Heróis de Boreatia: A Perfídi...

By Goldfield

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Uma tempestade assolou recentemente o mundo de Boreatia... No decorrer de alguns séculos, a potência militar... More

BOREATIA - Cronologia
BOREATIA - Deuses
BOREATIA - Principais Raças
BOREATIA - Geografia
BOREATIA - Ordens e Organizações
Introdução
Prólogo
Capítulo I: Ventos de Outono
Capítulo II: Aqueles que vão a Feritia
Capítulo III: Um navio de histórias
Primeiro Interlúdio
Capítulo IV: A comitiva de Kal Sul
Capítulo V: Apuros em Tileade
Capítulo VII: O palácio do rei herege
Capítulo VIII: As clérigas de Tyrnan
Capítulo IX: Na calada da noite
Capítulo X: O imediatismo do imediato
Capítulo XI: Rimiryn e os orcs
Segundo Interlúdio

Capítulo VI: A ponte do riacho Wildeen

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By Goldfield

Capítulo VI

"A ponte do riacho Wildeen"

O grupo de viajantes unido em Feritia e dela tendo partido caminhava pela estrada rumo a leste já há algumas horas, a manhã se aproximando do fim com o sol chegando ao centro do firmamento. A paisagem ao redor do caminho se resumia a árvores de médio porte e gramíneas – estas se alternando entre pastos por onde circulavam, aqui e ali, alguns bois e cavalos, e arbustos frutíferos disponibilizando uma contínua oferta de alimento aos raros transeuntes. Era interessante como, com o declínio do hábito de se deslocar entre as cidades de Behatar devido aos perigos dos descampados, estas haviam se tornado praticamente auto-suficientes. Feritia, por exemplo, era abastecida pelos navios provindos do exterior e pelas hortas e pequenas fazendas em torno de si, bem próximas de seus muros. Outras situadas no interior igualmente se sustentavam graças à agricultura e oficinas que possuíam, poucas aquelas que ainda dependiam do comércio ou de outras atividades itinerantes para se suprirem, como Borenar e Krisman – estas, talvez, por também constituírem centros administrativos. O Reino Boreal se reerguia próspero... mas fomentando cada vez mais, devido à insegurança da própria população, o isolamento interno de suas regiões. A coroação do novo rei Jetro I vinha se mostrando um importante fator de coesão, o simples fato de muitos súditos de todas as partes do continente rumarem até a capital para participarem das festividades sendo um indicador de que a tendência de fragmentação acabaria, com o novo governo, desaparecendo... No entanto, caso ela continuasse, não se sabia até quando aquele território permaneceria unido... e que conseqüências eventuais separatismos poderiam acarretar...

Nossos aventureiros, no entanto, não refletiam acerca de política ou qualquer outro assunto similar – coisa que, sob o sol quente, acabaria por contribuir para que fritassem mais facilmente seus miolos. Era fato que o astro de Northar, naquela manhã, parecia importunar os mortais com os raios mais intensos desde o início da primavera. E o que mais sofria com isso era Kal Sul, habituado às gélidas temperaturas de Glacis. Suando sob a armadura e levando seu cantil à boca a quase todo momento, o anão não estava pessimista, todavia: acreditava que logo se acostumaria ao clima mais quente, e tal adaptação tomaria parte em seu processo de conhecimento dos boreais e seus costumes. Animado, seguia à frente do grupo; olhos perdidos no cenário, mas mãos prontas para apanhar seus machados ao mínimo sinal de ameaça.

Logo atrás vinha Fëanor. Espada paterna segura na bainha às suas costas, fascínio pela paisagem talvez maior que o sentido pelo estrangeiro, já que nunca deixara antes Feritia e aquilo tudo, para si, também constituía atraente novidade. Seus parceiros de viagem, igualmente, eram para o rapaz fonte de crescente interesse. Nunca passara tanto tempo na companhia de um anão e de um elfo, ainda por cima tendo-os como companheiros de jornada. Julgava poder aprender muito com eles, obter lições de sabedoria que o ajudariam a se guiar na busca pela verdade sobre si e seus falecidos pais. Só não simpatizara muito com o sujeito de capuz negro e a mulher loira. Aliás, sempre que se aproximava desta última sentia algo estranho, um mal-estar que não era capaz de explicar muito bem. Era como se a aura da carrancuda guerreira, ou seja lá o que fosse, o incomodasse. Procurava ignorar tal coisa, entretanto. Manifestá-la verbalmente não faria bem para o grupo, e só aumentaria seus atritos com a mercenária, que já não aparentava simpatizar muito consigo... Ou melhor, ela parecia não simpatizar com ninguém ali.

Freya caminhava poucos passos antes do garoto. Silenciosa, semblante fechado, mãos na altura da cintura. Usava ainda sua capa, ocultando-lhe assim boa parte do equipamento e armas que trazia. Mulher misteriosa, de forte personalidade... e por que não dizer mortífera? A verdade era que, aos outros quatro, ela claramente tratava-se de pessoa habituada a matar sem qualquer remorso, a cicatriz em sua face muito contribuindo para tal impressão. Contanto que ela não os traísse e se mostrasse uma boa companhia até a capital, nenhum deles teria do que reclamar. Não deixava, porém, de atrair-lhes a atenção de uma maneira não tão dotada de confiança...

Depois vinha Trent Dante. O jovem feiticeiro de orelhas pontudas andava de maneira um tanto serelepe, distraindo-se com o que via e ouvia. Aparentava ser alguém, assim como alguns dos já descritos, inteiramente disposto a adquirir novos saberes, principalmente se fossem relacionados a magia. Só não ficava muito à vontade, assim como Fëanor, em relação ao mago. Não aparentava gostar de si nem um pouco... mas o elfo esperava poder ganhar sua amizade, e com ele compartilhar conhecimentos, no decorrer da viagem.

Por último deslocava-se Beli Eddas. Sisudo, calado, movimentos quase mecânicos sob seu robe negro. Dentre todos ali, era o único que nada havia pronunciado desde a partida de Feritia – e nem demonstrava qualquer vontade ou necessidade de pronunciar. Não queria conversa com nenhum deles, e cedo notaram isso. Quando não caminhava com o rosto voltado para frente de modo fixo, apanhava seu grimório, folheava-o com interesse por certa distância e então tornava a guardá-lo. Sujeito indócil, de poucos amigos. E era improvável que fizesse entre aqueles aventureiros mais algum.

O quinteto assim avançava através da estrada, o estômago de seus membros já roncando na ânsia por uma pausa para o almoço. Era provável, no entanto, que acabassem por comer andando, já que Kal Sul não desejava passar por qualquer atraso em seu trajeto até Borenar, visando chegar a tempo para a coroação do rei. Num dado momento, o embaixador anão resolveu perguntar aos colegas:

- Alguém poderia descrever o que há no caminho até Borenar?

- O entreposto mais próximo é o forte Guikdon – respondeu Trent, que havia memorizado bem as localidades registradas em seu mapa. – Até lá ainda temos um dia e meio de caminhada. Pouco depois passaremos pela cidade de Tyrnan. Já junto aos seus muros inicia-se o trecho da estrada quase engolido pela Floresta Negra. Ao terminarmos de atravessá-la, terão se completado três dias ou três dias e meio desde nossa partida. Passaremos então pelo forte Gustaff, uma das fortalezas que protegem os arredores da capital, e com sorte entraremos nela ao final do quarto dia de viagem.

- Restando um dia para a coroação – concluiu Kal Sul.

- Na pior das previsões, chegaremos na manhã da cerimônia – afirmou Freya, que também conhecia razoavelmente aquele percurso. – Se isso acontecer, você poderá ir direto ocupar seu lugar de honra ao lado do rei enquanto eu e o resto desabamos nas camas de uma boa estalagem... Claro, depois que você me pagar.

- Certamente, minha cara! E por mim podemos prosseguir até o sol se pôr, e algumas poucas horas depois, ainda! Percorrer a maior distância possível a cada dia antes de parar para dormir fará com que cheguemos ainda mais rápido à capital e estejamos menos expostos aos perigos da estrada. Estão todos de acordo?

Para Kal Sul era mais fácil falar em andar mais e descansar menos, já que o povo de Glacis, assim como os elfos, precisava de muito menos horas de sono por noite para se revigorar do que a maioria das demais raças. Os humanos do grupo, porém, não demonstraram objeção. Os argumentos do embaixador para avançarem o máximo possível a cada dia eram coerentes, principalmente no tocante aos riscos que aquele caminho oferecia. Todos assentiram com a cabeça – inclusive o sonolento Fëanor que, tendo passado a noite anterior praticamente em claro, sabia que não conseguiria manter o acelerado ritmo da marcha por muito tempo. Encarava aquilo como uma honrosa provação, no entanto. Tinha de desafiar seus limites para aprimorar seu corpo e seu espírito. Por Northar, pelos Cavaleiros da Luz e pelo nome até então obscurecido dos Bladinor...

Continuaram seguindo pela estrada, aos poucos retirando de seus bolsos e cargas as rações que traziam para se alimentarem: pedaços de pães, carne em conserva, legumes crus... tudo regado à água de seus cantis. Kal Sul trazia consigo também um pouco de cerveja, mantida em dois recipientes à parte enchidos durante a prévia bebedeira na taverna de Feritia – mas a estava guardando para uma ocasião mais propícia. Achava certo, todavia, que a consumiria antes do fim daquela viagem até Borenar.

Logo aqueles que comeram se sentiram satisfeitos – sem terem parado de andar um minuto sequer – guardando suas provisões enquanto prosseguiam por aquele ermo cenário. O sol do meio-dia passou, tornando-se mais amigável com o transcorrer das horas. Num dado momento chegaram a uma bifurcação, dotada de um poste de madeira contendo placas que indicavam as direções. Um dos trajetos, desdobrando-se para o norte, levava até a sub-capital Krisman e seus arredores, enquanto o outro, continuando em frente, conduzia a Tyrnan e Borenar. Era o destino que interessava aos aventureiros. Sem pensarem duas vezes, persistiram no mesmo rumo.

