Novembro de 2031.
São Paulo.
Bianca estava deitada junto com a filha na cama do hospital enquanto Rafaella fazia algumas ligações. A criança estava fraquinha, mal conversava, parecia apática na maior parte do tempo. Parecia mais pálida também, com a pele levemente amarelada.
L: Mamãe? - a voz chamou fraca. Rafaella desligou imediatamente a ligação.
B: Oi meu amor, a mamãe tá aqui, diga. - respondeu sorrindo, fazendo um carinho na testa dela. Rafaella segurava o choro.
L: Eu quero a mamãe... - soou chorosa. - Fica aqui também, mamãe.
Bianca olhou para a mineira, sorrindo. A mais velha estava tensa desde que recebera a notícia do transplante, e naquele momento parecia que todos os problemas haviam desaparecido. Rafaella deitou do outro lado, quase caindo, acolhendo o corpo da menina perto do seu.
L: Eu amo vocês, mamãe. - disse baixinho.
R: Nós amamos você, Laurinha. Você é a princesa das mamães, sabia?
L: Eu não sou mais princesa, mamãe. - disse, triste.
B: Claro que é, Laura Kalimann Andrade.
L: Eu tô doente, mamãe. E eu sei que vocês passam o dia todo chorando.
R: Filha, mas você vai ficar boa. A gente está no hospital justamente para você melhorar logo. Eu e sua mãe estamos um pouquinho tristes porque nos preocupamos muito com você.
L: E por que eu não melhoro? Tô aqui há muito tempo, e eu só me sinto pior. Queria ver os meus irmãos... - fez bico.
R: Meu amor, é só uma questão de tempo. Como você tá agora?
L: Mal. - disse, simples. - Minha barriguinha dói, e eu não aguento mais ser picada todo dia, nem mesmo aguento tomar aquele remédio que entra na minha... como é o nome mesmo? Veia?
R: Isso. - sorriu. - Você tá com saudade dos seus irmãos, é? - tentou mudar o foco. - Podemos ligar para eles, que tal? E outro dia a gente combina da Malu vir te ver.
Ficaram na ligação um tempo, as duas crianças estavam no apartamento da mineira, sendo cuidadas pelos avós e primas de Rafaella, que também estavam lá. Depois de mais uns minutos, precisaram colher mais sangue da menina e os médicos confirmaram o que Laura ainda era a terceira da fila de transplantes, mesmo sendo um caso grave. Já faziam alguns dias, e nada havia mudado na ordem de espera, enquanto o quadro da filha mais velha das duas mulheres só piorava.
B: Podemos tentar logo o doador vivo? Nossa filha está morrendo, doutor. - disse, baixinho.
Dr: Eu ia sugerir o mesmo, Bianca. De acordo com os exames das últimas 24 horas, o fígado dela pode dar falência total em breve. - disse, encarando os castanhos da mulher. - É melhor iniciar os testes agora, começando por você. É a melhor chance dela, caso seja compatível.
Rafaella não ouviu nada da conversa, pois distraía a menina enquanto uma enfermeira administrava o medicamento na veia dela. O médico pediu para que a carioca o seguisse, mas ela foi antes falar com a mineira, a chamando para que Laura não ouvisse.
B: Eu vou ver se sou realmente compatível e se preencho todos os requisitos desse protocolo de transplante... - soltou tudo de uma vez, quase sem ar. - Eu vou agora, e você fica aí todo o tempo, ok? - encheu os olhos de lágrimas. - Por favor, torce para que dê certo, Rafa, ele disse que eu sou a melhor chance dela, não posso falhar.
R: Vai dar tudo certo, Bia. - deu um beijo na cabeça dela, segurando seu rosto, com uma mão de cada lado. - Vai lá!
Bianca voltou mais de uma hora depois, completamente sem reação alguma no rosto. Como já era noite, Laura dormia e Rafaella estava rezando na poltrona ao lado dela, para que a carioca fosse compatível. Ao perceber a chegada da mais nova, a mineira levantou.
R: E aí? Deu tudo certo? - perguntou, esperançosa.
Bianca só conseguiu chorar. As lágrimas escorriam rapidamente e a mulher não emitia som algum, completamente em dor. Se viu desesperada, sem saber o que fazer. A mineira ficou entristecida, e muito preocupada com o estado de Bianca ali desmoronada em sua frente. Entretanto, esperou que a mulher se recompusesse para conversarem.
B: Eu teria tudo para ser compatível com a minha filha, Rafa... - começou, do nada, assustando a mineira. - O tipo sanguíneo e todos os vários exames que fizeram comigo. O médico até disse que parecia que ela só tinha mãe, genética e fenótipo.
