O quinze - Rachel de Queiroz

By RaianySouza

166K 2.7K 278

Rachel de Queiroz - O quinze COMPLETO More

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26

Capítulo 14

4.2K 76 5
By RaianySouza

Dona Inácia, como já se habituara, fazia o seu croché na sala de visitas.

Os dedos mexiam rápidos a agulha e o fio branco corria, entrançando os desenhos caprichosos da

varanda de rede. Conceição estava na escola.

Saía de casa às dez horas e findava a aula às duas. Da escola ia para o Campo de Concentração,

auxiliar na entrega dos socorros. os olhos doloridos de tanta miséria vista, só chegava de tardinha, fatigada, contando cenas tristes que também empanavam de água os óculos da avó.

Seriam talvez duas e meia da tarde.

As mãos de Dona Inácia já não moviam com a mesma agilidade a agulha niquelada, que emperrou

na ponta dum laço cheio, armado e duro como uma borboleta.

A cabeça branca a pouco e pouco se encostou no dorso de pano da espreguiçadeira, num sono sossegado. O croché caiu no solo e o novelo rolou, sujando no ladrilho seu lindo branco anilado. Bateram na rótula. Dona inácia, estremunhada, passou a mão pelos olhos. repuxou a frente do casaco, num gesto que lhe era habitual, e foi à porta. Na calçada, todo de cáqui, chapelão de massa na cabeça, Vicente esperava. Dona Inácia abriu a banda da porta com a pressa afetuosa de quem abre os braços para alguém

muito querido:

- Você, Vicente! Por aqui, meu filho!

Era um pedaço do sertão que lhe vinha com aquele moço tostado pelo sol de Quixadá... E repetia:

- Mas você, meu filho! Que surpresa! E Idalina? E seu pai?

- Tudo bem, tudo muito bem, no Quixadá, tia Inácia... E logo, sentado na espreguiçadeira, enquanto

a tia lhe guardava o chapéu, Vicente explicava a sua estada na cidade.

Viera por causa de uma partida de caroço que encomendara para o gado, e nada de ir, e ele nos

maiores apertos. A rama já faltava de todo e o jeito era recorrer ao trato comprado.

- E no Logradouro?

- Tudo na mesma... A casa fechada como deixaram, o açude secando...

- E o seu gado?

- Vai-se salvando... Mas dá um trabalho medonho! Toda noite, cinco, seis homens dormindo no

alpendre para levantarem as reses caídas... A velha sacudiu a cabeça, admirada:

- E você não desiste! Ainda não pensou em retirar para a serra, ou fazer como a Maroca, soltar e

deixar morrer? Vicente ergueu-se, meio exaltado:

- Não, senhora! Nem que eu me acabe, e perca tudo de meu comprando caroço, não solto nenhum!

Já comecei, termino! A seca também tem fim...

Mas parou a onda de exclamações, reparando num retrato de Conceição, com ar pensativo, que

pendia da parede, junto ao quadro do Coração de Jesus:

- Por que Conceição não aparece?

- Está na escola; isto é, a estas horas deve estar no campo de concentração.

- Fazendo o quê?

- Ela faz parte do grupo de senhoras que distribuem comida e roupa aos flagelados.

Nesse instante, morena e esguia, uma moça se insinuou por baíxo do postigo, procurando o ferrolho.

EConceição, que ouvira o fim da frase da avó, empurrou a porta e entrou, dizendo alegremente:

- Falaram no mau...

Mas reconhecendo Vicente, que já estava de pé-

- Era você! Mas que surpresa! Pensei que fosse alguma velha, amiga de Mãe Nácia... Sentou-se, atirou o chapéu sobre a mesinha, insistindo:

- Não esperava! Você!

Ele explicou, novamente, com minúcias, o motivo da viagem” Depois falou nas irmãs. Tinham

mandado lembranças, uma carta...

- Parece até que uma encomenda de vestido para a Lourdinha. E voltou-se para a tia, rindo:

- Eu até falei contra esse luxo de vestidos, nuns tempos como os de agora...

Conceição apressou-se em abrir a carta, rasgando o envelope com um grampo do cabelo. De fato, a letrinha desenhada da prima encomendava cinco metros de cambraia azul-clara, com

carocinhos brancos: ”dou esse trabalho a você porque Vicente é muito capaz de trazer madapolão

Por cambraia...”

Vendo que ela acabava de ler e fechava a carta, rindo, ele disse:

- Quando você entrou, tia Inácia estava dizendo que só lhe esperava de tarde.