A estrada calçada com pedras avançou, entre curvas e retas, por uma planície mais aberta, com poucos focos de árvores e uma pequena cadeia de colinas não muito altas à esquerda dos viajantes. Freya, Beli Eddas e Trent Dante, melhores conhecedores daquele reino, sabiam que elas constituíam costumeiro abrigo para ninhos de águias gigantes, aves imponentes e fortes que habitavam aquelas terras desde os primeiros registros dos mortais. Sabia-se que tais pássaros eram passíveis de adestramento, ainda que este fosse difícil: várias histórias existindo a respeito de bravos indivíduos que teriam conseguido domá-los, usando-os então como montaria alada. Algo que todos ali julgariam ainda além de sua alçada, no entanto.

A relva da planície insistia em acompanhar o caminho, a visão das colinas ficando para trás... e o grupo se aproximando do que parecia um riacho. Curso d'água singelo, praticamente um veio, de pouca profundidade e quase imperceptível, em alguns trechos, a correr por entre a grama. Cortava a estrada logo à frente, em sentido vertical, por baixo de uma ponte de pedra. Curta, possuía o formato de um arco pouco acentuado, o trecho da via sobre ela aparentando ser totalmente plano a um observador menos atento. Situava-se a cerca de três metros acima do riacho, que sob sua estrutura possuía trecho mais volumoso, a água pouco depois sendo em parte represada por um leito pedregoso, e o curso com isso se afunilando novamente a seguir.

A ponte parecia oferecer travessia tranqüila aos viajantes, porém algo nela estava estranho... Kal Sul, caminhando à frente dos demais, foi o primeiro a ver, diminuindo a velocidade de seus passos e logo se detendo por completo para observar à distância. A ele se uniu Trent Dante – beneficiado por seus olhos élficos – e os outros. Todos comprovaram o mesmo: a passagem não estava vazia.

- Quem são? – indagou Fëanor, ansioso diante do possível perigo.

O que primeiro se percebia eram dois carroções parados no meio da ponte, obstruindo o caminho. Suas lonas de tecido branco encontravam-se sujas e amassadas, com inclusive rasgos aqui e ali, como se algo houvesse tentado perfurar a cobertura repetidas vezes. Os cavalos presos aos transportes estavam muito magros, claramente desnutridos, demonstrando incapacidade de percorrer poucos metros a mais sem desabarem de fadiga. E, em torno da estacionada caravana maltrapilha, sujeitinhos de baixa estatura caminhavam para lá e para cá, aparentemente guardando o local como verdadeiro entreposto. Usavam armaduras e escudos precários, muitos deles de madeira ou, sendo de metal, estando enferrujados. Portavam armas como maças a que faltavam pontas, espadas tortas e adagas cegas. Seus corpos eram bastante desproporcionais, com membros raquíticos e peludos terminando em dedos com garras, as cabeças grandes apresentando orelhas pontudas – quase todas dotadas de brincos, com cicatrizes e marcas de rasgos – e faces feiosas desprovidas de nariz, lembrando muito um morcego. O tom da pele, alternando-se entre o amarelo e o verde, não deixava mesmo enganar...

- Goblins – Freya afirmou bastante segura.

Seguiu-se um minuto ou dois de silêncio, o grupo permanecendo a espreitar as criaturinhas sem ter sido ainda percebido, antes de Beli Eddas perguntar, seus companheiros tendo até se esquecido do timbre de sua voz:

- O que faremos? Vamos enfrentá-los?

- Não sabemos se são hostis ou não – disse Kal Sul. – Melhor seria tentar conversar primeiro.

- Eu concordo com o senhor anão – anuiu Fëanor.

- Ora, goblins sempre são hostis... – a mercenária resmungou numa careta. – Elfo, sabe exatamente onde estamos?

Trent Dante apanhou novamente seu mapa, desdobrou-o e, mostrando-o aos colegas, explicou:

- Segundo isto, essa é a ponte do riacho Wildeen. Estamos quase na metade do caminho até o forte Guikdon.

- São quantos deles? – o mago questionou.

- Cinco, ou melhor, seis deles! – o embaixador confirmou lançando mais uma vez os olhos na direção do lugar.

Era certo desde o início da viagem que eles encontrariam contratempos como aquele pelo trajeto ao menos uma vez. Goblinóides eram uma das ameaças mais comuns nas estradas de Behatar desde o Crepúsculo dos Deuses, saqueando e matando os mais desavisados – ou que não possuíam capacidade de se defender de seus ataques. Se bem que, pelas armas que usavam, parecia mais fácil morrer de infecção devido ao corte de uma daquelas lâminas enferrujadas, do que propriamente perecer durante o calor do combate...

O curioso era que aqueles salteadores deviam ter ali se instalado bem recentemente, no espaço de no máximo dois dias antes, já que Freya, Beli Eddas e Trent Dante haviam chegado a Feritia por aquela mesma estrada e, apesar de terem passado por várias pequenas pontes similares no caminho, não se lembravam de haver um destacamento goblin em nenhuma delas.

- Ainda acho que devemos conversar – insistiu Kal Sul.

- Isso só se mostrará um esforço desnecessário! – rebateu Freya. – Goblins são gananciosos e vão tentar roubar qualquer um que tente atravessar aquela ponte. É um ponto estratégico deles...

- Também acho – concordou Beli. – Melhor seria cruzarmos o riacho por outro local, e alcançarmos de novo a estrada mais à frente. Querem mesmo iniciar uma luta?

- Apenas se não houver outra maneira – afirmou Fëanor.

- Vamos logo tentar atravessar a ponte! – irritou-se Trent. – Se conseguirmos passar conversando, será lucro para nós, e mesmo que tenhamos de combater... esses goblins não me parecem lá grande coisa!

Todos se calaram e permaneceram fitando o feiticeiro de modo fixo por alguns instantes – ao que ele, envergonhado, deu uma risadinha cínica e abaixou a cabeça. Freya murmurou:

- Você parece entender tanto de combate para dizer isso...

- Mas concordo com o orelhudo! – falou o anão. – Vamos até a ponte, e o que tiver de ser será...

Dizendo isso, Kal Sul não aguardou a manifestação de quaisquer outras opiniões dos companheiros, já se colocando a deslocar pela estrada na direção dos eventuais inimigos. Fëanor o acompanhou, determinado, seguido de um tranqüilo Trent Dante. Freya e Beli Eddas, ainda que contrariados, vieram por último.

Venceram os últimos metros do caminho antes da ponte, e logo a adentraram. Fungando, os goblins imediatamente vieram abordá-los, brandindo seus armamentos da maneira mais desajeitada possível. Talvez Trent estivesse mesmo coberto de razão...

Os recém-chegados detiveram-se diante do primeiro carroção no trajeto, sendo cercados pelo grupo de seis criaturinhas. Uma delas, munida de espada em melhores condições do que as de seus colegas, aproximou-se mais para interpelá-los. Logo concluiu que Kal Sul, vindo à frente, aparentava liderá-los; e assim a ele falou, comunicando-se no idioma comum com terrível pronúncia das palavras e uma vozinha estridente de dar nos nervos de qualquer um que a ouvisse:

- Aqui é ponte do Crunx! Ninguém vai passando assim não!

- Boa tarde, meu caro – mesmo diante da grosseria, o diplomata de Glacis se atinha à sua polidez, mantendo igualmente a calma. – Eu e meus amigos viemos de Feritia e rumamos até a capital, para tomar parte na coroação do novo rei. Será que o senhor e seus nobres companheiros permitiriam que nós chegássemos ao outro lado desta ponte sem desentendimentos?

- Ponte é do Crunx! – insistiu o goblin, ficando mais e mais nervoso. – Pra passar tem que pagar pedágio! Pedágio do Crunx!

Enquanto o anão tentava persuadir o bandido, os demais observavam os asseclas deste e a situação geral do lugar. Fëanor examinava os cavalos, cheio de dó por estarem sendo tão maltratados e cogitando soltá-los caso acabassem lutando contra seus atuais donos... até que sentiu um cheiro estranho. Remetia a algo podre, decomposto... morto. Já muito tivera contato com aquele tipo de odor, principalmente quando, durante seus afazeres na hospedaria, tinha de jogar fora o lixo quase sempre constituído de restos de comida. Mas aquilo parecia algo maior e mais intenso... até mais hediondo, a ponto de realmente lhe causar náuseas. Parecia que, mais que o cheiro em si, sua origem o deixava mal – não pelo nojo, mas de alguma forma... pela torpeza. E podia jurar que a fonte daquela podridão vinha de dentro dos dois carroções, estendendo suas repugnantes mãos invisíveis para fora através dos rasgos na lona...

Algo de muito errado ocorria ali, e aqueles goblins estavam envolvidos...

CROA, CROA!

O garoto se assustou com o grasnar de um corvo muito negro que, agitando suas asas, veio pousar no topo de um dos carroções, provavelmente atraído pela carniça dentro dele. Ali permaneceu, olhando ao redor como que reconhecendo o ambiente – talvez até ansiando pelo combate que ali ameaçava ter palco. Mais carne morta para si, afinal de contas...

Voltando-se para seus parceiros, Fëanor constatou que pareciam prontos para reagir caso os goblins efetuassem algum movimento hostil... mas Freya, justamente a que aparentava possuir maior habilidade em armas, encontrava-se distraída. Seus olhos, na verdade, estavam fixos na figura do corvo logo à frente, como se ele a assustasse de uma maneira difícil de descrever.

- Tudo bem com você? – o aspirante a Cavaleiro da Luz achou prudente perguntar.

- Sim, sim! – ela replicou prontamente, voltando ao mundo real. – É esse sol... está começando a mexer com minha cabeça!

O rapaz assentiu, ainda que continuasse a achar aquilo estranho...

E Freya não conseguia deixar de associar a súbita aparição daquela ave ao soturno encontro com seu novo contratante, "M", meses antes... essa sendo a fonte de seu espanto. Será que ele tinha algo a ver com aquilo, ainda que de forma indireta?