Rafaella sorriu.
B: Mas aí... - fez uma pausa. - Eu sofri aquele acidente no começo do ano... - fez menção para continuar chorando, e a mineira pegou em suas duas mãos, a encorajando a falar. - E eu não sei se você lembra, ou sequer sabe, mas eu passei por uma neurocirurgia.
R: Eu sei... - disse, lembrando bem da situação.
B: No pós-operatório, eles precisaram me dar alguns medicamentos para previnir sequelas, como convulsões. E um desses remédios provocou uma pequena lesão hepática, pelo o que eu entendi.
R: Ô Bia... - abraçou a mulher fragilizada.
B: Eu queria muito poder doar, Rafa... doar para nossa menina, mas eu não posso! Eu disse que não me importava com os riscos para a minha saúde, mas a ética médica não permite. - enxugou as próprias lágrimas. - Ele disse que a merda desse medicamento aumentou umas enzimas aí e causou essa lesão, mas eu nunca tive nada, Rafaella! Ainda que seja algo leve e que não me traga maiores complicações para mim no futuro, não posso ficar sem uma parte do meu fígado.
R: A gente vai encontrar outro doador, Bia. Pelo o que eu li e perguntei pra Thelma e pra Marcela, essa avaliação é bem rigorosa mesmo.
B: Eu sei... - disse, ainda tentando parar de chorar. - Eu sou uma inútil! Nem salvar a Laura eu vou poder... era melhor que nossos filhos fossem todos gerados por você! Você conseguiria doar!
R: Deixa de falar bobagem, Bianca. - falou séria. - Se fossem as duas geradas por mim, a Laura não seria a Laura e eu não teria uma cópia sua para morrer de amor toda vida que olha para mim. Os olhos dela, e todo o resto, são iguais aos seus. - disse, olhando admirada para a carioca.
Bianca olhou bem para os verdes merejados da mais velha, que tinha a expressão muito transparente para a interpretação da carioca. Por um instante, sentiu muita vontade de poder beijá-la, mas se conteve muito para não o fazer.
B: Minha mãe tá vindo com a Íris para o hospital... - disse, tentando não pensar mais no que estava pensando. - As duas têm o mesmo tipo sanguíneo, meu pai e meu irmão não têm, então... são duas chances a menos.
No final do dia seguinte, foi descoberto que nenhuma das duas poderia doar. Mônica era diabética e Íris apresentou na tomografia uma má-formação anatômica no fígado. Bianca e Rafaella estavam novamente sozinhas no quarto com a filha adormecida, aos prantos.
Não sabiam o que fazer, só iriam conversar com o médico no dia seguinte pela manhã para verem o que fazer, até que Bianca recebeu uma notificação do WhatsApp. Era Clara enviando uma foto de Malu.
"Olha quem se divertiu hoje no parque e tá morrendo de saudade da mamãe dela! Amamos você, Bia."
Bianca sorriu enquanto chorava e ficou apreciando a beleza da caçula, até que Rafaella sorriu também ao perceber o sorriso largo da carioca.
R: Que foi? - sorriu mesmo sem ver o que era, mas por ter visto a carioca assim.
B: A Malu tá a sua cara nessa foto. - mostrou o aparelho. - Ela sempre é sua cara, mas eu consegui te ver aqui por um segundo.
R: Verdade! - sorriu. - Que saudade dela, Bia.
B: E se... Rafa, e se você fizesse os exames para testar compatibilidade?
R: O médico disse que tinha que ser da família consanguínea, Bia. - abaixou os ombros, entristecida. - Bem que eu queria...
B: Ele disse "preferencialmente", Rafa. - corrigiu. - Se não for doador consanguíneo, pode aumentar as chances de rejeição, mas e aí? Melhor testar a sorte e, na pior das hipóteses, voltar à estaca zero do que ficar aqui de braços cruzados assistindo a minha filha definhar nessa cama de hospital.
R: Não sei não, Bia.
B: Rafaella, ela vai morrer! - disse, por fim. - Eu não vou ficar aqui esperando sem saber se realmente fizemos o máximo que conseguimos fazer por ela.
R: Eu sei, eu só... só tenho medo de dar ruim e ela rejeitar o fígado e acabar pior do que está agora. E se conseguirmos um doador pela fila de transplante nesse meio tempo? Ela agora é a segunda, Bia.
B: Não! - disse, incisiva. - Vamos conversar com o Dr Caio amanhã e resolver isso. Se não for você, alguma outra pessoa da sua família ou algum amigo que possa doar parte do fígado para a Laura! Eu não vou parar até salvarmos a vida dela.
