Aceita o Desafio?

By WishNana7

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O movimento é uma das melhores coisas da vida e dizem que a questão não é lutar contra ele, mas aceitá-lo ao... More

Ficha de Personagens & Informações

1° Desafio - Déjà-vu

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By WishNana7

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Aquela era a boate mais popular do momento, se chamava Uranus e tinha dois andares luxuosos. O primeiro piso era composto por um ambiente separado para fumantes, pista de dança, mezaninos como área vip com mesas e cadeiras e um palco no fundo que, naquela noite, em especial, recebia um DJ que tocava as músicas pop mais bombadas das rádios. As luzes de led eram um show à parte, modernas, formavam um balé interativo conforme a música tocava, eram essas luzes que davam cor e ritmo ao ambiente escuro. Uma grande bancada lateral se estendia por quase todo o ambiente, formando ali um enorme bar, com atendentes atraentes e muito solícitos.

Era perto da uma da manhã e a casa já estava atingindo a sua lotação máxima, mesmo sendo uma quinta-feira. Todos pareciam felizes e eufóricos, desde grandes grupos de amigos, casais recém-formados na pista de dança, até as excêntricas pessoas que dançavam sozinhas. Todos pareciam realmente alegres... todos, menos ele.

Jun era um rapaz jovem e bonito que destoava do clima coletivo daquele ambiente. Apoiado no balcão do bar, girando o canudo para "misturar melhor" sua pina colada, o loiro não se deixava levar pela música de uma de suas divas pop favoritas, ou pelos sorrisos que, hora ou outra, algum rapaz lhe lançava. Seus olhos, como os de uma águia, só conseguiam ver uma coisa: as escadas de vidro que davam para o andar superior.

Guardadas por seguranças literalmente enormes, as escadas majestosas que davam para o andar acima estavam muito bem vigiadas e parecia que, naquele dia, praticamente ninguém descia ou subia dali, nem mesmo ele, que sempre tivera acesso a todo e qualquer canto daquela boate.

Sempre, mas não naquela noite. Naquela noite, em específico, sua presença no espaço "mais vip" daquele ambiente havia sido barrada, e o porquê ele não fazia ideia, mas estava decidido a descobrir.

— Quer mais um? — o barman perguntou, apontando pro drink vazio.

— Não, valeu.

Deixando o copo sobre o balcão, sentindo a batida da música aumentar ao seu redor, junto com o grito satisfeito das pessoas, Jun se encaminhou novamente até o início das escadas, onde, no momento, só havia um segurança, já que o outro teve que se afastar, provavelmente para ir tomar conta de algum chamado no rádio.

Jun ajeitou a calça rasgada nos quadris, jogou os cabelos pro lado e vestiu seu melhor e mais sedutor sorriso enquanto se dirigia ao segurança remanescente, se inclinando pra falar em seu ouvido, já que a música estava alta.

— Posso subir agora?

— Já avisei que não, senhor.

— Sim, mas já tem horas que você disse que eu não podia... — fez um bico fofo. O segurança só continuou a negar com a cabeça. — Seja lá o que tava rolando lá em cima, já acabou! — Jun insistia.

— Não, senhor.

O coração disparou em revolta. Aquele segurança mais parecia um poste, parado sem vida, destinado a atravancar seus planos.

Jun olhou para cima... Havia mais dois seguranças no final das escadas... Não seria fácil. Mas, afinal, que merda estava havendo ali?

Por que Pierre não o deixava subir?

Irritado, porém perspicaz, o loiro sorriu ladino e insinuante, se apoiando no ombro do segurança e falando ainda mais próximo a sua orelha.

— Eu sei que o Armando é o chefe, mas sabe o que que é... Eu preciso pegar uma parada com ele... É urgente, vai ficar ruim pro meu lado se eu não fizer, quebra essa, a noite tá correndo. Prometo ser bem rápido...

Confuso, o segurança o olhou de cima a baixo... Jun era conhecido ali e, realmente, impedi-lo de subir não era uma ordem comum. Espremeu os lábios até formar uma linha e acabou sedendo aos enormes olhos claros.

— Rápido! — ordenou.

Após fazer um sinal com a cabeça pro segurança lá de cima, deu passagem para Jun subir. E, então, passando pelos dois seguranças no fim da escada, atingindo um ambiente um pouco mais silencioso, esperto, os olhos de Jun percorreram todo o espaço completamente vazio.

Tinha algo errado ali.

Cruzou o ambiente procurando vestígios de pessoas, mas não havia ninguém. Seu coração batia como o tambor da música que tocava lá embaixo. No final do espaço escuro e vazio do andar superior da boate, uma grande porta de vidro dava em um corredor muito bem iluminado, com algumas portas.

Se haviam esvaziado um andar inteiro da boate para não ter nada, as pessoas só poderiam estar no que era conhecido como salão da cobertura. Um espaço que dava na área externa do prédio alto, com visão para boa parte da cidade.

Caminhando para as salas internas, Jun mirou a porta no fim do corredor. O jovem colocou a mão na maçaneta, ouvindo agora uma música alta e muitas vozes. Abriu devagar, com os olhos grandes e curiosos atentos para tudo o que havia no local.

Ninguém, de fato, reparou sua intromissão.

Aquilo era mais do que uma sala, e Jun conhecia bem. Era um ambiente claro, enorme, com bar, mesa de sinuca, sofás de couro e saída para uma grande varanda na cobertura do prédio, que dava vista para prédios altos, parte da cidade e, naquela noite, para um lindo céu estrelado.

No entanto, Jun ficou parado na porta sem coragem de se mover, por mais que o coração acelerado estivesse ansioso pra compreender o que estava acontecendo.

A fumaça do cigarro e da maconha era muito forte, assim como a temperatura fria do ar-condicionado. Também havia uma música específica que só tocava ali, mais calma e envolvente do que o batidão juvenil lá de baixo. O público era completamente diferente dos jovens do outro andar. Muitos, muitos homens de terno, bonitos e entrosados entre si. Algumas poucas mulheres, poucas, mas suficientes. Suficientes para prender a atenção. Assim como uma mulher em especial capturou o olhar do loiro antes mesmo que ele pudesse se dar conta de tudo o que estava acontecendo.

Era alta e vestia um vestido preto tão justo que mais parecia ter sido costurado ao seu corpo. O cabelo curto emoldurava o rosto e seu sorriso branquíssimo era magnético, mas o grande problema não era ela ou a sua beleza. O grande problema era ele. E ele, bom, ele estava com ela sobre o próprio colo.

Pierre, um importante empresário e também todo de todo aquele espaço, tocava os joelhos de uma mulher enquanto, com a outra mão, segurava uma taça de champanhe. Ela sorria e gesticulava, participando da conversa. Mesmo sentada em seu colo, parecia confortável com as carícias que recebia na coxa, sem um pingo de constrangimento com os olhares dos dois homens à sua frente. A conversa, aparentemente agradável, que mantinham com os outros dois engravatados não era interrompida nem nos momentos em que Pierre, ousadamente, alisava por dentro do vestido da mulher, buscando as partes mais escondidas de sua pele.

Foi como se Jun puxasse o ar, mas a respiração não viesse.

É difícil explicar o que o jovem sentiu ao ver aquela mulher sentada no colo de Pierre, as carícias íntimas e os sorrisos. Era algo entre a falta de ar que paralisa e o ódio que acelera. Com o rosto vermelho seu sangue parecia bombear com força. O coração batia tão intensamente que as orelhas zumbiam.

Sua intuição de ter que ir até ali estava certa e, como um carro prestes a dar partida, seu corpo se preparou para entrar no salão. Faria um escândalo! Mas só se preparou.

Antes de conseguir dar um passo sequer para dentro do ambiente, Jun teve o pulso tomado com força e, sem ter tempo de reagir com palavras, foi puxado e arrastado para fora dali.

— Armando, me solta!

Gritava, começando a perder o controle do tom de voz.

— Quem te deixou subir?

— Me larga agora! Eu vou lá!

Puto, Armando entrou com Jun em uma outra sala que mais parecia um escritório.

— Quem te deixou subir? — Armando pegava o celular pronto para punir alguém. — Caralho, eu avisei que não era pra deixarem você subir hoje!

— Pra eu não ver ele com aquela puta? — Jun estava em posição de ataque. — Hein! Me responde?! Quem era aquela piranha?

— Romeu...

— Me deixa ir lá agora, Armando!

Jun tentou avançar em direção à porta, mas foi brutalmente segurado pelos ombros.

— Que merda, Romeu! Chega! — Armando elevou o tom de voz.

— Quem é ela, Armando? — Jun não ouvia. Se aproximou sem medo do homem que era o dobro de si e puxou seu terno pelo colarinho. — Ou você me deixa sair daqui ou eu vou lá descobrir sozinho! — não tinha medo de ninguém. — Quem era aquela puta — gritou — no colo do Pierre?

— Era tudo o que eu precisava essa noite — Armando tirou as mãos de Jun do coloradinho de sua roupa —, chilique seu... Romeu, escuta aqui, hoje é uma noite muito importante de negociações pro Pierre, se você pisar na sala da cobertura tenha certeza de que as coisas não vão ficar boas pro seu lado!

— Armando... — Jun fechou a mão em punho, seu corpo tremia. — Quem era aquela mulher? O Pierre tá usando prostitutas agora?

— Romeu... Jun... — Armando massageava o cenho. — Me escuta, por favor, só escuta... — diminuiu o tom de voz. — Esquece o que você viu — o olhou nos olhos. — Hoje não é um bom dia pra você dar chilique, o Pierre vai ficar muito puto se te ver aqui, ele proibiu qualquer interrupção. Desce, curte a sua noite, toma um porre, mas não tenta mais subir, amanhã ele vai conversar com você e te explicar tudo.

— Hahahaha! — Jun gargalhou alto e com escárnio. — Claro que vai! — sentia vontade de chorar pelo nó que se formava na garganta. — Só me explica uma coisinha, amor, isso vai ser antes ou depois daquela puta cavalgar bastante em cima dele, hein? — fitou os olhos de Armando.

Os dois ficaram se encarando em silêncio.

Armando era muitas coisas ali, poderia ser considerado chefe da segurança, responsável geral pela boate, contador ou tesoureiro. Mas, sobre todos esses rótulos, a última e mais temida instância, que todos os funcionários evitavam, a função que mais se destacava, era ser braço direito do dono, mais conhecido como Pierre. Por isso, Jun sabia que sair dali para ir atrás de Pierre não era mais uma opção, nem com toda a sua astúcia.

Armando caminhou até o bar que havia naquele escritório. Pegou uma garrafa azul-claro no armário e dois copos. Bruichladdich, um uísque alemão caro. Jun estava com os ombros caídos e o olhar fixado na porta. Sua respiração, ainda forte, denunciava a raiva crescente no peito.

Armando se serviu de menos de um dedo do uísque e virou rapidamente.

— Não seja esse garoto mimado — falava de costas. — Ele não gosta disso, e você sabe — Armando tirou do bolso um pequeno envelope pardo conhecido por Jun. — Seu comportamento adolescente mais o entedia do que o atrai — deixou o envelope, quatro notas altas de dinheiro e o uísque sobre a mesa. — Não destrua o interesse dele por você.

Parou na frente de Jun, que tinha os olhos vermelhos e brilhantes. Ódio. Com as mãos cerradas em punho e os dentes pressionados uns sobre os outros, o ódio era tudo o que conseguia sentir.

— Tome seu porre, depois pegue um táxi e vá pra casa. A noite já terminou pra você, Romeu. Ele não é seu namorado, às vezes, outros corpos vão aquecê-lo à noite.

Jun concordou. Seu rosto estava desfigurado. O orgulho lutava com o choro, por isso, virou-se de costas, pegou o uísque e encheu o copo até mais da metade. Satisfeito, Armando aproveitou pra atender a ligação insistente que recebia e deixar a sala.

— Pode falar... Oi? Como é que é?

A voz de Armando se aproximava e se afastava. A conversa ao telefone parecia tensa, o tom era de preocupação, mas Jun estava tão afundado na raiva e no ciúme, que tomava conta de seu peito como um bicho pegajoso, que não conseguia ouvir nada.

Experiente, o jovem virou o copo largo de uísque de uma só vez, sentindo o líquido queimar pela garganta corpo adentro. E não iria parar por aí. Pegou o envelope pardo, as notas de dinheiro, se sentou na cadeira de couro e se serviu de mais um copo cheio de uma das bebidas com maior teor alcoólico daquele bar. Armando, claramente, havia pegado aquele de propósito.

De todas as coisas com que Armando tinha que lidar, as piores eram aquelas que ocorriam à distância. Ser braço direito de um homem como Pierre era algo importante, perigoso e muito, muito trabalhoso.

Problemas fiscais em um carregamento específico que deveria estar chegando ao porto naquela madrugada o fizeram parar de prestar tanta atenção no jovem enciumado dentro de um dos escritórios da boate e se concentrar na ligação em que estava.

Aproveitando o espaço vazio do segundo andar, Armando tentava controlar o tom de voz enquanto discutia ao celular com quem quer que estivesse do outro lado da linha. Buscava soluções para o impasse, uma vez que se aconselhar com o "chefe" não era uma opção naquela noite.

A negociação que ocorria no salão da cobertura, entre Pierre e aquelas pessoas, era importantíssima, as ordens haviam sido claras: nada de interrupções. E Armando garantiria isso.

Longos minutos se passaram. De olho na porta do escritório, mas longe do corredor, ali dentro, Jun amassou tanto o envelope pardo vazio, quanto as quatro notas de cem reais e jogou tudo no lixo. A cabeça rodava e o coração acelerava mais e mais. Perdia aos poucos o controle do próprio corpo. Amava a sensação da embriaguez. Como se tivesse colocado um tampão na garganta, seu choro estava completamente reprimido e controlado.

Olhou para o dinheiro dentro da lata de lixo por um tempo.

Jun se serviu do terceiro grande copo de uísque e o virou em segundos. Era muito forte para bebidas, apesar da pouca idade, mas estava brincando com a sorte ao engolir, com rapidez, tantos goles. A voz de Armando soava mais distante e foi nesse momento que uma brilhante ideia surgiu em sua mente etílica.

Encheu o copo de bebida, de novo, alegre pela adrenalina, sentindo o coração e as veias do rosto palpitarem com mais força como se fossem um tambor. As músicas do primeiro e do segundo andar se misturavam em sua cabeça.

De costas, gesticulando com raiva, Armando não viu quando, já fora de si, mas sem cambalear, Jun caminhou até a porta no fim do corredor e a abriu. Com o copo na mão e completamente acelerado, o loiro foi ágil. As pupilas dilatadas percorreram todo o ambiente até achar seu alvo.

Nervoso, Armando percebeu que a porta do escritório havia sido aberta e desligou a ligação bruscamente, correndo até o salão. No entanto, quando chegou ali, já era tarde demais.

— Pierre!

Jun gritou para o homem moreno todo vestido de preto que, segundos atrás, beijava a mulher que estava em seu colo.

