O Melhor de Nós

Por janedoexv

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O coração de Casey é tão frio quanto a pista em que patina. Duro como ferro e impenetrável como uma pedra. Ou... Más

EPÍGRAFE
ELENCO
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9

CAPÍTULO 1

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Por janedoexv

Sempre tive um fascínio pelo tempo. Alguns dizem que ele é nosso maior inimigo, mas na minha percepção ele é muito mais. Nós sempre o desperdiçamos, reclamamos por não o termos e desistimos de muitas coisas pela falta dele, mas a verdade é que o tempo é nosso amigo. Ele pode não estar a nosso favor muitas vezes, mas somos sortudos por tê-lo.

Normalmente levava de cinco a dez minutos num banho. Meu programa de televisão preferido durava exatamente uma hora. Para voltar à superfície depois de um mergulho, demorava vinte segundos. Susie levou três para cair naquela pista, e por incrível que pareça, não contei quanto tempo demorei para aceitar a partida dela.

Também não contei quanto tempo demorou para que todos voltassem a agir como se nada tivesse acontecido. Para se esquecerem dela, a não ser quando, todo ano na mesma data, voltavam a falar sobre o acidente e faziam uma homenagem, enchendo o ginásio com rosas vermelhas. Isso necessariamente não significava que ela ainda era lembrada, era só uma forma dos treinadores incentivarem os aspirantes a não desistirem de pagar suas mensalidades por medo de acabarem como minha irmã.

Antes eu me aborrecia, até descutia com alguns jornalistas, mas agora a única coisa que importava era que a memória dela estivesse guardada com quem realmente deveria estar. Nada além daquilo deveria significar algo, nem mesmo o amor que o namorado dizia sentir por ela.

Depois da Susie, todos os atletas recebiam cuidado dobrado, desde as consultas ao médico - ainda mais frequentes -, até a maneira como iam executar qualquer movimento, prevenindo-se para evitar torções ou mal jeito em alguma parte do corpo. Particularmente, eu achava importante, mas sentia que ninguém fazia aquilo pela saúde dos alunos, e sim pelo que eles proporcionariam à nação esportiva - medalhas e troféus, sem contar o maior reconhecimento dos nomes envolvidos.

Rachel Flinchwood era o terror dos atletas e ela só perdia para uma pessoa. Romeo Sanchez também era treinador, e namorado da Susie. Ele tinha dezessete anos a mais que eu e nove a mais que a minha irmã. Papai não aprovava o relacionamento no início, sempre dizia que amor e profissão deveriam viver separados. Aos poucos, Romeo foi conquistando a confiança do velho, mas nunca a minha. Sempre tive um pé atrás com ele, tanto por ser mais velho que a Susie, quanto por ser enigmático demais, parecia andar pelas sombras das pessoas.

Se eu dissesse algo, com certeza ninguém concordaria comigo, já que todos tinham medo dele. Sua severidade assustava e era daquela maneira que ele conseguia o que queria, intimidando as pessoas ao seu redor. Sentia pena por sua masculinidade ser tão frágil a ponto de precisar colocar medo nas pessoas para ser respeitado.

Assim que saí da classe, passei pelo corredor e parei próxima ao bebedouro para encher minha garrafa de água. Os alunos de música saíam verborrágicos, e os de enfermagem logo atrás, com seus jalecos pendurados nos braços. Uma garota parou me olhando e sorriu gentilmente, carregando uma pilha de panfletos embaixo do braço.

- Com licença. Minha turma está organizando um simpósio para o final do semestre - Ela me estendeu um dos papéis.

- O Som e O Sentido - testei o nome em meus lábios. - "Ouvir e sentir: Um mundo de perspectivas". Belo slogan. Parece interessante.

- E é. Gostaríamos que alguns alunos com deficiência visual e auditiva participassem e contassem um pouco sobre a vida com a deficiência. Eu vi seu aparelho - Ela continuou sorrindo. Retribui o gesto, colocando a mão em minha orelha. - Meu nome é Emerson, pode me procurar se tiver alguma dúvida que não for esclarecida no papel.

- Ok, obrigada pelo convite. Será um prazer fazer parte disso.

- Nos vemos por aí - Emerson acenou e se foi.

Saí do prédio junto com algumas pessoas e encontrei o carro de Atlas no estacionamento. Não pensei duas vezes antes de invadir o veículo e receber um xingamento assustado do meu amigo, que estava com os olhos na tela do celular.

- Você me assustou - Atlas colocou as mãos sobre o peito.

- Desculpe - joguei minha bolsa no banco de trás e coloquei o cinto de segurança. - Isso aí queima os neurônios, sabia? - me referi ao celular que ele tinha em mãos.

- Está falando como o Roosevelt - Atlas largou o smartphone e atravessou o cinto em seu corpo, dando partida.

- Não tanto. Ele fala como se não tivesse um telefone e aquilo me irrita. Achei que minha carona me deixaria na mão hoje.

- Eu nunca te deixaria na mão.

- Por que não foi para a aula?

- Problemas com meus pais. A Addie decidiu que vai morar numa república e minha mãe está surtando.

