Entre Anjos e Demônios

By LillMissSunshine

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Num futuro pós-apocaliptico, anjos e demônios batalham entre si pelo controle do universo, utilizando os huma... More

Prólogo
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo XI
Capítulo XII
Capítulo XIII
Capítulo XIV
Capítulo XV
Capítulo XVI
Capítulo XVII
Capítulo XVIII
Capítulo XIX
Epílogo

Capítulo X

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By LillMissSunshine

Can't help myself from hurting you and it's hurting me. I wasn't always this way, I used to be the one with the halo. Now I'm starting to think maybe you like it.

I'm Not an Angel, Halestorm

- Isso tem de ser ela a decidir. Não acha, demônio?
Ezra pareceu ponderar, mas eu já o conhecia o suficiente para saber que raramente ponderava. A maior parte das vezes, apenas fingia que o fazia.
- Não propriamente, mas, como estou de especial bom humor, tendo em conta as circunstâncias, estou disposto a dar uma oportunidade a você – levou uma mão ao bolso da calça e, com a outra, pegou meu pulso. Com delicadeza, depositou o anel com seu símbolo na palma de minha mão. Não disse nada, então, procurei em sua face alguma emoção, algo que me dissesse o que sentia em relação a tudo aquilo. Nunca imaginei ver nele o que vi: súplica, pura e sem aditivos ou distorções.
- Ele matou um amigo, pequena Hannah – continuava Daniel. – Sabe-se lá o que pode fazer com você. Você é muito frágil para estar aqui.
Frágil. E ali estava, novamente, aquela palavra, utilizada durante toda minha vida para o mesmo, para me caracterizar. Ezra nunca me chamara de frágil ou fraca, pelo menos, não mais do que a raça humana em geral.
- Eu não sou frágil, Daniel. Não sou frágil ou fraca, e estou farta de servir de moeda de troca entre anjos e demônios. O que me garante que, se for hoje com você, amanhã já não estarei com outro demônio qualquer? Estou farta! Estou farta de que você não tenha coragem para me manter. Sim, eu sei que, aqui, nada me garante segurança ou estabilidade, mas tenho honestidade. Não me é prometido nada, não conto com nada – apertei o anel de Ezra na minha mão antes de pegar nele e o colocar no dedo, com um pedido de desculpas a Deus por não escolher os Seus e outro de ajuda, para não ter feito a escolha errada.
- Ele vai fazer você sofrer, Hannah – declarou Daniel. – Vai ficar despedaçada. 
- Ele nunca me prometeu nada.
- Acho que está na hora de você se retirar de minha casa, Domínio – disse Ezra e, para meu espanto, se aproximou de mim e colocou o braço à volta de minha cintura. – A escolha já foi tomada. Você perdeu.
Não conseguia encarar nem um nem outro. Talvez, a explosão me tivesse roubado toda a coragem, talvez, fosse o cansaço ou, simplesmente, não quisesse ver o desapontamento expresso em Daniel.
- Seus pais vão ficar muito tristes.
E aquela era sua última cartada. 
Todo o meu corpo se retesou ao som de suas palavras. Ezra me apertou com mais força percebendo isso.
Quando a porta se fechou com a saída de Daniel, Ezra se virou para mim e me abraçou, unindo nossas testas.
- Obrigado – disse, de olhos fechados.
Eu também fechei os meus, mas um pensamento me assombrava.
Pai. Mãe.

