Heróis de Boreatia: A Perfídi...

Von Goldfield

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Uma tempestade assolou recentemente o mundo de Boreatia... No decorrer de alguns séculos, a potência militar... Mehr

BOREATIA - Cronologia
BOREATIA - Deuses
BOREATIA - Principais Raças
BOREATIA - Geografia
BOREATIA - Ordens e Organizações
Introdução
Prólogo
Capítulo I: Ventos de Outono
Capítulo II: Aqueles que vão a Feritia
Capítulo III: Um navio de histórias
Primeiro Interlúdio
Capítulo IV: A comitiva de Kal Sul
Capítulo VI: A ponte do riacho Wildeen
Capítulo VII: O palácio do rei herege
Capítulo VIII: As clérigas de Tyrnan
Capítulo IX: Na calada da noite
Capítulo X: O imediatismo do imediato
Capítulo XI: Rimiryn e os orcs
Segundo Interlúdio

Capítulo V: Apuros em Tileade

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Von Goldfield

Capítulo V

"Apuros em Tileade"

A manhã ensolarada, aliada ao agradável ambiente do porto amigo, compunham juntos uma aconchegante recepção aos ocupantes da nau élfica Briss, que há pouco ancorara no cais do forte de Tileade. Gaivotas davam rasantes sobre as simples construções, ao mesmo tempo em que funcionários do porto vinham auxiliar o descarregamento de mercadorias que, a bordo do recém-chegado navio, seriam agora comercializadas no interior do continente. De pé sobre o tablado, aqueles que acabavam de deixar a embarcação através de uma rampa de madeira podiam observar, no sentido norte e à direita, a convidativa taverna "Gaivota Azul", o nome gravado numa tábua acima da porta junto com uma gravura um tanto tosca. Atrás do estabelecimento, perto do portão do forte, um templo dedicado ao deus Serinius possuía as portas abertas, junto às quais alguns moradores depositavam naquele momento oferendas de peixes e jarros d'água, rogando pelas bênçãos da divindade sobre as atividades que diariamente exerciam. No centro do pátio que se estendia por quase todo o interior da fortificação, três pequenos armazéns recebiam a carga dos navios que ali chegavam. Mais ao fundo, à esquerda, o quartel da guarda repleto de sentinelas deixava claro o quão bem-vigiado era o local. Ao lado dessa construção fora erigido bonito chafariz, onde algumas mulheres então buscavam água, e logo depois se iniciava uma fileira de modestas casas em que residiam os trabalhadores do forte. Lugar em suma que, excetuando a movimentação causada pelo porto, costumava ser calmo e pacífico.

O entreposto encantava e muito Killyk Eleniak. Pisar pela primeira vez numa terra desconhecida, repleta de pessoas com costumes diferentes e locais nunca antes vistos, era algo fascinante para o elfo. Sentia que o reino de Behatar lhe seria fonte de incrível inspiração ao longo de sua estada, principalmente quando presenciasse a coroação do novo rei na capital. Jamais participara de qualquer cerimônia parecida, e o mero pensamento de estar presente nas festividades – andando pelas ruas ricamente decoradas, lotadas de fiéis súditos e estrangeiros entusiastas da celebração, ouvindo o toque de trombetas e testemunhando batalhões militares inteiros se curvando com seus escudos e armas para honrar o monarca – deixava-o a mal conseguir se conter diante de todas as palavras que, unindo-se em versos, despontavam em sua fértil mente para descrever tamanha maravilha. Procurava não ceder à ansiedade, porém. Isso acabaria por atrapalhar a jornada até Borenar, e tecer expectativas demais previamente por certo prejudicaria sua erudição quando chegasse o momento de revelar seu presente. Tentava, desse modo, controlar-se e focar-se somente no instante presente. E este, pintado em tons de azul e cinza numa paisagem marítima que vinha de encontro a um encantador forte costeiro, era-lhe igual fonte de incrível inspiração.

O feliz bardo já ia pôr-se a cantarolar – saltitando para longe das docas – a beleza daquele porto, quando seus olhos miraram a personagem mais intrigante de toda a tripulação do Briss. Lisah, de costas e aparentemente alheia ao rapaz, encontrava-se a alguns metros de distância na companhia de sua loba Kiche, examinando o interior do forte com um rosto sereno enquanto parecia se decidir para onde seguiria. Sempre encantado pela figura da elfa que, além de muito bela, aparentava guardar consigo mais segredos cada vez que era fitada, Killyk adiantou-se para caminhar na direção dela, na esperança de iniciar uma conversa... quando a moça, como se houvesse lido seus pensamentos, passou também a se mover, dirigindo-se com a loba até uma taverna perto dali, a singela "Gaivota Azul". Um veloz pensamento galopou pela mente do poeta, incutindo-lhe que o quase sempre sujo e ébrio ambiente de uma taverna não combinava em nada com a figura de Lisah. Em seguida reprovou-se, achando já estar conjeturando demais em cima de uma elfa sobre a qual quase nada sabia. Mas sim... ele queria descobrir mais.

Foi com esse objetivo que se colocou igualmente a caminhar na direção do estabelecimento, ainda sem ser percebido pela jovem. Sondá-la, porém, não era seu único intento. Não conhecia praticamente nada de Behatar, e conseguir os serviços de um guia ou ao menos a compra de um mapa local para orientar-se podiam ser consideradas prioridades. Uma típica taverna, que, de acordo com seus há muito tempo obtidos conhecimentos de bardo, costumava reunir indivíduos das mais variadas procedências e ocupações, por certo constituía lugar favorável ao cumprimento de uma dessas metas. Killyk sorriu. As coisas estavam ficando cada vez mais curiosas... e inspiradoras.

Perto dali, fora da vista do elfo, uma outra ocupante da recém-chegada embarcação descia rumo ao píer, sempre o mais discreta possível. Trajando a mesma túnica-vestido branca de antes, as pulseiras douradas ausentes de seus pulsos talvez devido ao temor em relação à aparição de algum gatuno, trazia algo diferente às costas: um volume de tamanho médio oculto sob uma manta marrom, deixando à mostra, mesmo assim, dimensões aparentemente cilíndricas. Tratava-se na verdade de uma aljava de flechas e um observador mais atento também conseguiria identificar, escondido com cuidado junto à cintura da garota, um bem-cuidado arco...

A última coisa que Hachiko desejava era chamar atenção, e por isso evitar locais muito movimentados seria uma ótima estratégia. Afinal, não sabia se os antigos inimigos de seu tio possuíam contatos ou até mesmo espiões naquele continente, e mesmo pessoas locais poderiam acabar sendo fonte de problemas caso de algum modo descobrissem a respeito do que buscava. Sendo assim, afastar-se o quanto antes daquele porto era uma ótima opção.

A elfa memorizara a direção para a qual deveria rumar: norte. Sempre norte. Teria de percorrer toda aquela península, o que levaria alguns dias, até atingir as terras centrais de Behatar. Passaria em seguida pela capital Borenar e, continuando no mesmo percurso, atravessaria a região de Krisman até o sopé da Cordilheira Boreal, onde o tesouro que Kaynan lhe deixara a aguardava. Bastaria então fazer uso do mapa específico que possuía para encontrar a localização exata da fortuna, longe de quaisquer olhos intrometidos. A viagem toda de ida levaria de duas a três semanas. Agindo conforme planejara, Hachiko esperava não encontrar contratempos... Nunca se sabe, porém, o que a Roda da Fortuna reserva aos mortais, e ela tinha consciência disso...

Antes de seguir adiante, cruzando o portão rumo à estrada, seria prudente descansar ao menos por algumas horas e alimentar-se. Tinha naquele momento, principalmente, sede. Andando pelo pátio interno de Tileade, lançou os olhos sobre a taverna por um momento: um tanto agitada e cheia de pessoas, um lugar que não favorecia em nada seu anonimato. Opção descartada. Virou então a cabeça, observando a porção norte do forte. Suas pupilas brilharam ao descobrirem, ao lado do quartel da guarda, um chafariz ricamente esculpido em pedra clara, contendo representações de fadas e outros seres mágicos. A elfa de Kartan já ouvira falar dessas primeiras, supostamente habitando algumas das mais densas florestas de Astar; mas nunca as vira. O encanto de que suas versões reais supostamente eram dotadas, no entanto, aparentava ter se projetado sobre o líquido oriundo da fonte, pois de tão limpo era até cristalino. Perfeito. Hachiko saciaria nela sua sede de forma bem mais proveitosa do que pagando por um copo ou dois de água barrenta na taverna. Decidida, rumou até o chafariz.

Tanto Killyk quanto Lisah, e também Hachiko, não faziam idéia de estarem sendo observados com atenção por um intrigante sujeito...

De pé junto à entrada do templo de Serinius, o lobo Anuk sempre ao seu lado e bordão firme em sua mão direita, o druida Caleb Rosengard assistira, de longe, ao desembarque de todos os ocupantes do Briss. De início acompanhara os passos dos primeiros elfos e halflings sem muito interesse, apesar da forte intuição que se recusava a abandoná-lo. Foi então que ele avistou os três indivíduos em particular, separados, deixando o convés da embarcação... e sentiu arrepios. Primeiro perguntou-se se o sol não estaria prejudicando seus sentidos e seu raciocínio, mas chegou mais perto, e a aproximação dos estranhos no sentido contrário também contribuiu para que pudesse examiná-los com mais clareza. Sim, ele não estava mesmo tendo alucinações, lapsos de visão ou qualquer coisa parecida... Aqueles três, todos elfos, sendo um rapaz e duas moças... Eram os exatos vistos em seu sonho premonitório.

Não havia como confundi-los. Até os detalhes mais precisos, como contornos faciais e trejeitos de movimento, pareciam os mesmos. Uma elfa de cabelos compridos e negros, a outra de fios também longos, mas prateados; o rapaz de cabeleira arrepiada... Até os equipamentos que traziam, àquela distância, aparentavam ser os mesmos, ainda que incompletos. Apenas a moça humana, que em sua visão parecia ter sido possuída por alguma entidade maligna poderosa, encontrava-se ausente – ainda. Todos os outros três, porém, ao que tudo indicava haviam desembarcado ali, de uma vez. Valera a pena, realmente, dar ouvidos à sua intuição, como o sábio Rabesdin recomendara. Sabia que Wella também zelava por seus passos e pela prevenção da tragédia cuja sinistra sombra ainda pairava sobre os pensamentos de Caleb. Tinha de ser evitada. E para isso o druida precisava saber mais sobre aquelas misteriosas pessoas, expondo tudo a elas caso fosse necessário.

Estreitou os olhos. A elfa de cabelos pretos e o elfo de mechas desordenadas e vestes coloridas dirigiam-se, separados entre si por certa distância, até a taverna Gaivota Azul. Dentre todos os espaços freqüentados pelo povo das cidades, as tavernas eram os que menos agradavam o druida, e por isso nelas se sentia muito pouco à vontade. Sua missão, todavia, dependia de sua rapidez em seguir aqueles dois personagens local adentro, não podendo hesitar. Respirando fundo, Rosengard pôs-se a andar, fazendo um sinal para que Anuk o seguisse. A outra elfa, de cabelos prateados, caminhava até a fonte junto à muralha norte, porém o vidente julgou ser mais seguro ter com dois dos indivíduos de uma só vez, deixando-a para depois. Já ia também pensando, de antemão, na maneira como abordaria aqueles estranhos provavelmente alheios ao papel futuro que possuíam...

Seria difícil convencê-los.

Hachiko só confirmou de perto o que já a encantara de longe: as águas do chafariz eram mesmo muito límpidas e refrescantes. Imergindo as mãos no líquido, reergueu-as molhando a face e matando a sede com o que sorvia pela boca. Como era bom poder se saciar com uma substância tão pura, ainda mais de acesso tão fácil, sem que fosse preciso pagar por ela! Em Kartan apenas as residências dos mais ricos e estabelecimentos mais privilegiados podiam oferecer água daquele tipo. Behatar, proporcionando isso numa fonte pública, já conquistava a simpatia da elfa.

Mas, ao que parecia, a própria estrangeira já havia conquistado, também, a simpatia local para si. Ao menos era isso que se podia dizer levando em conta os três membros da guarda, vestindo armadura e trajes nas cores azuladas características do Exército de Behatar, portando espadas às cinturas e arcos às costas, que admiravam Hachiko fixamente desde que ela se aproximara do chafariz. Trocavam comentários maliciosos em voz baixa entre si, a elfa só os percebendo após mais alguns goles d'água. Arregalou os olhos, um sentimento que unia vergonha e irritação a tomando de início, evitando assim fitar os humanos. Um dos soldados deu uma risadinha, enquanto o colega ao seu lado lhe dava uma leve cotovelada num ombro, como que o instigando a falar com a forasteira. Esta fingiu não ter visto o trio, continuando a beber e lavar-se; porém os vigias estavam determinados a tentar a sorte. Foi justamente o guarda que rira o primeiro a dar um passo à frente, perguntando, braços apoiados na beirada oposta do chafariz:

- Então as pérolas agora estão se revoltando, abrindo caminho para fora das ostras e vindo distribuir seu brilho pelas praias?