- Ela já é uma adulta, está indo para a faculdade. Sua mãe não pode privá-la de tudo até os dezoito anos, como meu pai fez comigo.

- É, mas pode privá-la de abdomens suados, cheiro de cigarro e você sabe o quê.

- E o que seu pai acha dessa ideia?

- Ele aceita.

- Estamos mesmo falando do seu pai?

- Por incrível que pareça, sim.

Ser filha de um ex-militar e ter passado boa parte da vida numa base não me tornava independente em nada. Também não me fazia muito experiente sobre o que acontecia fora daquele lugar, no mundo real, mas aprendi muita coisa lá, e depois que entrei na faculdade, também. Meu pai só decidiu sair da base quando eu fiz dezoito anos, e por insistência de Willow, que o convenceu de que os filhos precisavam respirar ares menos pesados. Apesar dos contras, eu até gostava de viver rodeada de militares. Como filha do chefe deles, era legal me sentir protegida o tempo inteiro.

Meu pai se aposentou e agora é dono de uma academia onde dá aulas de muay thai; ele diz que não nasceu para ficar parado e sinceramente, achei que ele morreria quando precisou ficar quatro meses usando um fixador externo em uma das pernas.

Minha família é um pouco problemática, mas nada comparada à de Atlas. Seus pais estavam no meio do processo de divórcio quando nos conhecemos, há catorze anos. A irmã era nova demais, as brigas eram frequentes, e ele sofria com o preconceito do pai relacionado ao fato de sentir atração pela patinação. E por isso, talvez, Eugene pensasse que ele fosse homossexual. Não que isso fosse ou continue sendo um problema, mas sempre que se encontram, Atlas me conta sobre a cobrança do genitor quanto à desistência da carreira no gelo.

Tenho o apoiado desde sempre, como o mesmo faz comigo. Nossa amizade foi uma das coisas que me fez continuar com o sonho de seguir carreira na patinação, mesmo depois da morte de Susie. Nos conhecemos quando Atlas tinha dez anos e eu, oito. Ele era sobrinho da minha treinadora na época, então ela nos apresentou um ao outro. Tanto ele quanto eu tínhamos a paixão pela dança em comum, fiz ballet, ele também, e juntos, começamos a patinar.

Atlas e eu participamos de diversas competições, ganhamos algumas medalhas e troféus e participamos de alguns Jogos Olímpicos, mas ainda não ganhamos ouro em nenhum. Me sinto feliz sabendo que tenho alguém que realmente acredita em mim, diferente do meu próprio pai.

Deveria me sentir oprimida, mas isso me dá ainda mais gás para seguir com meu sonho. Sempre que penso em onde minha irmã teria chegado, pego-me melancólica e abrindo a caixa do porão para observar seus pertences. Sei que não é fácil para o papai, mesmo depois de anos, ele sequer conseguiu doar as roupas da Susie, o problema é que precisa me entender e perceber que não sou ela. Nunca serei, e por isso não devia ficar tão receoso quanto ao que faço.

- Você está aí, Casey? - Atlas me chamou, passando sua palma em minha frente para que eu descongelasse.

- Sim, só estava pensando - umedeci os lábios. Atlas desviou a atenção por poucos segundos e uma buzina vinda da rua chamou minha atenção. - Cuidado!

Ele freou o carro rapidamente e respirei aliviada por não termos parado tão abruptamente por algo mais sério que a falta de atenção dele a uma obra na rua.

- O que acha de uma parada para um café?

- Eu acho ótimo - Atlas sorriu, ainda sob impacto da freada.

Recebemos instruções de um guarda de trânsito e seguimos outro caminho rumo ao nosso café da tarde.

❆❆❆

Atlas me deixou no Gadbois e seguiu para casa com ideias para nosso próximo ensaio. Já eu, estava pensando em meu monólogo. Será uma das avaliações mais importantes do semestre, principalmente por estarmos no último ano. Atlas e eu treinamos muito aos fins de semana, estamos nos dedicando para os Jogos Olímpicos de Inverno em PyeongChang, na Coreia do Sul, em fevereiro. Vamos competir na modalidade dupla de dança e quero tentar um livre individual, como ele. Como estamos no início do outono, teremos tempo de sobra para estudarmos nossas ideias e para eu decidir o que vou apresentar no meio do verão.

O professor Roosevelt é extremamente exigente e sempre pede um clássico. Molière, Shakespeare, Tennessee Williams, Sófocles ou algum outro dramaturgo famosíssimo que tenha morrido há alguns séculos. O importante é a emoção que será passada ao público e o texto.

Atlas entrou para o curso de teatro comigo porque a dramaturgia é um grande e essencial complemento para nossa dança. Ele não tem o sonho de trabalhar em Hollywood ou na Broadway, nem eu, diferente de Molly, nossa amiga, que deseja brilhar como atriz pelos palcos ao redor do mundo.

Deixei meus deveres universitários de lado e atravessei a arquibancada, indo para o vestiário. Coloquei minha bolsa no armário e retirei uma roupa confortável de dentro deste, não deixando de mater-me aquecida, já que nesta estação do ano a temperatura é um pouco baixa. Prendi o cabelo, recolhi meus patins e alonguei rapidamente antes de pisar no gelo, onde só notei a presença de Penelope, do outro lado, e Rachel, a auxiliando no alongamento.