R: Bia, eu também tô com você nessa, viu? Só peço para que a gente tenha calma e serenidade para resolvermos essa situação da melhor maneira possível.
B: A Laura é tudo o que eu tenho... - abaixou a cabeça, choramingando novamente. - Junto com a Malu, é óbvio.
R: Eu sei, Bia... para mim também.
B: A Laura foi muito desejada, né? - riu fraco. - A gente fez tantos planos e mais planos... a gestação dela foi difícil, senti todos os sintomas juntos... e ela nasceu tão perfeitinha.
R: A nossa bolinha... - riu. - Lembre que você chamava ela assim?
Bianca riu fraco, apoiando uma de suas mãos na mão de Rafaella que repousava em sua perna.
B: Ela é tão parecida com você, Rafa. Ela é a minha cara, eu sei, mas todas as atitudes dela são suas. Ela dorme igualzinho a você...
R: Desde pequenininha, né? - sorriu, visualizando a criança no outro lado do quarto.
B: Eu me odeio por ter estado naquele acidente... poderia salvar nossa filha agora!
R: Bianca, são coisas que, infelizmente, fazem parte da sua história. Aquele acidente infeliz serviu talvez para alguma coisa que a gente só vá entender no futuro... - disse, pensativa.
B: Talvez para nos reaproximar, não é? - sorriu. - Assim, eu digo, porque antes a gente mal conversava, ou ficava um clima desconfortável quando precisávamos estar no mesmo ambiente. Eu sinto que depois do acidente tudo isso mudou.
R: Claro que mudou... - sussurrou. - Eu me vi desesperada achando que perderia você, Bia.
B: Desculpa te causar esse susto. - riu.
R: Você não faz ideia do que eu senti, Bia... - arqueou uma sobrancelha. - Talvez você saiba.
B: E talvez seja melhor não ser dito, não é?
R: Você vai casar, eu já sei. E eu espero do fundo do meu coração que vocês sejam felizes. Eu vi ela aqui com você outro dia... - pausou um pouco antes de continuar, limpando a garganta. - Vocês formam um casal bonito.
B: Obrigada. - se resumiu a responder isso, confusa com tantos sentimentos aflorados naquele momento.
•••••
Dr: Rafaella, de acordo com os resultados dos seus exames...
A mineira apertou mais forte a mão de Bianca, sentada ao seu lado naquela sala com todos os médicos presentes. As expressões de todos eles eram positivas.
Dr: Você é compatível para doação! - sorriu sincero. - Parabéns! A Laura vai poder receber uma parte do seu fígado, e vai salvar a vida dela.
Bianca caiu em lágrimas no mesmo instante, sorrindo largo para a mineira que, não conseguia fazer outra coisa além de agradecer ao médico. As duas se abraçaram, a carioca fazendo um carinho nos cabelos da mais alta, dizendo em seguida:
B: Você é perfeita, Rafa. - falou baixinho. - Tinha que ser você!
R: Nós duas conseguimos, Bia. - soltou o abraço para poder olhar nos olhos dela. - Nós vamos levar a nossa filhinha para casa.
O ambiente estava repleto de boas energias e alegria. Cada pessoa ali na equipe médica acompanhou todo o longo processo da garota que sensibilizou todos.
B: E como vai ser agora, doutor?
Dr: Bem, as duas cirurgias serão realizadas ao mesmo tempo, em salas cirúrgicas diferentes e com equipes diferentes.
B: E demora muito? - parecia aflita, Rafaella olhou terna para ela, lhe passando confiança.
Dr: Sim, infelizmente, não é uma operação tão rápida assim, pode demorar até 8 horas esse processo todo. Ou um pouco mais, não temps como precisar ao certo o tempo.
B: E os riscos?
Dr: Bom, a gente já sabia que não se trata de um quadro fácil... nada do estado da Laura é simples, então a complexidade é sim muito alta. Mas vamos fazer o possível e o que tiver no nosso alcance para que seja tudo feito da melhor maneira possível. - as duas engoliram em seco. - Mas não é segredo para ninguém o quanto esse fígado dela está quase inteiramente sem função.
R: Mas pode causar alguma sequela, doutor? - a mineira pela primeira vez se pronunciou.
Dr: Em qualquer transplante, existe a chance de rejeição do órgão, ainda que pequena. Como a Rafaella não é consanguínea da Laura, essa chance aumenta um pouquinho. Mas é a melhor chance que a Laura tem no momento.
B: O que você nos aconselha, então? Fazer ou não fazer o transplante?
Dr: Bem, para ser sincero, se fosse um dos meus filhos, senhoras, eu arriscaria. Continuar esperando pode nos levar ao pior. A Laura não pode mais esperar.