Antes que Armando pudesse fazer qualquer coisa, Jun engoliu todo o uísque que restava no copo e simplesmente o jogou contra Pierre e a mulher. Errou. Por milímetros.

O copo se espatifou contra a parede atrás deles, próximo demais de seus rostos. A mulher soltou um grito desesperado, sentindo os pequenos cacos de vidro a atingirem. Pierre não se moveu e nem desviou os olhos dos olhos de Jun.

Afobado e respirando forte, as mãos de Jun agora tremiam e seu corpo suava frio. Pierre não precisou se mexer,pois dois seguranças pegaram o garoto pelos braços e o arrastaram para fora dali, chocando alguns executivos que encaravam boquiabertos a cena exagerada de violência. Para olhos mais atentos, entretanto, era apenas uma clássica cena de ciúmes.

Armando teve uma breve troca de olhares com Pierre antes de pegar Jun pelo braço com brutalidade e fechar a porta.

Com os cacos de um copo quebrado sobre suas roupas, ouvindo comentários como "o que foi isso?" e com o charuto caro queimando, esquecido entre os dedos, Pierre encarava um ponto qualquer do salão com um olhar opaco e profundo. Era como se o tempo estivesse passando em câmera lenta. Pensava em total silêncio, até ser interrompido pela mulher, que antes estava sobre seu colo e agora o limpava cuidadosamente com um pano que havia pegado no bar.

— O senhor quer ir falar com os seus seguranças, senhor LeBlanc? — a encarou.

— Tá tudo bem, Pierre? — um dos investidores com quem negociava o olhava assustado. O tempo voltou a correr normalmente.

— Como?

Pierre fitou o homem. Como se fosse um desenho animado, o olhar profundo e pensativo se tornou cordial e solícito. O sorriso largo e gentil brincou entre os lábios do empresário.

— O rapaz que tacou o copo...

— Isso? Ah, não foi nada! Apenas uma distração pra te desviar da ideia de me cobrar tão caro pelos contêineres.

O homem a sua frente gargalhou e fez sinal para um outro se unir a eles.

— Olha, suas estratégias de negociação estão cada vez mais surpreendentes! — riram. — Bom, vamos lá...

Mais rápido do que poderiam esperar, entre drinks e risadas, a conversa animada e cordial continuou com um Pierre curiosamente ainda mais gentil e com um Jun que, com certeza, não iria mais interromper aquela noite de negócios.

1° Desafio — Déjà-vu

— Por que você nunca tira os fones de ouvido?

— Porque, às vezes, eu sinto que só com música que dá pra passar pela vida.

— Entendi... — o irmão mais velho dirigia sem tirar os olhos da estrada à frente. — Uma vez eu ouvi falar de uma parada assim...

— Assim como? — o mais novo o olhou de soslaio

— Que a vida tem trilha sonora e que a gente que faz a nossa...

— Hum. — Artur sorriu e voltou a olhar pela janela a paisagem passando rápido e ficando pra trás. — Pode ser...

— Qual é a sua?

— O quê?

— Qual é a sua trilha sonora pra encarar esse novo desafio que estamos prestes a viver?

— Qual é a minha? — Artur olhou para o discman que girava um dos seus CDs favoritos e assentiu com a cabeça, constatando que aquela era a música perfeita. — "Under Pressure", do Queen.

— Boa... muito boa.

— Eu sei...

Os irmãos se olharam e Ricardo sorriu, voltando a focar na estrada, enquanto nos ouvidos de Artur a voz grave de Freddie Mercury crescia junto com o arranjo da primeira faixa da trilha sonora da nova fase de sua vida.

Artur e Ricardo estavam viajando de carro há sete horas. O trajeto Rio x São Paulo levava um pouco menos de tempo, mas pegaram engarrafamentos no início do trajeto e acabaram excedendo um pouco o horário. Por isso, só por volta das três da tarde é que os irmãos Aguiar conseguiram chegar no que era um dos condomínios de casas mais caros da capital paulista.

— Tem certeza que é aqui? — Ricardo questionou, observando as belas construções enquanto dirigia cauteloso.

— Bom... — Artur olhou para o papel em suas mãos. — A nossa mãe colocou esse endereço.

Os pais dos meninos haviam se mudado uma semana antes para organizar a casa e a mudança em si. Ricardo Felipe era um militar da aeronáutica. Ele e Ricardo, seu filho primogênito, compartilhavam o mesmo nome, já que o pai assim decidira em sinal de orgulho, na época, por aquele nascimento.

Durante toda a vida, os Aguiar Kimura tiveram que se mudar algumas vezes, mas sempre acabavam voltando para o Rio de Janeiro, Estado de origem da família, e, nos últimos sete anos, haviam firmado estadia na capital carioca, o que foi muito importante tanto para Ricardo, quanto para Artur. Filhos mestiços de um descendente de japonês com uma brasileira, os dois rapazes sentiam a intensidade daquela mudança brusca para São Paulo. Para Ricardo, era a realização de um antigo objetivo, já para Artur, aquilo era como o início de uma grande dor.

— Eu ainda não acredito que a gente tá se mudando pra cá...

— Você tá repetindo isso a viagem toda... — Ricardo dirigia lentamente entre as ruas do condomínio, procurando o endereço da tal "casa nova".

— O nosso pai estragou a minha vida, Ricardo...

— Seu pai — cortou —, e é só um tempo. Você tá quase terminando o ensino médio, em alguns meses você se forma e pode voltar pro Rio pra fazer faculdade. A Alícia não vai arrumar outro namorado em oito meses.

— Eu não tô preocupado com a Alícia arrumar outro cara! Que merda!

— Tem certeza? — Ricardo sorriu provocativo.

— Você tá feliz porque já já sai de casa e vai morar com o Victor. Aliás, que sorte fudida que você sempre dá! Arruma um namorado em São Paulo, aí os nossos pais tem que vir morar em São Paulo. Arruma um emprego bom pra caralho, a empresa tem sede aqui. Começa o último período da faculdade e consegue transferência integral sem perder nenhuma matéria.

— É, é, deus tem seus favoritos, tá bom?! Acabou o muro das lamentações? Vê aí, a rua BW, por acaso é essa próxima?

Engolindo a indignação, Artur esticou o pescoço pra fora do carro tentando ler as placas.

— É sim, vira.

Ricardo estacionou o carro na frente de um muro alto cinza, com uma porta grande de garagem. Deu duas buzinadas.

— Nossa mãe nunca mais vai querer se mudar daqui... — o mais velho comentou, observando como o lugar parecia bonito e chique.

— Puta que pariu... Que que eu fiz pra merecer isso...

Artur cobriu os olhos com o braço enquanto Ricardo aproveitava que o portão automático havia sido aberto para entrar com o carro.

Era uma clássica casa de condomínio de classe média. Grama rasteira, espaço de garagem para dois carros. Entrada bonita com chão de pedras. Dois andares, fachada rosada. Varandas suspensas no segundo andar e um jogo de mesa e toldo para refeições ao ar livre. Tudo muito bonito, mas também muito diferente do lugar em que estavam acostumados a morar no Rio de Janeiro.

— Meu deus, como vocês demoraram! — era a voz de Suzana.

Ricardo se ocupou de tirar as malas do carro enquanto Artur, com sua melhor cara de poucos amigos, foi cumprimentar os pais. O irmão mais velho apenas fez um aceno simples para o pai, que de longe acenou de volta com a cabeça na mesma seriedade.

— Ricardo, agora vem cá falar comigo...

— Desculpa, mãe. Como a senhora tá?

Beijou a testa da mulher, que era bem mais baixa que ele.

— Fiz frango assado pro almoço porque você me disse que chegariam a tempo, o que aconteceu?

Sendo acariciado pela mãe, Ricardo sorriu de forma encantadora antes de responder.

— Você me pede mil vezes pra dirigir devagar, aí eu venho devagarinho na estrada e tem reclamação? Decida o que quer, senhora!

— Vou ter que te perdoar — por ser bem mais baixa, Suzana se esticou toda pra acariciar os cabelos do filho mais velho.

Ouviram a voz de Ricardo Felipe se espalhar pelo ambiente, chamando o caçula.

— Artur, vem comigo ver o espaço aqui de trás, esse terreno é muito bom, tem muito potencial!

Ricardo Felipe falava animado, sem fazer a mínima questão de trocar uma única palavra com Ricardo. Artur, tentando demonstrar interesse, seguiu o pai para os fundos.

Com suas próprias malas nas mãos, Ricardo entrou no que, na sua cabeça, era um lar temporário. Havia se "mudado" junto com a família só pra agradar a mãe, mas seus planos eram muito mais ambiciosos do que aquilo. Definitivamente aquela casa era só um pouso para seus futuros voos.

— O que achou? — Suzana abraçou o filho pela cintura com carinho, olhando a bela sala de estar.

Ricardo observou a decoração. Uma porta que dava para a parte externa, sofás brancos, estante no fundo cheia de fotos de família, a televisão presa à parede. Sem dúvidas, sua mãe havia ficado horas e mais horas arrumando a casa pra recebê-los da forma mais organizada e acolhedora possível. A abraçou de volta.

— Está a sua cara. — sorriu.

— Eu sei que essa mudança está sendo brusca pra você e muito mais pro Artur. Queria que vocês não tivessem que enfrentar o caos da mudança, furação de parede, montagem de móveis...

— O Ricardo Felipe te ajudou? — questionou.

— Claro! — Suzana sorriu doce. Artur tinha o sorriso dela, Ricardo sempre reparava nisso. — Rick, por favor, esse é o nosso recomeço — o suplicava com o olhar. — Não começa assim... Não se arma tanto, filho...

"Nosso recomeço."

Ricardo ouviu aquelas palavras e teve o ímpeto de responder, mas o olhar apreensivo e suplicante da mãe o fez declinar da ideia.

— Tudo bem! — forçou um sorriso. — Me mostra meu quarto, dona Suzana!

— Vem aqui! — a mãe puxou o filho mais velho e juntos seguiram escada acima.

Jantaram o frango assado em família, para a alegria de Suzana.

Ricardo contou do acidente na estrada e do congestionamento, Ricardo Felipe se vangloriou sobre já estar achando São Paulo muito melhor do que o Rio, dizendo inclusive que deveriam ter se mudado há mais tempo, e Suzana explicou todos os problemas que teve com os profissionais contratados para montar os móveis e fazer as instalações na casa.

Visivelmente desanimado, Artur falou sobre alguns problemas de documentação para a transferência de escola, mas que tentaria resolver antes de segunda-feira, que era o dia de "voltar às aulas".

Antes que percebessem, a noite caiu dando lugar a uma intensa arrumação de malas. Aquela mudança, de fato, significava coisas diferentes para Artur e Ricardo, e nem mesmo a varanda do quarto que dava para os fundos da casa agradou Artur. Com desânimo total, tudo o que o rapaz queria era acender um cigarro e tirar um momento pra si, mas a mãe não parava de entrar e sair do seu "novo quarto", o que o impedia de fazer qualquer coisa.

Apesar de a casa já estar praticamente toda arrumada, ainda havia muito a se organizar, foi pensando nisso que Artur olhou para o cômodo amplo se dando conta de como estava realmente foda aceitar aquela nova realidade.

Não era mais um menino, por mais que Suzana o tratasse assim. Artur era um homem já e, aos dezenove anos, após ter sido reprovado duas vezes na escola, estar cursando o terceiro ano do ensino médio na idade que tinha era no mínimo desanimador. Ainda por cima, em pleno mês de agosto ter que mudar de colégio, com mais de meio ano corrido, deixava tudo pior ainda. A sensação de vida estagnada começava a dar lugar a uma sensação de regressão.

Irritado, largou a arrumação dos livros e caminhou até a varanda aberta. O estresse valia o risco. Dali era possível ver o quintal dos fundos e o telhado das outras casas.

— Que bela merda...

Foi tudo o que conseguiu pensar antes de puxar o maço cigarros e pendurar um entreos lábios, acendendo com um isqueiro velho e tragando com força, pra logo depois soltar a fumaça. Artur se permitiu sentir o prazer e o alívio da pressão caindo aos poucos.

— Se a nossa mãe ver você tá fudido!

— Caralho, que susto Ricardo! Parece até um bicho pronto pra atacar!

Ricardo fechou a porta atrás de si e jogou uma mochila sobre a cama

— Aqui, sua mochila com os CDs foi parar no meu quarto.

— Valeu — Artur baforou com força para o alto e, então, com os olhos felinos que lhe eram característicos, observou o irmão com mais atenção. — Você vai sair?

— Vou.

Ricardo respondeu direto, enquanto mexia nos livros sobre a cama. Artur tinha um péssimo gosto.

— A gente acabou de chegar.

— Não, a gente já chegou há seis horas. Já coloquei o básico no lugar, passei um tempo com a nossa mãe e agora tô indo ver o Victor.

— Se ela souber você tá fudido — repetiu a frase do irmão.

— Se ela souber que eu vou ver o meu namorado? O que a nossa mãe tem com isso, Artur? Eu sou um homem de 23 anos.

— Ricardo, hoje é o nosso primeiro dia aqui e você já tá indo dormir fora...

— Eu já fiz muito por essa família hoje, o meu papel tá cumprido. Até porque, por mim eu nem teria vindo aqui, teria pegado o carro e ido direto pra casa do Victor. Agora, se você quer agradar a nossa mãe, larga essa merda de cigarro e desamarra essa cara, tá na hora de fazer um pouco o seu papel também.

— Ricardo, o que você...

— Tchau, Artur!

E antes que pudesse dizer qualquer coisa, o irmão mais velho deixou seu quarto.

Em um bairro não muito distante dali, uma cafeteria gourmet que funcionava dentro de uma universidade particular estava super movimentada. O turno da noite era o mais pesado para os dois funcionários que ali trabalhavam, isso porque o volume de alunos era maior do que nos outros turnos, consequentemente, isso fazia com que o ritmo de pessoas entrando e saindo do estabelecimento também fosse mais intenso.

E o pior é que nem era pra Victor estar trabalhando ali naquele horário.

Em tese, o turno do moreno era das sete da manhã à uma da tarde, mas devido à licença-maternidade de uma das funcionárias da noite, lá estava ele substituindo-a e, honestamente, praguejando, pois aquela boa ação o fez trancar duas matérias.

Apesar de ser "o cara do café", ele também era estudante da universidade e, inclusive, foi sendo estudante que ficou sabendo daquela vaga de emprego que surgiu como um alívio e uma oportunidade imensa naquele período tão conturbado de falta de dinheiro pelo qual vinha passando.

Aos dezenove anos, Victor era um aluno muito empenhado do curso de Letras, com habilitação em língua espanhola. Autodidata, não fosse o excesso de trabalho, suas notas seriam ainda melhores.

Aquele era o seu segundo ano de faculdade, mas se você perguntar a ele como foi o primeiro ano, é capaz de o jovem de cabelos cacheados não saber lhe responder. Isso porque Victor mais "existia" na faculdade do que "estudava" naquele lugar. Com dois empregos de seis horas por dia, a rotina era pesada.