- Ora, que ostra que nada! – zombou um dos amigos do primeiro a investir. – Não vê que ela é uma fada, parente destas talhadas nesta fonte, e que em honra a elas veio beber da água que nos fornecem?

Divertindo-se com os rapazes, Hachiko viu sua irritação passar, dando lugar a uma sensação de apreciável brincadeira. Tomou mais um pouco do líquido límpido, esfregou nele os olhos e respondeu, erguendo a cabeça num sorriso astuto:

- Nem ostra, nem fada. Sou uma elfa oriunda das Ilhas Kartan. Extremamente hábil com um arco, devo mencionar. E adoro testar minha pontaria com atrevidos que mereçam minhas flechas.

Os sorrisos e expressões de gracejo nos semblantes dos guardas desapareceram imediatamente. Poderiam ter se aproveitado de sua posição e reagido de forma hostil a Hachiko devido a ela tê-los ameaçado, mas demonstraram respeito diante da dama – e temor perante seu arco – não dizendo mais nada e retornando disfarçadamente aos seus postos. A elfa riu-se de forma discreta, aproveitando a fonte por mais alguns instantes antes de finalmente voltar a caminhar. Não se dirigiu ao portão, entretanto. Visualizando os pequenos armazéns no centro do pátio, lembrou-se de que precisaria comprar alguns suprimentos para seguir viagem. Muitos deles poderiam ser obtidos com facilidade da própria natureza, como víveres, mas o plano da estrangeira era parar o mínimo possível pelo caminho até o norte, e isso incluía pausas para caçar ou coletar. Retirou do traje um saco de moedas enquanto adentrava uma das construções. Na melhor das hipóteses, deixaria aquele forte no princípio da tarde.

O interior da Gaivota Azul era mesmo o de uma típica taverna, o que a diferenciava das demais sendo apenas o fato de estar situada numa localidade litorânea. Isso acabava por gerar alguns detalhes no ambiente característicos dessa condição, como quadros nas paredes retratando paisagens oceânicas, pequenas réplicas em madeira de âncoras também penduradas nas paredes e diversos suportes contendo garrafas de vidro com navios em miniatura dentro, desde embarcações militares da Marinha de Behatar, passando por lendárias naus piratas de Kartan e Barbety, até os esguios e pontudos navios dos elfos. Boa parte da freguesia do lugar, como era de se esperar, era composta por marinheiros, em sua maioria estrangeiros de passagem pelo porto. Com suas animadas conversas regadas a cerveja, hidromel, licores e principalmente rum, os beberrões matavam tempo enquanto seus barcos permaneciam estacionados nas docas ou simplesmente enrolavam devido à preguiça em iniciar alguma tarefa que envolvesse deslocamento para o interior do continente. Junto ao balcão, um atendente magro, barbado e de pele bronzeada limpava-o esfregando sobre a superfície um pedaço de trapo. Com a cabeça baixa, permanecia atento a todas as falas oriundas das mesas, guardando para si as palavras que julgasse a si úteis dentre a ladainha constante. Não era dono do estabelecimento, porém acabava responsável pelo mesmo durante quase todo tempo, já que o proprietário, ocupante de cargo de alta patente na Marinha Boreal, sempre se encontrava fora. Ao menos era bem pago para não aceitar fiado, nem permitir que aqueles boêmios destruíssem a taverna em meio a alguma briga...

Apesar de ser manhã, o local estava quase lotado. Enquanto um ou outro freguês bebia sem parar desde o raiar do sol, aqueles que passavam pelo estabelecimento apenas para uma caneca rápida ou se refrescavam com água compunham maioria. A porta se abriu sem chamar a atenção de ninguém que ali se encontrava e, sempre sutil, a elfa Lisah, trajando branco, adentrou o recinto junto com Kiche. Após alguns segundos, o moreno ao balcão ergueu ligeiramente os olhos e, num tom de enfado, disse, apontando para a loba:

- Não vou impedi-la de entrar aqui com o bichinho, moça... Mas se ele atacar alguém, saiba que a responsabilidade será toda sua!

- Estou ciente disso... – a jovem replicou quase num murmúrio. – E é "ela". Venha, Kiche.

Arfando, a mascote acompanhou a dona até uma mesa mais isolada junto a uma das paredes do lugar, Lisah se acomodando numa das quatro cadeiras vazias ao seu redor. A loba, por sua vez, foi para debaixo do móvel, onde se deitou aproveitando o clima mais fresco. Em seguida a elfa permaneceu fitando algo indistinto diante de seus olhos, sem piscar, como se estivesse pensando em algo a ser feito... e a porta da taverna se abriu novamente.

Ela voltou a cabeça para a entrada, deparando-se com o mesmo elfo de trajes coloridos e dotes poéticos que conhecera a bordo do Briss. Trazia consigo a bela e valiosa harpa, que podia ser visualizada em meio às suas coisas, e, de pé junto a uma mesa logo após ganhar o recinto, lançou os olhos em volta como se procurasse algo ou alguém. A moça desejou, do fundo de sua alma, que não se tratasse de si. O que menos queria era companhia e, a julgar pela anterior cortesia do rapaz, não seria de se surpreender se ele a houvesse seguido até ali e agora desejasse estar de novo em sua presença. Claro que tudo podia não passar de uma coincidência e o bardo ali se encontrar somente para beber algo ou obter informações, mas, ao longo de sua vida – e reforçado pelas atividades que exercia – Lisah aprendera a desconfiar de tudo e todos em primeira instância. Era uma postura que garantia, além de segurança, sua própria sobrevivência.

A jovem, temerosa, apenas abaixou a cabeça de forma natural, uma discreta maneira de ocultar seu semblante dos olhos do indesejado recém-chegado... Mas então se lembrou de Kiche, que podia ser avistada com facilidade embaixo da mesa, e concluiu que sua estratégia de nada adiantaria. Logo ouviu passos sobre o assoalho vindo em sua direção e, levantando a face enquanto demonstrava falsa surpresa, a elfa deparou-se com a figura alegre de Killyk Eleniak.

- Olá! – ele saudou-a.

- Olá... – Lisah respondeu um pouco desconcertada, seus lábios se abrindo num sorrisinho. – Veio se aliviar um pouco do calor? Aqui é bem mais quente que em Astar, por certo.

- Sim, a idéia de beber algo para me refrescar é agradável... Mas também vim até aqui para falar com você, se não for incômodo, é claro...

- Não é – ela esclareceu ainda sorrindo. – Nunca estive aqui antes, talvez seja interessante ter alguém com quem conversar e dividir impressões.

Apenas a parte de nunca ter antes pisado no Reino Boreal era verdadeira. Enquanto o bardo puxava uma cadeira para se sentar, a moça lançou um rápido olhar para as mesas próximas. Numa delas, onde existia pequena aglomeração, o velho capitão de um navio mercante contava sobre quando arrebentara a mandíbula de um tubarão com as mãos nuas, quando a fera tentou abocanhá-lo durante um naufrágio... As crianças que compunham parte da platéia aparentavam acreditar. Em outra mesa, ao lado dessa, uma figura solitária, tronco e cabeça cobertos por um manto marrom, bebia a curtos goles um copo d'água, olhar fixo nas tábuas do chão, como se temesse erguer o rosto... Intrigante, ao menos. Depois Lisah visualizou uma parede, na qual haviam sido afixados diversos anúncios e avisos. Enquanto um documento com o carimbo do Exército informava ter sido extinguido o toque de recolher, cartas comerciais anunciavam mercadorias diversas e havia, também, um clássico pôster de "procura-se". Apesar do desenho ser fosco e malfeito, a observadora pôde nele identificar uma jovem de cabelos lisos que lhe caíam até a altura do pescoço, os dizeres no pergaminho sendo no mínimo instigantes:

Procura-se:

Por assassinato de homem em Tyrnan, durante último Festival de Outono. Atende por "Kirinak". Recompensa-se bem.

É, aquele continente tinha lá mesmo seus encantos...

- ...isso era o que dizia meu pai destas terras temperadas! – falou o elfo, encerrando uma explicação cujo resto Lisah ignorara totalmente. – E então? Está se dirigindo a algum lugar específico?

- Você está, de novo, querendo saber demais... – riu a elfa, pousando seus olhos sobre o rapaz por um momento, mas ainda atenta aos outros estímulos visuais no interior do estabelecimento.

- Ora, apenas desejo oferecer meus préstimos. Ouvi dizer que as estradas deste reino são perigosas, pois muitos dos monstros oriundos do Crepúsculo dos Deuses ainda vagam espreitando os viajantes. Deslocar-se em grupo parece melhor do que sozinha, não acha?

- Você é hábil com as palavras, mas não com seus motivos...

Após fazer tal afirmação, a jovem, bem habituada a prestar atenção em várias coisas simultaneamente, manteve os ouvidos agora de prontidão à conversa do bardo, enquanto seus olhos se moviam discretamente na direção da porta de entrada, mais uma vez aberta. Um sujeito humano de barba e cabelo curto, vestindo túnica cinza e tendo na mão direita um bordão, fora quem impelira a maçaneta, acompanhado – vejam só – de um lobo de tamanho pouco maior que o de Kiche. O estranho, de modo similar a Killyk pouco antes, também passou a examinar todo o interior da taverna buscando alguma coisa. Lisah só torceu para que sua fama não houvesse se propagado tão rápido a ponto de até uma pessoa local desconhecida vir procurá-la...

- ...falam coisas terríveis desses goblinóides! – devido ao excesso de elementos dentro do local, a elfa acabou perdendo de novo boa parte da fala do bardo. – Por isso viajar com alguém, de preferência uma pessoa que saiba usar armas, é algo quase imprescindível aqui em Behatar!

- E o que leva você a achar que sei usar armas? – indagou Lisah, começando a demonstrar aborrecimento em sua voz.

- Eu não falei nada de você, e sim de algum indivíduo local que poderíamos contratar e que soubesse manejar uma espada! – exclamou Eleniak, arregalando os olhos e logo depois abrindo um sorriso. – Te peguei!

A moça bufou. É, não deveria subestimar aquele proseador. Teria de focar nele suas atenções daquele momento em diante, ou acabaria cedendo mais informações sobre si que não deveriam, por nada, serem veiculadas. O elfo falava pelos cotovelos... Nunca desejou tanto que uma pessoa fosse tímida e comedida!

Foi quando ambos tomaram um susto. A figura do homem de túnica cinzenta que há pouco adentrara o lugar apareceu subitamente junto à mesa dos dois estrangeiros, nela apoiando suas mãos e se curvando para frente. Só então Killyk o percebeu, estremecendo. Até mesmo Lisah parecia atônita. O lobo do estranho foi cheirar Kiche embaixo da mesa e, ao mesmo tempo, seu dono disse numa voz séria e grave, alternando sua visão entre as duas cabeças de orelhas pontudas:

- Eu preciso falar com vocês.

Hachiko estava satisfeita. Conseguira alguns mantimentos para a expedição continente adentro por um preço bastante amigável num dos armazéns. As economias que lhe haviam sobrado após o financiamento da viagem do Briss mostravam-se bastante úteis, para não dizer salvadoras. Além disso, estava certa de que conseguiria mais dinheiro durante o trajeto até o norte, por meio de pequenos trabalhos ou favores que não demandassem tempo. Tomara para si, por exemplo, um pôster em pergaminho encontrado perto do quartel que oferecia uma boa recompensa a quem encontrasse uma tal "Kirinak". Caso topasse, pela estrada, com alguém cuja descrição física batesse com a da criminosa, não pensaria duas vezes antes de detê-la e entregá-la às autoridades. Tanto a elfa quanto o povo de Behatar sairiam ganhando.

Já não restava muito a ser feito naquele forte. Talvez Hachiko apenas se permitisse descansar por algumas horas sob a sombra fresca de uma árvore, como as existentes nos pequenos jardins do pátio, até que o momento planejado para sua partida viesse. Havia um diante do templo de Serinius, uma das plantas de copa vasta nele enraizadas sendo uma macieira que oferecia bonitos frutos à população. Visando também matar a fome, a elfa avançou até o local, certa de que o período restante até a retomada de sua missão seria tranqüilo...

No entanto, como se diz, ninguém pode prever Feger e sua Roda da Fortuna...

- Espere aí, deixe-me ver se entendi... – ponderou Lisah erguendo os braços, tentando analisar cada nuance da fantástica narrativa contada pelo humano, que haviam descoberto se chamar Caleb Rosengard. – Está dizendo que teve um sonho meses atrás, o qual acredita ser premonitório, e que nós estávamos nele?