Enquanto isso, Kal Sul continuava dialogando com o petulante goblin, ou ao menos tentando:

- Ainda que não achemos justo o pagamento de tal tributo, poderia nos informar seu preço?

- Quinhentas peças de ouro! – a criatura grunhiu. – Quinhentas peças de ouro é o pedágio da ponte do Crunx!

- Sendo assim, infelizmente não poderemos pagar, caro senhor.

- Ah, é? Então provarão do ferro de Crunx e dos amigos de Crunx!

Em seguida, bradando furioso, o goblin-chefe deu saltos para trás, tomando distância, e então partiu com sua espada na direção do anão, disposto a fincá-la em sua armadura. Este permaneceu imóvel por alguns segundos, como se não fosse reagir, deixando que o meliante o atingisse com sua arma... Até que, de repente, efetuou um rápido movimento para apanhar seu machado de maior lâmina, o mesmo que possuía um rubi incrustado no cabo, até então carregado às suas costas... e antes que o goblinóide pudesse chegar perto o bastante para feri-lo, efetuou um golpe veloz... o corpo do bandido continuando a correr para frente por uma curta distância, lançando um pegajoso sangue preto ao redor, para logo cair... enquanto sua cabeça, como uma pedra, voava para fora da ponte, despencando sobre o riacho...

O confronto começara.

Os outros cinco goblins avançaram de imediato sobre os companheiros do anão. Freya foi a primeira visada, um dos inimigos tentando atingi-la nas costas com um golpe de sua maça. A mercenária, entretanto, esquivou-se com facilidade, não precisando realizar qualquer movimento além de um simples passo para a direita – ao que o adversário continuou reto, arma estendida para frente, mas acertando apenas o ar. A ação seguinte da misteriosa guerreira foi livrar-se da capa e do capuz, que prejudicariam sua agilidade na batalha... atirando-os na direção de um dos parapeitos da ponte. Revelava agora seu corpo de pele bem clara, musculoso e bem-treinado – apesar de conservar a beleza feminina – coberto por uma armadura metálica de pequenas dimensões, mas que conseguia proteger bem todas as partes mais vulneráveis de seu organismo. O cabelo loiro preso numa longa trança, assim como a face marcada por uma cicatriz, tornavam-se também plenamente visíveis. Os braços, pouco abaixo dos pulsos, eram revestidos por braceletes de ferro, adereços similares existentes em suas pernas, pouco depois dos joelhos. Estas se encontravam expostas quase por completo, a cintura da combatente revestida por uma espécie de tanga com um cinturão que agregava boa parte do seu equipamento e uma pequena bainha guardando uma adaga. Às costas trazia uma besta e uma outra bainha, esta maior, ocultando em seu interior uma espada. Foi exatamente ela que Freya sacou, segurando o cabo com ambas as mãos. Uma bela arma, de lâmina afiada e dimensões que denotavam esmero em sua fabricação. Era brandida agora, por sua sorridente portadora, contra a retaguarda do goblin que acabara de errar seu ataque. Pobre infeliz...

Num brado de guerra, a mercenária investiu com o sabre... afundando-o nas costas da criatura. Esta se engasgou com o próprio sangue, curvando-se para frente... e logo caindo sem vida sobre o revestimento de pedra da ponte, seu corpinho ainda emitindo alguns espasmos antes de finalmente se aquietar.

A guerreira limpou com os dedos o repugnante líquido preto que manchara a lâmina, e em seguida pôs-se em combate aos demais salteadores...

Fëanor, por sua vez, apanhou de suas costas a espada paterna logo que Kal Sul decapitara o líder do bando. Sentia um intenso misto de nervosismo e orgulho por brandir a arma que Göther lhe deixara, suas mãos tremendo enquanto agüentavam o peso daquela obra-prima ao qual ainda não estava acostumado. Já não sabia lutar com ela, e talvez o fato de ser um sabre de difícil manuseio, por possuir duas lâminas, o prejudicasse ainda mais no embate. Porém não deixaria de tentar. Olhando para o pinheiro incrustado no cabo e rogando pela benção de Northar, o rapaz lançou-se contra um goblin.

A inexperiência realmente pesou-lhe. Ao tentar usar as duas mãos para cortar um dos ombros do oponente com a lâmina, o garoto calculou mal a força empregada sobre a arma e não conseguiu manejá-la até o alvo... ela acabando por singrar o ar diante do goblin e por pouco não encontrando o chão, sem atingi-lo. Em seguida Fëanor foi forçado a dar um salto para trás, com o intuito de escapar de um ataque efetuado pela espada enferrujada do bandido. Logrou não ser ferido por ele, mas a ponta da lâmina inimiga chegou a resvalar em sua armadura. Como resposta, tentou mais uma vez investir com sua arma, porém o peso desta voltou a dificultar as coisas... e ela agora realmente colidiu com o solo, sem nem mesmo tocar o adversário.

Este, aproveitando a situação, tornou a atacar, berrando. Atrapalhado com o sabre, o aspirante a Cavaleiro da Luz não tinha certeza se conseguiria se defender...

Até que Freya, surgindo de forma súbita entre os dois, bloqueou um golpe do goblin com sua espada e em seguida cortou-lhe a garganta usando a mesma. O oponente cambaleou para trás e desabou morto, ao que a mercenária virou-se para Fëanor e exclamou:

- Tome mais cuidado. Não sou guardiã de crianças!

O rapaz assentiu com a cabeça sem jeito e, posicionando-se como podia usando o sabre que herdara, preparou-se para continuar – ou pelo menos tentar continuar – auxiliando os aliados no confronto.

Já Beli Eddas e Trent Dante pretendiam usar aquilo que melhor dominavam – magia – contra seus desajeitados oponentes. O primeiro, precavido, preparara algumas conjurações de ataque pela manhã, sabendo que provavelmente viriam a ter uso na travessia daquela estrada hostil. Já o feiticeiro veria o que seria mais adequado à situação. Tinha certeza de que poderia vencer aqueles goblins sem muito esforço...

Um meliante partiu na direção de cada um dos encantadores. A ação do mago foi afastar-se para escapar da investida da maltratada adaga do goblin e, tomando alguns segundos e metros de vantagem, gesticulou rapidamente com as mãos... realizando também o curioso gesto de esfregar a ponta de um dos dedos contra a testa, tocando o próprio suor... enquanto pronunciava, numa voz baixa e língua desconhecida, o componente verbal da magia que pretendia utilizar. Um lampejo de terror atingiu o salteador quando, fitando o sinistro rosto do humano semi-oculto dentro do capuz que usava, viu-o, deixando de recuar, começar a correr ameaçadoramente em sua direção. Os olhos dele pareciam emanar um brilho soturno, maligno... E, amedrontado, o bandido não conseguiu reagir contra o movimento do conjurador, que, erguendo um braço como se fosse socar o goblin... acabou por apenas tocá-lo, com a palma da mão aberta, na região do ombro, tateando uma área não-protegida pela armadura...

Os dedos de Beli Eddas recuaram logo depois, o alvo estremecendo... e este de imediato percebendo que o encantamento do inimigo surtira efeito. Uma incrível fraqueza espalhou-se por todo seu corpo; uma fadiga avassaladora, como se houvesse passado dias e mais dias caminhando sem descanso. O mago aparentava ter sugado todas as suas forças, e agora não se sentia disposto nem mesmo a continuar empunhando sua arma. Assim, soltou involuntariamente a adaga sobre as pedras, emitindo um gemido... enquanto testemunhava seu oponente apanhar algo de baixo de sua capa. Tratava-se de uma espécie de faca de lâmina curva e afiada. O goblin conhecia aquele tipo: era uma Kukri, muito usada nas Ilhas Kartan – um armamento exótico naquelas terras de Behatar.

Impotente, a criaturinha viu o astuto mago brandi-la em sua direção... e, incapaz de reagir, teve sua garganta cortada. Caiu de joelhos, levando as mãos ao pescoço numa tentativa inútil de conter o sangramento... morrendo instantes mais tarde.

Já Trent Dante encarava o goblin que o visava com ar de extrema superioridade. Chegou até a brincar com o adversário por um momento, desviando de maneira zombeteira de seus ataques com a espada. Porém, ao quase ser atingido no peito pela lâmina oxidada, julgou que deveria fazer logo algo para tombar o inimigo. Assim, gesticulou com as mãos e proferiu palavras no antigo idioma arcano, preparando seu ataque... Ao término da conjuração, estendeu, sorrindo, um dos dedos indicadores na direção do goblin... partindo na direção dele uma espécie de raio em linha reta, cuja consistência parecia oscilar entre o branco e o transparente. O ataque à distância atingiu um dos braços do meliante... imobilizando-o desde o pulso até a região próxima ao ombro sob uma espessa camada de gelo, que já começava a gotejar.

O aturdido goblin não sabia o que fazer. Confuso, seu braço congelado soltou a arma. Passou vários segundos olhando aturdido ao redor, tentando compreender o que exatamente acontecera, ao mesmo tempo em que o elfo ria... Até que a grande lâmina de um machado anão separou o membro inutilizado do corpo do goblin, este caindo em choque – fora de combate. Kal Sul completara o trabalho do feiticeiro.

- Obrigado – agradeceu Trent. – Mas eu podia ter terminado com ele sozinho.

- Não seja presunçoso, orelhudo! – exclamou o embaixador de Glacis, arma numa mão e escudo na outra. – Somos um grupo. Por isso somos fortes.

Restava somente um goblinóide, que era combatido arduamente por Freya. O sujeitinho demonstrava uma habilidade com a espada bem maior que a de seus companheiros mortos, conseguindo bloquear todos os movimentos da mercenária. Percorriam quase toda a extensão da ponte nesse embate, um sem atingir o outro... Até que a guerreira resolveu aplicar ainda mais força em suas investidas... acabando por lançar o sabre do oponente para as águas do riacho. Encontrava-se, agora, desarmado, a lâmina da mulher a poucos centímetros de seu pescoço.

- Últimas palavras? – Freya inquiriu num tom assassino, dominada pelo frenesi da luta.