Pela manhã, de sete à uma, trabalhava como garçom no café; de duas da tarde às sete da noite estava no seu segundo emprego, como atendente de telemarketing em um prédio que — ainda bem — ficava a vinte minutos de ônibus da faculdade, e de sete e meia da noite até as dez e meia frequentava as aulas, que deveria honrar e entregar todo o seu empenho para justificar a bolsa de estudos que havia conquistado. Deveria.

E foi nesse cenário, de horários apertadíssimos e uma rotina esmagadora, que Victor aceitou substituir a colega. Seu chefe, que era um senhor muito gentil, havia feito o pedido de uma forma que não teve como recusar. Sabia que seria temporário, só até arrumar alguém pra ficar no turno da noite, e seriam apenas três dias. A teoria era ótima, já a prática...

O estrago foi feito e bem rápido. Das cinco matérias que Victor cursava, teve que trancar duas, afinal, não podia reprovar sendo bolsista.

A rotina intensa da semana só tomou proporções maiores, agora com os três turnos de trabalho. Os finais de semana que seriam para "estudar" passaram a servir, basicamente, para Victor, quase que desmaiado, tentar recuperar as forças.

Mas tudo estava sob controle. Pelo menos era o que gostava de pensar.

O plano era o seguinte: o período havia acabado de começar, então, no próximo mês iriam abrir novamente as inscrições em matérias e ele poderia tentar se inscrever na repescagem de mais duas turmas, só precisava que contratassem logo alguém, afinal, fazendo assim não ficaria tão defasado. Estava confiante, com certeza achariam uma funcionária temporária. Tudo daria certo!

E foi no momento em que estava imerso nesses pensamentos que um grito violento o despertou.

— Eu disse expresso! Cacete, você é surdo?

Piscou duas vezes assustado. Um rapaz de sobrancelhas grossas batia com o copo descartável no balcão, isso fez com que o café se espelhasse sujando tudo.

— M-me desculpa! Eu não tinha ouvido, perdão!

— Mas que merda é essa? — as pessoas na fila olhavam pra Victor impacientes. — Cadê o gerente daqui?

— Eu. Eu tô de gerente — Victor já pegava um pano para secar o café derramado. — Sinto muito, pode repetir por favor qual foi o seu pedido?

— Um expresso, você é demente ou o quê? Eu já pedi várias vezes!

— Eu vou pegar. Senhor — chamou o próximo da fila —, o senhor que tá atrás, também é expresso? — perguntou aflito, já acostumado a ignorar os xingamentos.

— O meu é um americano gelado, garoto, eu tenho hora, o atendimento não anda!

— Só um instante, saindo um expresso e um americano gelado!

Victor correu para servir os cafés enquanto Carla, a menina que estava no caixa, abandonou seu posto pra dar uma força ao colega.

— Hoje tá foda... — ela sussurrou próxima a Victor, enquanto servia duas xícaras.

— Eu odeio os alunos de Direito...

— E me diz, quem é que gosta?

Riram discretamente.

O horário do intervalo terminou, mas o fluxo de pessoas não diminuiu nem um pouco. O movimento naquela sexta-feira estava simplesmente insano. Victor só conseguia fazer duas coisas: ler as notas fiscais para saber o que era o pedido e perguntar "mais alguma coisa, senhor?", sem nem olhar pra cara dos clientes.

Só quem já trabalhou com o público sabe o quão louco, desgastante e imprevisível pode ser esse tipo de emprego. O que piorava a situação era que aquela universidade era muito, muito, muito, cara. O que se refletia diretamente no comportamento dos alunos que frequentavam o estabelecimento, de uma arrogância extrema. Jovens que compartilhavam a gestação de pequenos reis na barriga. O estilo do ambiente também não ajudava. Uma cafeteria gourmet era tudo o que o pior tipo de jovem universitário mais amava, o que, para o bem e para o mal, atraía muitos clientes.

Victor já estava tão habituado à rotina desgastante que no momento em que suas panturrilhas começavam a queimar, sabia já se aproximava das dez da noite e, finalmente, estavam perto de fechar. Era como se seu relógio biológico já tivesse programado para a exaustão e o avisasse sobre o passar das horas.

Talvez por isso, Victor nem levantou a cabeça quando o que deveria ser o último cliente da noite lhe entregou a notinha. Leu com calma e repetiu pra confirmar.

— Dois chocolates quentes pra agora e duas tortas de limão?

— Você pode caprichar?

— Uhum, eu pos... — como se um choque tivesse atravessado seu corpo, Victor parou de falar e ergueu a cabeça, olhando pra frente... Para o homem que se dirigia a ele.

Os olhos trêmulos de Victor perderam a opacidade pra dar lugar a um brilho intenso. A boca não conseguiu se controlar, e o sorriso veio quase como um sopro.

— Rick! — tentava falar, mas o sorriso invadia seu rosto como um sol, iluminando-o. — Ricardo! O que você tá... Você tá aqui?

De pé, do outro lado do balcão, vestindo uma blusa branca de gola alta e com o cabelo repartido de lado, Ricardo olhava para o namorado de forma febril e apaixonada, sem perder o sorriso galanteador brincando no canto dos lábios.

— Você aceita lanchar comigo?

— Minha nossa! — Victor colocou a mão sobre a boca, sorrindo e ao mesmo tempo chocado. — Ricardo!

Eufórico, o mais novo correu, dando a volta no balcão e pulando nos braços do namorado, que mais parecia um príncipe com aquelas roupas e a forma de falar.

— O que você tá fazendo aqui? Você não disse que já tava vindo! Sua mudança não é só no fim do mês? O que você...

— Eu te enganei! — Ricardo alargava o sorriso. — Eu te enganei, Vi... Queria fazer uma surpresa! — tocou o rosto do rapaz, que tinha um corpo consideravelmente menor que o seu.

Por sorte, naquele horário o café já estava bem mais vazio. Mesmo assim, Ricardo não sabia se podia beijá-lo ali, apesar de sentir o corpo todo sofrendo por querer muito aquilo.

— Eu não acredito que você tá aqui! Você chegou? Chegou de vez? — Victor estava eufórico demais.

— Victor... — Carla o chamou baixo. — Tira o seu intervalo, eu posso fechar o café e o caixa.

Se olharam cúmplices.

— Obrigado!

Victor agradeceu sorrindo e puxou Ricardo pra dentro do balcão. O moreno não demorou a entender. Seguiram pra cozinha e, antes de fechar a porta, Ricardo já havia tomado pra si a cintura do namorado e as bocas, afoitas, se encontraram.

— Que saudade! — Victor admitiu.

Como o predador que era, Ricardo passou a mão por sua nuca, afundando os dedos entre os cabelos ondulados, e levou os lábios grossos em direção a Victor invadindo a boca do namorado com a língua sem pedir permissão. Naquela época, Victor era apenas uma presa, e seus olhos, assustados como os de um cervo, eram a prova disso.

O mais novo correspondeu à altura e até um pouco mais, porque aquele era um dos momentos mais importantes de sua vida, era um grito preso no peito sendo soltado do edifício mais alto. Ele rasgaria a blusa nas costas de Ricardo se pudesse, como um animal, só pra ser tragado por aquele beijo e pela forma bruta com que, sem querer, Ricardo o tomava.

Primeiro foram os lábios que chegaram naquele reencontro, mas, diferente dos primeiros beijos sem jeito que deram há um ano e meio atrás, quando se conheceram, agora o ritmo de cada um já era conhecido. As línguas se encostaram logo depois, com calor e envolvimento. Ricardo chupou a língua do menor pra dentro de sua boca, impondo toda a experiência que tinha.

Victor agarrou o mullet castanho do cabelo do namorado tentando não se afogar naquele beijo que esquentava todo o seu corpo, que, em segundos, enrijeceu de forma pulsante seus músculos, veias e órgãos mais sensíveis. Afundou as unhas curtas entre os fios lisos e virou o rosto de lado em busca de ar, enquanto oferecia o pescoço liso e atraente para o seu predador, sem medo da morte.

A forma dominadora como Ricardo gostava de se apoderar de seu corpo e o jeito provocativo e vulnerável com que Victor se entregava, hora gemendo baixo por vergonha, ora se esfregando mais no corpo do maior, enlouquecia Ricardo, que raspava os dentes e chupava com força marcando sua pele.

Ricardo e Victor explodiram seus sentimentos em um beijo cheio de saudade, lábios e saliva, brigaram por espaço, mas Victor, como sempre, foi vencido. Se deixando ser coberto pelo corpo, pelo calor e pelas águas fundas de Ricardo, que ocupavam tudo.

O mais novo gemeu sôfrego de saudade. Saudade do beijo, do perfume, do jeito que Ricardo o pegava e o tomava pra si. Contra a parede, Victor sentia o corpo responder àquele beijo que tinha vários gostos: saudade, tesão, medo...

O estudante de Arquitetura sentia-se como um homem morto de sede no meio do deserto, que finalmente havia encontrado água. Era sempre dessa forma que se sentia quando reencontrava o namorado. Queria inundar aquele deserto com suas águas. Causar uma catástrofe natural dentro de Victor. Ricardo queria ver os olhos turvos, a boca inchada e o jeito desnorteado que o mais novo ficava depois de ser tomado em seus braços.

Os dois viviam aquele relacionamento à distância há quase quatro anos e, por mais que agora as visitas de Ricardo fossem mais frequentes, com o moreno indo pra lá praticamente uma vez por mês, ainda assim parecia pouco. E, talvez por isso, aquele beijo estivesse com um sabor diferente.

Aquele era o primeiro beijo que não tinha data de volta.

Victor agarrou com força os cabelos da nuca de Ricardo, enfiando seus dedos ali com urgência, enquanto o moreno o erguia do chão. As pernas abraçaram o corpo maior, e as línguas saudosas começaram a dar lugar a uma vontade enlouquecida de gerar alívio para ambos.

E foi no momento em que as mãos de Ricardo apertaram as nádegas firmes de Victor que o mais novo o afastou pelos ombros.

— Pera...

Lábios inchados, cachos caídos sobre os olhos febris. Ricardo o deixava uma bagunça. Como uma presa assustada negociando com um animal feroz, Victor sorriu nervoso e excitado. Tudo era sempre dual entre eles. Tudo era sempre intenso com Ricardo.

— Calma...

O mais novo não conseguia controlar o leve, mas sempre presente, nervosismo que o desejo de Ricardo causava.

— Não consigo...

Ricardo avançou em seu pescoço, passando a língua úmida e quente por ali, reivindicando o que há pouco lhe havia sido oferecido. Chupou, lambeu e, antes de morder, teve seu nome chamado e uma pressão leve sobre os ombros fez com que se afastassem um pouco. Perder o calor do corpo de Victor foi uma tortura pro volume que pulsava entre suas pernas.

— Rick... Espera! Nem tomei banho — Victor argumentou, levemente nervoso, mesmo que seus olhos denunciassem o tesão. — Eu tô no trabalho ainda... — sorriu sem jeito.

O mais novo desceu de seu colo e, apesar de pedir calma, era impossível negar que também estava eufórico com o reencontro.

— Tá... — Ricardo sorria safado. — Tô calmo... — mas as mãos não paravam de apertar e alisar o quadril do menor. — Tô bem calmo...

Se beijaram novamente, agora de forma mais lenta e envolvente. A saudade era imensa, mas o tesão de Ricardo também era, por isso, ainda ficaram alguns longos minutos entre beijos e carícias na cozinha do estabelecimento. Agora de pé, e com Vigor tentando impor um limite de distância entre os corpos, usando toda a sua energia para parar os avanços de Ricardo, foi assim que, segundos depois, Carla bateu na porta da cozinha. Muito sem graça, avisava que precisava da chave pra fechar a cafeteria.

O chocolate quente e a torta de limão ficaram pra "viagem". Ricardo e Victor foram de carro pra casa do mais novo. Acabaram "lanchando" dentro do carro mesmo.

De madrugada, Victor sentia a mão quente de Ricardo alisando as suas costas da esquerda para a direita. Ricardo tinha mãos grandes e demasiadamente macias. O mais novo sorriu, imaginando o tanto de louça que ele nunca deve ter tido que lavar durante toda a vida.

O fato é que o carinho ameno sobre suas costas estava mais pro gostoso do que pro bruto e foi então que Victor percebeu que o alisar da palma da mão do moreno indo de um ombro ao outro estava lhe dando um sono bom. Não queria que Ricardo parasse aquele toque, aquilo estava não só sendo gostoso, como aliviando a tensão dos músculos após o sexo intenso.

— Você sempre fica quieto depois de gozar...

Victor, de bruços e com o rosto virado para o lado oposto, sentia o coração desacelerar aos poucos.

— É...

— Tá tudo bem?

Victor virou o rosto para olhar Ricardo.

— Tá sim.

Sorriu. Ricardo perdeu um tempo naquele sorriso, único e gentil. Victor tinha um sorriso que mostrava um pouco da gengiva, um dos caninos era mais tortinho e os olhos ficavam pequenos quando sorria. Era realmente encantador.

Se olhavam sem dizer nada. Se dependesse apenas de Ricardo transariam de novo, mas sabia que o namorado estava cansado. Victor observou o corpo nu a sua frente. Ricardo parecia um deus grego. As pernas longas, as coxas grossas, o abdômen e o peito largo que terminava nos ombros retos. Era de tirar o fôlego, e estava ali, sobre sua cama, fazendo carinho no seu corpo.

Apesar de tudo, era compreensível o porquê de sempre que seus colegas viam Ricardo ficarem chocados com aquele homem namorando Victor. No fundo, o mais novo entendia que Ricardo era muito mais bonito do que ele. Ao menos, era assim que ele enxergava as coisas. Talvez, se não tivessem se conhecido na pior fase da vida de Ricardo, através de um jogo online, nunca estariam protagonizando aquela cena.

Foi nesse meio tempo preguiçoso, com Victor deitado de bruços de um lado da cama e Ricardo deitado de lado alisando e olhando todo o seu corpo, que, quando a consciência do mais novo estava quase dando espaço para o sono que pesava as pálpebras, a voz do moreno irrompeu o silêncio.

— Canta y no llores... — Victor abriu os olhos.

Sonolentos, procuraram os de Ricardo enquanto sorria.

— O que tem?

Os dedos de Ricardo passavam por cima da tatuagem nas costas do menor. Uma frase simples, na altura do ombro.

— Quando foi que você fez essa tatuagem e por que essa frase?

— Hum... — Victor fechava os olhos preguiçosos. — Tem alguns meses...

— Foi depois da morte dele?

— Foi antes...

— E por que "Canta e não chore"?

— Meu pai era colombiano, certo?

— Sim, e você morou na Colômbia com ele até os oito anos, não é isso?

