interior do escuro santuário – nada conseguindo nele distinguir com seus limitados olhos humanos. Logo um forte relâmpago iluminou a noite, acompanhado de estrondoso trovão, revelando por frações de segundo o rosto pálido de Kirinak, isento do capuz, fitando de forma fixa a espada cravada no altar... seu corpo ajoelhado diante dele em expressão de profunda prece.

"A crença de hoje é a heresia de amanhã"

– Velfiria de Serinia, aprox. 763 ACD.

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