- Ah! foi porque eu hoje estava com uma dor de cabeça enorme, e não fui para o Campo... Mas só ao

ver você aqui, melhorei...

Vicente riu, abanando a cabeça. Depois perguntou já sério: Foi por causa da doença que veio só? Ela riu de novo:

- Só? Eu sempre ando só! Tinha que ver, de cada vez que fosse à escola, arranjar companhia...

- Pois eu pensei que não se usava uma moça andar só, na cidade. Dona Inácia ajuntou:

- Agora é assim... eu também estranhei... Conceição continuava a rir:

- Mas eu, é porque sou uma professora velha, que vou para o meu trabalho! Uma mocinha bonitinha não passeia só, não é?

Ele ainda disse, levado pelo seu zelo de matuto.

- Pois mesmo assim, sendo professora velha, como você diz, se eu lhe mandasse, só deixava sair

com uma guarda de banda... A moça encolheu os ombros:

- Tolice! Mas vamos falar noutra coisa? Ande, conte o que há de novo no sertão!

- Contar o quê? História de seca? Diz que um negro lá pras bandas de Morada Nova matou um menino, salgou, e ficou comendo os pedaços, aos poucos.

Dona Inácia pôs as mãos, horrorizada. Conceição olhou-c, com espanto.

- Deveras?

- Contam... E você tem visto muito horror, no Campo de Concentração?

- Coisas medonhas! Mas ainda não vi se comer gente, não...

Vicente contava agora a história de uma mulher conhecida que endoidecera, quando viu os filhos

morrendo à falta de comida. Dona Inácia observou:

- Talvez tenha enlouquecido também de fome. Fome demais tira o juízo.

Conceição, calada, olhava o Primo. Estava mais bonito, Ficava-lhe bem, a roupa cáqui; muito

vermelho, queimado do sol, os traços afinados pela labuta desesperada, as pernas fortes cruzadas, as

mãos pousadas no joelho, falava lentamente com seu modo calmo de gigante manso. Era o mesmo homem forte do sertão, de beleza sadia e agreste, tostado de sol, respirando energia e

saúde... Subitamente, porém, a moça recordou a história da Chiquinha Boa.

Ele, nesse momento, se voltava para a prima, mostrando num sorriso os dentes brancos, onde luzia

um ponto de Ouro:

- A dor de cabeça voltou? Está tão calada!

Com despeito, ela pensou que talvez aquele riso, aquela fala carinhosa, ele também os empregava

conversando com a cunhã do Zé Bernardo... E respondeu frouxamente:

- Não... estava ouvindo ... Ah! sabe quem encontrei no Campo? A Chiquinha Boa ... Dona Inácia atalhou:

- E eu estranhei, uma moradora sua, nessa desgraça! Mas Vicente explicou, aborrecido:

- Aquilo é uma doida, uma vagabunda. Danou-se para vir pro Ceará porque ouviu dizer que estavam tratando retirante a vela de libra. Queria vir até a pé: eu ainda arranjei passagens com pena.

- Ela me falou em todos. Deu notícia de tudo, da ida de seu povo para o Quixadá... Até da gente do

Zé Bernardo...

Vicente não compreendeu a intenção oculta:

- o Zé Bernardo, sim! Cabra de vergonha, bom de verdade! É minhas mãos e meus pés. De dia e de

noite, como se tudo fosse dele. Conceição, olhando-o de frente, insistiu:

- As filhas também são muito boas, não são? A Zefinha mormente... Ele, com o mesmo gesto inocente, confirmou: - Muito boa rapariga. É quem cuida de minha roupa.

E Conceição, furiosa com a incompreensão verdadeira ou fingida, e com o sossego dele, concentrou nesse ”é” toda sua ironia despeitada.

Mas não pôde ir mais longe por causa da presença da avó... Cínico! Cínico! Dona Inácia elevou a voz:

- Conceição, minha filha, manda fazer café e traz um calicezinho de licor pra Vicente. Conceição ergueu-se e saiu.

Quando entrou com o licor, a avó, que se atrapalhava numa história mal sabida, invocou seu auxílio:

- Conta agora o que aconteceu na Rua Formosa com aquele bando de retirantes. Eu não me lembro

direito... Lentamente, aborrecidamente, a moça contou o fato; mas

falava num tom descorado, frouxo, desinteressada do ouvinte, como quem recita em língua estranha, sem perceber direito o que diz.