- Pare! – bradou o anão. – Ele está desarmado. Não precisamos matá-lo.

- Ah, que seja... – ela murmurou denotando extremo aborrecimento. – Vá embora então, infeliz! Não ouse voltar aqui nunca mais!

- Baryr não vai voltar! – o goblin afirmou com uma voz grossa e irritante. – Baryr não vai andar mais com gente que nem Crunx! Promete!

- Vá, suma!

Suando frio e tremendo nas bases, o bandido recuou poucos passos... e ao invés de sair correndo pela estrada, debruçou-se no parapeito e saltou de cima da ponte. Imergiu como um saco de batatas no trecho mais volumoso do curso d'água sob a estrutura, sendo arrastado por ele através de uma curta distância, até rolar por sobre o dique de pedras e seguir esfolando-se até sumir de vista...

- Ponte limpa – Trent Dante falou num sorriso.

Mas no fundo nenhum deles tinha tanta certeza disso, principalmente Fëanor. Nisso, aqueles que ainda não haviam sentido o cheiro pútrido oriundo do interior dos carroções, perceberam-no. Os raquíticos cavalos estavam arredios, assustados. Pareciam querer galopar para bem longe dali – não devido à agitada batalha que ali tivera palco, mas por causa da carga à qual estavam presos. No topo de um dos transportes, o corvo de antes continuava empoleirado. Grasnava como se estivesse feliz com a carnificina. E o fato de ainda não ter voado para longe aparentava constituir sinal de que viria mais.

- Precisamos averiguar o que há dentro desses carroções – afirmou Kal Sul.

- Pessoas mortas, eu diria, a julgar pelo fedor... – Freya disse sem demonstrar muita sensibilidade pelas possíveis vítimas do bando de goblins.

- Talvez alguém que precise de nossa ajuda – Fëanor falou de modo firme.

A mercenária achou que por certo o garoto viria a se tornar um grande paladino... Afinal, estava tão irritante quanto um cavaleiro já sagrado...

- Decidam-se logo! – Beli Eddas apressou-os, irritado.

Eles, no entanto, nada tiveram de fazer... A iniciativa não lhes pertenceu. O odor de decomposição tornou-se mais intenso, ao mesmo tempo em que um braço foi avistado atravessando um dos rasgos na lona de um dos carroções, tateando freneticamente o lado de fora. Isto é, se aquilo podia mesmo ser chamado de braço. O membro, extremamente raquítico, possuía tom escuro, desgastado... coberto de vermes e moscas. A extensão de carne podre – se existisse mesmo carne, já que a pele parecia compor uma membrana fina que não cobria nada além de ossos – passava por um pulso ao qual estava presa uma espécie de corrente metálica, terminando numa mão esguia e comprida, dedos dotados de garras cortantes e amareladas. Os cinco aventureiros retrocederam assustados, tomando certa distância em relação à misteriosa criatura... E ela acabou saltando para fora de seu refúgio, arrebentando os grilhões que a detinham... revelando, também, a totalidade de sua figura horrenda.

O ser coberto de trapos era sobrenaturalmente magro, aparentando, mais do que nunca, ser composto somente de ossos – cujos contornos eram bem identificáveis, principalmente os das costelas – sob sua pele podre e elástica. Não possuía cabelos, a cabeça disforme tendo a careca dominada por bolhas, verrugas ou protuberâncias similares. Os olhos, de tom vermelho vivo, pareciam pequenas bolas de fogo a crepitar em suas profundas cavidades, intimidando até o mais bravo dos mortais. Isso sem falar do odor cadavérico. Era terrível, e agora que o monstro se expusera, alcançava intensidade quase insuportável. Para forçar ainda mais os viajantes a vomitarem, a apavorante criatura trazia, numa das mãos, um osso humano... levando-o à boca freqüentemente para chupar-lhe o tutano. Logo o arremessou longe, porém, ao perceber que novas fontes de alimento haviam surgido. Voltando seu cruel semblante para o quinteto, esticou os braços sobre o chão da ponte e lançou para trás as pernas, curvando-se com os quatro membros tocando o solo. E assim, rastejando enquanto emitia gemidos quase inaudíveis com a boca repleta de dentes afiados e apodrecidos, passou a deslocar-se lentamente na direção de suas presas.

- Que coisas são essas? – Trent perguntou desesperado.

Dentre eles, Beli Eddas era o que melhor sabia. Na verdade, criaturas como aquela, apesar de sua repugnância, fascinavam-no. Por isso não conseguia tirar os olhos do monstro que se aproximava. Imerso em sua contemplação, quase se esqueceu de responder à dúvida, demorando alguns segundos para fazê-lo:

- É um carniçal. Organismo morto-vivo criado através de magia necromante. Ele se alimenta de carne: viva ou morta.

Necromancia. Como aquela obscura vertente mágica atraía o jovem mago! Dentre tudo que já estudara a respeito das artes arcanas, o poder de manipular a morte e a essência vital, usando-a para os fins que interessassem ao conjurador, era para si a habilidade suprema. Uma arte, por certo, muito combatida pelos defensores do bem e do culto aos deuses benignos, já que estava associada a uma divindade do Helmus: Deathyx, deus da morte. Ainda assim era praticada em segredo desde o início dos tempos, desafiando a barreira entre a vida e a morte... muitas vezes, inclusive, trazendo de volta ao convívio dos mortais aqueles que já haviam partido, ainda que de forma imperfeita e atroz... como naquele caso.

Beli conhecia duas origens difundidas sobre os carniçais. A primeira era que pessoas de má índole, quando reanimadas por magia necromante, poderiam se tornar aquelas criaturas, assombrando cemitérios e se nutrindo dos cadáveres nas outras sepulturas. A outra era que, nos últimos anos antes do Crepúsculo dos Deuses, quando o canibalismo tornou-se prática corrente devido à escassez de comida, parte dos mortais que criaram o hábito de se alimentar de seus semelhantes, migrando para as cavernas, tornaram-se trolls – enquanto outros, vagando pelo mundo condenado para tentar suprir sua insaciável fome carnívora, converteram-se naqueles mortos-vivos. De qualquer maneira, eram monstros perigosos, vorazes, e que costumavam lutar até o fim para dominarem sua caça.

- Vou arrancar a cabeça desse maldito! – exclamou Kal Sul, preparando seu machado para atacar.

- Não garanto que isso vá funcionar... – afirmou o mago humano. – Esses seres não possuem pontos vitais. Nós teremos de atacá-lo até parar de se mexer...

- Bem, vou fazer o teste!

Dizendo isso, o anão correu na direção da aberração, lâmina de sua arma pronta para romper-lhe o pescoço. Quando ia efetuar o golpe, porém... O carniçal esquivou-se num grunhido, efetuando uma pancada com uma das mãos contra o diplomata, sua armadura felizmente protegendo seu tórax... mas empregando força suficiente para repeli-lo alguns passos. Surpreso, o guerreiro de Glacis ia esboçar um contra-ataque... mas acabou abrindo espaço para que uma furiosa Freya tentasse a sorte combatendo o inimigo.

A mercenária avançou com sua espada, o morto-vivo desviando novamente ao rolar pelo chão, quase se jogando. Era mesmo bastante traiçoeiro. Ele acabou indo parar atrás da mulher, tentando acertá-la com uma garrada nas costas... ela no entanto defendeu-se com a espada, golpeando sua retaguarda sem enxergar direito... conseguindo, ainda assim, aparar três dedos da criatura – os quais caíram, sem sangue, sobre a ponte.

Foi a vez de Fëanor aproximar-se para atacar. Empunhando a espada de duas lâminas ainda com dificuldade, porém menor do que antes, o rapaz ficou frente a frente com o monstro, encarando seus olhos rubros e conseguindo nele sentir incrível maldade. Imaginou com que propósito os goblins aparentemente conduziam algo como aquilo numa caravana, e quantas pessoas inocentes já teriam morrido pelas mãos daquela bizarrice. A quem deveria pertencer o osso que ela há pouco degustava? O jovem paladino preferia nem pensar... apenas se esforçar para livrar o mundo de tanta malevolência!

Brandiu a espada quase num grito, tentando unir a força do ataque à agilidade em manejar a difícil arma. A primeira investida errou o alvo... mas o carniçal acabou se movendo nesse ínterim, procurando se aproximar mais do adversário, e acabou atingido num ombro por um segundo movimento do sabre... que foi enterrado vários centímetros em sua carcaça ambulante. O morto-vivo aparentou não sentir dor alguma com o ferimento, e sim irritação. Com sua sede de sangue revigorada, o monstro soltou algo como um rugido cadavérico e impulsionou-se contra Fëanor... saltando sobre si e abaixando a cabeça para cravar os dentes em sua suculenta garganta.

O garoto, pressionado contra o chão por seu algoz, debateu-se tentando se livrar, já que sua espada acabara voando de sua mão durante o ataque do oponente. Como podia, virava o pescoço para lá e para cá tentando escapar das mordidas do carniçal, a nojenta e fétida baba deste escorrendo em cima de seu rosto e sua armadura... Até que subitamente os raquíticos braços da criatura deixaram de agarrá-lo, esta sendo impelida para trás aos berros, com fumaça a subir de seu peito. Enquanto se levantava, o rapaz pôde observar melhor, percebendo que uma substância esverdeada corroia violentamente parte do tronco do inimigo, deixando os ossos em seu interior plenamente à mostra.

Olhou em seguida para trás... e viu o soturno Beli Eddas, sempre uma figura enigmática embaixo de sua capa, com um dedo indicador ainda apontado para o morto-vivo. Ácido conjurado através de magia. Só podia ser...

Kal Sul aproveitou o recuo do carniçal para avançar mais uma vez com o machado... a cabeça da criatura despencando sobre o revestimento de pedras e por ele rolando até a estrada, no sentido pelo qual haviam vindo. O corpo decapitado do monstro continuou se debatendo por alguns instantes, até se aquietar, produzindo odor decomposto ainda pior...

- Eu sabia! – o anão riu. – Tudo que eu conheço encontra a derrota quando perde aquilo que se situa sobre seu pescoço!