Aproveitei a ausência de Romeo e me senti mais confortável e livre para aquecer enquanto ele não chegava para me pressionar. Ele era excelente, sem dúvidas, mas me deixava inquieta, confusa e nervosa, e isso sempre era um problema porque perdia a concentração e fazia passos mal executados. Como Flinchwood provavelmente ficaria com Penelope bem longe de mim, poderia ligar meus fones e deslizar pelo gelo ao som de Leonard Cohen. Em paz.

Executei um flip e dei alguns pulos ocupando o espaço disponível. Peguei impulso e realizei um camel spin perfeito. Meu toe loop teria sido impecável se minha mente não tivesse sido invadida por memórias póstumas mais uma vez, e, como outras, me fizesse perder o equilíbrio ao lembrar o que já acontecera nesta pista. Não cambaleei tempo suficiente para cair, apenas me recompus e senti uma vergonha instantânea quando avistei Romeo se aproximar, já aguardando seus sermões iminentes. Desliguei a música e levantei a cabeça.

- Pega mais impulso - Romeo corrigiu, ficando paralelo à mim. - Precisa girar mais vezes e juntar os braços na altura do peito - suas mãos tiraram os fones de meus ouvidos de maneira rápida. - Olha, e aprende.

Eu não disse nada. Encolhi os ombros discretamente e o observei fazer o salto perfeitamente. Como sempre. Logo, ele voltou para perto de mim. Parecia sério, sua barba estava mais cheia, talvez fruto de certo desleixo, mas o desgraçado não deixava de ser bonito. Continuava atraindo olhares por onde passava e seria irônico achar que não o faria.

- Quero tentar o throw jump, vem - Romeo me chamou com a voz ríspida.

- Eu não consigo.

- Você consegue.

- Não sou a Susie.

- Não disse que era, nem estou pedindo que seja - seus olhos sombrios me esquadrinharam. - Casey - Romeo segurou meu rosto entre suas mãos, afastando alguns pequenos cachos que escorregavam do rabo de cavalo. - Você não é a Susie, e nunca será. Você vai ser melhor que ela. Na verdade, acho que sempre foi, as pessoas é que nunca perceberam.

- Não é assim que funciona.

Me afastei com calma e olhei para o lado percebendo a atenção de Rachel e, agora, também de Penelope, que permanecia ao seu lado. Não estamos tão perto, mas consegui perceber o semblante de desdém da ruiva. Ela com certeza pensa coisas absurdas sobre mim.

- Acho melhor eu ir.

Encarei Romeo uma última vez, mas ele não disse nada. Seu olhar intimidador exerceu a função de sempre e ele assentiu, liberando-me. Suas palavras acabaram com minha vontade de treinar.

Deslizei para fora do gelo e retirei os patins assim que cheguei no vestiário. Penelope entrou acompanhada por uma loira chamada Astrid, também patinadora. Se sozinhas já causam, juntas são o próprio agente do caos. Ambas são excelentes atletas, mas a competitividade delas é tanta que já causaram diversas intrigas entre os demais patinadores.

- Se tem algo que eu jamais faria seria dar em cima do namorado de uma irmã. Ainda mais, defunta.

Suspirei.

- Se pensa que vou perder meu tempo caindo nas suas provocações, Penelope, está enganada. Ele é muito valioso e posso gastá-lo me tornando a melhor patinadora desse ginásio, ou então, do país.

Ignorei burburinhos posteriores, seguindo ininterruptamente para a saída, e logo depois, alcançando o ponto de ônibus.

Durante todo o percurso, fiquei pensando sobre o que Romeo dissera. E se as pessoas só abriram os olhos para mim porque minha irmã morreu? E se acham que serei uma substituta? Uma nova Susie? Não. Eu realmente não estou preparada para corresponder a essas expectativas, sequer tenho pretensão. Passei por um longo processo de terapia durante três anos, não vou colocar ideias malucas na minha cabeça só porque um sujeito que ao menos me conhece quer.

- Bonsoir - papai disse assim que entrei em casa.

Pensei em pedir para não me esperarem para jantar, mas já estavam reunidos em volta da mesa, comendo macarronada.

- Boa noite, pai.

- Chegaram algumas cartas para você, deixei em cima da sua cama - Arden avisou.

- Obrigada. Vou subir para um banho.

Não fiz muita coisa depois que subi para o meu quarto. Tomei banho, vesti um pijama, tomei a última dose diária do Azatioprina e passei pomada nas maçãs do rosto. Desde os dezesseis anos convivo com o lúpus, que tem enfraquecido cada vez mais meu sistema imunológico. Meu pai gasta muito dinheiro com os remédios, por isso penso em talvez vender meu carro para conseguir bancar os custos até conseguir um emprego.

O aroma de chá de maçã preencheu o quarto como um perfume doce. Terminei minha noite respondendo mensagens de Molly depois de assistir a alguns episódios de Law & Order.

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