B: E depois da cirurgia, como vai ser?
Dr: Risco de infecções, alguns sintomas, desconforto... mas isso a gente resolve de uma maneira simples. O importante mesmo é que ela receba esse transplante.
B: Mas não tem chance de... - Bianca sentiu um frio na barriga. - Chance de ela vir a falecer na mesa se cirurgia não, né?
Dr: Eu não posso mentir, vocês sabem... eu não tenho como garantir isso. Não posso dar falsas esperanças, mas as chances não são altas, a não ser que o organismo dela apresente complicações inesperadas.
B: E a Rafa? Ela vai ficar bem?
Dr: Praticamente impossível acontecer isso com ela durante a cirurgia, já que ela é saudável e completamente capaz de se recuperar da melhor maneira possível.
R: Eu não quero saber de riscos, não. Eu vou doar de qualquer maneira. Eu só quero saber se minha filha vai ficar bem...
Dr: As primeiras 48 horas... de repente 72, dependendo do caso, são decisivas. Mas depois disso, se ela estiver estável, só tende a melhorar. Depois de 3 meses, a estabilidade do quadro é de praticamente 100%, mas óbvio que precisará de alguns cuidados, principalmente no primeiro ano pós-transplante. Alimentação, hábitos, consultas... mas ela vai ter uma vida como a que tinha antes com o tempo, com o fígado novinho em folha. Ela praticamente vai nascer de novo.
Bianca só sabia chorar e abraçar a ex-esposa desde que a equipe médica deixou a sala, para que aa duas ficassem a sós processando tudo.
R: Vou em casa pegar algumas coisas para mim e para a Laura, certo? - disse, limpando as lágrimas da carioca com o polegar.
Bianca concordou com a cabeça, visualizando Clara do lado de fora, já que a porta era parcialmente de vidro.
B: Certo, então vai. - se afastou um pouco dela. - Descansa, se quiser, eu vou estar aqui o tempo inteiro, você só precisa chegar mais tarde para ser internada antes da cirurgia. - sorriu. - Até mais tarde, Rafa.
•••••
B: 6 horas a Rafa e umas 8 ou 10 para a Laura... - abaixou a cabeça, um tanto nervosa. - Difícil demais aguentar uma coisa dessas, mãe. A cirurgia vai ser daqui a algumas horas.
M: Como elas estão?
B: A Rafa tá ótima... - sorriu ao pensar na mineira. - E a Laura tá apática, mãe. Ela está tão ruinzinha, eu tô com uma sensação tão ruim dentro de mim...
M: Porque você é nervosa e pessimista demais, minha filha. Elas vão ficar bem.
B: Mãe, mas e se minha filha não aguentar? Eu não entendo nada de cirurgia, mas... e se houver alguma complicação? Infecção? Se o coração dela parar? - disse, com a voz arrastada. Estava exausta.
M: Isso não vai acontecer, Bianca.
B: Como você pode ter tanta certeza?
M: Porque ela é forte, e é minha neta. Eu acredito muito nela, vai conseguir superar isso.
B: E a Rafa, mãe? Eu me preocupo demais... ela tá lá, perfeita, e se morrer na mesa de cirurgia? Eu nunca vou me perdoar.
M: A Rafa vai continuar perfeita, Bianca. Deixa de falar bobagem.
B: Eu queria ter ido com ela pegar as coisas, sabe? Mas a Clara tava lá e... bem, eu tive que ficar com ela, né? Eu mal falo com minha noiva, mãe. Tá tudo errado.
M: É o momento que vocês estão passando filha, completamente compreensível. Você sabe que a Clara não é mais aquela pessoa explosiva de antes, ela confia em você.
B: Eu sei, mãe, mas... eu tô com medo de não estar sendo sincera comigo mesma e, consequentemente, desleal à Clara.
M: Como assim?
B: Eu amo ela, mãe, amo mesmo. Amo de verdade. Ela é ótima para mim...
M: Mas? - um esboço de sorriso surgiu no rosto da senhora.
B: Mas a Rafa, mãe, é a Rafa... não sei se voltaria com ela, mas só de ter essa dúvida no meu coração já me desespera. E a Clara já sabe disso, ela percebe toda hora. Mas mesmo assim está comigo...
M: Nã em como você tomar nenhuma decisão nesse estado, Bia. Você está vulnerável.
B: É que... uma hora dessas não faz sentido nenhum eu não estar com a Rafaella. Se acontecer alguma coisa com as duas, eu prefiro morrer.
M: Não vai acontecer nada, Bianca. Por Deus! - começou a se irritar com as falsas esperanças da empresária.