Foi quando os cinco ouviram sons de estranhos passos e o ruído de gemidos fracos similares aos emitidos pelo monstro recém-vencido. Olharam cautelosos ao redor... Constatando que, de dentro do outro carroção, mais dois carniçais saíam para a luz do dia. Um estando acorrentado ao outro.

- Bem, meu caro, então trate de usar isso que está acima do seu pescoço para pensar em como lidaremos com mais dois desses! – Freya bradou nervosa.

Os mortos-vivos lançaram-se sedentos... e eles reagiram como puderam.

Trent Dante, mais próximo dos inimigos, afastou-se até uma distância segura para conjurar novo encantamento. Pretendia mais uma vez disparar um raio de gelo contra a criatura que o ameaçava; esta, no entanto, repelindo-o ao jogar-lhe um osso humano. O projétil atingiu seu peito sem causar dano grave, mas bastou para prejudicar suas ações. Estava agora à mercê do ataque do morto-vivo... até Kal Sul surgir por trás dele, acertando-lhe um golpe usando o escudo e complementando com uma machadada que fez um dos braços do monstro voar decepado, contorcendo-se e saltando descontrolado pela ponte – como se dotado de vontade própria – antes de deixar de se mexer. A esse mesmo membro estava presa a corrente que antes o unia ao outro monstro, assim soltando-o dele. O feiticeiro tentou então aproveitar a oportunidade para efetuar a magia desejada, começando até a gesticular com as mãos. O carniçal, porém, bastante incomodado, entrou num frenesi que tornou possível a si atingir o elfo com o único braço que lhe restava, conseguindo infligir a ele dolorosa pancada... lançando-o para trás, de costas contra um dos parapeitos da passagem.

- Ai! – Trent gemeu, certo de que carniçais estavam entrando em sua lista de criaturas mais detestáveis, ainda que aquele não passasse de um primeiro contato.

Já a outra aberração avançara na direção de Freya e Fëanor, ambos a postos com suas espadas para se defenderem do sórdido agressor. A mercenária se movimentou primeiro, tentando perfurar o peito do morto-vivo numa forte estocada... errando. Já o garoto – procurando vencer ao mesmo tempo a insegurança em usar aquele sabre, a maldade que emanava do oponente e o odor nauseante que dele provinha em igual intensidade – atacou da melhor forma que pôde... conseguindo cravar a lâmina da arma na barriga do carniçal. Este, nervoso, debateu-se na tentativa de arrancar o objeto cortante de si. E o jovem, empurrando-o ainda mais para frente... conseguiu fazer com que sua ponta brotasse nas costas ósseas do asqueroso ser, atravessando-o. O morto-vivo ficou assim imobilizado, dando nova oportunidade a Freya; que conseguiu, num novo ataque, decepar-lhe a cabeça.

- Está melhorando, menino – ela sorriu para Fëanor. – Está melhorando...

Enquanto isso, o outro carniçal continuava dando trabalho aos demais. Aproximando-se, Beli Eddas tentou atingi-lo com sua Kukri: uma, duas, três vezes... a esguia bizarrice sempre logrando se esquivar. Até do mortal machado de Kal Sul o carnívoro pútrido conseguiu desviar, movendo-se para lá e para cá com uma agilidade agora facilitada pela ausência de um braço. Recuperado da prévia investida, Trent Dante começou a mais uma vez engajar suas mãos numa série de gestos que levariam ao disparo de um raio de gelo... E este teria vindo – se o anão, antes, não houvesse enterrado a lâmina de sua arma no peito da criatura, que caiu fulminada e imóvel.

- Feito! – ele exclamou alegre, limpando o machado logo depois.

Já o elfo fez uma careta. Aquele, definitivamente, não era um dia muito propício para o uso de suas habilidades arcanas.

A ponte, ao que parecia, estava limpa. Os corpos dos goblins e carniçais ali jaziam atraindo moscas e espalhando o terrível odor da decomposição sobre o riacho. Os aventureiros esfregavam o suor de suas peles e paravam para recobrar o fôlego depois de minutos de batalha quase ininterrupta. Se a viagem toda até a capital se mostrasse daquele jeito, então eles chegariam a ela com a experiência de verdadeiros heróis de guerra – isto é, se chegassem todos vivos...

Fëanor, conforme antes planejara, pôs-se a soltar cada um dos cavalos presos aos carroções, inclusive dando a alguns um pouco do alimento que carregava consigo, já que se encontravam em severo estado de desnutrição. Os eqüinos comeram com vontade e, livres de suas correias, deixaram a ponte, galopando aliviados rumo aos campos próximos. Os demais viajantes se sentaram junto aos parapeitos, alguns tomando água de seus cantis, enquanto outros simplesmente encolhiam-se para descansar um pouco as juntas. O esforço empreendido durante o combate não fora pouco, e o céu, ganhando os primeiros tons alaranjados do entardecer, anunciava que a noite logo viria para um repouso completo.

O aspirante a Cavaleiro da Luz, entretanto, não conseguia se tranqüilizar. O mal-estar que o assolava desde o início do confronto não o havia abandonado, permanecendo em sua mente enquanto soltava os cavalos e agora atormentando ainda mais sua consciência. Aflito, o garoto ergueu os olhos para o alto de um dos carroções... deparando-se com o repulsivo corvo em cima dele ainda pousado.

CROA!

Existia algo de muito estranho naquela ave. Era de se supor que o que a trouxera ali fora o massacre, mas já se encontrava ali antes de seu início. E ao término da luta, ao invés de ir se banquetear com um dos cadáveres, seguia empoleirada ali, como imponente expectadora de tudo que ocorrera. Era estranho afirmar isso... mas não parecia ser um simples pássaro. Ele possuía algum tipo de aura estranha, um caráter sombrio... Difícil de explicar, mas tratava-se de algo que não agradava o jovem paladino em nada.

O corvo tornou a grasnar, atraindo dessa vez a atenção de todos ali. Teria sido justamente sua intenção? Voou, então, de cima de seu refúgio, planando até o chão da ponte; seus pequenos pés levando-o até o corpo inerte de um dos carniçais: o único ainda com cabeça, um de seus braços tendo sido arrancados. Erguendo curto vôo, pousou novamente, agora sobre o peito do morto-vivo há pouco perfurado pelo machado de Kal Sul. Abaixou então seu bico, imergindo a cabeça na fenda aberta pelo anão... e, sutilmente, deu algumas bicadas no que deveria ser o outrora pulsante coração do cadáver.

Logo depois a ave bateu suas asas negras para bem longe dali, como se ansiasse por se afastar do que fizera e da reação que os aventureiros teriam diante disso...

Como eles poderiam prever, o resultado não fora bom. Nada bom.

O antes imóvel corpo fétido do carniçal pareceu emitir um espasmo. Talvez fosse um reflexo retardado do choque causado pelos ataques que sofrera, mas logo veio outro... e mais outro. A ofegante respiração da criatura pareceu voltar, de início fraca e aos poucos se intensificando, seu peito subindo e descendo, com a elástica pele podre se expandindo e se retraindo, numa intensidade crescente... os ósseos dedos das mãos e pés se agitaram, os membros logo também se movimentando... até que, para terror dos viajantes, o morto-vivo colocou-se mais uma vez de pé, dentes afiados à mostra na boca aberta faminta por carne e olhos arregalados no vermelho mais assustador que qualquer um deles já havia visto.

- Maldito corvo! – foi o que Kal Sul teve tempo de exclamar.

O embate recomeçou.

A criatura saltou sobre o anão, tentando arrancar-lhe um bom naco de carne. Dessa vez o embaixador de Glacis não pôde empregar seus reflexos para reagir, acabando por ser derrubado pelo adversário, protegendo seu peito com o cabo do machado, usando as duas mãos, na tentativa de repelir o monstro. Este, por sua vez, também segurou a arma com o braço raquítico que lhe restava, procurando empurrá-la no sentido contrário. Instantes transcorreram nessa disputa de força, o carniçal empregando esforço anormal para um morto-vivo, ainda mais com um só membro... E quando os braços de Kal Sul estavam a ponto de ceder... uma espada foi fincada nas costas do inimigo.

Fora Freya quem o atacara, tirando proveito do momento de distração do carniçal com o anão. Ela enterrou a lâmina no organismo fétido até quase atravessá-lo por completo, mas este não deu qualquer demonstração de fraqueza – apenas voltando seu cruel semblante para a nova agressora. Sem até então compreender, esta removeu a arma agora banhada nos fluídos decompostos da aberração e concluiu a terrível verdade: aquele morto-vivo retornara mais forte e resistente após ser reanimado pelo corvo. Não seria tão simples derrubá-lo – isso se realmente houvesse sido antes. Atônita, a guerreira tentou investir novamente... para ser repelida por uma violenta pancada do monstro, que a fez recuar alguns passos com as mãos cobrindo o dolorido abdômen.

Nisso, Kal Sul já estava novamente de pé, tendo agora um combativo Fëanor ao seu lado. Um pouco mais distantes, Beli Eddas e Trent Dante aparentavam preparar novas magias. Ainda que mais poderoso, aquele maldito carniçal não poderia se defender por muito tempo...

O anão avançou. Cortou o ar com o machado uma vez... errando o alvo, que se esquivava traiçoeiramente. Tentou de novo... e conseguiu decepar o outro braço da bizarrice. Ela podia contar agora somente com a cabeça, tronco e pernas para se mover e atacar; porém isso, para espanto de todos, logo pareceu não ser a ela problema. Soltando berros inumanos, continuou desviando das investidas dos aventureiros próximos a si de forma eficiente, Fëanor e Freya também não conseguindo atingi-la com seus sabres. O feiticeiro elfo, finalmente, pôde disparar mais um raio de gelo... mas este também não acertou o alvo, acabando por colidir com a lâmina da espada da mercenária... congelando-a da extremidade superior até pouco acima do cabo.

- Não acredito! – ela berrou, só não mais furiosa por não ter entendido bem o que ocorrera.