Depois, ainda a insistência da avó, começou a falar sobre pequenos casos acontecidos no Campo, o

terror das famílias ante a invasão de pedintes, a carestia da vida, a dificuldade de tudo. Era hábito antigo de Dona Inácia utilizar Conceição como um intérprete de língua mais expedita e

mais bem informada, para dizer aos amigos as novidades de sensação.

Vicente a ouvia, com o pensamento distante, desagradando-lhe aquele tom indiferente e didático em que a moça se exprimia.

Gravemente, baixando a cabeça em afirmativas, a avó sublinhava os dizeres da neta.

E ele foi descobrindo uma Conceição desconhecida e afastada, tão diferente dele próprio, que,

parecia, nunca coisa nenhuma os aproximara.

Em vão procurou, naquela moça grave e entendida do mundo, a doce namorada que dantes pasmava

com a sua força, que risonhamente escutava os seus galanteios, debruçada à janela da casa-grande,

cheirando o botão de rosa que ele lhe trouxera.

Quando saiu, ia debaixo dum sentimento de desgosto, vago, mas opressivo. Por que estava Conceição tão longínqua e distraída?... E ao fim da visita, quando ela falava sobre o efeito da seca

na vida da cidade, pareceu-lhe até pedante... Tinha na voz e nos modos uma espécie de aspereza

espevitada, característica de todas as normalistas que conhecia...

Deitada na cama, com a luz apagada, Conceição recordava Vicente e sua visita.

A verdade é que ela era sempre uma tola muito romântica para lhe emprestar essa auréola de herói

de novela! Metido com cabras... não se dava a respeito... E ainda por cima, não se importava nem em negar...

Mãe Nácia, porque naturalmente, no tempo dela, agüentou muitas dessas, diz que não vale nada...

E a moça comparou Dona Inácia àquelas senhoras de alma azeda, de que fala o Machado de Assis...

Foi então que se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera o Machado... Nem nada do que ela lia. Ele dizia sempre que, de livros, só o da nota do gado... Num relevo mais forte, tão forte quanto

nunca o sentira,

foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida. O seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a um fim natural e feliz, esbarrou

nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante.

Ele lhe aparecia agora como um desses recantos da mata, próximo a um riacho, num sombrio

misterioso e confortante. Passando num meio-dia quente, ao trote penoso do cavalo, a gente pára

ali, olha a sombra e o verde como se fosse para um cantinho de céu...

Mas volvendo depois, numa manhã chuvosa, encontra-se o doce recanto enlameado, escavacado de

minhocas, os lindos troncos escorregadios e lodosos, os galhos de redor pingando tristemente.

Da primeira vez, pensa-se em passar a vida inteira naquela frescura e naquela paz; mas à última,

sai-se com o coração pesado, curado de bucolismo por muito tempo, vendo-se na realidade como é

agressiva e inconstante a natureza...

Ele era bom de ouvir e de olhar, como uma bela paisagem, de quem só se exigisse beleza e cor.

Mas nas horas de tempestade, de abandono, ou solidão, onde iria buscar o seguro companheiro que

entende e ensina, e completa o pensamento incompleto, e discute as idéias que vem vindo, e compreende e retruca às invenções que a mente vagabunda vai criando?

Pensou no esquisito casal que seria o deles, quando à noite, nos serões da fazenda, ela sublinhasse

num livro querido um pensamento feliz e quisesse repartir com alguém a impressão recebida.

Talvez Vicente levantasse a vista e lhe murmurasse um ”é” distraído por detrás do jornal... Mas

naturalmente a que distância e com quanta indiferença...

Pensou que, mesmo o encanto poderoso que a sadia fortaleza dele exercia nela, não preencheria a tremenda largura que os separava.

Já agora, o caso da Zefinha lhe parecia mesquinho e sem importância. Qualquer coisa maior se cavava entre os dois.

E, cansada, foi fechando os olhos e confundindo as idéias, que aumentavam como sombras de

pesadelo, e dormiu, num sono fatigado e triste, sob uma estranha impressão de estar sozinha no mundo.

Continue Reading

You'll Also Like

200 92 22
Dedico estes versos a ti bravo sonhador Que nunca deixou de sonhar mesmo vindo em tamanha dor! Que nas minhas palavras encontres forças pra vencer...
80K 7.4K 30
Amberly corre atrás dos seus sonhos em outro país deixando o passado pra atrás e ainda frustada com o término e a traição do ex que ficou no Brasil...
537K 34.8K 126
Alex Fox é filha de um mafioso perdedor que acha que sua filha e irmãos devem a ele. Ele acha que eles têm que apanhar se acaso algo estiver errado...