B: Eu queria que fosse eu... - disse, depois de algum tempo sem silêncio. - Porque se eu morresse, saberia que elas ficariam bem juntas. Não precisaria envolver a Rafa nisso.
M: A gente tem que agradecer é que ela é compatível. Vai dar tudo certo, minha filha. Eu tenho certeza.
B: A gente tem conversado muito esses dias aqui, sabe? Só tenho a ela e ela só tem a mim numa situação dessas... e eu percebi que sinto muita saudade de conversar com ela, sobre as meninas, sobre a vida... parece que eu tô conhecendo a Rafa de novo, mãe. Ela virou mãe no mesmo momento que eu, e agora ela vai doar um pouco dela para a nossa filha. Mais do que nunca, somos uma família.
•••••
C: E a Laura, amor? Já sabe da cirurgia? - a gaúcha estava sentada em um banco da área externa arborizada do hospital, com a carioca em seu colo, descansando.
B: Não, ela não sabe de nada.
C: Mas vocês vão falar, não é?
B: Sim, tô esperando a Rafa voltar para conversarmos com ela juntas. - sorriu.
C: Você acha que você e ela estão mais próximas com essa situação toda, Bia?
B: Com certeza! De um jeito horrível, mas precisamos nos aproximar diante de tudo isso que tá acontecendo. Claro que existe uma falta de intimidade devido a tudo que já aconteceu entre a gente, mas conseguimos conversar sobre tudo.
C: Que bom! - torceu os lábios, mas a carioca não percebeu.
B: Nada daquilo do passado faz mais sentido, não tem a menor importância hoje, sabe?
C: As meninas são maiores do que tudo, né? - continuou acariciando os cabelos dela.
B: O amor que sentimos por ela, Clara... é capaz de tudo. Eu faço qualquer coisa pelas minhas filhas.
C: Claro que faz, meu bem. Eu sei que você faz... - abraçou a cabeça dela, dando um beijo na testa em seguida. - Tá tudo bem!
•••••
B: Meu amor, lembra daquele filme que nós assistimos no cinema pela última vez?
A menina pálida e cansada olhou para as duas mães com dificuldade, que estavam em pé lado a lado, perto de sua cama. Apenas assentiu.
B: Você lembra da menininha que precisou fazer uma cirurgia para ficar bem?
Confirmou de novo.
B: Então, você vai precisar fazer a mesma coisa hoje a noite... - ela arregalou os olhos. - Pra você melhorar e voltar pra casa logo.
L: Mas eles vão abrir a minha barriga? - disse, com medo, apertando mais seu urso contra o peito.
R: Filha, os médicos vão precisar sim abrir sua barriguinha para consertar o probleminha que está te deixando dodói.
L: Vai doer?
B: De jeito nenhum! Eles vão dar uma coisinha para você dormir e não sentir nada.
L: Promete?
Bianca sorriu, tentando se convencer que ficaria tudo bem.
B: Quando acordar, já vai estar consertado, a mamãe promete.
L: Tudo bem, então...
Uma enfermeira já conhecida adentrou o quarto depressa, dizendo para Rafaella que estavam esperando por ela, para se preparar para a cirurgia. Laura ficou confusa.
B: A mamãe vai doar uma partezinha do fígado dela para você, meu amor.
R: Para você não sentir mais dor! - acariciou o rosto da filha. - Mamãe tem que ir agora, meu amor... - deu muitos beijos no rosto da menina, que riu um pouco. - Mas a sua mãe vai ficar aqui com você, ok? Mamãe ama você.
L: Eu também. - suspirou.
R: Tchau, Bia. - abraçou forte a carioca. - Até já. - beijou a bochecha dela, que fez o mesmo.
Clara, que estava também na sala, viu toda a cena.
Nas horas que se seguiram, Bianca fez de tudo: rezou, comeu, vomitou, chorou e dormiu. De tudo um pouco. Estava muito nervosa. Quando já tinha passado 7 horas da cirurgia aproximadamente, quase de manhã, a pediatra de Laura surgiu no quarto reservado, onde no momento estavam Bianca, Clara, Mônica e Genilda.
B: Dra Sabrina? - levantou num impulso. - Cadê elas? - soou quase desesperada.
S: A cirurgia da Laura foi um sucesso e ela já está no quarto! - as quatro mulheres ali preocupadas sorriram mais aliviadas. - Mas precisamos observá-la nas próximas horas, devido à complexidade do pós-operatório.
B: Certo! - sorriu, um tanto incerta. Algo dentro de si não parecia estar bem. - E a Rafa? Cadê ela?
S: Bem, a Rafaella, ocorreu um... - foi interrompida.