- Desculpe! – Trent exclamou, frustrado e envergonhado.

Freya permaneceu fitando a arma coberta de gelo por alguns segundos, deduzindo que acabaria por quebrá-la em mil pedaços se continuasse a utilizá-la naquela condição. Irritada, guardou-a como pôde na bainha, ao mesmo tempo em que Beli Eddas, movendo-se na direção do monstro, pedia aos companheiros numa voz alta e determinada:

- Abram caminho!

O mago de manto negro movimentava os braços para complementar a fala, segurando num deles um livro aberto. O grimório deixado pelo suposto tio, agora seu. Mantinha determinada página marcada por alguns de seus dedos. Quando o carniçal ressuscitara, concluíra ser o melhor momento para testar um dos encantamentos necromantes existentes naquele volume. Algo simples, abaixo do primeiro círculo, mas que cogitara utilizar desde que o primeiro daqueles mortos-vivos aparecera. Tivera de prepará-lo às pressas, já que não o fizera ao ler pela manhã, porém agora acreditava que poderia realizá-lo sem problemas. O corvo, aparentemente, empregara magia capaz de manipular a força vital para reanimar aquela criatura. Nada mais justo, agora, que Beli usasse o mesmo recurso para dar o troco.

Finalmente fechando o grimório, manteve-o em sua mão enquanto gesticulava para conjurar o truque, pronunciando ao mesmo tempo palavras no idioma arcano. Tendo compreendido o que o rapaz pretendia, os demais saíram da frente... mas, com isso, também o deixaram exposto ao monstro. Este avançou na direção do mago como uma besta enfurecida, o alvo não recuando ou efetuando qualquer ação para se esquivar, já que isso atrapalharia a invocação. O carniçal, perto o suficiente do humano, curvou para frente a cabeça... e, sem que ele pudesse reagir, igualmente incapaz de completar a conjuração, derrubou-o ao usá-la para golpeá-lo com força no peito.

O fétido carniceiro caiu sobre o corpo de Beli, aproximando sua boca para mordê-lo... e conseguindo cravar seus dentes afiados como navalhas num de seus braços. Sangue foi espirrado ao redor, o jovem mago gemendo de dor. Pôde, no entanto, repelir a aberração com um chute, colocando-a novamente de pé e fazendo-a soltar seu membro ferido. Beli também conseguiu se erguer, esbaforido, seu grimório tendo ido ao chão e a mordida latejando como nunca... No entanto, não desistiu. Passou a gesticular novamente, esforçando-se para se ater aos movimentos necessários mesmo com o incômodo ferimento... E, ao terminar de pronunciar a última palavra, estendeu o braço intacto na direção do morto-vivo, mão aberta... uma espécie de raio dela partindo e atingindo em cheio o carniçal. Este urrou, fumaça subindo de algumas partes de seu corpo enquanto elas... regeneravam-se. Isso era fatal ao monstro, que se agitou durante alguns instantes e finalmente desabou, mais uma vez inanimado.

Ao confirmar com os olhos que a criatura se encontrava mesmo vencida, o conjurador caiu sentado, quase esgotado de suas forças. Freya, para se certificar de que aquela bizarrice não voltaria à vida de novo, sacou sua adaga e cortou-lhe o pescoço, separando a cabeça do tronco. Olharam então para o céu enferrujado do final da tarde: nenhum sinal do corvo, felizmente. A batalha terminara de vez.

Cansado, mas sem nunca perder o entusiasmo, Kal Sul sentou-se de costas para um dos parapeitos da ponte e apanhou um dos cantis contendo cerveja, abrindo-o e sorvendo o líquido com vontade. É, aquele era mesmo um momento propício, ainda que não houvessem chegado nem à metade do caminho até a capital...

Trent Dante, risonho, deu um ou dois chutes no cadáver de um dos carniçais num gesto de superioridade, para logo depois ir unir-se ao anão em seu breve descanso. Já Freya, ofegante, via-se às voltas com o problema envolvendo sua espada congelada – encontrando-se prestes a cobrar do elfo uma magia que a fizesse voltar ao normal – quando seus olhos pousaram sobre Beli Eddas. E ela constatou, preocupada, que o ferimento causado pelos dentes do último monstro derrotado, ainda a liberar considerável quantidade de sangue e coberto pelo que parecia ser algum tipo de baba gosmenta, era mais grave do que antes aparentava.

- Quer ajuda para cuidar disso? – a mercenária perguntou.

- Não, não se preocupe – o mago replicou de maneira um pouco grossa, puxando a manga rasgada do manto para cobrir melhor a repulsiva ferida.

A guerreira deu de ombros, já que não podia auxiliar quem não queria, e se afastou. Quanto a Fëanor... onde estava?

Freya olhou para o outro lado da ponte, encontrando o aspirante a Cavaleiro da Luz dormindo deitado com a cabeça apoiada num parapeito. Cedera, por fim, à exaustão que só crescera em si desde a partida de Feritia, considerando que quase não dormira na noite anterior devido à ansiedade relativa à viagem. Diante do fato, e sentindo também seus próprios primeiros sinais de desgaste, a mulher indagou a Kal Sul:

- Nobre anão, não é melhor já interrompermos nossa marcha para descanso? A noite logo cairá, e acredito que este indesejado confronto exauriu boa parte das forças que tínhamos para conseguir andar mais um pouco.

- Certamente, minha cara – o diplomata assentiu. – Vamos apenas avançar por mais alguns metros, para que nos afastemos do fedor que agora impera nesta ponte, então poderemos nos deter para comer e repousar.

E, depois de fitar brevemente o adormecido Fëanor, complementou:

- Algum de vocês pode despertar nosso amigo dorminhoco?

Fazendo uma careta, Freya caminhou até o garoto para acordá-lo...

A noite veio, a luz do sol se extinguindo e o firmamento sendo forrado por um tapete de estrelas.

O grupo estabeleceu seu acampamento pouco à frente da ponte, mas talvez não pudesse ser propriamente chamado de acampamento: enquanto alguns haviam estendido improvisados sacos de dormir feitos de penas e até mesmo estopa, como Trent Dante e Fëanor, os outros deitariam na própria grama para adormecer – a eles nada bastando além da relva macia e do frescor do orvalho para descansarem muito bem. Freya acendera uma fogueira e, sobre ela, fixara através de um suporte de gravetos sua espada, para que o calor do fogo dela removesse a espessa camada de gelo criada pelo feiticeiro. Os demais se encontravam sentados ao redor das chamas, aquecendo-se. Alguns também haviam comido. Fëanor era o único que já dormia, após um breve período novamente acordado depois de seu quase literal desmaio na ponte. Fitando a lua minguante no céu, um fio côncavo prateado e brilhante, Kal Sul exclamou, num tom de alegre reverência:

- Vejam! Rimya sorri para nós!

Trent Dante ergueu, maravilhado, os olhos para o astro celeste, mas Beli Eddas e Freya permaneceram alheios à afirmação. O primeiro, sempre carrancudo, encontrava-se sentado um pouco mais longe dos companheiros, braços cruzados enquanto sua figura parecia se fundir à noite graças a seu manto negro. Ele aparentemente tratara do ferimento provocado pelo carniçal, envolvendo-o num curativo e utilizando alguns ungüentos que trazia consigo para acelerar a cicatrização. Ninguém nem ousou tocar no assunto – ele realmente não aparentava querer isso. Já a mulher não deu qualquer importância à lua ou fosse lá o que ela representava... por simplesmente não acreditar nos deuses. Ela já vivera e sofrera o bastante para duvidar totalmente da existência de divindades; e mesmo se existissem, não as achava dignas de adoração após terem assolado os mortais com castigos por centenas de anos, culminando no ainda mais devastador Crepúsculo dos Deuses. Preferia ter fé em si mesma. Tinha consigo ser a melhor devoção que poderia existir.

- Bem, quem vai montar guarda primeiro? – questionou ela bufando, sabendo que não deveriam baixar sua defesa em relação aos perigos da estrada, principalmente após o pôr-do-sol.

- Você, o garoto da hospedaria e o nosso amigo mago precisam de mais horas de descanso do que eu e o orelhudo aqui – afirmou Kal Sul. – Além disso, nós dois conseguimos enxergar bem no escuro. Então pode repousar tranqüila, minha cara. Pedirei que Trent fique vigiando primeiro, durante quatro horas. Ele então me acordará e permanecerei no posto pelo restante da noite. Está de acordo, orelhudo?

- Por mim tudo bem – o feiticeiro anuiu.

- Se vocês assim se oferecem... – falou a mercenária em meio a um longo bocejo. – Aceitarei então. Mas amanhã, para compensar, eu, Fëanor e Beli nos revezaremos para a guarda.

- Justo – sorriu o anão.

- Sendo assim, então já irei me deitar... – o sobrinho de Palas Eddas se manifestou, levantando-se e caminhando diante dos outros até a área da grama onde dormiria, Freya jurando ver que sua pele estava pálida ao ter um lampejo de seu rosto sob o capuz.

Após o afastamento do mago, Kal Sul permaneceu algum tempo fitando o céu, admirando a grandeza das constelações, e depois trocando olhares com o feiticeiro elfo e a mercenária humana. A eles pareceu que o anão desejava falar sobre alguma coisa, um assunto sério, e provavelmente via-se a pensar na melhor forma de iniciar a conversa. Apanhou um graveto, inseriu-o no fogo, balançou-o para lá e para cá... por fim dizendo:

- Cara Freya e honrado Trent Dante... Você, guerreira, afirmou-me antes dominar diversos idiomas, o que me leva a crer já ter viajado por diversas terras além de Behatar, como Astar, as Ilhas Kartan, Etressia... Deve ser uma pessoa vivida e que já viu muita coisa, bem mais do que um súdito que nunca deixou seu vilarejo jamais pensará em ver. Já você, amigo orelhudo, parece-me um valoroso aprendiz das artes mágicas e grande estudioso do assunto. Só não incluí o mago nesta conversa devido a ele hoje ter claramente utilizado encantamentos necromantes; e isso, somado à sua personalidade fechada, não o faz ainda completamente digno de minha confiança. Mas ressaltando: apenas ainda. Já Fëanor, não o acordo para que não se assuste diante do assunto de que desejo tratar. Ele é ainda muito novo e me aparentou ficar realmente consternado diante dos carniçais durante o entardecer...