- Então, ouvi dizer que tiveram uma visita imprevista – entrou dizendo Lucas, no dia seguinte.
Nos meus primeiros tempos naquela casa, Lucas nunca aparecera, mas, aparentemente, suas visitas eram regulares e, nos três dias em que estivera apagada, ele passara muito tempo com Ezra, segundo Eliel.
- Não posso dizer que tenha sido totalmente imprevisto – afirmou Ezra, recostado no cadeirão da biblioteca, com um copo de whiskey na mão.
Lucas ocupou um lugar no sofá, junto a mim. Verdade fosse dita, Ezra e eu não falamos praticamente nada desde o seu agradecimento, no dia anterior. Não comentamos o que acontecera ou o porquê. Provavelmente, ele considerava suficiente a sua resposta de que me queria e de que queria me desvalorizar. E, então juntara o útil ao agradável e, fato era, não me sentia mal por isso.
- E você, humanazinha anã? Como se sentiu por ver seu anjo e mestre?
Ainda pensei em contrapor que minha estatura era totalmente normal para um humano, mas desisti.
- O Domínio Daniel já não é meu mestre – declarei e me pareceu ver, de raspão, um sorriso rasgado no rosto bonito de Ezra. Uma coisa mínima, apenas um vislumbre.
- É bom saber que tem sua lealdade definida – comentou Lucas.
- Claro, minha lealdade está com a raça humana, acima de tudo.
O primeiro impacto foi algo penoso para o demônio, que pareceu se engasgar, mas logo foi substituído por uma risada alta.
- Ela parecia tão dócil entanto dormia – assinalou.
- Parecia – concordou Ezra, que estava, excepcionalmente bem-disposto, mais feliz, mais aberto, mais… humano. Como se tivesse aberto uma janela naquela sua muralha de demônio.
- Bem, não foi para isto que vim – afirmou Lucas, acabado de rir.
- E desde quando você tem uma razão para vir até cá? – inquiriu Ezra.
O outro demônio assumiu uma expressão séria.
- Hannah, deixe-nos – e, novamente, a frieza comum na voz do Guardião da Luxúria e, agora, da Ganância. Toda a felicidade que espalhava no seu rosto minutos antes, transfigurou-se naquela máscara de seriedade.
Por mais que desejasse ficar e ouvir o que provocava semelhante mudança de humor, compreendia que eram assuntos de ambos e não deveria me meter. Levantei e me despedi, educadamente, antes de abandonar a sala.
- Há um grupo para Resistência na cidade.
A voz de Lucas fez com que eu parasse, já depois de fechar a porta.
A Resistência? Seria possível?
- Tem a certeza? – perguntou a voz de Ezra.
Não ouve qualquer resposta, portanto, presumi que Lucas apenas teria assentido com a cabeça.
- O que é que estão fazendo em minha cidade? – prosseguiu Ezra.
- Será que têm um profeta? – um profeta? Isso existia? – E, tendo eles um profeta, não seria útil sua ajuda?
- Não posso crer que está propondo pedir ajuda aos humanos!
- Estou! Se eles tiverem um profeta, serão extremamente úteis e não devem ter problemas em estar na fila da frente, enquanto grande parte dos demônios, e também dos anjos, está assustada demais para ir contra os Cavaleiros.
- Quanto a isso, já sei o que fazer. Aguardo, apenas, o momento certo para agir.
- Os humanos podem ajudar – quando dei por mim, a porta estava em minha retaguarda, um Lucas surpreso a meu lado e, pior, um Ezra irado na minha frente.
- Eu não tinha mandado você sair? – atirou ele, visivelmente irritado.
Decidi ignorá-lo.
- Lucas tem razão. Nós, humanos, somos escravos, não temos uma vida própria, somos aquilo que nossos senhores desejam que sejamos. Mesmo as pessoas da Resistência, se isso existe mesmo, não possuem liberdade total. São obrigados a fugir. Sabendo que o nosso mundo está em perigo, os humanos não terão qualquer medo de lutar. Não têm nada a perder. Sim, podem morrer, mas… - fiz uma pausa – quando se é escravo, morrer apenas significa libertação.
Recuperei o fôlego que o discurso me roubara. Saídas daquelas estavam se tornando mais frequentes e, para ser honesta, me sentia bem com elas. Sentia-me confiante e poderosa.
- Bonito. Comovente, até. Não duvido que os humanos não possuam uma tendência suicida, ainda que disfarçada, porque o suicídio não os levará ao paraíso que tanto cobiçam – à irritação já presente no rosto do demônio, se juntou a impaciência de quem não está acostumado a conviver com crianças, mas ainda maior, porque eu já não era uma criança. – Já me mostrou uma ou duas vezes essa tendência. O grande problema, humanazinha, é que um grupo de humanos parvos não fará nada a não ser irritar os Cavaleiros. Seriam destruídos como quando pisa uma formiga. Mesmo antes de repararem, estarão no purgatório e, depois disso, no inferno, ocupando nosso tempo – assinalou Lucas e a si próprio, e se aproximou de mim – quando deveríamos estar a preparar uma guerra. Entende agora?
Na última pergunta, sua voz assumiu aquele feito de fazer estremecer tudo à sua volta sem ele sequer se mexer.
Contudo, já não me assustava.
- Está arranjando desculpas! – acusei, dando um passo em sua direção.
Ezra fez um gesto teatral.
- Me perdoa, humanazinha – olhou em meus olhos, os dele tão escurecidos como a noite, irritados, amaldiçoados – mas, neste caso, não é necessário arranjar desculpas; elas, simplesmente fluem. Agora, com licença – com a boca fechada numa linha fina, passou por mim, com força e determinação, arrastando umLucas desconfortável com ele.
E eu estava mais furiosa do que nunca. Furiosa por ele menosprezar minha espécie, dizer que, basicamente, nem como distração servíamos. Enfurecia-me seu complexo de superioridade, a maneira afetada com que falava dos humanos, como se fosse o todo-poderoso, o rei do mundo. Aborrecia-me o modo obtuso como enxergava a vida e, em especial, aquela situação.
Necessitava, urgentemente, sair daquele local, de respirar um ar que não fosse contaminado com canela ou especiarias, com essência demoníaca. Escrava ou não, ninguém me impediu de sair pela porta principal. OuEzra não estava em casa ou, simplesmente, não se importava.
Fizera aquele caminho apenas duas vezes, então, talvez devido à frustração que banhava meu corpo, tudo começou a parecer igual entre si e extremamente diferente de tudo o que ligava as casas de Ezra e Daniel. Meus passos se tornaram mais cuidadosos à medida que eu percebia que estava completamente perdida. Nunca fora de me aventurar pela cidade. Daniel dizia que o mundo externo era perigoso. Ezra concordava, mas como eu me encontrava extremamente irritada com ele, sua opinião não interessava.
O sol brilhava. Naquela tarde, não haveria muitos demônios vagueando pelas ruas, contudo, não deixei de ir confirmando, com intervalos de poucos minutos, a presença de certo anel em meu dedo.
Ezra realmente me confundia. Achava os humanos fracos demais, sem qualquer importância, seres inferiores, no entanto, não queria aceitar nossa ajuda pela certeza de que acabaríamos todos mortos. Enfrentar-nos atrasaria os Cavaleiros, mesmo que só um pouco. Todavia, na balança mental de Ezra, as vidas insignificantes de um grupo de humanos pareciam valer mais do que uns preciosos minutos.
Não, não o compreendia.
Talvez minha cabeça já estivesse tão habituada às características físicas e motoras de anjos e demônios que, quando um grupo se seis indivíduos de aproximou, soube, exatamente, o que eram.
Demônios não vagueavam em bandos compostos por mais de três.
Anjos não possuíam toda a possibilidade de pecado no olhar.
Não cheiravam a especiarias e fogo, nem a hortelã e citrinos.
Eram humanos.
A tão famosa Resistência.
- O que está fazendo aqui? – perguntou um deles, aquele que parecia ser o chefe. Não era muito alto, mas era magro, de olhos e cabelos castanhos, possuía uma beleza estranha para um humano. Seu olhar era desconfiado, suspeito, o que me recordou certo demônio, mas estava apaziguado por traços de humanidade em sua expressão.
- Quem quer saber? – inquiri, ciente de que era a convivência com Ezra que me dera as cartas para responder de tal modo. Segura.
Ele ponderou sua resposta.
- Joshua – acabou dizendo.
- Hannah. Perguntaria a quem pertencem, mas não me parecem esse tipo.
Joshua sorriu sem sentimento.
- Não mesmo, mas tu sim. Anjo ou demônio?
Coloquei a mão onde estava o anel de Ezra no bolso.
- Não interessa.
Joshua ergueu as sobrancelhas, por um segundo.
- Está com medo de nós? Não precisa, afinal, somos todos irmãos – disse, com certa ironia. Mantive-me calada, estudando ele. – Muito bem – falou, de repente. – Vou deixar de merdas. Sabemos quem é você e quem é seu mestre.