G: O que aconteceu com a minha filha, doutora? - a ex sogra de Bianca rapidamente mudou a expressão.
S: Então, como eu estava dizendo, com a Rafaella ocorreu um imprevisto... - Bianca apertou forte a mão da noiva, involuntariamente. Estava com medo. - A Rafaella teve uma trombose da veia porta.
B: Que merda é essa? - disse, desesperada, sacudindo os ombros da pediatra. - Dra Sabrina, pelo amor de Deus! - levou uma mão à testa. - Me diz que ela tá bem, por favor.
S: Ela está estável, por agora. - disse, limpando a garganta. - A cirurgia foi complicada, demorou mais do que o esperado. Por conta de uma pequena variação anatômica, ocorreu essa complicação cirúrgica.
B: Eu não entendi ainda... - disse, impaciente
C: Calma, Bia. - a gaúcha pediu, pegando em seus braços. - Ela tá tentando explicar.
B: Não me pede para ter calma, Clara! - disse, se soltando dela. - Eu quero ver a Rafaella agora!
S: Agora não é possível, Bianca. Eu...
B: Vocês estão mentindo para mim? Por que eu não posso ver ela, se ela está estável? Aconteceu alguma coisa que eu não sei? - engoliu em seco. - Se tiver acontecido alguma coisa, eu...
S: Me escute, por favor. - pediu, compreensiva. - A veia porta hepática é por onde o fígado recebe o suprimento sanguíneo do corpo, e como essa veia dela é menor e mais embaixo que o normal, resultou na formação de um coágulo, que desencadeou essa trombose.
B: Mas vocês fizeram dezenas de exames, não deu pra ver em nenhum que ela tinha essa variação nessa tal veia?
S: Infelizmente não. A notícia boa é que ela é completamente saudável e reagiu bem à administração dos medicamentos que fizemos para dissolver o trombo. A Rafaella está bem, Bianca. - sorriu. - Confie em mim, você pode ficar tranquila.
B: E cadê o cirurgião dela? Por que ainda não o vi? - disse, ainda desconfiada.
S: Ele está passando todas as orientações para a equipe que cuidará dela diariamente. Ela vai precisar ficar um pouquinho a mais aqui no hospital do que o habitual, mas só por precaução.
B: Acho bom... porque eu só vou descansar quando levar as duas de volta para casa com saúde. - sorriu, aliviada. - Agora deixa eu ver minha filha? - pediu.
•••••
3 meses depois...
Fevereiro de 2032.
São Paulo.
B: Malu, termina de comer rapidinho que já já a mamãe Rafa aparece aí para levar vocês.
Malu: Tudo bem. - respondeu, colorindo sua revistinha enquanto mordia o sanduíche de queijo.
B: Rápido, hein? - disse, nervosa.
Bianca estava exausta desde o fim do ano passado, por causa de tudo o que acontecera. Adiou planos profissionais e pessoais, adiou casamento e mudança para França. Rafaella passou por um processo de recuperação que a limitou bastante, só por precaução, mas não estava com nenhum risco grave. Por isso, quase nunca via as filhas, que passavam a maior parte do tempo com a carioca. Bianca também estava passando por uma crise em seu noivado.
Absorta em seus pensamentos, se assustou ao escutar a campainha tocar.
B: Oi Rafa! - disse, sorrindo largo ao abrir a porta. - Pode entrar... a Malu tá terminando de comer e a Laura tá lá em cima deitadinha repousando um pouco. Cansou demais hoje na escola.
R: Como foi o primeiro dia de aula dela depois de tudo?
B: Me parece que foi bom, ela não reclamou de nada. Só precisou se readaptar.
R: Ótimo! - sorriu, olhando a casa ao seu redor. Uma completa zona.
B: Tá julgando minha bagunça por acaso, senhorita? - riu brincalhona. - Para sua informação, a faxineira vem amanhã cedo.
R: Eu não tô julgando nada, sua boba. - olhou em volta novamente. - Só senti saudades daqui, é isso.
B: Como você está?
R: Bem! Não sinto nada desde que saí do hospital, mas preciso me alimentar ainda com algumas restrições até o final do mês. Acabei de vir do doutor Caio.
B: Tava fazendo o que?
R: Ele pediu uma tal de ultrassonografia com Doppler colorido. - disse, tentando resgatar o nome da memória. - Depois do 3º mês de pós-operatório, finalmente mostrou a recanalização daquela veia lá. Tá tudo certinho comigo.
B: Graças a Deus! - abraçou tão forte que a mineira gargalhou.
R: Calma! - sorriu, sem jeito.
Malu: Terminei de comer, mamis. - a filha saiu da cozinha saltitando. - Mamãããe! - correu para abraçar a mineira.