O diplomata respirou fundo e continuou:

- Qual a opinião de vocês dois a respeito daquele corvo que surgiu na ponte e reanimou com suas bicadas um dos mortos-vivos por nós derrubado? O que pode ter sido aquilo?

Freya e Trent se entreolharam. Difícil questão, sem dúvida. Nenhum deles se achava capaz de respondê-la: a primeira por nada entender de magia, e o segundo por ainda estar no início de sua aprendizagem – mesmo que acreditasse que o feito do corvo, de tão incomum, poderia deixar confuso até um feiticeiro dos mais experientes. Ambos, no entanto, arriscaram seus palpites:

- O familiar de um poderoso mago necromante, eu diria – afirmou o elfo. – Um animal capaz de compartilhar magias com seu mestre. Por isso a reanimação.

Já a guerreira possuía uma nuance a mais para pensar no sinistro corvo. O "bichinho" de "M". Ela não conseguia tirar essa associação de sua cabeça. Algo lhe dizia que seu contratante havia enviado a ave até ali. Seria para testá-la, de algum modo? Por isso a ressurreição do carniçal? Seria "M" um mago necromante ou coisa similar? Por que aqueles goblins transportavam mortos-vivos nos carroções? Estariam ela e seus companheiros apenas participando de um espetáculo que fora previamente ensaiado? Perguntas, perguntas e mais perguntas... Freya detestava quando elas ficavam sem respostas. O pior era não poder compartilhar suas teorias com ninguém ali. Nada deveria a eles revelar a respeito daquele que recrutara seus serviços, nem o plano misterioso que envolvia sua ida à capital. Caso fizesse isso, por certo pagaria com a vida. E o pouco que sabia das pessoas com quem se envolvera revelava que não seria nem um pouco prudente provocá-las...

O mais irônico, talvez, era a própria figura do corvo. Até meses antes Freya tinha o pássaro como símbolo de boa sorte, um sinal de sucesso em seus negócios. Mas, desde que tivera seu encontro forçado e às cegas com "M", a ave só vinha se mostrando a si sinônimo de azar. Possuía, para seu receio, a ligeira impressão de que tudo ainda pioraria...

- Sou da mesma opinião que Trent – falou finalmente. – Magia necromante. Bem poderosa. Deparei-me certa vez com uma bruxa em Barbety de habilidades parecidas.

Olharam, em seguida, para as chamas da fogueira. O sabre de Freya continuava suspenso sobre ela, o gelo já tendo derretido por completo – as últimas gotas de água escorrendo pela lâmina e logo evaporando em meio ao calor. Kal Sul voltou a falar:

- Também suspeito que se trate disso. E espero realmente que não tenha passado de um incidente isolado, apenas um desses perigos que dizem ameaçar os viajantes das estradas deste reino.

- Acredito firmemente nisso – afirmou Freya.

- E os deuses também nos protegerão – completou o devoto anão, olhos fixos na luz crepitante.

- Também poderemos continuar nos defendendo – emendou Dante num sorriso. – Temos magia e armas.

Concluindo essa última sentença, o elfo apontou para o sabre da mercenária sobre o fogo. Olhando na mesma direção, ela também abriu um sorriso e falou:

- A espada é importante. Mas não tão importante afinal de contas.

Constatando que a arma já estava totalmente seca, a guerreira apanhou-a de volta, guardou-a em sua bainha e, afastando-se da fogueira, despediu-se dos demais:

- Boa noite.

- Até mais – Trent Dante e Kal Sul responderam quase em uníssono.

O ruído dos passos da mulher sobre a grama logo cessou... e os dois aventureiros ainda acordados viram-se imersos no mais profundo silêncio – violado somente em parte, nas árvores ao longe, pelo piar de corujas e as sinfonias errantes de outros animais noturnos. O firmamento estrelado se assemelhava a uma redoma de vidro, construída pelos deuses, que envolvia todo o mundo após o sol se pôr, criando um novo ambiente em que tudo a que os sentidos dos mortais eram sensíveis, incluindo luz e som, tornava-se suprimido quase por completo. E as sombras, por conta disso, sempre podiam acabar ocultando algum tipo de perigo aos desavisados...

Sem mais nada dizer, o embaixador de Glacis levantou-se e caminhou até uma área próxima, poucos metros distante do pavimento da estrada. Ali se aconchegou em meio à relva e, em questão de poucos minutos, já estava roncando.

Agora sozinho, Trent bufou.

Era hora da vigília.

A primeira providência do elfo foi apagar a fogueira. Como podia enxergar bem no escuro, a claridade das chamas não se mostrava necessária – além do que, acabaria atraindo atenções indesejadas. Depois se sentou num tronco de árvore caído de onde podia visualizar com clareza boa parte das cercanias da ponte, o leve correr do riacho também contribuindo para que a noite não fosse tomada pela completa ausência de som. Alternando seu olhar de direção a cada punhado de instantes, Trent pôs-se assim a zelar pela segurança do singelo acampamento.

Era incrível como vinha sentindo falta de sua casa e de seus pais. Não passara longe deles muitas noites – considerando que sua jornada por certo duraria no mínimo alguns anos – mas já fora tempo suficiente para que compreendesse as complicações de ter de se virar sozinho num mundo muitas vezes hostil. Estava com saudades de sua cama, da biblioteca, dos doces de sua mãe, de todo o conforto em que vivia... Para compensar a falta disso tudo, esperava ao menos que sua viagem valesse mesmo a pena, nela obtendo conhecimentos de suma importância para sua transformação num grande feiticeiro. Felizmente julgava já ter encontrado pessoas com quem acreditava poder aprender muitas coisas.

Assim transcorreram as primeiras horas da guarda, o elfo só não caindo em total tédio devido ao curioso passatempo de contar as árvores ao redor. Quando chegava às cinqüenta, fazendo isso pela terceira vez, começou a imaginar como seria bem mais proveitoso pegar emprestado o grimório de Beli Eddas para dar uma lida – porém tinha certeza de que o sisudo mago jamais permitiria isso. Conformado, Trent lutava também contra o cansaço: suas pálpebras já pesavam mais do que deveriam e os bocejos tornavam-se mais e mais freqüentes. Resistiria ao sono, no entanto; tinha de esperar Kal Sul despertar para que assumisse seu posto.

Foi quando um barulho inesperado colocou os sentidos do elfo em alerta – algo que realmente não esperava ouvir. Sua espinha gelou e seus nervos tremeram assim que assimilaram o que se tratava...

CROA, CROA!

Assustado, coração acelerado, Trent agitou-se em cima do tronco e, estreitando os olhos, girou a cabeça na tentativa de identificar o sinistro grasnar. Logo encontrou, empoleirado num dos galhos de uma árvore seca próxima, a ela não restando mais nenhum indício de folhagem, um altivo corvo, que àquele momento arrepiava as próprias penas usando o bico.

Talvez o mesmo corvo de antes...

Não, não, isso seria impossível, como o feiticeiro logo refletiu... ou não. Talvez fosse apenas improvável... ou seria provável? Se aquela ave consistisse mesmo familiar de um mago necromante, como o próprio elfo cogitara junto à fogueira, então era até certo que o pássaro não desapareceria após o confronto na ponte, continuando agora a espreitá-los na calada da noite. A mando de seu mestre. Uma situação nada boa. Já não era agradável estar sendo seguido por alguém estranho num ambiente descampado como aquele, que dizer de alguém que utilizava magia capaz de reerguer os mortos...

Poderia não passar de uma coincidência amedrontadora, e aquele corvo ser outro, surgido num momento inoportuno... Mas não, aquilo era estranho demais. Seria melhor acordar Kal Sul.

Trôpego, Dante levantou-se, pernas bambas de ansiedade e também medo, caminhando até onde o anão dormia. Faltava apenas meia hora para a troca de guarda, então não atrapalharia tanto o repouso do diplomata acordá-lo àquele momento. Deitado junto à grama, de armadura e tudo, o embaixador roncava alto, virando para lá e para cá de quando em quando. Um pouco confuso quanto ao que fazer, o elfo abaixou-se junto ao parceiro e, sacudindo-o, sussurrou:

- Kal Sul...

Nada. Ele devia estar no décimo quarto sono, quiçá até visitando os Campos da Glória e tendo uma conversa amistosa com Bragondir...

- Kal Sul! – Trent insistiu, agora mais alto.

O adormecido resmungou algo em seu dialeto natural – o feiticeiro assim não compreendendo nada – e voltou-se para outro lado. Impaciente, olhos se alternando entre o anão e o corvo provocador no alto da árvore, o elfo viu-se obrigado a exclamar:

- Kal Sul!

Ele finalmente despertou, levantando o tronco e por pouco não retirando seu machado das costas num ato reflexo. Só não o fez por logo identificar o rosto e as orelhas pontiagudas de Dante, constatando assim que não havia diante de si nada que precisasse ser desmembrado.

- Que susto, orelhudo! – ele bradou, quase acordando os demais. – O que houve?

- O corvo, Kal Sul – Trent explicou receoso, apontando para o galho seco em que o pássaro se fixara. – O corvo voltou!

O anão, também capaz de ver na escuridão, fitou a árvore... seus olhos se arregalando logo que identificaram a silhueta da ave, sua boca praguejando:

- Miserável de um cão!

Encarou o corvo de modo fixo, seu semblante se tornando carrancudo, como se aceitasse o desafio do estranho animal. Coçou a barba por alguns instantes, tentando pensar numa maneira de subjugar o inimigo emplumado. E, aproximando-se de Trent, cochichou junto a um de seus ouvidos:

- Você é bom de pontaria, orelhudo?

- Bem, eu... – oscilou o elfo, que não esperava aquela pergunta. – Acho que sim.