- Exato – replicou o druida, agora sentado na companhia dos outros dois. – Você, o elfo aqui chamado Killyk, uma outra elfa que avistei lá fora antes de entrar e que viajou com vocês no navio, de cabelos prateados, e uma jovem humana de cabelo curto e estranha armadura. A Floresta Negra, meu lar, ardia impotente perante um mal avassalador que parecia ser representado exatamente por essa última moça citada. Eu a vi envolvida por uma aura vermelha, infernal. E alguém, que aparentava não ser nenhum de vocês, pronunciou a sentença "É tudo culpa do Macker". Desde então venho confiando meus passos a Wella na tentativa de evitar essa iminente catástrofe. E foi então que achei vocês, logo após ter chegado a Tileade.

A dupla de estrangeiros não sabia o que dizer. A elfa, em seu íntimo, conflitava duas possibilidades: ou o suposto druida era um doido varrido, ou então se tratava de um aproveitador que, fazendo uso de uma história mirabolante, vivia de aplicar em ouvintes ingênuos algum tipo de golpe. A primeira já podia ser confirmada devido ao teor absurdo do caso, já a segunda demandava mais algum tempo de conversa, para averiguar se o interlocutor faria algum tipo de proposta ou convite. Em sua vivência, Lisah já testemunhara falácias interesseiras como algum parente muito mal de saúde ou uma família em situação por demais miserável, mas salvar o mundo era nova. E sentia vontade de rir disso.

Já o bardo via-se confuso. Apesar de a si a narrativa de Caleb também soar muito estranha, estava inclinado mais a aceitá-la do que o contrário. Crescera ouvindo poemas épicos, registros líricos de façanhas e aventuras grandiosas que, por mais espalhafatosas que parecessem, haviam de verdade acontecido. Podiam duvidar do relato daquele druida, porém os mortais lançavam desconfiança sobre "Nemitus"? Desmentiam as histórias sobre o choro de Mihnire? Riam das narrativas tratando dos deuses e seu nascimento? Às vezes era necessário o passar dos séculos para que as coisas maravilhosas ocorridas no mundo alcançassem a condição de mitos consolidados, e era bem possível que no futuro o sonho de Caleb Rosengard também chegasse a esse patamar. Convinha por isso respeitá-lo e dar-lhe crédito. Sincero, Killyk se manifestou:

- Assusta-me apenas o fato de minha pessoa estar envolvida em visão tão aterradora, porém acredito em você, caro druida. É provável que façamos parte de algum plano maior elaborado pelos deuses, sendo sua aparição o sinal para que o abracemos e o sigamos conforme deve ser feito. Essa floresta em que você vive, e que apareceu queimando em seu sonho, é próxima da capital Borenar, correto?

- Sim, fica logo a oeste – respondeu Caleb tranqüilo.

- Pois bem. Eu me dirijo para a capital, com o intuito de participar da coroação do novo rei. Ela ocorrerá daqui uma semana, e como a distância entre este porto e Borenar é, numa marcha rápida, de seis dias, pretendo deixar Tileade o quanto antes para lá chegar a tempo. Adoraria tê-lo em minha companhia, Caleb. Durante a viagem podemos pensar numa maneira de evitar a desgraça por você prevista, e enfrentar qualquer outro desafio que o destino nos reserve.

- Será uma honra, Killyk Eleniak – o druida assentiu numa saudação com a cabeça.

- Minha amiga Lisah aqui não me disse para onde irá, mas caso também seja a capital, bem que poderia nos acompanhar...

A elfa se controlava para não atacar o abusado bardo ali mesmo. "Amiga" sua? Desde quando? Eles mal haviam conversado poucas vezes! Bufou de novo, cruzando os braços em cima da mesa. Passando a ignorar a conversa entre ele e Caleb, voltou a centrar seus sentidos no ambiente da taverna. O capitão continuava contando histórias tão absurdas quanto o tal sonho do druida, um grupo de marujos de Etressia há pouco entrara para desfrutar de uma rodada de rum... E a misteriosa pessoa encapuzada de antes, sentada não muito longe do trio, por algum motivo ocultava ainda mais a face com o manto, como se sentisse crescente perigo à sua identidade com o transcorrer dos minutos. Lisah sentiu-se desafiada. O que aquela criatura teria a esconder?

Nesse momento Rosengard, percebendo que a elfa olhava numa outra direção, voltou a cabeça para o mesmo rumo... e assim que suas pupilas miraram o indivíduo oculto sob a capa, seu corpo estremeceu e quase sentiu falta de ar. Uma intuição muito forte dominou seu raciocínio e reflexões, de modo que aquela silhueta, ainda que tivesse sua real forma totalmente desconhecida por si, pareceu-lhe envolvida, e muito, com sua própria demanda. Uma suspeita incômoda passou a cutucar sua mente, de início de maneira fraca, porém aumentando em intensidade a cada instante. Seus membros se retraíram, seu coração disparou. E, sem pedir qualquer opinião aos colegas de mesa, levantou-se, fez um sutil sinal para que Anuk permanecesse onde estava – próximo de Kiche – e avançou até o móvel onde a figura solitária permanecia... aparentemente trêmula.

Olhando-a de forma fixa, ao que a pessoa parecia, por debaixo do capuz, evitar de qualquer jeito retribuir do mesmo modo, semblante voltado para outra parte do estabelecimento, o druida simplesmente puxou uma cadeira e sentou-se ao lado do personagem incógnito, dizendo-lhe, sem qualquer cerimônia:

- Não sei explicar, mas... você me intriga.

Killyk e Lisah arregalaram os olhos, permanecendo onde estavam. A teoria do doido varrido ganhava mais um ponto a favor.

A pessoa encapuzada, por sua vez, encolheu-se no assento, o recuo da manta acabando por deixar suas mãos e parte dos braços à mostra... exibindo uma pele muito branca e dedos presumivelmente femininos. Apesar da reação nervosa, Caleb insistiu:

- Não se preocupe, apenas queremos saber quem é, e o que faz aqui. Não contaremos a ninguém.

- Não posso falar! – a figura, numa chorosa voz de garota, replicou agitada. – Vá embora, por favor.

O druida, no entanto, reagiu de maneira totalmente contrária: avançando de supetão sobre a misteriosa jovem – sem que ela, surpresa, tivesse tempo de recuar – agarrou-lhe o capuz e puxou-o para baixo, forçando-a a revelar a cabeça. Na mesa próxima, os dois elfos abriram a boca de espanto; até mesmo Lisah, que aparentava ser mais habituada a situações inusitadas como aquela. A moça de rosto antes oculto, agora mostrando ser claramente humana, conteve um grito diante da atitude do abusado rapaz, pois, apesar da raiva que sentia, não desejava chamar ainda mais atenção para si. Não aparentava ter mais que dezoito anos de idade – os contornos de seu semblante, em conjunto com os amedrontados olhos verdes, denotando o aspecto de alguém que acabara de deixar a adolescência. Possuía cabelos castanhos um pouco compridos, presos em duas tranças que lhe caíam até o início das costas. O corpo, sob o manto, parecia magro e um tanto desnutrido – evidência de que vinha passando dificuldades.

- O que é isto? – ela indagou nervosa num tom que tentava se manter baixo, enquanto Caleb recuava calmamente até sua cadeira. – Você não tem o direito!

- Eu apenas apressei as coisas, minha cara – ele afirmou num sorriso triunfante. – Não lhe daria sossego enquanto não se revelasse a mim. Acredite, há um motivo. E agora que pude vislumbrar sua face sem qualquer tipo de máscara, comprovo o que suspeitava. É necessário que eu lhe explique...

Rosengard, já habituado a todas as circunstâncias fantásticas que determinavam seus encontros desde que chegara a Tileade, aparentava encarar com naturalidade a situação – apesar de seus impulsos. Fazendo um sinal para os elfos com uma das mãos, chamou-os a se transferirem para aquela mesa; os dois correspondendo, ainda que um pouco temerosos. Anuk e Kiche também vieram, passando a cheirar a garota desconhecida por debaixo da mesa, coisa que não a agradou muito.

- Ela é a peça que faltava! – esclareceu o druida apontando para a jovem. – O cabelo está mais comprido e aparentemente não veste a armadura que identifiquei antes, porém o rosto é muito semelhante. Você também estava em meu sonho!

- Que sonho? – a pobre infeliz só se sentia mais confusa e assustada a cada instante. – Do que está falando? Quem são vocês?

- É você, não é? – Lisah perguntou subitamente, lançando sobre a misteriosa personagem um olhar bem sério. – Naquele pôster?

A elfa apontou com o olhar o cartaz fixado numa das paredes... e a humana, voltando-se discretamente para o mesmo, pareceu assustar-se ao encará-lo. Cobrindo a cabeça mais uma vez com o capuz, de forma rápida, virou-se em seguida de novo para frente e abaixou o semblante, fitando a madeira da mesa.

- Você é essa tal Kirinak? – quis confirmar Killyk.

- Sou... – ela admitiu timidamente, vendo que não poderia mais esconder seu segredo. – Mas por favor, não contem a ninguém...

- Nós não contaremos! – Caleb replicou num tom firme, mostrando à fugitiva que ela poderia confiar ao menos em si.

- Você realmente matou um homem? – o bardo inquiriu, olhos arregalados numa sincera demonstração de perplexidade.

- Foi um acidente... – Kirinak suspirou, novamente chorosa. – Se ao menos me dessem uma chance para explicar...

O assunto parecia causar grande dor na moça. Killyk, apesar de ser o mais temeroso em relação a ela, também aparentou ser o primeiro a reconhecer seu sofrimento, a expressão agitada abandonando sua face élfica para ceder lugar a uma consternada empatia. Lisah, que desde o navio vinha se mostrando um tanto fria em relação a assuntos que não lhe diziam respeito, endireitou-se no assento e, com os olhos fixos na humana, dispôs-se inteiramente a ouvir. Já o druida, menos aturdido, concluiu que a explicação de seu sonho poderia aguardar. A pobre garota devia estar passando por maus bocados, e nada custaria ouvir a versão que ela tinha dos fatos, ao menos por alguns poucos instantes:

- Quando bebê, eu fui deixada por meus pais na frente de um santuário das clérigas de Wella em Tyrnan, na parte oeste do continente. Acabei criada pelas sacerdotisas e desde cedo educada para me tornar uma delas assim que atingisse a maioridade. No entanto... não nasci para esse tipo de vida, uma existência tão rígida e regrada a ponto de eu nem poder sair às ruas da cidade. Sem contar que nem idolatro Wella ou qualquer outra dessas divindades impostas... Com isso, ao longo dos anos, foi crescendo em mim um intenso desejo de ir embora, abandonar aqueles muros para nunca mais voltar, ter minha própria vida... Meses atrás, durante o Festival de Outono em Tyrnan, minha esperada chance chegou. Mas nós nunca sabemos o que o traiçoeiro destino nos reserva... e, enquanto eu saltava através do muro para fora do santuário, acabei acidentalmente empurrando lá de cima um guarda embriagado que se lançou sobre mim... ele morrendo na queda.

Teriam as coisas ocorrido mesmo daquela maneira? Kirinak dotava suas palavras de uma triste sinceridade, que aos outros três ali presentes dificilmente soava como falsa. Ao que parecia, a trajetória da garota fora mesmo marcada pelo azar e pela tragédia. Ainda que houvesse sido mesmo um acidente, difícil seria provar sua inocência. E a julgar pelos pôsteres de "procura-se", não eram poucas pessoas que se encontravam em seu encalço. Situação realmente complicada.

- Desde então vaguei pelas estradas destas terras durante meses, procurando me afastar o máximo de Tyrnan, até vir parar neste porto – ela continuou. – Agora estou tentando juntar dinheiro suficiente para embarcar no primeiro navio que me leve de Behatar. Não posso permanecer aqui. Não antes que me esqueçam.

Ao concluir sua exposição, lágrimas passaram a escorrer por seu rosto pálido, num choro baixinho e sofrido. Todos os demais se compadeceram – até mesmo os lobos, aparentemente. Massageando um dos braços de Kirinak na esperança de tranqüilizá-la, Lisah voltou-se para um arrependido Killyk e pediu:

- Vá até o balcão e peça um pouco de água para acalmá-la.

- Certo, certo... – ele se levantou um pouco atrapalhado. – Já estou indo!

O elfo atravessou então a taverna, ignorado pela maioria dos outros fregueses, indo ter com o atendente. Sempre simpático, sentou-se junto ao balcão de madeira e, apoiando nele ambos os cotovelos, indagou ao homem magro de barba:

- Poderia me providenciar uma jarra de água?

- São cinco peças de ouro! – o balconista informou de modo grosso.

- Aqui estão – levando uma das mãos aos bolsos, o bardo em seguida empurrou cinco moedas douradas na direção do funcionário, que foi então pegar o líquido.

