Capítulo 14

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Dona Inácia, como já se habituara, fazia o seu croché na sala de visitas.

Os dedos mexiam rápidos a agulha e o fio branco corria, entrançando os desenhos caprichosos da

varanda de rede. Conceição estava na escola.

Saía de casa às dez horas e findava a aula às duas. Da escola ia para o Campo de Concentração,

auxiliar na entrega dos socorros. os olhos doloridos de tanta miséria vista, só chegava de tardinha, fatigada, contando cenas tristes que também empanavam de água os óculos da avó.

Seriam talvez duas e meia da tarde.

As mãos de Dona Inácia já não moviam com a mesma agilidade a agulha niquelada, que emperrou

na ponta dum laço cheio, armado e duro como uma borboleta.

A cabeça branca a pouco e pouco se encostou no dorso de pano da espreguiçadeira, num sono sossegado. O croché caiu no solo e o novelo rolou, sujando no ladrilho seu lindo branco anilado. Bateram na rótula. Dona inácia, estremunhada, passou a mão pelos olhos. repuxou a frente do casaco, num gesto que lhe era habitual, e foi à porta. Na calçada, todo de cáqui, chapelão de massa na cabeça, Vicente esperava. Dona Inácia abriu a banda da porta com a pressa afetuosa de quem abre os braços para alguém

muito querido:

- Você, Vicente! Por aqui, meu filho!

Era um pedaço do sertão que lhe vinha com aquele moço tostado pelo sol de Quixadá... E repetia:

- Mas você, meu filho! Que surpresa! E Idalina? E seu pai?

- Tudo bem, tudo muito bem, no Quixadá, tia Inácia... E logo, sentado na espreguiçadeira, enquanto

a tia lhe guardava o chapéu, Vicente explicava a sua estada na cidade.

Viera por causa de uma partida de caroço que encomendara para o gado, e nada de ir, e ele nos

maiores apertos. A rama já faltava de todo e o jeito era recorrer ao trato comprado.

- E no Logradouro?

- Tudo na mesma... A casa fechada como deixaram, o açude secando...

- E o seu gado?

- Vai-se salvando... Mas dá um trabalho medonho! Toda noite, cinco, seis homens dormindo no

alpendre para levantarem as reses caídas... A velha sacudiu a cabeça, admirada:

- E você não desiste! Ainda não pensou em retirar para a serra, ou fazer como a Maroca, soltar e

deixar morrer? Vicente ergueu-se, meio exaltado:

- Não, senhora! Nem que eu me acabe, e perca tudo de meu comprando caroço, não solto nenhum!

Já comecei, termino! A seca também tem fim...

Mas parou a onda de exclamações, reparando num retrato de Conceição, com ar pensativo, que

pendia da parede, junto ao quadro do Coração de Jesus:

- Por que Conceição não aparece?

- Está na escola; isto é, a estas horas deve estar no campo de concentração.

- Fazendo o quê?

- Ela faz parte do grupo de senhoras que distribuem comida e roupa aos flagelados.

Nesse instante, morena e esguia, uma moça se insinuou por baíxo do postigo, procurando o ferrolho.

O quinze - Rachel de QueirozOnde as histórias ganham vida. Descobre agora