carta de Maven Calore, a sombra da chama

261 28 4
                                    

      Nunca tive muitas paixões na vida. As que eu tinha ou eram passageiras, facilmente mutáveis e posteriormente esquecidas, ou eram arrancadas de mim, extirpadas da minha mente pelas garras mortíferas e sinuosas de minha mãe, a mulher que amo, que me criou... e que me despedaçou, transformando-me em nada além de pedaços quebrados e irrecuperáveis, memórias bagunçadas e uma escuridão impenetrável.

       Ao atingir certa idade, minhas paixões foram rapidamente substituídas por ambições precoces, desejos pelos quais eu nutria zero afeto. Os medos foram dilacerados e reduzidos às cinzas. Os sonhos, os únicos momentos do dia no qual eu escapava dos murmúrios conspiratórios de minha mãe, quando eu podia imaginar coisas e felicidades inalcançáveis, foram tirados de mim, cada retalho carbonizado pelas mãos da mesma pessoa que um dia me carregou no colo e me jurou amor incondicional.

      Fui privado de uma infância plena,     moldado pelos padrões que a minha própria mãe impunha. E eu segui tudo à risca. Em parte porque concordava com ela, porque seu gênio irascível era compatível com o meu, e em parte porque, em certo ponto, eu já não sabia mais diferir o que eu queria do que ela queria, o que era um desejo particular meu e o que ela tinha implantado propositalmente em minha cabeça. Minha mente, formada por arabescos indecifráveis e cálculos falhos, não me pertencia mais. Deixara de pertencer há muito tempo, desde que ela, julgando-me incapaz por em tenra idade ainda não conseguir andar, apenas engatinhar, entrou em minha mente e forçou minhas pernas a funcionarem, meu pequeno e inútil corpo infantil à merce de seu controle absoluto. De acordo com ela, era incabível que meu nobre e adorável irmão Cal me ultrapassasse em tantos quesitos, mesmo que fossem eles os mais fúteis.

       Minha mãe queria me tornar em algo além da sombra da chama, mas acho que ela se perdeu durante o processo e, no fim, me transformou baseado naquilo que Cal espelhava, sempre vendo nele coisas que podia adicionar em mim. Não que eu seja igual a Cal em algum aspecto, além do fato de termos compartilhado o mesmo obsoleto e inútil pai. Cal. Meu irmão que é incapaz de tomar as mais fáceis decisões, que certamente seria um rei burro e manipulável, fraco e destroçado. Cal, o irmão que eu terrivelmente odiava e que, uma parte do Maven antigo que ainda residia dentro de mim clamando para vir à luz, ainda amava. E eu silenciava essa parte sempre que podia, sempre que conseguia. Era uma das poucas coisas sob as quais eu ainda tinha pleno domínio.

      Eu sei que um dia Cal já foi alvo do meu amor, que eu o amei até mais do que amava Mare, minha pequena e deliciosa obsessão, a garota cujo o simples ato de olhar até mim fazia ar comprimir meus pulmões, me fazia querer prendê-la em meus braços, beijá-la... e arrancar seu coração, talvez decepar sua cabeça assim como meu patético irmão fizera com o pai. Mas eu não conseguia, porque quando se tratava de Mare essa parte de mim ainda era frágil e questionável. Eu não conseguia matá-la. Ouvir seu pescoço quebrar seria como ouvir as chamas que há tanto tempo consumiram o corpo de Thomas. Entretanto, se eu sobrevivesse à óbvia execução, à cabeça sob a lâmina do carrasco, talvez um dia eu precisasse matá-la, incinerar esse veneno corrosivo que era meu complexo de sentimentos doentios sobre ela. E eu a mataria. Mesmo não desejando, eu mataria, porque eu era egoísta e monstruoso, e entre mim e ela, eu me escolheria.

      Ainda lembro de quando vi Mare Barrow pela primeira vez, como a julgara imprestável de tantas maneiras possíveis, porém simultaneamente intrigante. Lembro-me de passar horas refletindo sobre a origem de seu poder, sobre como uma vermelha podia deter tamanha habilidade enclausurada dentro de si, e como ela não se permitia usá-la completamente, como ela não apreciava a ideia de colocar aquele mundo, que tanto a subestimara, de joelhos. Mare Barrow, que durante a quantidade considerável de tempo que passara no palácio, ainda imatura, ainda facilmente influenciável, despertara em mim emoções que eu julgava há muito estarem mortas. Lembro-me de como ela fez uma pequena parte de mim sentir algo semelhante a... satisfação, e me lembro de como minha mãe enxergou isso como uma ameaça iminente.

the fallen king's letter | MAVEN CALOREWhere stories live. Discover now