Ezra’s POV
A busca pelos humanos se mostrara infrutífera. Nenhum dos lugares da lista de Lucas era o abrigo da Resistência, ainda que tivéssemos encontrado vestígios de presenças humanas em algum deles.
Só precisava tomar um bom banho quente, um copo de whiskey e uma certa humanazinha nua de frente para mim. Ela precisava de um castigo e eu queria repetir a dose, aliás, mal acabara e já desejara mais. Mas a visita indesejada do anjinho estragara meus planos e, depois, me sentira muito… Não, não posso dizer que me sentira… Envergonhado. Não, eu não me envergonho. O importante é que não voltara a tê-la debaixo de mim – ou em cima, ou de lado – e desejava-o, desesperadamente, mesmo que ainda estivesse totalmente enfurecido devido à nossa última conversa. Ela adorava meter os humanos dela entre anjos e demônios. Como se aguentassem, como se ela o suportasse, como se eu suportasse vê-la tentar.
Mas por que é que eu não haveria de suportar ver uma humanazinha tola tentar se suicidar? Porque era isso que ela era. Uma humanazinha tola.
Abanando a cabeça de frustração, entrei em casa e subi as escadas até seu quarto. Não esperei ou bati, simplesmente, entrei, afinal, aquela era minha casa.
- Hannah…
Minha voz se perdeu no vazio. Olhei para todos os cantos, entrei no banheiro e procurei por suas roupas ou pertences. Estava tudo lá. Tudo menos ela.
Voltei a descer e fui à biblioteca. Ela gostava de passar por ali e cheirar as páginas dos livros, apesar de não entender uma palavra do que estava escrito em muitos deles.
Mas também a biblioteca estava vazia.
- Fontes! Eliel!
Não foi preciso esperar para que eles aparecessem e ainda bem, porque eu começava sentindo um formigueiro estranho na coluna.
- Onde está a Hannah? – questionei mais alto que esperava.
Eliel abanou a cabeça de um modo que, noutra altura, eu teria considerado adorável, mas naquele momento, apenas me irritou.
- A humana saiu, logo após o senhor. Pensei que fosse com o senhor, por isso não a impedi – adiantou Fontes. Fechei os olhos para esconder a corrente de sentimentos que me acertava. Raiva, inquietação, ódio, medo. Quando dei conta, um jarro saía de minhas mãos e acertava na parede. O primeiro pensamento que me atingiu foi que me abandonara. Voltara para casa do anjo, mesmo depois de me ter escolhido em seu lugar.
- Covarde! Mentirosa! 
No momento em que aqueles insultos saíram de minha boca, me auto recriminei.
Suas coisas estavam no quarto.
Sem mais uma palavra, saí de casa.
Tinha que a encontrar.

