Anitta
Charlie ainda não deu notícias e isso só piora minha angústia. Os tremores voltaram, a dor de cabeça piorou. O neurologia passou uma série de exames e dois remédios, um para dor e outro para os tremores. Já tomei os dois e nenhum efeito diminuiu essa sensação.
Tomo uma xícara forte de café e deixo a televisão ligada só para não me sentir tão só. Já passa da meia-noite quando meu celular toca e dou um salto no sofá, olho o visor e o número é desconhecido... Será que?
Não sou de fugir de nada, então atendo, tentando manter minha voz forte o suficiente. Mesmo que por dentro o medo esteja a todo vapor e que os tremores tenham piorado, respiro fundo.
-Alô?
-Anitta?
Uma onda de alívio percorre meu corpo. Conheço a voz, mas não é dele.
-Heitor?
-Fico feliz que já conheça minha voz. Te acordei?
-Não, eu... Durmo tarde.
-Imaginei. – Ele pigarreou – Mesmo assim desculpe, eu só consegui ter tempo agora.
-Tudo bem, trabalhar de garçom deve te dar poucas horas de sono.
Ele riu.
-Você gosta de lembrar de como me conheceu.
-Tem algum problema com sua profissão?
-De maneira alguma, ao contrário, acho muito digno, mas eu sou várias coisas.
-Ah é?
-Você não faz ideia.
Ri, sem jeito. Ainda bem que ele não podia ver meu rosto. O que aquele homem queria comigo?
-Heitor, você não deve ter ligado apenas para verificar se eu estava acordada.
-Não.
-Então?
-Gosto do fato de você ser sempre tão direta.
-Deve ser uma qualidade em muitos momentos.
-Com certeza. Bom, vamos ao assunto, eu quero te convidar para um passeio.
-Outra barraquinha?
Ele gargalhou e eu acompanhei com uma risada tímida. Que facilidade ele tinha de expressar o que sente, quem dera eu tivesse um pouco disso em mim, falo o que penso nos momentos certos, planejo minhas atitudes e até minhas reações, mas expressar sentimentos? Isso não existe para mim.
-Não, apesar de ter certeza que você adorou nosso lanche.
-Adorar é um tanto exagerado, mas foi gostoso. – Afirmei – Suas conversas são sempre assim? Rodando em pontos aleatórios?
-Só com você. Acho que gosto de ouvir sua voz e prolongo qualquer possível assunto.
Engoli seco e dessa vez não tinha respostas.
-Então? Vamos passear?
-Por que eu iria? – Desafiei.
-Porque você gosta da minha companhia.
-E você é bastante modesto.
Rimos.
-Te pego amanhã, 7:00. Vista uma calça confortável, meia, tênis e uma blusa com manga, talvez aquelas que protegem contra o sol.
-Eu não me ouvi dizendo que irei.
-Você vai, afinal que graça tem ficar enfurnada no apartamento o dia inteiro?
-Por que está fazendo isso Heitor?
-Porque quero ficar perto de você.
-Só isso? – Pergunto me sentindo estranha.
-Apenas isso.
-Não conheço nada tão simples assim.
-Está na hora de mudar os olhares Anitta, nem todo mundo quer usar você.
Engoli seco, ele conseguia me deixar inquieta e tranquila ao mesmo tempo. Mas era sempre certeiro em suas palavras.
-Amanhã, às 7:00. Sugiro que vá dormir, o dia será longo, mas você vai adorar.
-Você não vai desistir?
-Não pretendo.
-Tudo bem.
-Isso é sua forma de dizer sim?
-Talvez.
-Até amanhã Anitta.
Não disse mais nada, mas pude sentir que ele sorria enquanto desligava o celular. Eu também sorria. O que estava acontecendo comigo?
****************
Café forte, remédio para dor e roupa conforme ele tinha dito, eu já estava na portaria do prédio quando um Fiat Uno bem antigo e preto, parou. Heitor saiu de dentro dele e eu fui em sua direção. Sorriso encantador e olhos cristalinos que pareciam escrutinar cada centímetro meu.
Ele usava uma calça de moletom azul escura e uma blusa de manga branca, uma combinação perfeita com sua barba por fazer e seu cabelo preto bagunçado.
-Você tem uma moto velha e um carro ainda mais velho? – Perguntei saindo do prédio.
-Bom dia querida Anitta, suas observações são bem pertinentes. Mas esse carro não é meu.
-Ah. E por que não vamos na sua moto?
-Gostou da adrenalina?