— Aham, e, além de aprender a falar espanhol, eu também absorvi "un poco" da cultura — Victor coçava o olho esquerdo enquanto falava. — Desde pequeno, quando eu chorava muito por alguma razão, meu pai ou minha avó sempre cantavam uma música antiga e bem brega que tinha essa frase.

— Ah, é? ¿Canta para mi, por favor? — Ricardo abusou dos seus conhecimentos de espanhol.

— Ah, não...

— Por favor... sólo un poco — mordeu de leve o ombro de Victor e depois deu um beijinho.

— Ai, Rick... — o menorcoçou a nuca e escondeu o rosto entre os travesseiros.

— Por favor, por favor, por favor... — sussurrava, enquanto mordia e assoprava a nuca de Victor.

— Tá, para! Para! — completamente desperto e se contorcendo pelo estímulo, Victor desistiu. — Para, eu canto! Eu canto! — deitou de barriga pra cima, olhando o teto.

— Tá, vai! — Ricardo sorriu satisfeito.

Ay, ay, ay ay canta y no llores... — a voz tímida preenchia o quarto. — Porque cantando se alegran, cielito lindo, los corazones... — Victor observou Ricardo, que não desviava o olhar. — Ay, ay, ay, ay, canta y no llores, porque cantando se alegran, cielito lindo, los corazones...

O mais velho ficou encarando os olhos envergonhados de Victor. De lado, apoiando a cabeça numa das mãos, com a outra livre colocou um dos fios de cabelo pra trás da orelha do namorado.

Victor só conseguia encará-lo. Ricardo era um homem muito bonito, na verdade, tinha uma beleza considerada "acima da média". Às vezes, quando o via em sua cama assim, nu, com os cabelos bagunçados e o olhar penetrante sobre si, Victor se perguntava se um homem como aquele o olharia caso tivessem se conhecido por acaso. Era difícil para ele acreditar que havia dado tanta sorte.

Ricardo o escolheu, e três anos depois aquilo ainda parecia impossível na cabeça do mais novo.

— Posso te pedir uma coisa?

Ricardo o encarava no fundo de seus olhos, enquanto brincava de enrolar os cachos de seus cabelos. Victor sentiu medo que os olhos verdes conseguissem ler seus pensamentos.

— Pode...

— Quando eu estiver triste... Canta essa música pra mim?

Victor perdeu o fôlego com a forma galanteadora e profunda que Ricardo pediu aquilo. Com cuidado tirou os dedos de Ricardo dos seus cabelos, agarrou sua mão e depositou um beijo sobre a palma... depois beijou a ponta de cada um de seus dedos e apoiou a mão sobre sua bochecha.

— Sempre que você estiver triste eu vou cantar.

— Você promete?

— Eu prometo, Ricardo.

Se olhavam com muito carinho. A fachada de príncipe, o jeito galanteador, as boas roupas, o carro e o estilo de playboy classe média que Ricardo tinha escondia mais dores do que conseguia pôr em palavras e, no mundo inteiro, apenas Victor conhecia todas elas. Já o corpo pequeno de Victor, o jeito tímido e genioso do mais novo, também segurava algumas ondas profundas de dor, principalmente a última tsunami que havia passado recentemente e só de ter Ricardo ali, naquela casa, preenchendo o vazio que seu pai deixou, era como conseguir respirar novamente depois de muito tempo.

— Eu te amo.

Victor não conseguiu se conter.

— Eu também.

Mas, infelizmente, naquela noite, o jovem de cabelos cacheados estava hipnotizado demais pelos lindos olhos verdes do namorado e não conseguiu perceber um detalhe crucial que mudaria os rumos da vida deles como casal.

— Pessoal, esse é o... — disperso, o professor teve que olhar a ficha pra ler o nome comprido do aluno. — Artur Henrique Aguiar Kimura. Isso! Artur, dê um oi pra turma.

— Bom dia.

Artur sorriu educadamente, tendo os olhares dos alunos sobre si.

— O Artur Henrique vai começar com a gente hoje, por favor, mostrem a escola a ele. Artur, eu sou o professor de Biologia, me chamo Márcio, e tenho um estagiário, o Gustavo. Ele não pôde vir essa semana, mas logo você vai conhecer. Seja muito bem-vindo!

— Obrigado. Pode me chamar só de Artur — se sentou.

— Ah, mais uma coisa, Artur Henrique!

— Só Artur — corrigiu o professor pela segunda vez, com o maxilar travado em um sorriso.

— Ah, é verdade, perdão. Artur, nós iniciamos, semana passada, um trabalho em dupla, então, eu vou te passar as folhas de exercícios. Ainda tem gente sem dupla. Turma, quem puder ajudar o Artur a formar dupla depois fala com ele, por favor. Agora abram a apostila na página 71.

Era uma escola cara, assim como a que estudava no Rio, mas as coisas em São Paulo pareciam, de alguma forma, mais formais. Artur já se sentia adulto demais para os uniformes de lycra das escolas particulares, mas fazer o quê? Precisava se formar.

Sentado no canto, mas ainda assim à frente, o mestiço sentia os olhos curiosos dos "colegas" de turma queimarem suas costas. Sabia que cada vez tinha menos "passabilidade" adolescente. Aos dezenove anos, com 1,81 de altura, simplesmente não colava mais essa de "puberdade".

Não demorou pra perceber que, pelo menos em Biologia, estavam estudando algo completamente diferente do que viu na antiga escola. Suspirou desanimado e resolveu fazer as marcações nas leituras da apostila. Mais quatro meses, só mais quatro meses e aquele inferno conhecido como "ensino médio" iria acabar.

Márcio havia passado uma matéria no quadro e indicado um número de página para abrir na apostila, mas Artur lia e relia sem encontrar as frases que o professor declamava. Se sentiu um pouco perdido e irritado com aquilo, até que uma mão com dedos longos e cheios de anéis tocou em sua mesa e apontou para uma outra apostila que estava perdida e ainda embalada no plástico novo.

— São duas apostilas.

Artur se virou para o rapaz que falava consigo e seu corpo travou no instante em que os olhos miraram o rosto marcante a sua frente.

— Duas apostilas, aqui! — o menino continuava a sussurrar. Confuso, Artur puxou a apostila embalada. — Isso! Essa é só de exercícios, a outra é só conteúdo. Ele tá lendo os exercícios 8 e 9 — um sorriso alegre e convidativo se formou nos lábios carnudos do rapaz.— Ele lê devagar porque acha que a gente tá acompanhando, é um saco! — revirou os olhos. — Mas você se acostuma.

Artur concordou duas vezes com a cabeça e, só então, se permitiu reparar melhor no colega de classe.

Os cabelos eram claramente pintados de loiro, um loiro quase branco que destoava das sobrancelhas pretas. Mesmo com cara de "menino", o estilo dele era peculiar. Além das unhas pintadas de azul, numa das mãos havia uma tatuagem old school de uma rosa e sim, ele tinha tatuagens. Por debaixo do short escolar, Artur reparou que ele vestia uma... Qual era mesmo o nome daquele tipo de meia? Meia... arrastão? Isso. Meia arrastão, All Stars semelhantes aos seus e, na boca, Artur notou que os lábios brilhavam demais, usava algum tipo de batom. Sem dúvidas, aquele garoto era alguém bem diferente.

— Eu sou o Romeu, mas pode me chamar de Jun.

O sorriso do tal Romeu era, definitivamente, um show à parte. Dentes compridos, branquíssimos, nos lábios que formavam um coração e pareciam iluminar todo o ambiente.

— Artur — sorriu um pouco.

— Nada de Artur Henrique. Entendi! Se você não tiver ninguém pra fazer dupla no trabalho sobre os insetos, eu tô livre.

— Ok...

— Ok!

Romeu piscou alegre com um dos olhos e deixou Artur sem graça. A fim de encerrar aquela conversa sussurrada, o moreno tratou de voltar às suas apostilas.

Mudar de escola não era só ter que absorver toda uma cartela de novos professores, novas rotinas, novas metodologias de avaliação. Mudar de escola era também absorver um novo grupo de pessoas e de deveres sociais e aquela era a pior parte. Não demorou para que, nos intervalos de uma aula e outra, os alunos começassem a puxar assunto com o "carioca" recém-chegado.

Uma tal de Alexa e um rapaz chamado Tássio eram os que mais conversavam com Artur. Ela parecia ser representante da turma e Tássio, claramente, era o carinha popular. Todos falavam muito sobre vestibular, suas futuras profissões, os cursos pré-vestibulares que faziam além da escola, os lugares badalados que Artur tinha que conhecer. E, por mais que a socialização fosse inevitável, as respostas curtas e até misteriosas no novato quanto aos seus gostos e desejos não estavam sendo suficientes pra afastar todo aquele assédio e atenção.

Depois que os outros alunos vieram puxar papo, mais ou menos na metade da manhã, Artur percebeu que o tal Jun ficou mais calado e mais distante, trocando de lugar e indo sentar no fundo da sala, distante da algazarra. Por um lado, era um alívio, menos um enchendo o saco, mas por outro, pra ficar perfeito, só se todos aqueles riquinhos parassem de conversar consigo.

— O Márcio, ele é bem filho da puta, velho. Cuidado, sério mesmo.

— Ah, é?

Artur mal podia esperar pra última aula começar logo e interromper aquele papinho.

— Ele só se faz de bonzinho — uma outra menina comentou. — Mas na hora da prova...

— Eu vou tentar Direito, saca? Por mim nem precisava ter aula de Biologia! — Tássio, sentado sobre a mesa de Artur, gesticulava.

— Para, Tássio! Eu preciso de Biologia pra passar pra Psicologia, é matéria específica da prova. Apesar de que, nossa, meu professor do cursinho é muuuuito melhor que o Márcio!

— Ele é muito fraco! — outro rapaz se intrometeu na conversa.

Artur se sentia sufocado com todo aquele sotaque e futilidade.

— Ah, Artie! — Artur olhou para Tássio irritado com o "apelido". — Cuidado com o predador, hein...

— Predador?

E, então, foi como se todos os alunos naquela rodinha dessem leves sorrisos maldosos. trocando olhares.

— O Jun.

Alexa sussurrou olhando pro rapaz que, no fundo da sala, parecia ignorar a todos, propositalmente olhando pela janela com os fones de ouvido afundados nas orelhas.

— O que tem ele?

Artur olhou para os cinco jovens que o cercavam. Todos deram risinhos.

— Ah, cara, viadinho, sabe como é... — o maxilar do Artur travou. — Hoje tá se oferecendo pra fazer um trabalho contigo... — o tom de voz maldoso e arrastado de Tássio embrulhou seu estômago. — Amanhã tá querendo te mamar pra passear na lancha do seu pai...

— HAHAHAHAHA — um dos outros garotos gargalhou. — Pode crer, velho, ele tentou fazer isso! Artie, amarra com força o nó da sua calça, hein, o cara é super espertinho.

— Tô com pena de vocês no vestiário tendo que tomar banho com ele... — Alexa ria com a mão na boca.

— Porra, ele é um manja rola do caralho. Viadinho demais...

— E não se toca, né? Impressionante, tentando pegar os caras héteros da turma só porque são bonitos, olha pra ele — Tássio falava de forma arrogante.

— Você percebeu, Artie? — Alexa questionou. — Tava te chamando pra fazer o trabalho junto porque sempre se fode e tem que fazer sozinho.

— Claro, quem vai querer estudar com aquela aberração? — outro aluno comentou.

— Fazer trabalho em dupla com ele é sinônimo de ser assediado, cuidado!

O som alto do livro de Artur sendo fechado e batido contra a mesa assustou os demais alunos a sua volta. Olharam para ele, mas Artur estava com a cabeça baixa e o cabelo escondia parte de seus olhos.

— Tá tudo bem, mano?

Artur não respondeu.

Com raiva, o moreno reuniu caderno, livros e apostilas em uma mão, agarrou a mochila com a outra e se levantou dali. O coração batia com força e o sangue parecia correr fervendo em suas veias.

Com passos firmes, Artur caminhou até o fundo da sala. Jun tomou um susto quando viu a expressão fechada do jovem que o encarava de cima. Olhou para os alunos lá na frente, que os observavade volta com um olhar de dúvida. Jun teve certeza: já haviam falado mal de si pro novo aluno. Lá vinham mais ataques.

Mas, ao contrário do que pensou, o tom sério e irritado de Artur vociferou o inesperado.

— Você já tem dupla pra fazer o trabalho de Biologia?

— O-o quê? — os olhos redondos e assustados de Jun estavam confusos.

— Você já tem dupla pro trabalho dos insetos? — a voz grave de Artur preenchia toda a sala.

— Não, mas e daí? — Jun se armava, afinal, todo dia tinha que encarar um babaca.

— Posso fazer com você?

Os olhos puxados e castanhos do mestiço prenderam completamente a atenção de Jun, que nunca, nos dois anos em que estudava ali, havia recebido um convite de outra pessoa pra fazer qualquer trabalho. Seria algum tipo de brincadeira?

— Pode...

— Ok — Artur apontou pra mesa ao lado com a cabeça. — Posso sentar do seu lado?

Jun, assim como o resto da classe, estava boquiaberto. Os lábios em formato de coração de Artur faziam um bico que poderia ser considerado fofo se seu olhar não fosse tão irritado.

— Pode...

Artur colocou o material na mesa ao lado, jogou o cabelo pra trás e, antes que qualquer aluno lá da frente pudesse comentar algo, o último professor do dia apareceu na sala, silenciando a todos que, chocados, não conseguiam parar de olhar pra dupla do fundo e sussurrar comentários confusos.

Artur conquistou o seu tão desejado silêncio e paz na última aula, mas Jun, com o coração acelerado, não conseguiu se concentrar em nada, surpreso com o que havia acabado de acontecer ali.

O caçula dos Aguiar conferiu o horário no relógio de pulso e voltou a se concentrar no cadeado de sua bicicleta. A rotina seria assim: Ricardo o levaria de carro nos dias que tivesse aula de manhã na faculdade e nos demais Artur iria e voltaria de bike.

E foi no momento em que conseguiu destravar o cadeado que a voz conhecida invadiu o pátio vazio em que estava.

— Temos duas opções — Jun sorria, vindo em sua direção com duas coisas na mão. — Ou você não acreditou que eu chupei alguém pra andar de lancha ou você quer ganhar um boquete em troca de um passeio de lancha — Jun parou a sua frente e ergueu uma sobrancelha. — Qual das duas?

Artur jogou os cabelos pra trás, era um hábito. Jun queria sorrir porque aquilo era muito sexy, mas manteve a pose.

— Nenhuma das duas.

O moreno percebeu que não conseguiria passar com a bicicleta porque Jun estava, estrategicamente, bloqueando seu caminho..

— Então, por quê?

Pelo olhar curioso e firme do loiro, o mais velhoviu que não daria pra fugir. Suspirou.

— Primeiro porque eles são uns babacas.

— Você tem um ponto — Jun ergueu as sobrancelhas.

— E segundo... — Artur travou o maxilar e deu de ombros. — Eu não curto homofobia — Jun o olhou confuso.

— Bicha, você é viado?