Enquanto ele se voltava de costas para Killyk, este pôde observar melhor o ambiente atrás do balcão do estabelecimento. Existia ali uma extensa prateleira, presa à parede, contendo os mais variados tipos de bebidas. As garrafas alternavam-se em tamanho, cor, formato, volume... compondo espetáculo bastante divertido aos olhos. Os rótulos também variavam muito entre si, indo de rústicas e velhas etiquetas carcomidas a detalhados entalhes em alto relevo com letras e figuras estilizadas. Um desses recipientes, em particular, prendeu a atenção do bardo. Seu vidro era de um anil fosco, lembrando as próprias profundezas marinhas. Voltado para o elfo havia, desenhado sobre o revestimento, a figura de um humanóide traquinas de cauda de peixe e tridente em mãos, apoiado em cima de um rochedo e tendo ao seu lado o curioso nome da bebida: "Tritão Azul". Tanto a figura quanto as palavras pareciam convidá-lo...

Era fato que não costumava recusar uma boa dose de licor ou vinho – até mesmo hidromel. Quando o pai ainda era vivo, em suas andanças por Astar, tinha o hábito de com ele dividir muitas canecas e garrafas quando se envolviam em festividades; o álcool, ao subir-lhes à cabeça, tornando-se até fonte de maior inspiração para os versos. O balconista retornou com a jarra de água... e Killyk pensou que não faria mal tomar um pouco daquelas bebidas. Animaria-lhe o espírito, e, estando mais espirituoso, poderia até alegrar a então inconsolável Kirinak. Lançando novo olhar sobre a prateleira, decidiu-se pelo Tritão Azul. Estava inegavelmente curioso em relação a ele.

- Senhor, gostaria de uma caneca daquela bebida ali! – o bardo apontou para a garrafa azulada.

- O Tritão? – o atendente replicou um pouco incerto. – É um licor bem forte, rapaz. Tem certeza de que não prefere algo mais leve?

- Será apenas uma dose... Não se preocupe.

- Bem, como é um dos meus mais antigos... O preço será dez peças de ouro.

Sem se incomodar com o valor normalmente considerado caro – correspondendo a uma garrafa inteira de outras daquelas bebidas – Killyk somente colocou as moedas sobre o balcão, aguardando ser servido...

Enquanto isso, na mesa em que permaneceram Lisah, Caleb e Kirinak, um incômodo silêncio predominava. A ausência de palavras contribuía para que a clériga fugida se tranqüilizasse, embora constrangesse um pouco os outros dois. Não sabiam ao certo, agora, o que fazer diante da revelação da moça. Enquanto o druida via-se na necessidade de revelar a ela o teor de seu sonho premonitório, não sabia como dizer tê-la presenciado, nele, dominada por uma aura maligna que a tudo aparentava destruir. Já a elfa alternava os olhos entre a face encapuzada e cabisbaixa da humana, e o cartaz anunciando a recompensa para quem a encontrasse. Era difícil pensar, por certo, o que fazer numa situação como aquela. E ninguém mais se manifestar só parecia piorar o quadro...

- O seu amigo está demorando a trazer a água... – Rosengard afirmou sem muita discrição.

- É mesmo... – concordou Lisah, lançando um olhar intrigado para o balcão.

Killyk Eleniak já havia tragado dois ou três goles do Tritão Azul.

E, num lampejo inebriado, concluiu que deveria ter dado ouvidos ao balconista.

O licor desceu incandescente por sua garganta tão habituada a recitar e cantar. Parecia fogo mágico – algo avassalador. Tão logo a ardência passou, o elfo emitiu um soluço, resultado da chegada da substância ao seu estômago vazio... e o álcool da potente bebida subiu-lhe à mente. Sentiu-se um tanto zonzo, extremidades do corpo dormentes... as portas da criatividade, sempre vigiadas pelas lindas musas, abrindo-se de uma só vez diante de seu limitado "eu". Foi tomado por uma incrível vontade de entoar canções festivas, de declamar a todos ali versos perfeitos que eram lapidados dentro de sua imaginação pelas mãos agitadas da excitação alcoólica. Encontrava o êxtase, o ápice da inspiração. Sorrindo, visualizou pequeninos tritões anis voando pelo ar, atingindo o topo de sua cabeça e passando a brincar por entre seus cabelos arrepiados, espetando seu cocuruto com os tridentes sem causar qualquer dor ou incômodo ao bardo. Seu sorriso transformou-se numa risada debochada, achando graça em sua própria imbecilidade: a constituição física dos elfos não suportava nem uma dose completa daquela bebida tão forte!

Voltou a cabeça para a mesa em que haviam permanecido seus recém-conhecidos companheiros. Lisah e Caleb tinham caras fechadas, provavelmente estando bravos consigo. Eram mesmo uns chatos! Fitou a seguir Kirinak. A infeliz jovem possuía marcas de lágrimas em seu rosto, ainda derramando algumas sem que ninguém naquela taverna parecesse com ela se importar. Ele tinha de alegrá-la, afastar dela aquela tristeza esmagadora que a oprimia! Por isso viera para aquele continente, fora a missão dada por seu pai no leito de morte: trazer alegria ao mundo! E isso incluía livrá-la de tanto pesar, de tanto arrependimento e desespero...

Sem controlar suas palavras, virou-se de novo para o atendente e indagou, num tom quase cantado:

- Você conhece Kirinak, que fugiu do santuário de Wella em Tyrnan?

- Quê? – o funcionário replicou de modo um tanto confuso. – Ah, sim, a garota dos pôsteres de "procura-se"? Não, não que eu me...

Enquanto falava, o balconista lançou seus olhos novamente sobre o cartaz numa parede, em seguida observando os fregueses do estabelecimento àquele momento... e detendo-se na direção da jovem encapuzada que até então não percebera. Sua face estava mais à mostra do que antes, banhada em prantos, mas com seus contornos e parte do cabelo plenamente identificáveis. Memorizando-os, o homem tornou a contemplar o semblante retratado no pôster... e sentiu seu coração disparar.

- Encontrei! – berrou, num violento impulso, enquanto apontava com um braço para a suspeita. – A procurada pelo assassinato em Tyrnan está aqui na taverna!

Todo o recinto se aquietou. Os freqüentadores voltaram de imediato sua visão para a mesa em que Kirinak se encontrava com os demais – estes ficando praticamente congelados diante da enorme gafe cometida por Killyk. A clériga, por sua vez, também ficou sem reação, incapaz de pensar em qualquer estratégia que pudesse tirá-la daquela situação. Sua sofrida fuga aparentava ter chegado ao fim...

Mas não se dependesse do astuto Caleb Rosengard.

Levantando-se de sua cadeira de forma rápida, o druida apanhou em seguida o mesmo móvel e arremessou-o até o centro da taverna, mais precisamente na direção de alguns fregueses que já ameaçavam se erguer de suas mesas visando à procurada. Logo depois, agindo o mais depressa possível e causando surpresa naqueles ao seu redor, passou a gesticular com as mãos de uma maneira esquisita, realizando movimentos aparentemente padronizados no ar enquanto falava numa estranha língua:

- Wella, mo bandia, lig dom a chruthú ceo tiubh anseo chun éalú ó na Breathnaíonn wicked!

E, num processo no mínimo curioso, uma espessa névoa, semelhante a vapor, partiu do corpo do druida, envolvendo toda a área em torno de si a mais de cinco metros de distância... impedindo assim que quase todos no interior da taverna conseguissem visualizar qualquer coisa. Até mesmo Lisah, com sua visão élfica superior às das demais raças, pouco conseguiu se orientar em meio à repentina neblina. Aqueles que antes tencionavam avançar sobre Kirinak de imediato recuaram – alguns até se jogando sobre o assoalho aos gritos alegando ser aquilo bruxaria das mais perversas. Uma completa desordem se instalou no estabelecimento, a maior parte das pessoas caminhando às cegas enquanto os poucos que haviam ficado para fora da obscuridade tentavam retirar dela os demais. A região do balcão permanecera nítida, o atendente, com as mãos na cabeça, assistindo desesperado ao que ocorria, enquanto o embrigado Killyk, ainda bebericando o licor, mantinha-se sentado rindo, sem se dar conta do que provocara.

- Permaneçam próximas a mim! – bradou Caleb para Lisah e Kirinak.

As duas avançavam através da névoa como podiam, mãos estendidas para frente com o intuito de tatear Rosengard. Logo cosneguiram encontrá-lo, identificando com seus dedos a suja túnica, e permaneceram próximas ao seu vulto centralizado em meio à neblina mágica. Em seguida o druida, certificando-se de que ambas o acompanhavam de perto, assim como os lobos, dirigiu-se até o balcão, trazendo até ele a nuvem ambulante. O funcionário, assustado, abaixou-se atrás da estrutura e gritou, impotente diante da vil ameaça que aqueles estranhos pareciam representar:

- Guardas! Guardas!

A situação só parecia piorar. Enfurecido, Caleb esticou uma mão e agarrou o bardo de forma brusca por um dos braços, puxando-o a soluçar para junto do grupo. Trôpego, totalmente afetado pelo alto teor alcoólico do Tritão Azul, o elfo, ainda a rir, deixou-se arrastar cambaleando pelo humano, que se dirigia agora para a saída do estabelecimento. A balbúrdia ali continuava, fregueses correndo, saltando e caindo entre berros e xingamentos, tentando escapar daquela névoa que aparentava a tudo envolver. Devido ao desespero, sentiam até que ela os sufocava – apesar de esse efeito não passar de conseqüência do nervosismo que os dominara.

Sem maiores contratempos – apenas tendo de se desviar de um marinheiro desgovernado perto da porta – o grupo chegou ao lado de fora. E grande foi a surpresa dos moradores, vigias e funcionários do porto – sem contar os tripulantes dos navios ali ancorados – quando viram um misterioso e inexplicável foco de neblina deixar a Gaivota Azul e se deslocar pelo pátio do forte como se uma das nuvens do céu houvesse há pouco descido para tomar um gole de rum.

O destacamento de soldados, mobilizado pelos clamores do taverneiro, já se dirigia em peso até o estranho fenômeno, os sentinelas abandonando seus postos nos muros e torres e iniciando um cerco em torno do monte de névoa – espadas, arcos e bestas empunhados. Transeuntes fugiram apavorados; barracas de comércio foram quase de imediato fechadas por seus donos, dobradas aqui e ali e logo não passando de retos pedaços de madeira. O pânico se instalava em Tileade. E, para causar ainda mais receio, o apito do chefe da guarda ressoou repetidamente pelo local, seus silvos estridentes tentando manter a ordem e também intimidar aqueles que causavam problema. Estes, por sinal, ainda não-identificados atrás da cortina de fumaça que os protegia.

Caleb, no centro da neblina, logo viu que ele e seus acompanhantes já se encontravam cercados pelos combatentes. Apesar de não ousarem penetrar no vapor místico – um truque natural de fácil realização, ideal para situações como aquela – o druida sabia que reagiriam de maneira hostil caso vissem que a pequena nuvem tentava fugir por alguma direção. Junto a Rosengard, Lisah e Kirinak continuavam sem nada enxergar fora da névoa, mantendo-se apenas próximas àquele que a gerava. Já Killyk seguia soluçando e soltando indesejadas gargalhadas. Num dado instante até exclamou:

- Olhem só, quem fechou as janelas? Ficou tudo escuro!

Parando de se mover, o druida, olhando ao redor, tentou estudar todas as possíveis alternativas. Talvez melhor fosse, realmente, abrir caminho por entre os soldados até o portão, antes que acabasse sendo fechado. Graças à obscuridade gerada pela névoa, os guardas teriam dificuldade em atacá-los com precisão, não sendo muito difícil passar por todos. Quando ia avisar os outros sobre seu plano, porém... a neblina aos poucos foi se dissipando, como se sugada pelo próprio ar ao redor... e, ao dar por si, ela não existia mais. Ele, Kirinak, Lisah e Killyk, todos próximos e retraídos, encontravam-se agora plenamente visíveis e pegos de surpresa pelo desaparecimento da favorável camuflagem. Caleb reprovou-se mentalmente. Havia se esquecido não ser capaz, ainda, de sustentar aquela magia por mais de um minuto...

- Parados! – ordenou um dos vigias, apontando sua espada para os suspeitos.

Agora sim eles estavam enrascados...

Hachiko, até então sentada confortavelmente à sombra da macieira existente diante do templo de Serinius, costas junto ao tronco da árvore, percebera também a confusão iniciada dentro da taverna e agora, intrigada, observava seus desdobramentos no centro do pátio do forte. Sem perder a calma e pouco se surpreendendo com o que testemunhava, cortava uma maçã em fatias usando uma bonita adaga dourada cujo cabo era cravejado de jóias – obra-prima das Ilhas Kartan – enquanto acompanhava os acontecimentos. A estranha nuvem escura que deixara o interior do estabelecimento, estendendo-se até uma certa distância em volta após passar pela porta de entrada, de modo repentino se desfizera; justamente quando os fugitivos em seu interior acabavam de ser cercados pelos sentinelas do local. A elfa não conseguia ver com muita clareza devido a estar um tanto longe da cena, porém alguns dos envolvidos pareciam ter viajado consigo a bordo do Briss. A julgar pelas vestes coloridas, um deles devia ser o bardo que cantara uma tradicional canção élfica no convés durante uma das noites. Uma pena ele agora ser preso, mas... era a vida.