Dei de ombros tentando parecer indiferente e ele sorriu.
-Precisamos de espaço e da mala do carro.
-Tão misterioso.
-Gosto de preparar surpresas, vamos?
-Vamos.
Ele abriu a porta do carro para mim e deu a volta. Deu partida no carro e seguiu. Não conversamos durante boa parte do trajeto, Heitor ligou o som e uma música suave internacional tomou o carro. Relaxei pela primeira vez em dias, com a cabeça encostada no vidro da janela, apenas olhei a vida passando lá fora. Esse homem que tinha entrado tão de repente em minha vida, parecia me conhecer o suficiente para saber que eu precisava de espaço.
Saímos da cidade e pegamos a estrada, eu não sabia para onde estava me levando, mas conseguia me sentir segura o suficiente para não fazer perguntas. Ele pegou um acesso por uma estrada de terra, seguindo por alguns minutos, até parar num espaço entre árvores.
Ele desceu do carro e deu a volta para abrir a porta para mim. Depois abriu o porta-malas e tirou algumas coisas de dentro. Algo que parecia um estojo de golfe e uma cesta bem grande.
-Vamos?
-Isso é uma trilha?
-Basicamente, mas é pequena, nosso objetivo é outro.
-Qual?
-Você realmente precisa saber de tudo?
Soltei o ar, me sentindo uma chata. Ele foi à frente, eu seguindo com calma. Faço exercícios regularmente, mas nunca fiz algo parecido com uma trilha no meio do mato. Heitor parecia conhecer bem o caminho, seguindo com calma e precisão. Chegamos numa clareira e havia apenas o campo aberto, uma cabana caindo aos pedaços e troncos que pareciam bancos.
-Pronto.
-É isso?
Ele me fitou sorrindo.
-Uma parte sim. – Ele colocou as coisas no chão – Me dá um segundo, logo começamos.
Foi em direção à cabana e não demorou a voltar com um enorme alvo, daqueles circulares preto e branco com um ponto vermelho no meio. Ajustou uma ponta da clareira, depois veio até o estojo de golfe e abriu, mas não tinha tacos, eram flechas e um arco. Sério? Quis dar uma risadinha, mas me controlei, ele não podia saber que eu estava achando aquilo sensacional. Era convencido demais para que ceder tão fácil.
-Arco e flecha?
-Exatamente. Vou te ensinar.
-E onde você aprendeu?
Heitor parou de costas para mim, depois virou devagar parecendo sério.
-Com meu avô.
-Ah... Mas isso não é caro?
Seu rosto se preencheu de uma risada gostosa.
-Sempre me chamando de pobre. – Chegou perto e segurou minha mão – Existem coisas na vida que a gente não compra, nem precisamos nos preocupar em explicar. Essa é uma delas, apenas relaxe está bem?
-Você está me escondendo algo?
Os olhos deles pareceram escurecer por alguns segundos. Depois seu rosto se aproximou ainda mais do meu e eu pude sentir seu hálito de café, misturado com hortelã.
-Sabemos um do outro, o suficiente para estarmos aqui. Sem pressa Anitta, sem pressa.
Aquela proximidade estava me inquietando, ele não tinha se afastado, nem eu. Éramos dois teimosos insistindo em manter a firmeza do olhar, mas eu não podia confiar que conseguiria vencer aquela batalha, havia verdade demais no rosto dele e mentira demais do meu. Por algum motivo, não queria que ele enxergasse meus defeitos tão depressa. Afastei-me.
-Então quero aprender. Como começamos?
-Primeiro eu vou montar o arco e organizar as flechas.
Ele ficou alguns minutos vidrado no equipamento que parecia novo, a não ser por uma flecha, que era toda de madeira, com numa pena na ponta, como se fosse de índio. Interessante. Heitor era cheio de surpresas.
-Pronto, vou fazer algumas amostras para você. Observe o movimento dos meus braços e da minha cabeça, isso vai te ajudar.
Apenas assenti. Ele estendeu o arco e posicionou a primeira flecha, esticando e mantendo os braços alongados e retos, bem firmes. Observei seu rosto e os olhos pareciam ter adquirido um tom diferente de azul, ele estava concentrado e fechou um dos olhos a fim de verificar o alvo melhor. Depois abriu os olhos e largou a flecha, que alcançou o meio do alvo certinho.
-Uau!!!! – Falei e bati palmas no impulso – Você sabe mesmo fazer isso.
Ele me olhou sorrindo.
-Achou que estivesse mentindo?
-Talvez só querendo me impressionar.