Artur quis rir do jeito impulsivo do loiro, mas se segurou.

— Não.

— Não me dá esperança! Um príncipe desses... Fala logo, se você não é viado, por que tá defendendo as gays? — sem conseguir segurar, Artur deu um leve sorriso. — Isso é inédito no Brasil!

O moreno deu de ombros de novo, não ia sair se abrindo com um estranho.

— Eu só não gosto de nenhum tipo de discriminação.

— Ok, você é viado. Chega — Jun se sentou no meio-fio ao lado do bicicletário. — Aqui, toma.

O loiro esticou um picolé na direção de Artur.

— O quê? Eu tô dizendo que não sou!

— Pode parar com esse papinho, direitos humanos pra cima de mim não. E pega logo, comprei um picolé pra você, pode ficar.

Artur olhou pro rapaz sentado de pernas cruzadas lhe estendendo um picolé de chocolate numa embalagem ainda fechada.

— Não precisava... Eu tô indo almoçar.

— Bicha, você precisa se abrir, toma! — o moreno acabou pegando o picolé.

— Eu já disse que não sou gay!

— Tá bom, tá bom, come! Vai ajudar.

Artur suspirou e percebeu que, pelo olhar decidido de Jun, o loiro não desistiria daquela tese. Encostou a bicicleta no apoio e se sentou ao lado dele, no chão.

O silêncio do pátio vazio era acolhedor, o céu estava muito azul naquele dia e haviam algumas árvores bem bonitas em volta do colégio. Logo Artur notou que Jun era um rapaz bem dual, pois, ao mesmo tempo em que, de boca aberta, era muito tagarela, o loiro também sabia ficar em silêncio. Era a segunda vez no dia em que compartilhavam o silêncio e, como se estivessem sem pressa para ir embora, sorvendo o doce gelado, assim ficaram por longos minutos, curtindo a quietude do horário de almoço acalmar o colégio sempre tão barulhento. Artur gostou daquilo. O picolé também era uma delícia.

— Meu irmão é gay.

— Eu sabia que alguém era gay! — Artur riu, de novo, pela reação imediata.

— Vai me deixar falar?

— Tá, conta!

Jun se virou de frente pra Artur, chupando com calma o restodo sorvete enquanto os grandes olhos redondos o encaravam.

— Eu não curto quando... Sabe, quando discriminam caras gays só porque são gays. O meu irmão já teve que passar muito por isso, e esse tipo de coisa me deixa puto — gesticulava com calma. — E você me ajudou com as apostilas, então...

Se encararam. Jun parecia uma criança pensativa. Olhou para um lado... Para o outro... Até que se deu por conformado.

— Tô triste, mas satisfeito.

— Triste por quê? — Artur estava confuso.

— Porque não vou poder te mamar pra andar na lancha do seu pai.

A forma descarada com que ele falava as coisas deixava Artur sem graça e com vontade de rir.

— Meu pai não tem lancha... — se levantou, entrando na brincadeira.

Algo em Jun o agradava.

— Isso significa que eu tenho chance? — o loiro ergueu uma sobrancelha de forma provocativa.

— Nem um pouco — Artur subiu na bicicleta.

— Ok, eu me contento com os insetos.

Sorriram um pro outro. O sol que invadia o pátio iluminava seus rostos e, é difícil explicar, mas, às vezes, algumas almas se reconhecem. Para Artur e Jun, aquele encontro, apesar de inédito, não parecia novo.

Por alguma razão, a forma como se sentiram à vontade tomando aquele sorvete, que mais era um agradecimento de Jun pela não discriminação, foi um momento leve, como se não fizessem aquilo há muito tempo e, finalmente, tivessem se reencontrado. Era estranho, mas era exatamente assim que se sentiam.

— Parece que eu já te conheço...

Jun apoiou a mão sobre a testa, tentando fazer sombra sobre o próprio rosto e cerrando os olhos grandes e claros para protegê-los do sol.

— O quê?

— Tipo um déjà-vu...

— Como assim?

— Aquela sensação de estar vivendo de novo algo que a gente já viveu.

— Jun, eu sei o que é déjà-vu.

— Então, também tá sentindo?

Artur não conseguiu desprender seus olhos dos de Jun, que pareciam ainda mais claros com a luz batendo de cima.

— Que papo doido — sorriu sem graça.

Aquela era a primeira vez deles juntos, mas, por alguma razão, não parecia. Se sentiam à vontade perto um do outro de um jeito bom, mesmo que Artur não tivesse coragem de admitir.

Dizem que é isso que acontece quando almas se reconhecem.

— Até amanhã, Jun.

O mais velho acenou, subindo de vez na bicicleta e dando as primeiras pedaladas.

— Até amanhã, Artur.

Ainda sentado, Jun observou o moreno se afastar, sentindo, pela primeira vez em muito tempo, que havia conhecido alguém legal naquele colégio e, bom, isso sim era uma reviravolta inesperada.

Naquela manhã, Yago, um dos alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo, apresentava sua maquete de forma simpática. O tema era "escritório sustentável", já a execução...

— A claraboia central no salão garante a entrada de luz, como vocês podem ver.

— E aí você complementaria com os painéis solares? — o professor perguntava.

Todos os alunos pareciam satisfeitos com o trabalho de Yago e olhavam de perto a maquete, reunidos em volta da mesa no centro da sala.

— Isso aí.

— Tá, mas agora me conta: quanto os painéis solares vão representar em termos de economia, exatamente?

Yago coçou a nuca e deu um sorrisinho de lado, aquele era um dos seus maiores charmes e tentava usá-lo para desviar o professor da obviedade de não saber o que responder.

— Aí você tá querendo me arrasar, né, professor?

Todos riram do loiro, que não pareceu nem um pouco envergonhado.

— Ricardo, você trabalha com isso, não é? — Yago perguntou.

— Oi? Sim — Ricardo sorriu. — Eu trabalho em uma construtora de projetos sustentáveis.

— Então me salva aí, irmão, quanto economiza um painel solar?

Yago sorria simpático, mas o moreno ficou levemente sem graça com os olhares.

— Bom, normalmente, o painel solar representa uma economia de 50% a 95% na conta de luz. Instalados no alto de um prédio, como tá na sua maquete, eu acho que chegaria fácil a 95%.

— É isso, professor! Economia total! — Yago disfarçava e todos riam, inclusive Ricardo.

— Obrigado, Ricardo. E, Yago, eu sei que sustentabilidade não é a sua área, mas na próxima...

— Na próxima vai estar na ponta da língua! — Yago completou.

— Obrigado!

O professor seguiu para as outras maquetes. Como Ricardo havia começado naquela semana, recebeu mais um tempo pra apresentar seu próprio trabalho, fazendo com que naquele dia estivesse apenas observando o que os colegas fizeram.

Apesar de ainda estar no último período da faculdade de Arquitetura, Ricardo era o que poderia ser chamado de prodígio na sua área. Ainda no Rio de Janeiro, quando chegou no segundo ano de faculdade, foi apresentado, através de Alícia, ex-namorada de Artur, a uma empresa de engenharia civil e arquitetura com foco total em sustentabilidade.

Na época, era um projeto embrionário, que contava com poucos profissionais que realmente acreditavam naquilo, mas mesmo sem ser formado, sob supervisão de outros arquitetos, Ricardo se destacou muito nos projetos, conseguindo não só o seu primeiro emprego, como, literalmente, começando a construir uma carreira.

Por sorte ou destino, a empresa vinha se expandindo pelo Brasil, o que tornou fácil pra ele continuar contratado mesmo depois da mudança para São Paulo.

Apesar de só ter 23 anos, Ricardo era um rapaz bem ambicioso. Simplesmente havia se achado no ramo de sustentabilidade e sentia que, com o passar dos anos, o assunto só ganharia visibilidade. Seus objetivos eram bem claros na própria cabeça: se formar, se destacar na carreira e, quem sabe um dia, ter a própria empresa de construção civil e arquitetura.

Foi em meio aos pensamentos sobre qual maquete faria para a próxima semana que a aula terminou e Ricardo se dirigiu ao próprio carro, porém, quando engatou a chave, percebeu que o veículo ligou e, segundos depois, foi perdendo a força, como se tivesse morrido.

Com a chave na ignição, tentou novamente dar a partida, mas, como um brinquedo quebrado, as luzes do carro se acendiam para logo depois se apagarem.

— Caralho, não faz isso!

Incrédulo, o moreno desligou o carro, saiu, levantou o capô e olhou dentro. Pra ele, tudo parecia no lugar, apesar de não ser um grande entendedor de mecânica. Observou novamente, com atenção, mas não enxergou nada de errado. Água, óleo, tudo estava como deveria estar.

Voltou pra dentro do carro com o capô aberto, tentou ligar e, novamente, como se perdesse as forças, o carro apagava.

— Hey, precisa de uma força aí?

A voz conhecida fez Ricardo sair do carro à procura de quem falava.

— Porra... — avistou Yago, o menino da aula das maquetes. — Entende de carro?

— Nem um pouco — Yago se aproximava sorrindo. — Mas posso tentar.

— Beleza, vou tentar dar partida, olha pro motor pra ver se dá algum sinal?

— Vai lá!

No estacionamento quase vazio, Ricardo tentou novamente dar partida no carro, que até pegou, mas de um jeito bem fraco.

— O tacômetro tá subindo? — Yago gritou.

— Tô acelerando, subindo tá, mas não dá partida.

— Tenta agora.

E Ricardo tentou, mas mal o fez e o carro morreu.

— Caralho! Puta que pariu! — o moreno deixou o carro irritado e foi até Yago.

— Aqui parece tudo certo... Olha, eu posso tá errado, mas acho que sua bateria morreu.

— Porra! É isso! — Ricardo deu um soco no vento irritado. — É isso, cacete!

— Com o meu foi igualzinho, o motor gira...

— Mas a bateria cai — Ricardo complementou, estalando a língua irritado. — Que merda...

— É uma merda mesmo — Yago colocou os cabelos pra trás das orelhas. — Queria ter te ajudado mais que nem você deu uma força lá com os painéis solares.

— Não, tá tranquilo — o carioca sorriu. — Vou parar de insistir e chamar o reboque, só trocando a bateria, provavelmente.

— Vou te falar... — Yago coçou a nuca pensativo. — O pior é que a gente tá na hora do almoço, capaz desse reboque te dar um chá de cadeira, viu... Você tem trabalho?

— Hoje não, só volto semana que vem, ainda bem...

— Já sei — Yago sorriu largo —, faz assim: eu trabalho como barman a duas ruas daqui, em um lugar muito massa. Vamos comigo, você pede o reboque de lá e eu te pago uma cerveja. Quando o reboque chegar você volta pra cá.

— Tem certeza?

— Claro! A essa hora só ficamos os funcionários lá no Casarão, vai ser bom que você me dá umas dicas pro meu trabalho de hoje e, porra, ficar sentado aqui nesse estacionamento no sol é sacanagem, né?

— Vou te falar que uma cerveja agora cairia bem...

Se olharam cúmplices.

— Vamos logo!

Sem mais enrolação, Ricardo abaixou o capô do carro, pegou a mochila e trancou o veículo, seguindo Yago pra fora da universidade. Algumas ruas depois, já conversavam de forma casual e muito confortável sobre o perigo de carros pararem sem dar nenhum sinal de que vão escangalhar.

O Casarão, como era conhecido, consistia em uma antiga casa de tipo colonial de dois andares situada em uma rua comercial bastante movimentada. O estilo rústico, a fachada de pedra sabão,e os grandes janelões de madeira eram um charme à parte. O primeiro andar funcionava como bar e espaço para pequenos shows e no segundo ficava toda a dispensa e o depósito de bebidas. Logo no início, um enorme balcão de madeira se estendia até o final do ambiente, quase chegando ao mini palco.

Ricardo achou o lugar muito atraente e aconchegante. Não era um especialista em decoração de interiores, mas a escolha dos grandes e compridos lustres amarelos lhe pareceu muito pontual para dar um clima "retrô".

— Tenho que pagar pra jogar? — perguntou, rodeando a enorme mesa de sinuca.

— Que isso, mano, fica à vontade aí!

Yago, com a intimidade comum a um funcionário, foi abrindo as janelas e abaixando algumas cadeiras que estavam penduradas em cima das mesas.

— Muito maneiro esse espaço aqui, hein...

— Você é carioca, né?

— Como fui descoberto? — Ricardo sorriu, pegando um taco de sinuca.

— "Maneiro", só cariocas conseguem usar essa palavra sem parecer ridículo — riram.

— Qual cerveja você prefere?

— Ah, pode ser a que tiver mais gelada. Vou ligar pro reboque.

— Beleza!

De longe, com o celular no ouvido, Ricardo observou Yago abrir mais algumas janelas, expondo pequenas varandas e iluminando tudo.

Pra ter mais mobilidade, o jovem de cabelos compridos tirou a jaqueta que vestia e amarrou na cintura. Ricardo pôde perceber que, apesar de ser um homem menor que ele, Yago tinha braços bem definidos.

— Isso... No cruzamento com a avenida principal...

Ricardo olhava Yago enquanto explicava a situação do carro ao atendente.

O corpo do menor era bem magro, mas a regata propositalmente cortada "demais" nas laterais expunha as clavículas marcadas e, sem esforço, mostrava um piercing no mamilo esquerdo.

O moreno achou o jeito dele de se vestir muito parecido com o de Artur, talvez pelos tênis All Star ou pela calça rasgada, mas o mais impressionante era que, apesar de magro, Yago parecia bem forte, pois levantava e abaixava engradados e caixas de bebida como se fossem folhas de papel.

— Ok... certo. Eu tô na rua ao lado, em um bar, esperando. Você me dá uma ligada quando chegarem? Ah, obrigado!

— E aí, eles vêm?

O colega de classe se aproximou de Ricardo com duas long necks tão geladas que o vidro tinha uma leve camada esbranquiçada por fora da garrafa.

— Disseram meia-hora, vamos ver... — guardou o celular no bolso.

— Vai dar certo!

Os dois deram grandes goles em suas cervejas, que desceram prazerosas pela garganta naquele dia tão quente.

— Não sei porquê, mas eu me amarrei nesse lugar, cara... — Ricardo se sentou em um banco alto.

— Aqui é mágico — Yago, dando um impulso, conseguiu sentar sobre a mesa de sinuca. — Eu que reformei.

— O quê? — Ricardo o olhou surpreso.

— Sério! O dono daqui, Seu Nelson, gente boa demais, me pediu uma ajuda. O lugar é super bem localizado, mas tava caindo aos pedaços. Eu e uns amigos ajudamos nas reformas mais estruturais, ele pagou uma grana extra. E aí foi só melhorar a fachada que começou a atrair clientes.

— Você faz o que aqui?

— Eu sou barman. Preparo uns drinks bem da hora, você vai curtir.

— Sério?

— Sério! Como tô aqui faz muitos anos, sou meio que gerente do espaço também, e sempre que posso tô tentando reformar alguma coisinha.