Hannah’s POV
Fui apanhada de surpresa. Franzi minhas sobrancelhas enquanto meu raciocínio de reconhecimento começava.
- Então, parece que estou em ligeira desvantagem – declarei.
- Sabemos que você é escrava do demônio da luxúria e sabemos o que se está passando.
Tentei avaliar a possibilidade de um bluff.
- Da luxúria e da ganância – corrigi e Joshua lançou um olhar confuso. – Acumulação de cargos – expliquei. – E o que é que está acontecendo?
- Os Cavaleiros vão escapar.
- Têm um demônio convosco?
- Temos algo melhor, mas não vou revelar, para já.
Cauteloso. Não estava cem por centro no controlo.
- E o que querem de mim?
Joshua deu um passo na minha direção.
- Sabemos que o seu mestre está interessado em parar isto. Queremos ajudar.
Com aquela aproximação, consegui perceber que o humano era muito novo, muito mais do que seus olhos ou sua atitude faziam crer. Devia ter perto da minha idade, mas parecia mais velho do que eu alguma vez seria.
- Boa sorte com isso. Ezra nunca vai aceitar sua ajuda – queria virar-lhes as costas e ir embora mas algo naquela conversa não me deixava fazê-lo.
-É por isso que precisamos de você. Parece bastante íntima dele, deve conseguir convencê-lo.
- O que é que está insinuando?
Joshua fez uma careta de retenção e vi sua garganta se movimentar quando engoliu em seco, ou talvez, uma resposta.
- Podemos ajudar – acabou dizendo. – Nós temos… - fez uma pausa e seus olhos pararam num ponto qualquer, no chão. – Nós temos um profeta.
Olhei-o, fixamente, não querendo acreditar em suas palavras.
- Sou toda ouvidos.