Mordiscando um pedaço da fruta, Hachiko cogitou fechar os olhos e esperar quieta o término daquela bagunça para que pudesse deixar Tileade sem problemas; quando, projetando sua visão sobre o cerco uma última vez... viu uma garota humana de capa e cabelos castanhos que lhe chamou atenção. Associando isso ao fato de o grupo até então aparentemente tentar escapar do forte, a jovem, por via das dúvidas, apanhou de novo o pergaminho de "procura-se" que tomara para si... observando a face nele desenhada. A semelhança com a pessoa visualizada agora em carne e osso era inegável. Sua possível recompensa estava ali, em vias de conseguir fugir ou ser obtida por outras mãos...

Levantando-se rapidamente, maçã jogada ao chão, a elfa tratou de armar-se de imediato com seu arco. Não podia deixar aquela oportunidade passar...

O quarteto antes oculto pela neblina via-se agora, realmente, sem muita chance de fuga – ao alcance das espadas e sob a mira dos arcos e bestas brandidos pelos guardas. Os lobos, acuados, rosnavam para os oponentes – e talvez por isso muitos deles hesitassem em efetuar um movimento efetivo de aproximação. Todos os indivíduos no centro do cerco também demonstravam tensão, em menor ou maior quantidade, sendo que a mais afetada pelo nervosismo era, sem dúvida, Kirinak. Quase abraçada ao druida, a clériga procurada tremia, prestes a voltar a choramingar. A situação parecia apenas piorar para si, e não via mais esperança alguma de escapar à prisão... mas surpreendeu-se quando a elfa de cabelos negros, tatuagem de lua na testa e trajes brancos, que por sinal achara muito bonita, chegou mais perto de si, olhos mantidos na direção dos vigias e braços prontos, aparentemente, para sacar algo oculto dentro de seu traje. Levando o rosto até um dos ouvidos da jovem humana, Lisah cochichou, demonstrando inesperada confiança:

- Fique tranqüila. Eu darei um jeito de nos livrarmos desta.

- Como? – a outra replicou incerta, voz igualmente baixa.

- Quando eu mandar, você correrá rumo ao portão do forte.

- Correr? Mas e os guardas?

- Confie em mim. Apenas corra quando eu ordenar. Cuidarei do resto.

Era difícil para Kirinak crer que aquele plano daria certo, mas a elfa denotava tamanha segurança em sua fala, que ela julgou ser prudente lhe dar o benefício da dúvida. Talvez fosse, realmente, a única oportunidade que teriam para sair daquela situação. Caso fosse pega, ao menos teria tentado. É, valia a pena...

Nisso, um soldado de uniforme ligeiramente distinto dos demais adentrou o cerco – usando armadura de desenhos um tanto diferentes, a mesma se adequando perfeitamente ao seu corpo musculoso, e tendo uma capa azul às costas. A face era rígida, um bigode espesso e loiro aparentando até reforçar sua autoridade. Tratava-se do chefe da guarda, espada numa mão e apito na outra.

- É melhor terem uma boa explicação para isto, ou serão todos detidos por desordem! – exclamou ele abrindo caminho entre seus homens. – E, pelo que vejo, estão ainda por cima acobertando uma criminosa!

- Não sou uma criminosa! – Kirinak rebateu por impulso.

- Eu não o contrariaria na presente situação... – Caleb murmurou, aconselhando a garota.

O bardo, por sua vez, continuava bêbado. Cambaleando junto aos companheiros, resmungava coisas sem nexo – totalmente alheio ao grave quadro. O clima piorou. O chefe da guarda avançou cerco adentro, disposto a desarmá-los e prendê-los um a um... e Lisah concluiu que aquele era o momento. Voltou-se discretamente para Kirinak, deu-lhe uma piscadela... e sussurrou:

- Vá!

A clériga estremeceu, acreditando que seus pés não a obedeceriam e ela permaneceria ali, estática; porém conseguiu superar a insegurança e, sem olhar para trás... pôs-se a correr esbaforida rumo ao portão, o mais rápido que conseguia. Tinha de escapar. Tinha de confiar na elfa!

- Ela está fugindo! – bradou o comandante, apontando para a jovem. – Peguem-na!

Dois soldados se adiantaram, espadas em punho, para fechar o caminho da procurada... Mas não contavam – e nem ela mesma – com o que aconteceu a seguir. Assim que Kirinak começou a correr, Lisah aguardou dois segundos para partir em seu encalço, como se desejasse igualmente impedi-la – e tanto o druida quanto o embriagado Killyk creram nisso. Quando a dupla de sentinelas avançou para deter a clériga, a elfa saltou, ultrapassando-a como se houvesse errado um bote que visava derrubá-la... e levou ao chão, ao invés dela, um dos combatentes, sua armadura e arma se chocando com as pedras do pátio em baques férreos.

- Hei! – ele berrou, confuso. – O que está havendo?

- Ai, desculpe... – disse Lisah, com o rosto vermelho, enquanto se erguia. – Não foi minha intenção...

Então esse era o plano dela? Bom, surtira efeito, pois com o que fizera uma brecha fora aberta para que Kirinak continuasse fugindo. Desviando da estocada do outro soldado, prejudicado em seu ataque devido a ter se atrapalhado com a queda induzida do colega, seguiu correndo rumo ao portão – a ainda consideráveis metros de distância. Sem hesitar, sem retroceder, tentando ignorar o medo e a falta de fôlego, assim como os passos dos guardas que agora a perseguiam, para atingir seu objetivo... Até deparar-se, logo à frente, com um jardim de algumas árvores... junto a uma delas havendo uma aparente elfa, intrigantes cabelos prateados... e munida de arco voltado em sua direção, corda esticada, flecha pronta para ser disparada.

- Não, espere! – a clériga tentou argumentar.

Em vão, porém. O projétil foi lançado, Kirinak sendo obrigada a pôr em prática o pouco que aprendera nos treinamentos físicos com Elya para rolar pelo chão – abaixando-se a tempo de não ser atingida. Assim se esquivando, tornou a prosseguir rumo à saída do forte, a flecha que errara o alvo felizmente não atingindo nenhum daqueles que a perseguiam. A agressora misteriosa, no entanto, não se deu por vencida, inserindo outra seta no arco e a disparando. Ainda sem olhar para trás, a fugitiva sentiu-a passar bem próxima de si, quase atingindo seu tronco... indo se cravar numa das paredes do quartel. Ofegante, mas nada disposta a parar, a clériga persistiu... e atravessou o portão, começando a desaparecer de vista pela estrada levando ao norte...

Caleb, Lisah e Killyk também testemunharam o sumiço de Kirinak – ainda que este último sem um pingo de clareza. Os guardas que a perseguiam detiveram-se junto ao portão, não tendo sido autorizados a abandonar sua base no forte. Por entre eles, no entanto, abriu caminho uma elfa de cabelos cor de prata, arco em mãos, partindo também pela estrada no encalço da suposta assassina. Aparentemente era a mesma personagem que os outros dois elfos haviam visto de relance a bordo do Briss – ainda que o bardo agora estivesse bêbado demais para conseguir fazer tal associação. O chefe da guarda chamou de volta seus comandados com um assoprar do apito, dispondo-os em fila e passando a selecionar um pequeno destacamento para partir atrás da fugitiva. Já o trio de forasteiros, ainda imóvel no pátio, permanecia sob a vigília de alguns sentinelas. Foi quando Lisah mais uma vez se manifestou:

- Nós não temos nada a ver com ela! Fomos pegos de surpresa quando se utilizou de algum tipo de magia para criar aquela névoa e escapar da taverna, onde fora reconhecida. Acabamos tendo o azar de estar no lugar errado e na hora errada, podemos garantir.

A lábia da elfa, como Rosengard vinha constatando, era mesmo admirável. Até Anuk pareceu olhar para si com uma expressão de concordância em relação a seus pensamentos. Ao terminar de compor o grupo de cinco soldados que de imediato deixou Tileade para realizar buscas nas cercanias, o chefe da guarda aproximou-se dos três estranhos e afirmou, bastante sério:

- É possível que vocês estejam falando a verdade. Assim como podem não estar. Não descarto a possibilidade de serem cúmplices da criminosa, tendo favorecido sua fuga.

- Dê-nos uma chance de provar nossa inocência nesse incidente – pediu Lisah, mais séria e convicta ainda.

- Concordo com a minha amiga aqui, meu caro – apoiou o druida. – Sejamos justos.

- Hic! – soluçou Killyk, sendo ignorado.

O chefe da guarda coçou o queixo em dúvida, encarando cada um deles, ao que a elfa tornou a dizer:

- Nós nos dispomos a procurar a suspeita pelas redondezas, e trazê-la aqui caso a encontremos. Para garantir não ser apenas uma desculpa com o intuito de irmos embora impunes, pode ordenar que um ou mais de seus homens siga conosco.

Bela proposta. Seriam mais pessoas procurando a criminosa, aumentando assim as chances de detê-la. Aqueles forasteiros possuíam inclusive lobos, que poderiam farejar o rastro da procurada. O comandante estava realmente disposto a aceitar. Desejava impor uma condição a mais, porém:

- Certo, mas um de vocês fica aqui, para garantir que não tentarão nada. Caso não retornem dentro de algumas horas, essa pessoa será detida imediatamente.

Cabível. A questão era... quem ficaria para trás?

- O dia hoje está tão bonito! – exclamou o ébrio bardo, apontando para o céu azul e quase caindo para trás ao perder o equilíbrio. – Queria ter asas como um pardal e voar por entre as nuvens! Hic! Oh, que bonito...

Lisah e Caleb trocaram um olhar de acordo... e sorriram.

Kirinak corria, corria e corria. A estrada de terra parecia interminável; os arbustos e árvores de ambos os lados aparentando representar enorme ameaça, como se a qualquer momento estendessem seus galhos para capturar a fugitiva, conservando-a imobilizada até a chegada dos guardas do forte. A verdade era que, desde a noite de sua escapada do santuário de Wella, tudo parecia conspirar contra si. A tendência vinha se mantendo...

Após mais alguns minutos de carreira desenfreada, a clériga viu-se completamente sem ar e com suas pernas doendo a tal ponto que não conseguiria mais dar um passo sem descansar um pouco. Vencida pelas limitações de seu corpo, ela parou – um pouco mais tranqüila por julgar ter aberto boa vantagem sobre seus perseguidores – tomou ar, e saiu do meio da estrada, dirigindo-se até alguns ciprestes num de seus lados. Examinando as plantas, chegou a cogitar se esconder atrás delas até conseguir fôlego o bastante para voltar a correr, mas logo viu que a vegetação não era alta e não lhe renderia bom refúgio. Voltou sua atenção, então, para as árvores ao redor, não muito elevadas e de copas fartas... Era o que procurava!

Fazendo uso da experiência adquirida escalando as árvores do jardim do santuário quando mais nova, Kirinak, após uma ou duas pisadas em falso, conseguiu subir pelo tronco de uma delas sem muita dificuldade, alojando-se e ocultando-se, como podia, em meio à sua folhagem, ao atingir o topo. Por entre as aberturas da cortina esverdeada, a garota conseguia observar com relativa clareza o aspecto da estrada, sendo capaz de detectar a chegada de inimigos antes que eles presumivelmente a percebessem. Estava disposta a ali permanecer pelo mínimo de tempo necessário, até ter condições de continuar...

- Você vai descer daí, ou terei de derrubá-la à força?

Levando grande susto, que a fez agitar-se em meio à copa e com isso derrubar dela algumas folhas, a clériga constatou, ao olhar para baixo, que a mesma elfa de cabelos prateados de antes se encontrava aos pés da árvore, arco apontado para si. Pôde agora examiná-la mais de perto: tinha os olhos levemente puxados, diferente da aparência élfica padrão que conhecia – representada por Elya. E a visão dela devia ser muito boa para ter conseguido enxergá-la ali, além de ter acompanhado seu rastro com incrível eficácia. Bem, não havia muito que fazer agora... apenas tentar dialogar:

- O que você quer comigo?

- Eu tenho um pergaminho aqui informando haver uma boa recompensa para quem entregá-la às autoridades! – a adversária foi direto ao ponto.

- M-mas... eu não fiz nada!

- Não vim aqui para te julgar. Apenas quero levá-la de volta ao forte e receber o dinheiro! Desça logo daí.

- Não, por favor...

- Vamos, ou serei obrigada a usar mais algumas flechas... Desta vez lhe garanto que irei acertar!

- Você é tão bonita... e me parece também tão sábia, pelo modo como fala! Por favor, escute-me. Eu não matei aquele homem. Foi um acidente. Estava tentando apenas poder viver minha vida sem regras, sem imposições. Você não é natural deste reino, é? Então, como viajante, deve saber bem o que é ser livre, poder perseguir seus sonhos longe do jugo de pessoas que não a entendem. Eu lhe imploro... deixe-me ir!