R: Ai que saudade da minha pituquinha mais linda!
B: Vou chamar a Laura, só um minuto. - desapareceu ao subir as escadas, deixando a mineira ainda com a filha aguardando.
Malu: Mamãe, tô muito feliz que você e a mamãe agora são amigas de verdade!
R: Como assim, meu bem?
Malu: A Laura me disse tudo! Que no hospital vocês dormiam juntas às vezes, conversavam e contavam histórias juntas para ela. - disse, sem perceber a mãe querendo chorar. - Por que vocês não contam histórias juntas todos os dias?
A porta da sala se abriu, revelando Clara toda arrumada e exalando um perfume forte atrás de si.
C: Ah, oi! - disse, sem jeito. - Como vai, Rafaella?
R: Bem... - disse, simples. - Eu tô só esperando a Laura descer.
C: Pode ficar à vontade! - olhou em volta. - Malu, por que você não vai lá ajudar a mamãe a trazer a Laura lá de cima?
A pequena olhou para ela, em seguida para a mãe, e só confirmou com a cabeça antes de subir as escadas cautelosamente. Rafaella engoliu em seco.
C: Queria falar com você...
R: Eu percebi. - disse, desconfiada. - Pode dizer!
C: Eu só queria dizer que vou para a França sem a Bianca, Rafa.
R: Não entendi...
Clara encheu os olhos de lágrimas, a ponto de escorrerem no próximo piscar de olhos, que não demorou muito a acontecer.
C: Eu vou terminar com ela hoje a noite, Rafa. - disse, com uma pontada no coração. - Eu vou terminar com ela porque ela é apaixonada por você!
R: Que isso, Clara? - se espantou. - De novo isso?
C: Eu não tô com raiva, não tô com ciúmes, só é nítido demais... não precisa de legenda nem de tradução. É óbvio!
R: Não é verdade, por Deus! Que complicação esse casamento! Sei que eu contribuí para que Bianca ficasse sobrecarregada com as meninas, mas eu tô bem e vou ficar com elas. Pega essa mulher, casa com ela e leva logo pra França, caramba!
Clara chorou um pouco, tentando se conter em seguida. Soltou a respiração antes de continuar.
C: Eu tô dizendo que vou sim para a França, mas sem ela. A Bianca que você tem acesso eu jamais terei... e tá tudo bem! - sorriu fraco. - Eu demorei a entender isso, lutei muito contra, mas é impossível!
R: Clara, eu não sei mais o que falar...
C: Eu só quero que você me escute! - disse, séria. - Eu vou morar fora e possivelmente fazer minha vida por lá, quem sabe eu encontre uma outra pessoa... porque sim, eu ainda amo a Bianca, amo muito! E é por amá-la tanto que eu quero deixá-la livre para ser ainda mais feliz! Ela sempre será uma lembrança boa, uma saudade feliz... - chorou novamente. - Tá doendo agora, mas eu sei que vai passar.
Rafaella nada disse, apenas passou a mão sobre aa costas dela, tentando uma espécie de consolo.
C: Eu vou mudar de vida, mas eu preciso que você me garanta que, caso vocês de fato voltem a ficar juntas, não vai fazê-la sofrer de novo.
R: Clara, eu não... - disse, sem jeito.
C: Eu sei que vocês vão voltar, Rafaella. - sorriu fraco. - Vocês duas juntas são... - suspirou, um tanto entristecida.
R: Eu nunca quis machucar a Bia...
C: Acho bom, porque se você fizer essa mulher derramar uma lágrima sequer, eu juro... - fechou os olhos. - Eu juro que venho lá do quinto dos infernos te matar! - riu, sem humor. - Desculpa, eu só não queria que ela passasse por tudo aquilo de novo.
R: Ela não vai passar, eu prometo.
C: Cuida dela, Ra... - foi interrompida pelas crianças, que acompanhavam a carioca descendo as escadas.
B: Amor! - disse feliz, ao avistar a gaúcha. - Achei que fosse demorar mais...
C: Precisava falar logo com você, por isso vim logo. - forçou um sorriso, recusando o beijo que a carioca iria lhe dar, transformando em um abraço. Bianca arqueou a sobrancelha, mas nada perguntou.
B: Tchau, meus amores. - mandou beijo mo ar. - Se cuidem! - trancou a porta depois que saíram, virando-se para Clara. - O que foi, hein? Recusou meu beijo por que?
C: Porque eu vim terminar com você... - disse, ainda meio incerta.
B: O que eu fiz agora, Clara? - suspirou.
C: A gente quer coisas completamente diferentes, Bianca. - cruzou os braços. Isso numa vida em comum não tem como dar certo.