Observei o menino sentado na minha frente, apoiado na mesa baixa para conseguir desenhar. Era muito pequeno. Joshua garantia que tinha, pelo menos, seis anos, mas parecia ainda menor. Tinha um aspeto frágil e olhos que pareciam vazios devido a sua cor tão pálida.
Era difícil acreditar que aquela criança fosse um profeta, contudo, também não podia descartar essa opção. Joshua mostrara alguns dos desenhos que o pequeno Ary fizera. Alguns eram bastante confusos e perturbadores, no entanto, era fácil distinguir, nos mais recentes, a figura de alguém com cabelos vermelhos, ao lado de outra pessoa, com um par de asas negras.
- Não fala? – questionei.
- Se o faz nunca ninguém ouviu – respondeu Joshua.
- E seus pais?
Ele encolheu os ombros.
- Não sabemos. Ele, simplesmente, apareceu.
De repente, Ary se levantou, deixando o desenho a meio. Se aproximou de mim, com a mãozinha levantada para tocar meu cabelo. De início, parecia algo renitente e indeciso, como se não tivesse bem a certeza se deveria se aproximar ou não. Olhando com atenção, acabou por encostar as pontas dos dedos nos fios e fechá-las ao seu redor, sem fazer força, apenas sentindo-os e estudando-os, como se fosse algo totalmente novo e diferente.
- Vem aí alguém – ouvi Joshua dizer, se colocando de pé, entre a porta e nós.
E ele tinha razão. Primeiro, veio o som, abafado e duro, se espalhando pela sala com um estremecimento. Aproximei Ary de mim e coloquei o braço à sua volta. Ele retesou, ligeiramente, mas parecia demasiado assustado para fugir.
A porta de madeira caiu no chão, com um baque surdo, e dela saiu fumo, tão negro que era difícil distinguir o que quer que fosse dentro dele.
Senti o odor a canela antes de o ver. As asas abertas e seu corpo nas vestes escuras se confundiam com o fumo, mas nem mesmo o cheiro a queimado conseguia disfarçar as especiarias. Quando já entrara na sala o suficiente para ser possível distinguir suas feições, engoli em seco. Sua expressão era pura cólera, desprovida de qualquer sentimento de compaixão ou caridade. Seus olhos estavam cortantes e frios, seus lábios serrados numa linha fina.
Talvez aquilo não tivesse sido assim tão boa ideia, atraí-lo ali, para conversar.
- Mas que merda é esta? – contrariamente ao que pensara, sua voz não estava alta ou gutural, daquele modo que fazia tremer toda a gente. Não passava de um sussurro, muito seco, muito calmo, tão gelado que a temperatura pareceu descer uns quantos graus.
- Ezra… - levantei do sofá, colocando o pequeno profeta atrás de mim. – Me deixa explicar.
- Explicar o quê? Explicar que fugiu de mim depois de ter dito que ficava?
Ele estava… magoado?
Passei por Joshua, a caminho de Ezra, mas este colocou um braço na minha frente. Afastei-o e continuei.
- E quem é este? Seu namoradinho humano? – questionou o demônio, com escárnio. – Um anjo e um demônio já não são o suficiente para você?
- Joshua, leve o Ary daqui – ordenei.
- Mas…
-Agora – não o encarei, mantive os olhos fixos no ser na minha frente. Quando ouvi a porta lateral bater, levantei a mão e atirei-a contra a face de Ezra.
Infelizmente, o movimento foi quebrado por um gesto seu, segurando meu braço.
- Nunca mais volte, sequer, a cogitar fazer uma coisa dessas – afirmou, sem qualquer tom na voz.
- Como me pode acusar? Não sabe de nada!
- Sei que fugiu de minha casa e veio para aqui!
Afastei o braço de sua mão, tentando manter a calma.
- Eles querem ajudar, os humanos. Eles sabem de tudo.
- Como podem saber? Contou para eles? – perguntou, com um ligeiro alvo de gozação.
- Eles têm um profeta, Ezra, podem ser úteis!
- Humanos nunca são úteis. Quando vai perceber isso? – declarou, recolhendo as asas.
- Se os humanos nunca são úteis, por que quis que eu ficasse com você? Por que é que me foi buscar a casa do Avaritia? Por que é que o matou por mim?
Check mate. 
Vi-o fraquejar. Notei o atraso em seu pensamento, o acelerar do bater de seu coração, a gota de suor a escorrer por sua têmpora.
Aproximei-me ainda mais, colando os lábios na sua orelha:
- Se os humanos nunca são úteis por que é que veio atrás de mim? Por que é que está aqui? – sussurrei.