Sim, a elfa entendia bem. E a humana realmente pareceu ter mexido num ponto fraco da arqueira. Ela manteve a arma apontada para o alto da árvore durante mais alguns instantes... e por mim abaixou-a, rosto também cabisbaixo. Será que a procurada conseguira transparecer sinceridade suficiente em suas palavras para convencê-la? Teriam as duas histórias parecidas, de algum modo? Isso a clériga ainda não seria capaz de responder, apenas suspirando aliviada por perceber que sua perseguidora aparentemente desistira de capturá-la. Falando agora num tom de voz bem diferente, todo o aspecto de imposição nela presente tendo agora se esvaído, ela pediu de forma calma, tornando a erguer os olhos levemente marejados:

- Desça. Não lhe farei mal.

- Mas...

- Pode confiar em mim.

Sentindo firmeza na desconhecida assim como antes sentira em Lisah – algo que lhe gerara bons frutos – a moça tranqüilizou seu coração e saltou da árvore, pousando de pé diante da elfa. Esta lhe estendeu então uma mão e se apresentou, sorrindo:

- Meu nome é Hachiko.

- Prazer – a outra correspondeu de modo tímido. – Sou Kirinak.

A alguma distância atrás, na mesma estrada, quatro indivíduos caminhavam lentamente, precedidos por um casal de lobos que, atento, farejava o caminho. Estes, como é de se supor, eram Anuk e Kiche – os quais, depois de instruídos por seus donos, pareciam agora seguir o rastro ali deixado por Kirinak. Quanto ao quarteto, dois deles eram Caleb e Lisah, lado a lado, andando atrás da dupla de guardas de Tileade destacados por seu comandante para acompanhá-los. O par de soldados parecia representar completos opostos entre si: o primeiro, cabelos grisalhos, entre seus quarenta e cinqüenta anos, demonstrava maior experiência e boa habilidade em combate armado, observando e ouvindo tudo pelo trajeto com o máximo de prontidão, pronto para golpear algo com sua espada – mortalmente – a qualquer momento. Já o outro, franzino e moreno, acabara de passar dos vinte anos e por certo era um recém-recrutado à tropa. Brandindo seu sabre da forma mais desajeitada possível, o mesmo inclusive já tendo caído de sua mão algumas vezes desde o forte, parecia contemplar tudo de maneira assustada, incerto sobre como agir quando o perigo surgisse. Um novato que ainda tinha muito a aprender...

De qualquer modo, ambos, inclusive o mais maduro, aparentavam ser adeptos de hábitos descuidados, já que caminhavam à frente do druida e da elfa, totalmente à mercê de algum ataque que tentassem desferir pela retaguarda. Estes, aliás, vinham planejando desde Tileade uma maneira de derrubá-los e verem-se livres. Aguardavam apenas o momento certo...

- Vocês são de onde? – perguntou o mais velho aos forasteiros.

- Astar – Lisah replicou seca.

- Do norte de Behatar – Caleb respondeu também sem muito entusiasmo. – Floresta Negra.

- Da Floresta Negra? – o sentinela mais novo riu. – Ninguém consegue viver no meio de um lugar selvagem como aquele! Você é o que, um druida?

Rosengard preferiu manter-se calado diante da suposição...

- Os lobos de vocês parecem bem determinados a encontrar a assassina... – observou o soldado mais experiente.

- É, eles são bons nisso... – Caleb murmurou.

O guarda deu uma breve risada, em seguida tornando a focar sua atenção no caminho adiante. A elfa e o druida, por sua vez, trocaram um olhar de cumplicidade. Talvez aquele fosse o momento esperado. Fazendo um leve gesto com a cabeça, Lisah apontou para o bordão de madeira de Rosengard, este assentindo. Era a arma ideal para nocauteá-los, por certo.

Avançaram mais alguns metros pela estrada, os soldados no ápice da distração... até que Caleb, puxando ar para os pulmões, investiu com o bastão contra o guarda mais velho – alvo prioritário por se mostrar melhor em combate. O golpe atingiu-o em cheio na nuca, seu corpo desfalecendo de imediato e encontrando a terra do caminho num baque metálico, devido à armadura. Poeira foi erguida e o som mostrou-se um tanto alto, os dois atacantes já se preparando para lidar com o surpreendido combatente novato... mas este, por mais incrível que pareça, não percebeu a queda do colega. Ao invés disso, continuou caminhando tranqüilo como se nada houvesse acontecido – e para ele, de fato, assim as coisas se achavam. A sorte sorria inesperadamente para a dupla de suspeitos. Seria bem mais fácil livrar-se do guarda restante do que haviam suposto...

- É uma tarde bonita, não acham? – indagou o recruta, alegre. – Se bem que aquelas nuvens escuras no horizonte dão a entender que logo virá chuva...

- Pois é... – Lisah anuiu num tom de enfado, lançando outro olhar estratégico para o druida.

Posicionando-se exatamente atrás do alvo, que seguia andando a acompanhar os lobos, Rosengard preparou o bordão em mãos para mais uma investida, efetuando-a ao deslocar de leve seu corpo para frente... e errando, a ponta do bastão passando a poucos centímetros da cabeça do jovem – chegando até a resvalar em seus cabelos, sem que ele no entanto percebesse.

- Ah, parece que estou sentindo um vento nas minhas costas, é chuva mesmo que vem vindo, hehe! – riu o tolo vigia.

- Eu diria que está mais para tempestade... – murmurou Caleb.

Mais alguns passos depois, o bordão singrou de novo o ar... tornando a errar. Contribuíam para tais fracassos tanto o ritmo incerto do soldado ao se deslocar, quanto a falta de costume do druida em utilizar seu bordão como arma. Ele começava a se irritar... porém não podia desistir. Após fitar brevemente uma impaciente Lisah, segurou firme a haste em suas mãos, dispondo-se a fazer daquela terceira tentativa a decisiva...

- Vocês estão quietos, o que...

Justo quando Rosengard moveu o bastão para atacar, o guarda se voltou para trás e enxergou a tempo a ameaça contra si. Demonstrando reflexos rápidos, o alvo conseguiu se abaixar, evitando o golpe. Logo depois, trêmulo, ergueu sua espada para reagir, mantendo-se numa postura defensiva.

- Não sairão livres desta! – ele ameaçou demonstrando incrível nervosismo, sem acreditar em suas próprias palavras.

- Oh, sim, nós vamos.

A afirmação foi feita por Lisah, que surgiu repentinamente ao lado de Caleb... com uma espada, sacada não se sabe de onde, na mão direita. O sabre era extremamente bonito, possuindo cabo prateado e lâmina longa, nela gravadas diversas inscrições na língua élfica. A mulher apontou a arma para a garganta do soldado – mantendo-a estendida a poucos centímetros de tocá-la – e falou ao novato de forma amedrontadora, sua voz e seu rosto dominados por espantosa agressividade:

- Você nos deixará ir, ou sofrerá as conseqüências. Não nos subestime. Somos bem piores que a tal suspeita de assassinato. Basta ver o que fizemos há pouco com seu amigo. E se ousar contar a verdade sobre o que houve aqui ao chefe da guarda do porto ou qualquer outra pessoa, nós o encontraremos em qualquer lugar que estiver, e o puniremos por ter uma língua grande.

Aquela elfa só vinha surpreendendo Caleb mais e mais – talvez até chegando a assustá-lo um pouco. Já no referente ao sentinela, podia-se dizer que ele se assustara muito. Quando a agressora fez referência a seu companheiro, o recruta olhou para trás, só então percebendo o colega de destacamento caído metros antes na estrada: desmaiado ou, na pior das hipóteses, morto. Ambos os lobos, agora, rosnavam para si. Tremeu ainda mais, suando frio e com seus olhos emitindo um brilho de pavor ao encararem os de Lisah...

Até que, vencido pela covardia, o guarda emitiu um berro, soltou sua espada – quase a atirando longe – e colocou-se a correr desesperado de volta pelo caminho, rumando até Tileade. Realmente tinha muito que aprender...

- Isso que eu chamo de poder de persuasão! – exclamou Rosengard, aliviado.

- Não foi nada... – suspirou a elfa, guardando a espada numa bainha extremamente bem-escondida sob suas vestes brancas que antes pareciam nada ocultar. – Ele era um fraco. Só teremos agora de tomar mais cuidado pelo trajeto, levando em consideração também haver uma outra patrulha vinda do forte pelas redondezas.

Nisso, Anuk e Kiche já prosseguiam pela estrada, voltando a farejar o rastro de Kirinak.

- Vamos! – apontou Lisah.

E, tornando a utilizar seu bordão somente como apoio para caminhar – função que não exigia de si habilidades cuja falta o colocaria em risco – o druida seguiu-a.

Mais à frente na estrada, junto à árvore onde há pouco Kirinak tentara se esconder, ela e Hachiko, sentadas silenciosas perto de alguns arbustos, descansavam um pouco para logo seguirem adiante. A elfa de Kartan garantira estarem seguras fazendo isso – comprometendo-se até a defender a clériga fugida com seu arco e suas flechas se visse necessário. Era incrível como o ímpeto da estrangeira mudara em relação à procurada, desistindo de capturá-la para agora se prontificar a protegê-la. Recordando-se mais uma vez de sua fala implorando por clemência, a humana tornou a imaginar o que movia aquela bela arqueira, e o que possuíam em comum para tamanha empatia ter sido gerada. Achou melhor não perguntar nada a ela, todavia. Era curiosa por natureza, mas fazer indagações poderia acabar irritando-a e mudar a opinião dela a respeito de si. Encontrava-se numa condição em que não deveria, de forma alguma, irritar os poucos que a ajudavam. Seria por demais delicado...

Súbito, Hachiko levantou-se da relva e, ágil como uma lebre, apontou o arco para o sentido da estrada de onde tinham vindo, já com uma flecha em seu bojo. Com o coração a palpitar ansioso em seu peito, Kirinak também se ergueu e, temerosa, estreitou os olhos para tentar visualizar quem vinha pelo trajeto – coisa que a elfa já conseguira determinar com clareza graças à sua visão superior. Uma pequena quantidade de poeira era levantada pelos passos dos dois recém-chegados; um homem e uma mulher, aparentemente. Chegaram mais perto, podendo ser então melhor identificados: a clériga reconheceu-os de imediato como o eremita estranho e a elfa bonita da taverna do porto, ambos despreocupados – ainda que atentos – e sem sinal de quaisquer perseguidores. Já Hachiko determinou ambos como parte dos envolvidos na confusão ocorrida em Tileade, a elfa de cabelos negros e tatuagem na testa sendo uma das viajantes do Briss. Faltava ali, apenas, o jovem elfo de vestes coloridas...

- Então aí estão vocês! – sorriu Lisah, aproximando-se.

Já o druida constatava como a Roda da Fortuna era brincalhona, pois se reuniam novamente, com exceção do bardo, todos os presentes em seu sonho profético – agora em suposta segurança. Tinha apenas de aguardar o melhor momento para explicar tudo melhor a eles; principalmente a Kirinak, que ainda desconhecia os detalhes e ignorava poder vir a se tornar uma entidade maligna em meio a uma floresta em chamas. O importante era que o destino aparentava conspirar para permanecerem juntos, e assim deveriam se conservar. Caleb esperava, desse modo, evitar a calamidade que tanto o perturbava desde que fora por si prevista...

- Eu tenho de agradecer a vocês por terem me ajudado a escapar... – disse a suspeita de assassinato, tímida, com os olhos fixos no chão. – Mas não quero gerar complicações a vocês. É melhor que sigam seus próprios caminhos, enquanto tento seguir para um outro porto em busca de um navio...

- É bom estar mesmo agradecida, pois realmente nos arriscamos para salvar sua pele! – afirmou Lisah, simpática apesar da frase um tanto dura.

- Sim, de fato – concordou Rosengard, batendo com seu bordão contra o solo. – Principalmente a senhorita Lisah aqui, que encenou uma bela queda sobre um dos guardas durante o cerco.

- Aquilo não foi nada... – falou ela num tom evasivo, tentando desviar o assunto. – Mas vejo que acabou auxiliada por mais alguém...

A elfa morena se referia claramente à de cabelos prateados, que só então abaixou seu arco. Mantendo um semblante sério, ainda que não tão hostil aos desconhecidos, manifestou-se:

- Apenas fiz o que achava certo, tanto antes quanto agora. Creio que devemos refletir sobre o que Kirinak falou: vamos então cada um seguir seu próprio caminho?

Questão difícil. Caleb desejava realmente que eles não se separassem, pois havia sido uma dádiva poder encontrar e reunir as pessoas de seu sonho – ainda que faltasse uma delas – de maneira tão simples, quase por acaso. Queria permanecer junto delas para poder conhecer melhor cada uma, compreendendo quem eram, o que faziam e o que visavam – dessa maneira sendo capaz de entender e prevenir a catástrofe com a qual sonhara. Tendo isso em mente, deu sua opinião:

- O que o destino une por intermédio dos deuses, não cabe aos mortais separar. Para mim, deveríamos ficar juntos após termos nos encontrado em tão pitorescas circunstâncias. Não importa para onde irão. Caso continuem em grupo, eu os acompanharei para onde quiserem viajar.