B: E o que é que você quer?
C: Eu quero casar, morar fora e expandir o meu trabalho!
B: E você não acha que eu quero isso também? - disse, irritada.
C: Talvez queira, Bianca. Talvez queira, mas você tem uma família aqui.
B: Você começou a namorar comigo sabendo que eu tinha filhas, Clara, por que isso agora?
C: O problema não é esse... - suspirou, querendo ser mais direta, mas ao mesmo tempo com receio de ir embora para sempre, pois ainda nutria um amor pela carioca.
B: Aconteceu alguma coisa? Eu não tô te acompanhando... - disse, sentando no sofá, enquanto a loira repetiu o mesmo ato, ficando de frente para ela.
C: Aconteceram muitas coisas... - sorriu fraco, mexendo nos anéis que estavam em seus dedos. - E ao longo dos últimos meses, eu... - retirou a aliança de noivado, fazendo Bianca abrir a boca. - Eu acho que... - suspirou. - Pra mim tá cada vez mais claro que você não consegue estar inteira.
B: Ô Clara... - disse, angustiada. - É só que os últimos meses foram difíceis, você precisa entender isso.
C: Mas o que eu sinto vem antes mesmo disso tudo, você sabe... eu acho que só confirmei tudo depois do que aconteceu com a Laura. Lá no hospital, eu consegui te ver sem defesa, completamente vulnerável.
B: E...? - disse, ainda sem entender direito.
C: Existe uma Bianca aí dentro que eu jamais irei ter acesso, jamais irei me conectar com ela.
B: Por que?
C: Porque ela é da Rafaella. - abaixou a cabeça, contendo as lágrimas. - Ela é apenas e inteiramente da Rafaella.
B: Eu não sei o que você viu ou acha que viu, mas...
C: Não precisa falar nada, Bia, eu percebi isso desde o primeiro dia, mas fui orgulhosa demais, egoísta demais para ser sincera com você. Eu te amo muito e não quis abrir mão de você, quis desfilar com você na frente de todo mundo, dizer o quanto você estava comigo agora... mas não é justo, nem comigo nem com você. Eu vi o quanto você se desesperou com a notícia da Rafa, eu vi você pelo vidro quando foi vê-la pela primeira vez depois da cirurgia, ainda dormindo. Vi você chorando, sorrindo, beijando o rosto dela... - disse, triste.
B: Eu fiquei com medo, porque... é natural que eu me preocupe com o estado da mãe das minhas filhas.
C: Isso, Bia. - disse. - É natural. - repetiu o termo utilizado. - Vendo de fora, vocês duas me pareceram natural demais.
B: O que você quer dizer?
C: Tô falando de vocês se entenderem só com os olhos, sem palavras. Como se eu ficasse de fora, na história de vocês... que ainda não acabou.
Bianca estava chorosa, com a voz rouca. Uma dor no coração que refletiu em lágrimas pesadas no cantinho dos olhos castanhos.
B: Clara... - chorou um pouco mais. - Eu tentei, eu tentei de verdade... eu nunca quis, nunca... - puxou o ar, devido à dificuldade de respirar. - Eu nunca quis te magoar.
C: Eu sei disso... eu sei, ok? - pegou as duas mãos dela e deu um beijo, sorrindo. - Mas, às vezes, as coisas não saem como a gente gostaria. - disse, antes de se levantar e se aproximar dela. - No caso, como eu gostaria... - pegou sua cabeça e depositou um beijo no topo da cabeça. - Me sinto aliviada, porque sei que isso é o certo, o que devemos fazer.
B: Clara... - chorava agora compulsivamente.
C: Você merece ser feliz, Bia.
B: Você... você merece ser muito feliz! - disse, fungando e enxugando o rosto com a manga da camisa branca. Levantou e abraçou forte o corpo magro.
C: Se cuida, Bianca. - sussurrou. - Cuida das meninas e se cuida! - acariciou o cabelo dela. - Vocês foram muito importantes para mim!
Bianca chorava mais.
C: Fica bem! - disse, ao destrancar a porta para sair.
B: Você também, Clarinha. - olhou bem no fundo dos olhos dela. - Vai ser feliz na França, mon chéri.
Clara deu uma última olhada antes de partir com o carro, visualizando uma Bianca parada na porta, acenando um adeus, que seria para sempre.
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Notas?
Queria dizer que, sim, estamos nos aproximando da reta final e a partir de agora, possivelmente, só teremos capítulos da era atual e sim, todos era clean. Por isso, não terão mais tantos caps, mas prometo que me esforçarei para entregar o que vocês merecem. Beijos!
tt: @just4rabia