No momento seguinte, estava contra a parede mais próxima, com os lábios comprimidos contra os de Ezra e suas mãos nas laterais de meu pescoço. Era um beijo de castigo e advertência. Servia para me calar, para não tocar mais na ferida e para me punir por tê-lo feito. Sua língua se movia violentamente contra a minha. Colocou uma perna entre as minhas e uma de suas mãos me apertou, com força. Meu lábio inferior foi puxado por seus dentes, senti sangue com a ponta da língua, mas não tinha a certeza se era dele ou meu.Ezra jogava sujo. Arranhei sua nuca com as unhas, fazendo pressão suficiente para deixar marcas vermelho-sangue.
Finalmente, soltou minha boca, me dando oportunidade para respirar, mas apenas o fez para chupar a pele sensível de meu pescoço, para morder o lóbulo de minha orelha. Coloquei as mãos dentro de sua camisa, a abrindo, deixando a pele de seus ombros e peito descoberta e suplicante pelo toque de meus lábios. Eu adorava seus ombros, suas costas. Eu adorava tudo dele. Adorava-o em demasia. Amava-o em demasia. 
Mordíamos, arranhávamos, nos magoávamos um ao outro. Por quê? Pela necessidade que tínhamos de libertar nossa frustração, nosso ódio momentâneo um pelo outro, toda aquela tensão acumulada. 
Segurei um gemido, meio de dor, meio de prazer, quando abocanhou meu seio, por cima da camisola, com força. Não podia gritar, pois o primeiro a fazê-lo perdia a jogo.
A última jogada de Ezra foi nítida, desleal e vencedora. Sem mais nem menos, colocou as mãos no meu traseiro, me erguendo, afastando a roupa interior que usava debaixo da saia, e entrando em mim, sem qualquer delicadeza ou carinho. Apoderou-se, novamente, de meus lábios, com mais garra do que antes, com mais ardor.
Aquele não era, simplesmente, Ezra. Não. Aquele era o Guardião da Luxúria, o demônio, o braço direito do Diabo e me torturava de um modo doloroso. Mas, ao mesmo tempo, delicioso.
Foi tudo tão rápido. Em poucos minutos, a intensidade de nossas ações resultava num estado de relaxe e flutuação partilhada. Ezra me baixou e encaixou o rosto na curva de meu pescoço. Estávamos ofegantes, cansados, mas aliviados e certos de que a nossa pequena guerrilha resultara num empate.
- Ezra, dê à eles uma oportunidade – murmurei, contra seu pescoço. – Dá-nos uma oportunidade.
Demorou tanto tempo para reagir que pensei que não tivesse ouvido. Quando se afastou, sua expressão voltara à máscara de fúria anterior, ainda que com um leve franzir de sobrancelhas de incompreensão.
- É isso mesmo que quer? – questionou de um modo tão intenso que estive prestes a negar, mas no fim, acabei por assentir.
Ele retrocedeu, rapidamente.
- Muito bem. Vocês, que se auto-intitulam de Resistência – chamou alto, – podem aparecer. Quero saber o que têm!
A primeira porta a abrir foi aquela por onde Joshua saíra e foi ele mesmo a passar por ela, na frente de um grupo de humanos.
- Vocês dizem ser capazes de combater quatro Cavaleiros do Apocalipse, não é? – num gesto rápido, deixou a camisa meio aberta cair por completo no chão e abriu as asas, mostrando aquela figura de anjo negro. – Quero ver o que são capazes de fazer a um demônio. Sou todo vosso. Não reclamarei, façam de mim o que quiserem.
Pasmei ao olhar para Ezra.
- O que quer dizer com isso? – perguntei, com a voz tremida.
- Isso mesmo que você ouviu – respondeu, me olhando por um segundo antes de voltar a encarar os outros humanos. – Mostre vossa força, vossa determinação, vossa vontade de vencer. Serei um boneco em vossas mãos. Façam de conta que sou um dos Cavaleiros, me torturem, escalpem, esfolem, queimem com ferro e fogo. Quanto mais longe forem, melhor saberei que estão preparados para a batalha.
- Ezra, não! – pedi, tentando me aproximar dele, mas sendo impedida por uma qualquer força invisível.
- Como pode ter a certeza de que não mataremos você? – questionou Joshua.
Não, ele não estaria, seriamente, ponderando aceitar aquela proposta ridícula.
- Precisam de mim, além de que não sou tão fácil de matar quanto isso – Ezra parecia demasiado calmo, demasiado confiante.
- Ezra, por favor, não faça isso… por favor – implorei, não contendo as lágrimas que começavam caindo por meu rosto.
- Muito bem. Aceitamos.
As palavras de Joshua gelaram meu coração.
- Joshua, não pode fazer uma coisa dessas… Ezra… Por favor… Não.
Repentinamente, dois homens agarram ambos os braços do demônio, que se deixou conduzir até a porta.
- Por que chora humanazinha? – inquiriu, olhando para trás, para mim. – Até parece que não foi você quem começou este jogo.

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