Certo. Os demais se entreolharam, aguardando quem seria o próximo a se decidir. Kirinak fechou a cara por alguns instantes, a menção a "deuses" não a tendo agradado nem um pouco. Lisah tomou a palavra, mas não para se manifestar claramente a favor ou contra à separação, e sim tornar as coisas mais claras:

- Não seria melhor cada um dizer para onde está indo? Quem sabe alguns de nós não possuímos o mesmo destino?

- Eu os seguirei para qualquer lugar, conforme havia dito – afirmou o druida.

- Viajo para o extremo norte do continente, numa demanda pessoal – explicou Hachiko.

- Eu tenho de seguir até a capital Borenar, para tomar parte nas festividades da coroação do novo rei – revelou Lisah. – E você, Kirinak?

A garota humana, de capuz erguido, coçou a cabeça, mexeu os pés de maneira insegura, e em seguida replicou:

- Eu realmente não tenho local definido para onde ir. De preferência uma cidade costeira onde eu possa embarcar para fora de Behatar. Pensei em rumar até Serinia, que fica ao norte, mas...

- Por que não tenta pedir perdão perante o novo rei? – Caleb indagou de repente. – Aí deixaria de ser perseguida!

Todos foram surpreendidos pela idéia do druida, mas ela era por certo bastante sábia. Era costume em quase toda Boreatia, durante a cerimônia de coroação de um novo monarca e nos primeiros dias decorrentes, o soberano distribuir benesses entre seu povo, desde o perdão de dívidas e pequenos delitos, até o abrandamento de penas para crimes mais graves. Se Kirinak procurasse o rei e implorasse por clemência, ainda mais alegando inocência e por ser tão jovem, era bem possível que ela lhe fosse concedida. Poderia ao menos tentar.

- É mesmo! – concordou Lisah. – Pode seguir conosco até a capital para falar com o rei. E você, Hachiko, já que viaja para o extremo norte, também pode nos acompanhar, se quiser. Borenar está bem no caminho.

A elfa de Kartan pareceu pensar por um momento, logo respondendo:

- Certo, eu os acompanharei. É melhor mesmo se deslocar em grupo por estas estradas hostis.

- Eu também vou... – disse uma encabulada Kirinak. – Apreciei a idéia de Caleb. Irei tentar...

- Então, podemos continuar? – inquiriu Rosengard.

A resposta da clériga foi cair sentada em cima da grama, ainda exausta. Nunca correra tanto assim em sua vida, e teria de passar mais algum tempo descansando. Já Hachiko, assoviando, encaminhou-se até a mesma árvore em que a fugitiva antes subira, sentando-se despreocupadamente sob sua refrescante sombra. Lisah, por sua vez, parecia impaciente em relação a algo, olhando ao redor como se quisesse fazer alguma coisa antes de prosseguir.

- Entendi, entendi... – murmurou o druida diante das manifestações dos novos companheiros. – Vocês querem passar um momento ou dois descansando, correto? Pois bem. Só não vamos demorar muito. Há uma outra patrulha de guardas do forte vistoriando os arredores, e não queremos ser encontrados. Estamos perto do início do trecho pavimentado deste caminho, porém. Se nos pusermos de novo a andar dentro de pouco tempo, será mais difícil para eles seguirem nosso rastro.

Ninguém pareceu dar muita importância às palavras de Caleb – cada um preferindo cuidar de seus próprios assuntos ou repouso. Anuk lançou um olhar desapontado para o druida; este, bufando, acabando por se sentar também em meio à relva. No horizonte, conforme o soldado novato há pouco apontara, realmente se reuniam nuvens escuras. Encontrariam chuva cedo ou tarde...

E, quando deu por si, apenas Kirinak e Hachiko continuavam ali... Lisah e sua loba tendo misteriosamente desaparecido.

Ignorando o que poderia ter a elas acontecido, simplesmente rebaixou o tronco, deitando-se na grama. Em contato com a vegetação, conseguia pensar melhor... e recobrar suas forças. Precisaria. Sabia que aquela aventura estava apenas em seu mais tenro início...

Ali permaneceram descansando por alguns minutos. Após esse tempo, partiu da própria Kirinak a iniciativa de levantar-se e chamar os demais a continuarem. Temia ter de escapar novamente de algum cerco – e dessa vez talvez não pudesse contar com a sorte. Hachiko e Caleb também se ergueram, preparando-se para tornar a andar, porém Lisah ainda não havia retornado de aonde quer houvesse ido. Teria abandonado o grupo às escondidas, preferindo na verdade viajar sozinha?

A resposta veio quando a elfa de cabelos negros reapareceu junto com Kiche, vinda de uma área mais densa da mata próxima à estrada sem que pessoa alguma a houvesse visto nela entrar. Encontrava-se, no entanto, um tanto diferente – como os demais logo notaram...

Ela usava agora trajes escuros, uma mistura de túnica e vestido na cor preta, de contornos totalmente distintos da vestimenta alva de antes. Além de mais detalhada e supostamente cara, a nova peça parecia melhor se adequar ao corpo atlético da elfa, a parte inferior possuindo aberturas segmentadas que deixavam mais visíveis suas pernas. A roupa, no entanto, não compunha a única mudança. Os cabelos de Lisah estavam agora muito mais longos, caindo-lhe em compridos fios sedosos até praticamente sua cintura. O primeiro pensamento dos presentes foi tratar-se de uma peruca, porém as mechas eram naturais demais... Até que Hachiko, mais acostumada àquele tipo de coisa devido às atividades escusas muito praticadas em sua terra natal, compreendeu o truque. A cabeleira da elfa antes estava presa num cuidadoso penteado que, ocultando embaixo de si mais da metade do cumprimento de seus fios, deixava entender que os segmentos visíveis se encontravam em seu tamanho normal, cortados nas pontas e se estendendo somente até seus ombros. Quando o penteado era desfeito, porém, os cabelos se desenrolavam em toda sua extensão, mostrando-se na realidade bem mais longos. Bastante arrojado, convinha se dizer.

- Mudando a aparência para evitar pôsteres de "procura-se"? – indagou Rosengard, sorrindo.

- Digamos que sim... – Lisah, não muito disposta a dar explicações, já se colocava a caminhar novamente pelo caminho junto com sua loba.

- Você é cheia de segredos, não?

Ignorando o druida, ela seguiu andando... passando a ser acompanhada pelos demais...

Como Caleb dissera, a estrada logo se tornou pavimentada, coberta por blocos de pedra ali fixados pelas mãos calejadas dos antigos centuriões do Império Boreal. Árvores e arbustos eram vistos de ambos os lados, as primeiras horas da tarde transcorrendo com a proximidade da chuva. Todos, exceto Hachiko, começavam a sentir fome – porém seria mais prudente cobrirem uma boa distância antes de pararem novamente com o intuito de comer. O único problema, no caso, era desconhecerem o caminho: Rosengard e Kirinak sabiam que o rio Northar encontrava-se logo à frente; porém ambos, na ida até Tileade, o haviam atravessado por outros caminhos, ganhando somente aquela que era a estrada principal quando já se aproximavam do forte ao sul. As duas elfas eram estrangeiras e, desconhecendo completamente o terreno, também não seriam de grande ajuda. A de cabelos prateados trazia consigo o mapa que lhe fora deixado pelo tio, mas não desejava consultá-lo na frente dos demais. Isso levaria a perguntas e não queria que qualquer outra pessoa além de si soubesse do tesouro que a aguardava...

Apesar de tudo parecer correr de maneira mais tranqüila, eles podiam jurar estar esquecendo algo... Que poderia ser?

- O bardo! – Lisah exclamou num dado momento.

- Que bardo? – Caleb rebateu.

- Aquele elfo de harpa, que se embriagou na taverna e causou toda aquela confusão... Ele permaneceu em Tileade como garantia de que não tentaríamos nada contra os guardas! Neste momento já deve ter sido detido!

- Vamos fazer algo por ele? – questionou Hachiko.

- Eu não acho que deveríamos... – Kirinak resmungou contrariada. – Se não fosse por ele eu estaria sem a metade dos problemas que tenho no momento. Por que teve de abrir a boca sobre mim para aquele balconista?

- Não conheço Killyk muito bem e por isso não posso afirmar com tanta certeza, mas pelo que pude depreender ao conversar com ele durante a viagem e depois de desembarcar, é um sujeito de bom coração – opinou Lisah. – Deve ter feito aquilo ao se atrapalhar devido ao álcool que lhe subiu à cabeça. Foi desastroso, convenhamos, mas não estou tão certa se intencional...

- Vamos voltar atrás dele ou não? – insistiu a elfa arqueira.

- Regressar até Tileade agora seria suicídio! – a clériga estava ficando ainda mais nervosa.

- Então continuemos! – o druida disse num tom firme, passos determinados. – Se já foi vontade dos deuses que todos nós nos encontrássemos uma vez, então creio que eles também trarão de volta Killyk até nós. Sigamos. Pode haver soldados em nosso encalço.

Assim o fizeram, Kirinak murmurando algo em discordância por um breve momento...

Avançaram então por aquelas paragens; o druida, que conhecia melhor a região, caminhando à frente. A paisagem de árvores e ciprestes persistiu por mais algum tempo, logo estes segundos passando a predominar sobre os primeiros. A floresta adjacente à estrada parecia se abrir, ser cortada por algo. Até que, depois de menos de uma hora a mais de trajeto, eles viram do que se tratava. Ou melhor, admiraram, pois aquilo merecia a mais reverente contemplação, em sua grandeza...

- Aqui estamos! – falou Caleb apontando com o bordão para as águas. – O rio Northar!

O vasto curso d'água constituía o principal rio do continente de Behatar, apresentando, àquele ponto, uma extensão de centenas de metros para ser atravessado. Nascia no Lago Comaey, bem ao norte, para depois contornar parte da área ao redor da capital Borenar, cruzar um segmento da Floresta Negra e, entre curvas e alternâncias em seu volume, ir finalmente desaguar na porção sudeste daquela península. Rio lendário, nomeado em homenagem ao Senhor dos Deuses, quando o Império Boreal sequer ainda existia e a antiga Terrodin era centro do poder naquelas terras. Rio que fora renomeado como "Tinner" – que quer dizer "forte" – pelos governantes da Liga do Norte, por não adorarem nenhuma divindade senão Swordanimus. Mesmo rio cujas águas, cem anos antes do Crepúsculo dos Deuses, foram convertidas em sangue como sinal das calamidades que ainda viriam. E também rio que, durante o Crepúsculo dos Deuses em si, teve seu volume de água assustadoramente aumentado, alagando todas as áreas vizinhas numa imensa onda que emitiu um estrondo soturno ao ir se desmanchar no mar. Manifestação máxima da ira de Northar contra os mortais que tanto o insultavam...

Um rio histórico, vasto, bonito e imponente. Que agora seria atravessado por aquele despojado grupo de aventureiros.

Felizmente, eles não teriam de nadar. Dando continuidade à estrada pavimentada, uma extensa ponte de pedra fora erguida acima do curso d'água em tempos imemoriais, seu comprimento levando a crer que tomaria dos viajantes alguns bons minutos para ser transposta. A estrutura erigida sobre um conjunto de bonitos arcos, no entanto, não levava diretamente à margem oposta, onde árvores frondosas e arbustos frutíferos podiam ser avistados. Conduzia, na verdade, a uma espécie de ilha de médio tamanho situada bem no meio do rio, sendo de se supor que dela partia uma outra ponte que concluía a travessia até o outro lado – ainda que não pudesse ser enxergada dali. O que bloqueava a visão, na formação de terra, era uma construção de dimensões consideráveis, aparentemente dois andares, com várias dependências e janelas, arquitetura típica de um castelo – ainda que não possuísse muros. O que mais chamava atenção nela, no entanto, era seu aspecto enegrecido, as paredes desgastadas e escurecidas pelo tempo, assim como os vidros quebrados e pregados com tábuas, conferindo-lhe preocupante caráter atroz e corrompido. Todos os integrantes do grupo sentiram certo receio ao encararem a edificação, ainda que à distância. Não parecia haver boa coisa ali...

- Onde estamos? – inquiriu Lisah, mantendo ainda a esperança de que alguém ali pudesse isso lhe esclarecer.

- Eu não sei, tenho apenas uma suspeita... – murmurou Rosengard encarando o caminho adiante, horizonte já plenamente dominado por nuvens negras que pareciam complementar a aparência perturbadora da misteriosa construção. – Para confirmá-la, teremos de atravessar a ponte.

- O que estamos aguardando então? – sorriu Hachiko, arco em mãos.

Iniciaram em seguida a travessia, seus pés pisando o milenar calçamento daquele trajeto de pedra que resistira a tantas calamidades e guerras... levando alguns instantes para notarem que alguém não os acompanhava. Voltando-se para trás, viram Kirinak, estática, de pé junto ao início do caminho, uma expressão preocupada no rosto e parecendo até uma estátua que desejava se fundir à estrutura da ponte. Impaciente, o druida retornou alguns passos e indagou:

- O que há de errado?