— Gosta de reformar coisas, então?

— Bom, esse é o plano. Minha ideia era, depois de terminar a faculdade, trabalhar com restauração ou algo assim.

— Nossa, Yago, ninguém curte essa área, você vai ficar rico!

— Capaz de você ficar antes de mim — Yago ergueu uma sobrancelha sorrindo. — É muito difícil conseguir emprego em museu ou em projetos do governo com isso.

— Para com isso de "é difícil", olha o que você fez aqui! Preservou toda a parte estrutural. Falta quanto pra você se formar?

— Dois períodos, e você?

— Um só — Ricardo suspirou, bebendo mais alguns goles. — Finalmente um só.

— É foda... É foda conseguir terminar, mas pelo que o professor disse você é tipo "o cara" dos projetos sustentáveis — Yago fez uma imitação engraçada da voz do professor.

— Olha — Ricardo ria. Seu sorriso era largo e muito bonito. Aliás, eleparecia ter acabado de sair de um filme de Hollywood, e nem mesmo Yago conseguia ignorar isso —, eu achei aquele professor meio "over", sabe?

— Ele é. Ele é exagerado assim mesmo, mas conta aí! — Yago se sentou mais à vontade. — Trabalha com o quê?

— Planejamento de espaço sustentável pra empresas terceirizadas. É um projeto que começou lá no Rio e tá se espalhando pelo Brasil, é uma parada bem maneira e eu dei a sorte de ser líder da expansão pelo sudeste.

— Você é playboy, né?

— Não me ofenda! — riram.

Assim, sem pretensão, as risadas baixas, porém sinceras, foram preenchendo o espaço, do mesmo jeito que uma luz confortável de fim de tarde e alguns incômodos sons de carros e buzinas foram criando o cenário perfeito para o nascimento de uma nova amizade.

Acabaram tomando mais uma cerveja enquanto batiam papo. Yago descobriu que Ricardo era três anos mais novo, apesar de aparentarem o inverso, e Ricardo ficou sabendo como funcionavam os projetos de fim de curso na universidade, assim como os professores que deveria evitar.

A meia-hora do reboque rapidamente virou uma hora inteira, mas os dois formandos não se incomodaram em continuar aquela "troca de ideia" gostosa e leve. Acabaram entrando em vários outros assuntos quando perceberam que tinham em comum o interesse por jogos de videogame. Foi no momento em que Yago abria a terceira long neck que, como uma brisa fresca, a voz marcante de outro rapaz invadiu o espaço.

— Bebendo na hora do trabalho, Yago Ferraz?

O tom grave foi a primeira coisa que chamou a atenção de Ricardo. Os dois olharam pra porta, de onde vinha, andando com passos firmes em um coturno médio, um homem alto e esguio, tirando o capacete de motociclista que usava.

— O que você... já sei! Esqueceu as chaves, né, Pedro? Ricardo, esse é o Pedro, Pedro, esse é o Ricardo, um novo aluno da minha turma.

Pedro finalmente conseguiu tirar todo o capacete e sacudiu um pouco a cabeça pra arrumar o cabelo, algo entre o vermelho e o rosa, e Ricardo precisou disfarçar o impacto que a beleza do homem a sua frente causou.

Os fios do cabelo do cabelo de Pedro eram algo entre vermelho e rosa e o seu rosto, apesar do olhar firme, possuía traços delicados e absurdamente simétricos, os lábios eram pequenos e muito carnudos e os olhos, redondos, de um castanho que ficava ainda mais brilhante e amarelado naquela luz de fim de tarde. Pedro era...

— Ele é um gato — Yago despertou Ricardo dos seus pensamentos. — Todo mundo fica assim quando vê o Pedro, ele é uma tremenda gostosa!

— Para! — Pedro chutou a canela do amigo.

— Ai! Tô zuando. E você é todo bonitão também, né, Ricardo, deve saber como é essa vida...

— Para de encher o saco, Yago! — Pedro o cutucou mais uma vez com força, agora no braço.

— Para, vai me deixar roxo!

— Tomara! Já que você gosta...

Interrompendo o pequeno diálogo íntimo, Ricardo jogou os cabelos pra trás e retomou a postura antes perdida. Se aproximou do quase ruivo, que estendia a mão para si.

— E aí, tudo bem? Eu sou o Pedro — Ricardo o cumprimentou educadamente.

— Prazer, sou o Ricardo — sorriu.

— Você é... carioca?

— Nossa, e eu achando que carioca não tinha sotaque, vocês percebem na hora!

— Carioca sem sotaque? — Pedro ergueu uma sobrancelha sorrindo. — Para de ser sudestino! — riram.

— Quer beber? — Yago ofereceu a própria garrafa.

— Nada, tô de moto, muito de passagem e mega atrasado!

— Como sempre — Yago sorriu, já prendendo o cabelo. — Chave?

— Chave — Pedro o seguiu até onde estava jogada a mochila do barman.

— Você tem que parar de perder a chave de casa, caralho, não aguento mais te dar a minha!

E, então, foi como se uma luz piscasse na cabeça de Ricardo.

— Vocês são...

— Não somos um casal — falaram em uníssono.

— Só moramos juntos — Pedro respondeu, pegando a chave. — E eu sou um fudido esquecido que gosto de deixar meu chaveiro de presente pras pessoas por aí — riram.

— Pedro, falando sério, acabaram as chaves reservas...

— Confia em mim, bae, sério! — Pedro fez um biquinho fofo. — Ah, eu trouxe uma coisa — abriu a bolsa carteiro. — Sabe aquela boate nova que abriu?

— Aquela com nome de planeta?

— Isso, a Uranus! Um colega fez uma cobertura pro jornal sobre como ela tá bombando e tal... — procurava algo na bolsa. — Aqui! — puxou seis papéis. — São ingressos pra sábado, podem ficar — entregou três pra Yago e três pra Ricardo.

— Ah, mas eu nem conheço aqui direito — Ricardo olhou para os ingressos, que brilhavam em um azul escuro cintilante. Parecia um lugar bem descolado. — Você realmente não quer?

— Não, não dá pra mim, festas ou boates à noite, sem condição

Quando Pedro sorria, suas bochechas disputavam espaço com os lábios grossos, o que era realmente adorável e sexy.

— Se você não faz questão... — Yago olhava os ingressos.

— Pode ficar, chamem uma galera da turma de vocês, algo assim.

— Você não consegue uma folga pra curtir mesmo? — Yago o olhava meio preocupado. — Também precisa espairecer...

— Eu preciso sabe do quê? — Pedro se aproximou de Yago e beijou sua bochecha com carinho. — Dinheiro — sorriu.

O celular de Ricardo tocou e o moreno se afastou pra atender, era o reboque.

— Gato, né? — Pedro sussurrou.

— Pra caralho... aluno novo. Deve ser hétero.

— Parece — riram cúmplices.

— O reboque tá chegando — Ricardo voltou.

— Você tá indo pra onde? — Pedro perguntou.

— Pra universidade, a algumas ruas daqui.

— Ah, então vem. Te dou uma carona rapidinho.

— Tudo bem mesmo?

— Vamos logo, carioca — Pedro sorriu. — Vem!

Depois de se despedirem, Pedro emprestou o capacete reserva pra Ricardo e em poucos minutos o moreno já estava de volta ao estacionamento da faculdade, enquanto o jovem simpático de cabelos coloridos seguia seu destino.

Ricardo havia acabado de sair do banho e não havia se secado completamente quando o telefone tocou. Com uma toalha amarrada à cintura, andava de um lado para o outro conversando com o namorado.

— Mas eu pego o carro rápido e passo aí. Tá chovendo, Vi, como você vai conseguir pegar ônibus assim?

— Como eu sempre fiz, Rick...

Então, duas leves batidas foram ouvidas e Suzana, mãe de Ricardo, apareceu na porta.

— Posso entrar? — sussurrou.

Ricardo fez um sinal positivo com a cabeça e continuou andando pelo quarto insatisfeito.

— E aí a gente não se vê hoje, também não vai se ver sábado...

Ricardo era um homem genioso e raramente se sentia confortável quando as coisas não iam como planejava.

Eu não tenho como ir a uma boate no sábado, Rick, você sabe que eu tenho que cobrir o pessoal no telemarketing a cada quinze dias, mas eu não ligo se você for, de verdade. Os seus amigos de curso, essa galera, é importante pra te ajudar, você caiu de paraquedas em uma nova universidade, em uma nova cidade, você precisa conhecer pessoas...

— Mas eu queria conhecer pessoas com você do meu lado — disse baixo, engolindo a vergonha de admitir aquilo.

Quando você tava no Rio sempre saía e isso nunca foi uma questão.

— Justamente por isso, Victor! — Suzana arrumava as roupas nas gavetas. — Mãe, deixa isso aí, eu arrumo depois... — Ricardo se dirigiu à mãe rapidamente, que não parecia disposta a parar. — Quando eu tava no Rio tinha motivo, mas agora a gente tá aqui, junto.

Rick, sério, se na sua segunda semana em São Paulo você deixar de fazer algo por minha causa eu vou me sentir muito mal.

— Então, se conseguir uma folga, vem comigo.

Mas Ricardo não queria deixar de fazer. Ele queria que Victor cedesse a sua vontade.

Estão me chamando aqui, meu intervalo acabou, podemos falar quando eu chegar em casa?

— Claro...

— Eu te amo.

— Eu também.

Pela linguagem corporal Suzana sabia quando Ricardo estava irritado. A forma como ele travava a mandíbula e ficava abrindo e fechando o punho era muito única. Era estranho ver os mesmos trejeitos de menino agora em um corpo de homem.

— Era o Victor? — perguntou de um jeito doce.

— Era sim — Ricardo se aproximou, começando a ajudar a mãe a arrumar as roupas nas gavetas.

— Rick, eu queria falar com você.

— Pode falar — Ricardo a olhou de soslaio.

— O Artur, ele fez um amigo na escola — sorriu.

— Ah, então o emburrado já tem até amigo?

— Eu tô te falando! Fiquei muito feliz, até escutei ele brigando com o rapaz pelo telefone, era alguma coisa sobre terem comprado um livro errado de referências pro trabalho do colégio. Parecia engraçado, quer dizer... É muito bom ver ele distraído, você sabe... Vivendo.

— Ele vai conseguir — ainda falando, Ricardo foi até o banheiro da suíte. — Ele é sensível e tem um coração enorme, é impossível não gostarem dele — e, então, voltou pro quarto vestindo uma samba-canção larga.

— Sim! E, olha, eu falei com o seu pai e pensamos em fazer um churrasco no domingo — o moreno olhou insatisfeito pra mãe. — Poxa Rick, escuta...

— Eu tô escutando.

— Só pra gente. Vamos comer algo diferente, estrear a churrasqueira e o quintal, ter um momento em família. Eu falei com o seu pai, você pode trazer o Victor e...

— Mãe — a chamou com um tom firme. — Que família?

Suzana abriu a boca, mas as palavras morreram antes que pudesse falar qualquer coisa. Ricardo percebeu, pelos olhos verdes como os seus, que a havia magoado.

— Me desculpa... — disse baixo, vendo como as mãos da mãe apertavam com força a camisa que antes dobrava. — Olha... — Ricardo se ajoelhou de frente pra ela, buscando seus olhos. — Eu não gostaria de trazer o Victor porque realmente não quero que ele tenha contato com o Ricardo Felipe, mas... — tocou com carinho o rosto da mãe e sorriu triste. — Mas eu topo.

— Sério?

— Sério — sorriu mais ao ver os olhos da mulher se alegrarem. — Eu te ajudo a fazer vinagrete, pode ser?

— Obrigada, filho... — Suzanna penteava os cabelos lisos de Ricardo pra trás, expondo sua testa. — Obrigada por tentar. Pode chamar quem você quiser, mas eu entendo se não quiser convidar ninguém.

— Não precisa agradecer — suspirou, beijando-a nas mãos. — Eu te amo.

— Eu te amo, filho.

O som dos corpos se chocando se misturava com o barulho do chuveiro. O gemido de Pedro era baixo e contínuo.

Com uma das mãos espalmada na parede de azulejos e a outra afastando uma das nádegas para facilitar a penetração, foi inevitável o gemido um pouco mais alto quando o outro levantou uma de suas pernas buscando ir ainda mais fundo na cadência firme.

— Pedro.

A voz de Yago o chamava do lado de fora do banheiro.

— Pedro!

Os cabelos vermelhos grudavam pelo rosto. A cena que Pedro protagonizava era indiscutivelmente sexy. O rosto molhado, os cabelos colados na testa, os lábios inchados e os olhos fechados com força. Estava lindo e completamente entregue.

Parte do cabelo perto da nuca era puxado com brutalidade e, com a boca aberta, desesperada em busca de ar, Pedro não conseguia parar de se masturbar enquanto sentia a firmeza do homem atrás de si lhe invadir cada vez mais forte.

— Pedro!

— Fala! — tentava, inutilmente, disfarçar o tom de gemido.

Eu tô saindo.

O homem atrás de si sussurrou no ouvido de Pedro.

— Eu tô quase gozando...

— T-tá... Tá certo!

Respondeu, confuso sobre se concentrar no homem atrás de si, em Yago ou no movimento rápido da própria mão.

— Deixo o leite no microondas junto com a comida?

A cada nova estocada — com força — por trás, Pedro era mais dominado. Todo o corpo do ruivo era jogado pra frente, batendo contra os azulejos gelados, e a forma bruta com que era tratado, ao invés de assustar, só o excitava mais.

Mas se engana quem pensa que Pedro era do tipo fácil de se dominar. Mesmo transando em pé, em um banheiro pequeno, o jovem de cabelos coloridos sabia impor o que queria. Provocava nos movimentos e, hora ou outra, mirava por cima dos ombros lançando seu olhar mais sexy.

A mão ágil e experiente do ruivo não tardou a começar um estímulo mais intenso no próprio pênis, em busca do alívio que o próprio corpo suplicava.

— Não me aperta assim! — o homem falava em seu ouvido.

— Assim, Vicente? — Pedro provocou, repetindo o movimento.

— Que cu gostoso, Pedro — sussurrou, fazendo o ruivo sorrir.

Um tapa alto pôde ser ouvido até do lado de fora do banheiro. Yago sabia que era a bunda, agora vermelha, de Pedro sendo castigada. Mesmo assim, o rapaz suplicava por mais.

— Bate...

Após revirar os olhos, Yago voltou a interrompê-los.

— Pedro, você ouviu que deixei a comida no microondas?

— Ouvi, Yago, caralho!

— Tá, então...

— Ah! Isso! Isso!

E, sem conseguir se conter, o gemido do orgasmo foi escutado por Yago e, quem sabe, até por Gustavo, o vizinho do apartamento da frente.

Pedro tinha uma voz muito grave, e isso podia ser um charme, podia ser assustador, ou, em momentos como aquele, podia ser filhadaputamente sexy.