- Então tente atirar alguma coisa nele, para derrubá-lo de lá!

Dante assentiu com a cabeça mais por reflexo do que por segurança, passando em seguida a procurar algo no chão, entre a grama, que pudesse utilizar. Acabou tateando uma pedra molhada de orvalho, superfície lisa, e considerando o peso que ela possuía em seu punho, julgou ser um bom projétil para ser lançado na direção da ave incômoda. Mordendo os lábios, olhos atentos à arvore, arqueou uma das sobrancelhas... e atirou a pequena rocha em meio à escuridão.

O artefato cruzou o ar noturno, dirigindo-se até o corvo numa boa altura... mas passando direto por ele, de lado, e indo pousar rolando na relva metros depois do galho. É, Trent sabia que dificilmente acertaria mesmo na primeira tentativa. Mas o mais estranho foi que o pássaro não pareceu nem se incomodar com o ataque contra si. A pedra não o espantou, como teria feito por certo com qualquer outro animal. Ele permaneceu empoleirado no mesmo local, os olhos de um vermelho enegrecido encarando os dois aventureiros no solo, aparentemente, com desdém.

CROA!

Kal Sul enfureceu-se. Empurrando Dante de leve para abrir caminho, o anão apanhou outra pedra do chão – esta sendo um tanto pontiaguda num de seus lados, podendo assim causar grave ferimento se arremessada – e, após fazer mira durante alguns instantes, mantendo somente um dos olhos aberto, jogou-a contra a ave.

O projétil atravessou velozmente a distância que separava os viajantes do corvo... e logrou atingi-lo em cheio, o pássaro emitindo um grasnar que remetia a dor e surpresa enquanto despencava da árvore lançando algumas de suas penas pretas para o ar. Colidiu com o solo num leve baque, Trent já se voltando para o autor da façanha e exclamando contente:

- Conseguiu! Você conseguiu, Kal Sul!

- Parece que sim – sorriu o diplomata. – Acredito que esse corvo não nos será mais problema...

Aliviados, ambos passaram alguns segundos rindo, dando as costas para a árvore. Enquanto o anão, bocejando, preparava-se para seu turno de vigília, o feiticeiro caminhava até seu saco de dormir; quando os dois ouviram, petrificados como estátuas:

CROA! CROA!

Temerosos, viraram suas cabeças para trás... deparando-se com o corvo, intacto, grasnando desafiador sobre o galho seco. Era o mesmo que acabara de ser derrubado; não havia como se tratar de outro.

Os dois não sabiam como reagir. Era aterrador demais. Primeiro aquele corvo fora capaz de reanimar um organismo morto. Agora ele mesmo voltara à vida, após ter levado uma fatal pedrada e desabado agonizante na própria frente deles!

- Orelhudo... – Kal Sul sussurrou para o companheiro.

- Ah, não, não... – o elfo replicou, seguindo caminho até seu leito. – Agora o turno é seu. Tenha uma boa noite.

Trent Dante recolheu-se... deixando o anão sozinho, sentado em cima do mesmo tronco caído, junto com o sinistro corvo morto-vivo. Não, não poderia haver melhor designação para ele, àquele momento. Apesar do receio, o embaixador de Glacis manteve seus olhos fixos na figura alada. Não poderia deixar que ela voltasse a ameaçar o grupo com seus truques. Além do mais, se o maldito se aproximasse, cortá-lo em dois com um de seus machados poderia bastar para aniquilá-lo de vez...

Foi uma longa noite para Kal Sul. Além de ter de lidar com as saudades da esposa e a ansiedade pela criança que estava por nascer – pensamentos que pareceram ter voltado à sua mente graças à má influência do corvo – o anão foi obrigado a passar horas de silêncio na companhia da ave de mau-agouro, a ausência de som só sendo violada pelos xingamentos que o diplomata proferia contra ela ocasionalmente. O indesejado visitante permaneceu o tempo todo, quase imóvel, sobre o galho, seu grasnar enchendo cada vez mais o diplomata de irritação.

Mas logo o céu foi clareando... e a manhã se anunciou. A tortura chegava ao fim.

Reconfortando-se com a brisa do alvorecer e alegrando-se ao testemunhar o gradual retorno do sol – simultâneo ao piar dos primeiros passarinhos – o embaixador se distraiu por um momento... apenas para ser surpreendido por uma voz conhecida atrás de si:

- Problemas com aves?

Kal Sul virou-se, encarando um recém-desperto Beli Eddas. Mantinha o corpo coberto pelo manto negro, mas havia algo diferente em si, em sua pele, perceptível principalmente em sua face: estava tomada por uma fantasmagórica palidez. O anão, espantado, perguntou-se mentalmente o que teria acontecido ao mago; porém este, sem nada lhe dizer, simplesmente encaminhou-se até a árvore seca. Deteve-se perto do tronco, o corvo não se incomodando nem um pouco com sua presença, e ergueu uma das mãos para cima, pronunciando mais uma vez as palavras estranhas que o viajante de Glacis julgava jamais conseguir compreender... Ao término da conjuração, um globo luminoso pouco maior que um punho surgiu acima dos dedos abertos do humano, iluminando com intensidade os arredores ainda semi-imersos na penumbra da madrugada... e espantando o pássaro negro de imediato, o qual, incomodado pela repentina e forte claridade, voou para longe grasnando insatisfeito.

Beli então retornou, evitando fitar o anão diretamente, dizendo ao passar de novo por ele:

- Agora, se não se importa... vou voltar a dormir.

Kal Sul assentiu movendo a cabeça, confirmando o tom extremamente alvo que predominava no encantador, além do fato de ele parecer tremer sob suas vestes. Intrigado, acompanhou-o com os olhos até o local onde ele antes dormia, observando-o tornar a se deitar e perguntando-se mais uma vez se ele não teria alguma relação com o corvo irritante...

Passou-se mais algum tempo e, um a um, os integrantes do grupo em viagem foram acordando.

Freya levantou-se e tratou de arrumar suas coisas, mordiscando uma fruta enquanto, logo pronta, aguardava os colegas com uma expressão impaciente em seu semblante, ávida por retomarem logo a marcha. Trent Dante, por sua vez, despertou um tanto receoso devido aos eventos ocorridos à noite; porém aliviou-se assim que constatou que o corvo havia ido embora. Tratou então de contar à mercenária o que havia acontecido, ela ouvindo atentamente – e ocultando seu crescente receio em relação à ave que devia pertencer a "M". Já Fëanor, assim que se pôs de pé, distanciou-se um pouco dos companheiros e ajoelhou-se junto a um pinheiro nas imediações para rezar a Northar. Kal Sul permaneceu junto dos demais, alimentando-se com pão... e logo constatou, assim como os outros, um estranho fato...

Beli Eddas não havia se levantado.

De início pensaram que o mago apenas resolvera dormir um pouco mais que o previsto – ainda que assim atrasasse os demais – mas o anão e a guerreira sabiam, por terem observado sua palidez, que algo não estava certo. Foi assim que, minutos mais tarde, tomaram a iniciativa de irem averiguar o rapaz. Encontrando-o adormecido em meio à grama, constataram mais uma vez o anormal tom de sua pele, agora também descobrindo, devido às gotas que através dela escorriam, que seu corpo suava em grande quantidade. Trent e Fëanor também se aproximaram, enquanto Freya retraía uma das mangas do manto do jovem, mais precisamente aquela lhe cobrindo o braço anteriormente mordido pelo carniçal...

A mercenária fez uma careta ao fitar a ferida ali presente, os outros também sendo repelidos por seu terrível aspecto: ao invés de começar a cicatrizar, as marcas dos dentes do morto-vivo haviam sido cobertas por uma espessa camada negra de gangrena, toda a área em torno do ferimento igualmente começando a apodrecer. A mulher encostou então as costas de sua mão direita à testa do adoentado: ardia quase como fogo, da mesma forma que todo seu organismo. A situação de Beli realmente se agravava a cada instante.

- Não há dúvidas – afirmou Freya, fazendo uso do conhecimento que obtivera em suas missões pelo mundo. – Já ouvi falar disto, mas não tinha certeza se era verdade ou não. Parece que mordidas e arranhões de mortos-vivos podem causar este tipo de moléstia. Ele está infectado com a febre do carniçal.

- Febre do carniçal? – repetiu Fëanor, confuso. – Como assim?

- O corpo dele está sendo consumido pela podridão daquela criatura. Morrerá dentro de um dia, se não for tratado. E, na primeira meia-noite depois disso, também se tornará um carniçal.

- Pelos deuses! – Kal Sul bradou desnorteado.

- Temos de fazer alguma coisa! – falou Trent. – Não há como o tratarmos aqui?

- Não, não há – Freya replicou séria. – Mas esta estrada passa pela cidade de Tyrnan, onde existe um santuário dedicado à deusa Wella. Se nos apressarmos, poderemos chegar até lá ao entardecer. As clérigas poderão então fazer algo por este infeliz.

- De acordo – anuiu o anão. – Aceleraremos então nossa marcha. O único problema, pelo que vejo, é que nosso amigo não tem condição alguma de andar conosco. Precisaremos carregá-lo.

Todos concordaram, indo imediatamente providenciar uma maca. Fëanor e Trent Dante, usando seus sacos de dormir, cordas e mais algumas quinquilharias, conseguiram construir uma em poucos minutos, Beli Eddas nela sendo cuidadosamente alojado. Com um pano umedecido sobre sua testa, passou a ser então carregado, num esquema de revezamento, pelos companheiros – dois de cada vez. Dessa maneira a viagem rumo à capital prosseguiu, agora mais rápida sob o sol matinal, os aventureiros urgindo em chegar a Tyrnan o quanto antes. Não conheciam bem aquele mago para poderem dizer que a ele já haviam se apegado... Mas, de qualquer modo, sua vida tinha de ser salva.

"Carniçais são criaturas cruéis e hediondas,

trazidas de volta à vida por necromancia,

capazes de converter mortais às suas

fileiras por meio de sua mordida"

– Bestiário da Noite, autor desconhecido, aprox. 500 ACD.

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