-Também.
Sorri.
Ele fez o mesmo com mais duas flechas, dessa vez falando coisas que considerava importantes para um lançamento de flechas perfeito.
-Agora é sua vez.
-Já?
Ele assentiu e me puxou. Colocou o arco em minha mão, me ajudando a segurar da forma certa, seu corpo colado ao meu, pude sentir a respiração dele em meu pescoço.
-Segure firme, o arco é seu, você quem comanda.
Balancei a cabeça levemente concordando. Ele pegou a flecha e me ensinou como encaixá-la. Não consegui encaixar de primeira, minha mão estava levemente trêmula, talvez pela estranha aproximação entre nós.
-Respire fundo Anitta.
A forma dele pronunciar meu nome era diferente, carinhosa e doce. Fiz o que ele pediu e o cheiro de loção pós-barba me invadiu. Engoli seco e soltei o ar com pressa.
-Assim não, você precisa respirar devagar, porque se sua respiração estiver acelerada, você não vai conseguir manter seus braços firmes e retos.
Ele começou a respirar profundamente, me ajudando a diminuir o ritmo da minha respiração, até eu me acalmar.
-Isso.
Ele voltou a me ensinar como encaixava a flecha e dessa vez eu consegui.
-Agora você estica o máximo que puder, sempre mantendo os braços levantados e na mesma direção.
Fiz o que ele mandou, esticando a flecha e com os braços retos. Ele, que ainda estava bem próximo, consertou a posição do braço que segurava a flecha e se afastou um pouco.
-Agora fixe o seu alvo, escolha o que você quer Anitta.
Por que aquelas palavras pareciam querer dizer mais do que diziam?
-E quando se sentir pronta, solte.
Olhei o alvo, mirei o meio, claro, fechei um dos olhos, depois abri os dois, como Heitor tinha feito. E soltei. Minha flecha não teve força suficiente e caiu no meio do caminho. Soltei um murmúrio de desânimo.
-Tenha paciência com você Anitta. – Ele disse me entregando outra flecha – É algo novo e ninguém aprende tão rápido.
Ele sorria para mim, ao invés de me acusar de ser incompetente. Respirei fundo novamente. Peguei a flecha e dessa vez consegui encaixar sozinha. Outra tentativa e a flecha caiu novamente, dessa vez mais perto do alvo.
-Está melhorando, você só precisa esticar mais e não se apressar.
Assenti. Peguei a outra flecha e uma nova tentativa. Alvo! Na borda, quase fora, mas consegui.
-Ta vendo Anitta! Você consegue!
Atirei várias flechas, uma a uma. Ele estava animado com minha força de vontade, algumas voltaram a cair no chão, mas outras iam para o alvo, mesmo que bem distantes do centro.
-Acho que por hoje está bom.
Ele falou depois de recolher as flechas que eu tinha lançado. Usei todas, menos a de madeira, mais antiga.
-E essa flecha? – Perguntei apontando.
-Meu avô que fez pra mim.
Ele parecia saudoso.
-É linda.
-É. Eu nunca a uso. É mais como uma boa lembrança. Ele nunca me deixou desistir. No começo eu era péssimo, errava todas as flechas, demorei alguns meses até conseguir. – Falava como se pensasse em voz alta – Mas ele sempre estava lá. “Heitor você consegue”, “Tente de novo”. Sempre acreditando mais em mim do que eu mesmo.
-Algumas vezes somos assim não é? Descrentes de nós mesmos.
-É, nessas horas precisamos de alguém para nos lembrar a verdade.
Ele me fitou.
-Será que é verdade? – Questionei me sentindo triste.
-Sabe Anitta, muitas vezes somos bombardeados com mentiras durante toda uma vida, fica mais fácil se manter acreditando nelas, do que sair do lugar para encarar a verdade.
-Talvez.
-E sabe o que meu avô me disse para não me deixar desistir?
-O que?
-Ele disse que no dia em que eu conseguisse, ia experimentar a sensação da vitória que era só minha e isso faria de mim um homem incapaz de desistir para o resto da vida.
-Ele estava certo?
Heitor chegou perto de mim, colocou as flechas no chão e tocou meu rosto. Sua mão estava quente, mas me provocou uma onda de frio.
-Totalmente certo. Hoje, eu não desisto de nada que quero, Anitta.
Seu rosto se aproximou do meu e eu queria afastá-lo, mas não consegui. Ele me beijou, tomou posse da minha boca com a sua, como se eu não tivesse outra alternativa.