O espasmo veio por todo o corpo como uma corrente elétrica, aquela era a libertação de Pedro. Seu corpo ansiava por aquilo. Tremia todo, sentindo não só a tensão, como também seus demônios, sendo exorcizados. Mesmo depois dos jatos fortes de sêmem que escorriam entre seus dedos, Pedro apertava a cabeça do pênis em busca de mais, precisava de ainda mais daquilo, era tão bom, tão bom cada vez que gozava forte daquele jeito, que sentia que poderia morrer.

Yago encarou a porta do banheiro e não pôde deixar de arregalar os olhos, assustado com os sons dos corpos se chocando ficando mais e mais alto.

Com as duas mãos nos azulejos, agora as coxas firmes de Pedro lutavam pra se manter de pé, mesmo que suas pernas estivessem bambas. Rebolava manhoso, em busca de ainda mais contato com o pênis dentro de si e enlouquecendo Vicente, que não conseguia conceber como o menor poderia ter tanto autocontrole para, mesmo depois do orgasmo, continuar provocando-o daquele jeito tão... gostoso.

Experiente, Pedro sabia o que fazia e fazia muito bem. Era difícil não se viciar em seu corpo.

Outro tapa forte, seguido por um gemido mais alto e provocador, invadiu o corredor. Vicente estava perdendo o controle... Pelo menos foi o que Yago pensou, revirando os olhos impaciente. ,

— Não esquece de ir na dona Luisa, já são dez horas.

Sem respostas, desistiu do diálogo, seria inútil continuar tentando. Antes de sair, Yago viu que na sala tudo parecia organizado. Apagou as luzes e seguiu pra fora dali, após trancar a porta.

O barman sabia que a vida de Pedro não era fácil e que era em intervalos como aquele que o amigo conseguia "dar uma rapidinha", mas sempre, sempre que Pedro resolvia transar com alguém em casa, o que não era muito comum, parecia escolher a dedo os piores momentos. Tinha um péssimo timing para sexo e, mesmo após três anos morando juntos, Yago e ele continuavam sem achar um bom ritmo pra isso.

A boate, assim como dizia o nome, tinha uma suntuosa fachada azul, em formato de planeta, com uma espécie de "arco" girando em volta onde se lia "Uranus". Era moderna, chamativa e, aparentemente, bem cara.

A fila era de virar o quarteirão, mas Pedro era um jornalista com ótimos contatos e sempre que conseguia ingressos normalmente eram vip, como naquela noite.

— Seu namorado não vai conseguir vir?

Disfarçando a surpresa por ter descoberto há pouco tempo que Ricardo, afinal, não era hétero como ele havia imaginado, Yago perguntou ao ver que o moreno lia um SMS com uma expressão completamente contrariada.

— Ele vai pegar o turno da madrugada, só sai às cinco.

— Olha... — um outro colega da turma de Arquitetura falava. — Do jeito que esse lugar parece foda, capaz de dar tempo da gente sair daqui e você ainda buscar ele!

— É verdade, Rick — Yago, que estava muito bonito com o cabelo em um rabo de cavalo, tentou sorrir, consolando o mais novo amigo. — Não fica chateado, a gente só vai curtir um pouco.

— Eu não tô chateado — irritado, Ricardo fez um movimento jogando a franja do cabelo pra trás. — Eu só tô puto. Ele disse que iria tentar.

Yago deu de ombros, percebendo que talvez fosse melhor encerrar o assunto.

— Sinto muito, Rick, mas vamos tentar nos divertir juntos — Maitê, uma caloura também colega deles, falava. — Você vai amar São Paulo — a jovem sorriu provocadora. — Confia em mim!

Os colegas de curso pegaram as identidades pra entrar na boate enquanto Yago e Ricardo trocaram um olhar cúmplice e um tanto sem graça.

— Se prepara pras cantadas — Yago sussurrou, dando de ombros.

— Você também. A Maitê parece que veio bem focada hoje.

— Pensei que ela namorava o Leandro.

— E namora — falavam dos dois colegas que estavam um pouco à frente.

— Eles...

— São modernos — Yago riu safado.

— Ok, espero que ela não foque em mim.

— Bom, se ela focar em mim... Até que não vai ser um problema.

— O quê? — Ricardo abriu um sorriso. — Você é bi?

— Eu não, mas o Leandro é! — riram.

Foi no meio desse papo desconexo que todos adentraram a Uranus. A boate era realmente ampla. O show das luzes de led, sem dúvida, foi o que mais impressionou, seguido pelo bar, com uma bancada que mais parecia um espelho, pelo palco enorme para a cabine do DJ, e pelas pessoas. Claramente só tinha gente rica ali.

O som era muito alto, mas não chegava a ser incômodo. A batida da música parecia reverberar até seus corpos e, inevitavelmente, alguns já saíram dançando.

— O nosso mezanino vip fica lá em cima!

Ricardo apontou para o lugar e, animados, todos seguiram para a pequena mesa com sofá em formato de U no segundo andar. Em menos de cinco minutos, um balde de cervejas dividia espaço com uma garrafa de vodka na mesa. Yago ainda pediu um suco específico e fez uma boa e bem alcoólica mistura para os amigos.

— Você é bom nisso! — Ricardo sorriu.

— Não me diga!

De pé, olhando pelo mezanino, era possível ver as pessoas dançando lá embaixo. Ricardo abriu o celular e encarou o último SMS enviado para Victor.

"Se você quiser, eu vou te buscar depois daqui."

Mas a mensagem não teve resposta, provavelmente ele estava trabalhando.

Dando um grande gole na bebida, Ricardo olhou pra frente e viu um casal, muito animado, de dois caras se pegando. Estava levemente inconformado. Uma coisa era não poder viver "uma saída à noite" com Victor porque moravam em Estados diferentes, outra era não poder ter o namorado ali com ele mesmo estando tão perto.

Ricardo não era nenhum insensível, sabia o quanto o mais novo se esforçava , mas algo, desde que lhe fizera o convite, o deixou com a sensação de que Victor não queria acompanhá-lo naquela saída e, pior, que Victor havia dado um jeito de fugir através do trabalho. Sabia que eram suposições graves e que estava pensando o pior do namorado, mas raramente sua intuição o enganava. Se suas desconfianças fossem verdadeiras, o mistério maior seria descobrir porquê Victor evitou aquela saída, e Ricardo era ótimo em desvendar mistérios.

— Aqui! — Yago virou mais vodca dentro do seu copo. — Vou ter que te embebedar até você desamarrar a cara?

— Foi mal — falavam com os rostos próximos devido à música alta. — O lugar é foda!

— Só a música podia ser melhor — comentou dando grandes goles em sua bebida.

— Porra, não ia tocar Led Zeppelin aqui, né? — intimo, Ricardo passou o braço pelos ombros de Yago, que gargalhava.

— E os gostosões, não vão dançar comigo? — Maitê, pegou os dois pelos braços.

— Agora? — Ricardo perguntou sem jeito.

— Agora! — ela sorria. — Vem!

Só deu tempo de Ricardo e Yago passarem a mão cada um em uma cerveja. Sem espaço pra protestar, Ricardo, Yago e Maitê desceram para o primeiro piso bem no momento em que uma das músicas dance-pop mais em alta naquela época, começou a tocar. "In For The Kill" era realmente inebriante, eletrônica e futurista, a batida marcada deixava tudo sexy e envolvente com a letra e a cadência da melodia.

Para a surpresa de todos, Ricardo, apesar de ser um homem grande com seus 1,85, sabia dançar e se movia de um jeito bem atraente, sempre jogando os cabelos pra trás, distribuindo sorrisos e movendo os ombros e os quadris como um verdadeiro dançarino.

Bastante dominador, Ricardo tocava os corpos de Maitê e Yago com precisão. Apesar de ser só uma dança, a forma como o cabelo caia sobre os olhos do moreno e o jeito como se aproximava, encarando os amigos, segurando na cintura, nas mãos e puxando-os pelo braço, era extremamente provocativa. Ricardo era surpreendente. Mesmo sem se soltar tanto quanto alguns caras gays mais afeminados, de ser sem ritmo era algo que ninguém poderia acusá-lo.

Se divertiram durante a dança. Maitê estava especialmente bonita, com uma saia que formava um balão a sua volta nos momentos em que girava. Claramente, a menina era muito fã de pop e, apesar dos flertes iniciais, agora ela demonstrava apenas interesse em aproveitar a música.

Empolgada, simulou o formato de um microfone com uma das mãos e dublou, a plenos pulmões, aquele hitque era um dos mais tocados nos últimos meses.

— Two hearts with accurate devotions, ooh!

Esticou o "microfone" pra Ricardo, que, milagrosamente, gostava daquela música.

— And what are feelings without emotions?

O moreno simulou uma cara de "popstar" e todos gargalharam animados, continuando a cantar.

— I'm going in for the kill. I'm doing it for a thrill. Ooh, I'm hoping you'll understand, and not let go of my hand...

Dançando a três, ambos, Maitê e Yago, lutavam para não serem tragados pelos movimentos sensuais dos quadris de Ricardo, ou pelos seus toques firmes.

Yago era o que levava menos jeito pra dança, mesmo assim o rockeiro se permitiu soltar os cabelos e balançar a cabeça pra lá e pra cá, a fim de curtir o momento e pôr um pouco pra fora toda a tensão do dia a dia, afinal, rebolar não era o seu forte, mas extravasar era com ele mesmo.

Não demorou para Leandro e Alisson, os colegas de turma, se unirem a eles na pista de dança, que mesclava pop e eletrônico. Os jovens formandos pareciam exorcizar, através do suor e dos movimentos firmes, todo o estresse que a vida e o cotidiano colocavam sobre seus ombros.

Passaram realmente muito tempo na pista. Yago subiu para o mezanino, pegou cervejas, desceu, dançaram, comparam mais cervejas e tentaram conversar ao pé do ouvido uns dos outros entre as trocas de música, mas era inútil, pois o lugar parecia estar cada vez mais cheio e mais animado.

Algumas mulheres e alguns homens chegavam em Ricardo, que educadamente os dispensava. Gostou do ambiente, pra ele ali não era uma boate gay cheia de "bichinhas oferecidas" que ficavam dando em cima o tempo todo, mas também não era um ambiente extremamente heterossexual. Enquanto dançava se divertia, mas, sempre com um certo incômodo, olhava a caixa de mensagens do celular buscando alguma notícia de Victor.

Maitê era só alegria. A jovem parecia tão envolvida com as músicas, vivendo uma relação de profundo amor com a playlist do DJ, que os movimentos, antes cheios de insinuações pra Ricardo, agora eram de verdadeira animação e puro suor. Talvez por isso, a única mulher do grupo pareceu não se importar quando, em uma pilastra próximo a eles, Yago empurrou o corpo de Leandro, seu namorado, dando investidas intensas em um beijo cheio de línguas, mãos no pescoço e até sorrisos. Pelo pouco que Ricardo observou, aparentemente a pegação estava bem gostosa.

Foi no instante em que "Poker Face" começou a tocar que o moreno percebeu que já estava bom de "mundo pop" por uma noite. Música eletrônica até dava, mas divas do pop era demais.

— Já volto, vou beber! — comentou com Alisson e Maitê.

O lugar parecia mais cheio do que quando chegaram.

— Me vê outra long neck, por favor!

Entregou o cartão de crédito pro barman e puxou o celular. Uma nova mensagem de Victor.

"Eu não quero que as coisas sejam assim. Não quero que, por causa do meu estado emocional, você sinta que tem que abrir mão da sua vida por mim. Eu vou melhorar, Rick, você não tem que se sentir responsável."

Completamente puto, Ricardo pegou a cerveja, o cartão e saiu andando. Se aproveitando da pulseira vip, resolveu ir para a área de fumantes, que ficava na lateral da boate. Tentou controlar a vontade imensa que sentiu de fumar. Fazia isso raramente, mas fumar bebendo era de fato tentador.

Ainda com o celular nas mãos, decidiu se afastar das pessoas com seus cigarros, indo para mais longe. Com o vento da madrugada refrescando seu rosto suado, foi para os fundos da boate, do lado de fora, onde havia alguns poucos carros parados. Ali era como uma extensão do estacionamento, mas mais vazio e meio mal iluminado.

Deu dois goles na cerveja e se apoiou em um carro enquanto digitava.

"Namoramos virtualmente por dois anos. Há um ano e meio que começamos a nos ver. Agora eu moro na sua cidade e no primeiro programa de casal que podemos fazer juntos não conseguimos. Eu não quero que você se isole de mim. Eu não sou mais seu namorado virtual e, por alguma razão, eu sinto que você não queria estar aqui hoje..."

— Cadê o dinheiro, moleque?

Foi no momento em que acabava de digitar a mensagem e ia apertar o botão "enviar", que Ricardo ouviu uma voz sussurrada e extremamente ameaçadora.

— Eu não tenho... Eu já disse que não tenho... — uma voz chorosa respondeu.

Ricardo olhou em volta. Via alguns carros. Ouviu sons de chutes e tosse.

— Para, por favor! Não! Meu rosto... Não!

Os olhos do moreno percorreram todo o espaço a sua volta.

Em uma espécie de "beco" no fundo da boate, dois homens chutavam a barriga de um rapaz com força. O estado do menino caído era deplorável. Havia sangue na regata branca rasgada. Com as mãos e braços, em desespero, o rapaz claramente tentava proteger o rosto da violência dos chutes que levava.

— O viadinho não quer no rosto? Ah, é? — um dos homens, o mais baixo e um pouco mais gordo, se abaixou e levantou o menino pelos cabelos. — Seu viadinho de merda! — cuspiu em seu rosto. — Achou que ia roubar o nosso dinheiro e ficaria por isso mesmo?

— Cadê o dinheiro, porra?! — o segundo homem socou com força a boca do estômago do rapaz.

— Eu perdi! — o menino gritou.

— Você disse que ia conseguir entradas vips pra gente! — outro soco.

— Responde! — o mais baixo cuspiu de novo.

— Ei! — uma terceira voz grave se fez presente.

Assustados com a presença de Ricardo, os dois homens soltaram rapidamente o corpo do rapaz que estava sendo espancado. Ricardo logo viu que eles não pareciam criminosos, estavam mais pra clientes da boate.

— Posso ajudar vocês?

— Não se mete aqui não, playboy — o mais alto deu dois passos pra frente.

Ricardo percebeu que o menino caiu de joelhos no chão, parecia acordado ainda. Pelo menos havia conseguido atrair a atenção dos dois trogloditas pra si.

— Eu tenho certeza que, seja lá o que esse cara fez, podemos resolver de outra forma.

— Olha aqui, herói, a menos que você pague os quatrocentos reais que esse putinho roubou da gente, é melhor não dar nem mais um passo.

— Ah, e o boquete bem feito que ele prometeu e também não cumpriu — o mais baixo acrescentou.

Ricardo engoliu em seco aquela informação.

— Podia ter se esforçado mais, hein, boquinha de veludo!

O outro chutou novamente a barriga do rapaz caído, fazendo-o, dessa vez, cuspir sangue.