- Têm certeza de que esse é o caminho mais seguro para cruzar o rio? – perguntou a clériga, demonstrando grande inquietude.

- E que outro caminho você vê nas redondezas? Deslocando-nos pela margem em busca de pontes diferentes, com certeza seríamos surpreendidos pela patrulha do forte!

- É que pensei em fazermos uma canoa... ou uma jangada. Para atravessar pela água. Mais difícil de alguém nos pegar...

Lisah e Hachiko se entreolharam bufando. Caleb cruzou os braços, contendo sua irritação. E, somente de fitar os semblantes carrancudos dos companheiros, Kirinak concluiu que a idéia era inviável. Mesmo um tanto contrariada, pôs-se a segui-los. Melhor seria do que acabar deixada para trás sozinha...

Andaram cerca de cinto minutos e se encontravam quase na metade da ponte. Era incrível como os povos antigos haviam conseguido erguer tão admirável obra de engenharia, capaz de cobrir metade de um rio tão largo e possuir alicerces tão firmes em seu fundo. Os blocos de pedra compondo o caminho haviam sido todos encaixados com o máximo de esmero, não se encontrando na estrutura nenhuma falha, muito menos rachadura. Os arcos dispostos acima da água pareciam todos perfeitamente simétricos entre si, como se os construtores realmente houvessem calculado cada um aos mais mínimos centímetros. Prestando atenção a esses curiosos detalhes, o trajeto parecia ter seu tempo encurtado... Porém logo algo estranho foi visto à frente. Ou melhor, alguém.

- Quem é aquele homem? – perguntou Hachiko, a primeira a vê-lo devido à sua já aguçada visão élfica e ainda mais bem-treinada devido ao uso do arco.

- Não sei... – Lisah estreitou seus olhos. – Um estranho...

- Apenas continuemos a andar – recomendou Rosengard. – A via é pública, não me espanta encontrarmos outras pessoas nela.

As duas elfas assentiram, mas Kirinak, apesar de também seguir caminhando, tomou a traseira do grupo. Tinha um mau pressentimento a respeito daquele indivíduo, certa de que sua cota de azar aquele dia ainda não se esgotara. Caso algo de ruim acontecesse, ao menos seus companheiros de viagem a protegeriam de início... ou assim esperava.

Eles foram se aproximando do estranho – e os contornos deste se tornaram mais nítidos. Encostado de pé ao parapeito de um dos lados da ponte, tratava-se de sujeito bem-equipado, por certo ciente dos perigos que as estradas de Behatar então ofereciam e precavido devido a muito se deslocar através delas. Vestia armadura prateada, um pouco maior do que o aparente tamanho de seu corpo, por isso a ele não se adequando muito bem. Trazia uma besta pendurada às costas, uma bainha com uma espada longa à cintura e, assoviando, usava àquele momento uma adaga, provavelmente transportada numa de suas botas, para limpar a sujeira das unhas de uma mão. A canção desafinada que seus lábios sopravam logo chegou aos ouvidos dos recém-chegados, que também puderam observar sua face com clareza: pele branca, cabelos pretos curtos e um cavanhaque da mesma cor junto ao queixo. Os contornos eram amedrontadores. Característicos de alguém que vivia de matar seus semelhantes...

O grupo nem teve tempo de abordar o indivíduo para confirmar ou não suas más impressões, quando ele moveu-se da beirada da travessia, ainda assoviando, e posicionou-se de frente para os aventureiros bem no meio da ponte, com o claro intuito de detê-los ao menos temporariamente. Hachiko levou os dedos instintivamente à corda do arco e Lisah já se preparou para sacar algo de baixo de seu traje, quando o desconhecido exclamou, voz áspera, num breve e debochado riso:

- Desculpem, mas não posso permitir que prossigam!

Ótimo! Kirinak, um tanto trêmula, procurou se manter segura e escondida atrás daqueles que esperava poder chamar de "amigos". O homem estranho possuía mesmo um mau intento. Se ao menos os demais houvessem ouvido o conselho da clériga a respeito de atravessar o rio a bordo de uma jangada...

- E podemos saber o motivo? – indagou Caleb, parando de andar e apoiando-se em seu bordão.

- Não deixarei que passem por esta ponte com aquilo que é meu...

Dizendo isso, o hostil personagem guardou sua adaga numa das botas e apanhou algo que também carregava às costas, até então oculto aos outros viajantes. Tratava-se de uma espécie de pergaminho enrolado. Após desatar uma pequena corda que o prendia, ele abriu-o e estendeu-o na direção dos outros. Era mais um cartaz de "procura-se" retratando o rosto de Kirinak, igual aos encontrados em Tileade. A fugitiva estremeceu, cogitando sair correndo dali; mas ao lembrar-se de que por onde viera a patrulha de soldados do forte a procurava, concluiu que se fizesse isso acabaria cercada. Pensou até mesmo em jogar-se no rio, porém a correnteza e a profundidade, somadas ao fato de nunca ter realmente nadado, a desencorajavam de tal plano. Teria mesmo de permanecer ali, com aqueles recém-conhecidos aliados, e torcer para que resolvessem a situação da melhor maneira possível.

O ameaçador sujeito tornou a enrolar o pôster, guardou-o consigo e, com os lobos rosnando para sua pessoa, explicou:

- Não vou negar: sou um caçador de recompensas. Vivo como mercenário. Fui contratado para trazer viva uma clériga procurada por assassinar um homem em Tyrnan, durante o último Festival de Outono. Meroah Jent, sacerdotisa-mor do santuário de Wella, irá me pagar oitocentas peças de ouro por essa garota. Eu a venho seguindo desde os arredores de Garuny e, deduzindo que ela encontraria algum tipo de problema ao tentar embarcar num navio em Tileade, mantive-me nas redondezas aguardando que reaparecesse acuada... Só não contava que não viria sozinha...

O nome "Meroah Jent" fez Kirinak sentir calafrios. A situação já era nada boa para si, mas ser levada a visualizar novamente, em seus pensamentos, a autoritária figura da sacerdotisa-mor, foi o ápice para seus já maltratados nervos. Com lágrimas a lhe escorrerem dos olhos, bradou ao inimigo:

- Eu não fiz nada! Você não irá me levar!

- Ah, vou sim – ele respondeu, confiante. – E desejo fazer uma proposta aos seus amigos. Se eles me pagarem oitocentas peças de ouro, eu deixarei que você siga livre. Não é lá grande recompensa, e como você é "peixe pequeno", darei essa colher de chá. Mas caso não aceitem, então serei obrigado a lutar com vocês todos até poder levar embora a menina. O que me dizem?

A resposta do grupo foi empunhar suas armas. Caleb agarrou firme o bordão, erguendo-o novamente numa postura de luta. Hachiko levantou o arco já munido de uma flecha, mantendo-o apontado, com a corda esticada, na direção do mercenário. Já Lisah sacara a mesma espada ornamentada de antes... e uma segunda com a outra mão, possuindo aparência quase idêntica à primeira – apenas as inscrições em élfico na lâmina diferindo, ao que parecia. Passou a manter, assim, um sabre em cada punho. Somente Kirinak permaneceu sem ação, olhando ao redor aturdida buscando um jeito de se livrar daquela alarmante situação. Ao menos seus companheiros não a haviam entregado ao algoz, dispondo-se a defendê-la; mas isso não a deixava em estado muito mais animador. Talvez conseguisse correr pela ponte no sentido da ilha em meio ao calor da luta que ameaçava se iniciar...

- Já que vocês querem assim, então... – murmurou o caçador de recompensas, retirando sua espada da bainha.

E lançaram-se em combate.

A elfa de Kartan disparou de imediato o projétil do arco contra o adversário, este desviando num salto para a direita, a seta indo perder-se nas águas do rio. Pronunciando palavras numa língua estranha, aparentemente a mesma que antes utilizara para conjurar a névoa em torno de si, o druida ordenou que Anuk atacasse. O lobo avançou ligeiro rumo ao mercenário, que logrou repeli-lo num chute – o animal ganindo, mas tendo somente seu ímpeto aumentado. O inimigo tentou, em seguida, ceifar Rosengard com sua espada, porém acabou obrigado a se esquivar de uma investida dupla efetuada por Lisah e suas duas lâminas. Escapou de uma, mas a outra lhe abriu um corte num dos braços. Gemeu: o ferimento não fora tão superficial e teria de ser tratado. Antes, todavia, terminaria aquela luta que via como extremamente tola. Já Kirinak permanecia na retaguarda, junto à loba Kiche – ordenada pela dona a se manter naquela posição. A clériga, em seu temor, só não percebia que uma crescente brecha surgia diante de si, com os movimentos dos combatentes...

Hachiko lançou mais uma flecha, errando novamente devido à dificuldade em atingir o agitado alvo. Caleb, desta vez, teve mais sorte: aos poucos aprendendo a manejar seu bordão numa luta, desferiu com ele doloroso golpe contra o estômago do mercenário. Este parou, cuspindo sangue enquanto cobria o abdômen com ambas as mãos, tomado pela dor. Vendo-se capaz de aproveitar uma grande oportunidade, Lisah avançou contra ele brandindo as espadas... mas o oponente, notando a ameaça, saltou para frente num movimento desesperado... caindo sobre Kirinak e a levando ao chão tanto com o peso de seu corpo, quanto com a força de seus braços.

A clériga gemeu, ralando-se na inesperada queda. O algoz a agarrou com força, impedindo-a de escapar. Os demais, ao notarem a ação do caçador de recompensas, recuaram cautelosos. Erguendo-se da cobertura de pedras com um corte no rosto, o adversário também puxou a procurada para cima, forçando-a a levantar-se entre lágrimas. Abraçando-a pelas costas, sacou rapidamente seu punhal e levou a lâmina deste até a garganta da jovem. Agora ele tinha uma refém.

- Qualquer gracinha e ela morre! – vociferou.

Os outros três mantinham-se a certa distância, armas ainda empunhadas. A loba Kiche, ao lado do mercenário, rosnava para si de forma ameaçadora, porém só atacaria ao comando de Lisah. Ele, porém, deu importância maior do que devia à fera. Voltando para ela a cabeça e ordenando que se afastasse, enquanto mantinha Kirinak presa entre a adaga e seu tronco, descuidou-se dos demais oponentes por alguns segundos... que se mostraram fatais.

Fechando os olhos, a chorosa clériga somente escutou o zunido de algo passando numa intensa velocidade junto a um de seus ouvidos, a poucos centímetros da orelha... e, num cálculo menos preciso de disparo, ela teria sido levada junto. A flecha, felizmente, foi cravar-se somente no que havia atrás de si... o pescoço do caçador de recompensas. Afundando em sua carne, produziu de imediato jatos de sangue quente, que voaram inclusive sobre a própria Kirinak. Esta, felizmente, aproveitou-se do fato de que os braços do mercenário haviam se afrouxado e conseguiu afastar-se dele, unindo-se aos companheiros. O inimigo, por sua vez, tentou pronunciar alguma coisa, mas somente emitiu grunhidos engasgados enquanto perdia, pelo ferimento, mais e mais líquido vital. Esgotando-se suas forças, acabou cambaleando até um dos parapeitos da ponte, inclinando-se sobre ele... e por fim afundando no rio, tingindo de rubro a água ao redor de seu cadáver.

Hachiko abaixou o arco. Na terceira tentativa havia acertado. Arriscara a vida da fugitiva no processo... mas mostrara ter valido a pena confiar em sua mira.

Já a clériga, por sua vez, encontrava-se novamente sem saber como agir. Apenas encarava cada um de seus protetores com um semblante corado, lágrimas a ainda por ele escorrer... quando conseguiu gaguejar:

- O-obrigada...

Os demais apenas assentiram com a cabeça, ainda ofegantes devido ao combate. Era difícil para Kirinak acreditar que eles realmente haviam se arriscado por ela – até mesmo Hachiko, que horas antes tentara derrubá-la em Tileade. As coisas pareciam estar mudando... e a garota humana, pela primeira vez desde sua fuga do santuário, acreditava ter encontrado pessoas com quem podia contar. Ter encontrado amigos.

- Vamos! – Rosengard apressou-os. – Melhor sairmos daqui antes que apareçam mais mercenários como esse, ou guardas do forte!

Todos concordaram, colocando-se mais uma vez a andar. A segunda metade da ponte era vencida, a intrigante construção decrépita desenhando-se logo à frente, cada vez mais próxima. O que encontrariam nela? Essa era uma questão que, a cada passo, tentavam responder dentro de seus destemidos corações...

"Certa vez vi-me a indagar a respeito

da razão dos mortais se sacrificarem

por seus semelhantes, o que os move.

E concluí que nada mais é do que se

sentir no lugar do outro, querer

protegê-lo da mesma coisa

de que você se protegeria"

– Gertrun de Etressia, aprox. 151 ACD.

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