— Para, caralho! — o moreno gritou, agora partindo pra cima. — Eu mandei parar! — empurrou o homem pra longe.

Quando viu que o outro vinha em sua direção, Ricardo deu dois passos pra trás, se pondo à frente do corpo encolhido no chão, que tossia sem parar.

— Aqui! — puxou a carteira. — Aqui — tirou três notas de cem e uma de cinquenta, esticando o braço —, eu não tenho tudo, pega logo e a gente acaba com essa porra!

— Tu é o cafetão dele?

— Não te interessa!

O tom gutural e o olhar beligerante de Ricardo deixavam claro que as opções eram aceitar o dinheiro e parar por ali ou entrar em uma briga corporal contra o moreno. Os dois homens se entreolharam, pesando os prós e os contras da situação.

— Deve ser só mais um otário que esse moleque enganou — sorrindo de canto, o mais baixo pegou o dinheiro.

— Deve ter dado pra esse com vontade — o outro comentou, dando dois tapas no ombro do amigo. — Vambora.

— Tá, pode ser...

— E, moleque! — o mais alto apontou para o rapaz caído. — Se eu te ver de novo na minha frente, na minha área ou tentando enganar amigo meu, juro que não vou deixar seu rostinho bonito sem marcas na próxima vez!

Feita a última ameaça, os homens se afastaram. Ricardo sentia o coração acelerado e as têmporas pulsantes. Quando viu o carro dos dois se afastando, virou de frente pro garoto e que sensação estranha foi, enfim, fitar o rosto assustado a sua frente.

Naquela madrugada fria, seus olhos se encontraram sob a luz fraca do estacionamento. O rapaz loiro, com a meia arrastão rasgada, a regata suja de sangue e as mãos cheias de poeira do chão em que se apoiava, sustentou um olhar firme pra Ricardo que, de pé, não sabia exatamente o que sentir. Logo ele, Ricardo, que sempre tinha resposta pra tudo se viu sem fala ao encarar um corpo tão frágil sustentando um olhar tão seguro.

O coração de Ricardo estava quente. Seu corpo estava quente. Aquele garoto lhe causava um calor estranho.

Para Jun não era diferente. Os olhos verdes do homem parado diante de si brilhavam de um jeito que ele nunca havia visto e, apesar de não se conhecerem, algo lhe era familiar. Olhar Ricardo era como... Era como voltar pra casa.

Ficaram se encarando por longos minutos. Um de cima e o outro de baixo. Sem vulnerabilidades ou cabeças baixas. Sem vergonha, apenas uma curiosidade imensa, como se buscassem um no olhar do outro a solução pra algum enigmaindecifrável.

Os corações batiam mais fortes do que as batidas da música dentro da boate. Lábios secos, olhos atentos, mãos fechadas em punho, como se estivessem prestes a começar a travar uma briga por suas vidas.

E estavam.

— Obrigado.

A voz grave do loiro, que contrastava com o corpo magro, despertou Ricardo.

— Eu posso... — ainda de joelhos, Jun engatinhou até onde Ricardo estava. — Te agradecer... — esticou o braço e, com a ponta dos dedos longos, cheios de anéis, tocou a fivela do cinto do moreno. — Se quiser.

Ricardo ficou em choque. No beco escuro, com o corpo repleto de hematomas, os olhos redondos e claros do rapaz sustentavam convicção ao oferecer o que, até então, foi a coisa mais absurda que já haviam oferecido a Ricardo em toda a sua vida. A indignação cresceu no peito como uma chama.

O som do tapa talvez tenha sido mais alto do que toda a surra que os dois homens haviam dado em Jun. A mão firme de Ricardo estapeou os dedos do loiro com força. Chocado, Jun o olhava sem acreditar que o mesmo homem que o defendera minutos atrás havia acabado de lhe estapear.

— Eu... — Jun, pra surpresa de Ricardo, abaixou a cabeça, finalmente vencido pela vergonha. — Eu faço pra te agradecer e porque... Porque tô sem o dinheiro da passagem pra ir embora daqui — a voz parecia sufocada entre os dentes. — Só aceita, porra! — ergueu a cabeça, olhando-o impassível, mesmo que sua dignidade estivesse no lixo.

— Seu merdinha.

Ricardo ergueu o queixo com desprezo.

Jun sentiu ódio.

Os dois sentiam muitas coisas ao mesmo tempo.

— Quantos anos você tem? Dezesseis? Dezessete? — Jun se afastou e abraçou os próprios joelhos. Estava no próprio limite. Queria chorar. — Chupando caras em troca de dinheiro, roubando o dinheiro deles em troca de favores! Olha pra você!

O corpo de Jun tremia.

— Você deveria estar estudando, trabalhando, sendo útil, mas se comporta como um viadinho de merda — Ricardo puxou a carteira do bolso. — Toma o caralho da sua passagem! — com raiva, Ricardo jogou suas últimas duas notas de vinte reais na cara de Jun. — É isso que você quer? Dinheiro? Tá aí! Agora pode voltar a viver sua vida de merda, sua bichinha!

Ricardo deu as costas pro rapaz, mas se sobressaltou quando sentiu uma lata de refrigerante atingi-lo com força. O choque veio contra o ombro, bem forte para uma latinha vazia, mas não o suficiente para feri-lo.

Com o coração disparado pelo susto, olhou pra trás. Olhou para aquele moleque ingrato, agora também com uma expressão repleta de raiva.

Jun não chorava, mas seus olhos denunciavam que, se pudesse, jogaria uma lata, uma garrafa e até uma pedra só para machucar e fazer Ricardo cair de seu cavalo branco como ele mesmo estava caído e humilhado. A ousadia de tentar revidar, mesmo estando no fundo do poço, era de impressionar.

Ricardo despertou em Jun um sentimento que, até então, apenas Pierre conseguia despertar, era algo como uma revolta e um descontrole que existia em um lugar muito específico de sua alma. Talvez por isso o gosto do déjà-vu fosse tão forte na boca do loiro. A repetição da frustração sendo "jogada" em direção aos homens que o faziam perder o controle não era inédita, mas a cada dia ficava mais perigosa.

Quase sem nenhuma dignidade, com os olhos vermelhos começando a marejar de lágrimas, ódio e algo mais, Jun ainda ousou gritar.

— Você que é um merda!

Ricardo lhe deu uma última olhada antes de, coberto de raiva, sair a passos firmes dali.

Ao voltar pra dentro da boate, Ricardo descobriu que Maitê havia passado mal, provavelmente por conta das misturas de bebida. Ele mesmo estava suado e acelerado. Yago perguntou algumas vezes se estava tudo bem, mas recebeu respostas vagas.

Yago logo constatou que a "foda" com Leandro não iria mais rolar, já que o rapaz foi embora acudindo a namorada. Uniu isso ao fato de o humor de Ricardo estar absurdamente ruim e não tardou a chegar à conclusão de que estava na hora de encerrar a noite, o que pra Ricardo foi um alívio, tudo o que queria era ir pra casa.

Deram uma carona pra Alisson, e Ricardo só abriu a boca pra repetir o convite que fizera a Yago mais cedo sobre dormir em sua casa, já que morava em um bairro muito próximo da boate. O mais velho, por sua vez, não queria ter mais gastos com táxi e não viu mal em aceitar o convite do amigo. Dormir ali pareceu uma oportunidade ainda melhor quando notou como estava tonto pelas bebidas.

Ricardo estacionou em uma das ruas do condomínio, trancando o carro enquanto entravam. Claro que Yago não pôde deixar de reparar que tanto o condomínio quanto a casa em que Ricardo morava eram bem bonitos.

Discretos e silenciosos, o moreno preparou tudo o que Yago precisaria pra uma noite confortável no quarto de hóspedes e, antes das quatro da manhã, estava embaixo de sua forte ducha, tendo os cabelos e costas massageados pela pressão da água. As cenas de algumas horas atrás ainda estavam vivas na sua mente como um quadro recém-pintado.

O olhar firme e muito forte do rapaz. O homem cuspindo em seu rosto. O tapa. O ódio com que ele lhe encarou antes de ir embora. Em uma noite havia gastado quase quatrocentos reais com nada que lhe desrespeitasse e aquilo era insano. Ricardo não sabia o que havia lhe motivado, mas, até aquele momento, ainda sentia o coração batendo acelerado pela adrenalina.

Quatrocentos e quarenta reais pra um estranho. Qual era o seu problema? Quem faria algo assim?

Exausto, Ricardo trancou a porta e se jogou na cama nu. Puxou o fio do carregador, só então se dando conta de que, no meio daquela confusão, havia se esquecido do SMS que estava escrevendo para Victor. Suspirou cansado. Releu a mensagem não enviada e achou melhor apagar tudo.

"Já estou em casa. Cheguei bem. Amanhã nos falamos."

Finalmente, se permitindo relaxar, o moreno deixou o celular de lado e, lutando contra a memória dos olhos azuis, ou talvez verdes, do rapaz que havia defendido, conseguiu dormir.

Talvez para agradar a mãe, talvez para pelo menos tentar fazer aquele ""recomeço"" acontecer, Ricardo acabou convidando Yago para o churrasco de domingo. Acordaram por volta das dez e passaram boa parte do tempo ajudando Suzana na cozinha.

A mãe de Ricardo ficou encantada com as habilidades culinárias que o novo amigo do filho tinha. Yago contou do bar, do trabalho preparando bebidas e de morar sozinho com um amigo.

Ricardo, como sempre, dividido entre mandar mensagens doces pra Victor e dar atenção à família, tentava não deixar Yago perceber que ele e o pai mal se olhavam, mesmo morando na mesma casa.

Artur, sonolento porter virado a noite lendo, levava uma surra da churrasqueira junto com o pai. O carvão não acendia e, mesmo utilizando jornais, álcool e abanando, a tarefa estava chata e difícil.

— Mas aí você só vai conseguir se formar no meio do ano que vem, então, né?

Suzana e Yago levavam a comida para a grande mesa que havia no jardim frontal da casa.

— Pois é, mas por um lado é até bom, porque aí eu tenho tempo pra focar só no TCC.

— Mãe, assim o Yago nunca mais vai querer voltar aqui...

Artur olhou cansado pra mãe, que virava uma verdadeira tagarela com visitas.

— Não, tá tudo bem!

— Depois ela quer que a gente faça amigos. Essa mulher puxa até o CPF dos caras...

Ricardo disse em tom de brincadeira, implicando com a mãe enquanto arrumava os talheres na mesa.

— Ai, vocês dois, que injustiça... — Suzana se fez de ofendida.

— Não dá atenção, tia Su, pode perguntar o que quiser.

Yago e seu sorriso enorme encantavam cada vez mais a mãe dos meninos.

— Artur, pega as bandejas de gelo?

— Seu Ricardo Felipe, quer ajuda? — Yago ofereceu, vendo a briga com o carvão.

— Tá tudo sob controle — não admitiria para a visita que o fogo não vingava de jeito nenhum.

Foi nesse meio tempo de arrumação para o almoço que a campainha tocou.

— Rick, atende pra mãe?

— Tá.

Ricardo, que digitava um SMS pro namorado, deixou o celular sobre a mesa e, distraído, foi até a entrada da casa sem questionar, pronto pra recepcionar um vizinho ou alguma entrega.

O moreno abriu o portão ainda com um olhar distraído que durou pouco, pois, como a sensação de choque de mergulhar o corpo inteiro em uma água gelada, cada músculo de Ricardo se tencionou, "travando" no instante em que seus olhos cruzaram com os olhos da pessoa parada a sua frente.

Foi como um delay, sabe? Como o espaço de tempo entre o silêncio e um vídeo começar a ser reproduzido, ou o carregamento de uma música antes de começar a tocar... Se tivesse que escolher uma trilha sonora para aquele momento, seria:

"O segundo que antecede o beijo. A palavra que destrói o amor. Quando tudo ainda estava inteiro... No instante em que desmoronou."

O cérebro de Ricardo demorou a associar que o rapaz loiro a sua frente, com grandes olhos azuis, sobrancelhas quase negras e uma blusa larga escrito "Nirvana", era o dono do mesmo par de olhos redondos que havia defendido e com quem havia discutido há algumas horas atrás.

Ficou confuso. Ele o teria seguido? Mas como? Por que o seguiria? O que aquele menino estava fazendo ali, de pé diante de si? E por que parecia tão chocado quanto ele?

— Porra, Jun, você demorou!

E a intervenção de Artur foi desesperadora. Abrindo mais o portão, o caçula surgiu atrás de Ricardo e passou pelo irmão dando um abraço amigável em Jun.

— Rick, esse é o Romeu, mas todo mundo chama ele de Jun, né? — Artur questionou, mas Jun tentava formar palavras sem sucesso. — Ele é um colega da escola nova — alheio aos corpos imóveis dos dois, Artur continuou. — E, Jun, esse é o meu irmão, o que eu te falei, Ricardo.

Os dois olharam para Artur e, logo depois, um para o outro. A boca de Jun ficou seca e a respiração estava alta. O loiro abriu um sorriso instantâneo enquanto concordava com a cabeça, forçando seus músculos a reagirem antes que fosse descoberto. Jun era sagaz, mas nem toda a sua esperteza conseguiria ajudá-lo a agir naturalmente quando se deu conta de uma cruel e faceira segunda coincidência.

Discreto e curioso, Yago desceu a pequena rampa de pedra e encarou o rapaz à porta, com o cenho franzido e os olhos confusos. Sem ter tempo de se recuperar do primeiro choque, Jun foi surpreendido pelo segundo.

— Yago?

— Jun?

— Espera, vocês se conhecem? — Artur sorria, confuso e alegre.

Os olhos de Jun, como que ao perceberem o formato de um desenho em um quebra-cabeças sendo montado, começaram a alternar entre Ricardo e Yago de forma quase suspeita.

— É, a gente se conhece — Yago parecia sério, mas ainda surpreso. — O Jun é meu irmão.

O rosto de Ricardo se virou para Yago com tanta força que Jun quis gritar.

— Como é que é, ele é seu irmão?

O moreno questionou em um tom de voz tão alto que até Suzana, que estava longe dos rapazes, parou o que fazia para observar.

— Pois é — Yago sorriu, tentando entender o cenho franzido de Ricardo. — O Jun é meu irmão, que coincidência, nossos irmãos... estudam juntos. Eu acho... Ok, isso tá confuso! — riu sem jeito.

— É... — Ricardo concordou. — Que coincidência.

Jun e Ricardo agora se encaravam sem piscar.

Como se o destino fosse um roteirista astuto e sádico, os quatro rapazes viram seus caminhos serem entrelaçados em um girar intenso da roda da fortuna.

Antes de saberem os nomes um do outro, Ricardo e Jun estavam compartilhando segredos íntimos. De repente, era como se a vida começasse a brincar com os dois.

Mesmo que não soubessem o que viria pela frente, por alguma razão, naquele momento todos perceberam que não havia mais como voltar atrás.


(Continua...)

Com carinho, Nana W.

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