Eu te vi

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pelo reflexo da janela do ônibus. Era noite, e você estava sentado duas fileiras na minha frente. Todos estavam em silêncio, menos a voz que anunciava as paradas. Estação Liberdade. Só o seu reflexo, e eu já tô nervoso. Ai, que vergonha. Todo mundo querendo chegar em casa e eu querendo me apaixonar. De repente, a música nos meus fones parece insuportável e eu arranco-os dos ouvidos. No São Francisco, entram mais algumas pessoas de cara amarrada, mas todas elas alheias à tensão estabelecida entre três fileiras de assentos. O ônibus passa por cima de alguns buracos e o vidro da janela treme, mas você continua lá. Do lado de fora, vejo a folhagem do conjunto IAPI iluminada por lâmpadas de cor neutra; as minhas emoções vibrantes desafiando a luz branca que entrava pela janela. Subimos o viaduto e eu vejo através de você a vista do centro. Só no seu reflexo você é transparente. Quando te olhei, não vi nada além de paredes sólidas, como aquelas faces sem janelas de tantos prédios do centro.Avenida Afonso Pena. O ônibus esvazia. Do seu lado, não há mais ninguém.

 Tanta gente que poderia estar sentada do meu lado, mas eu quero você. Você, que agora olha a tela à sua frente que anuncia as paradas, como se não soubesse exatamente onde descer. Alguém dá o sinal. Movimentos sutis me indicam que você se arruma para desembarcar. Meu pulso acelera. Me passa pela cabeça a ideia de descer junto, ir atrás de você, puxar assunto, sim também estou indo pra lá, que coincidência. O ônibus para e eu coloco o pé no corredor mas não saio do lugar. Você desce as escadas tão rápido... as vezes, acho que eu pareço um senhor de idade descendo. Não importa. Te deixo pra trás. Nem sei se você me viu. Mas na verdade não te deixei pra trás. Amanhã provavelmente estaremos aqui de novo. Depois também. E eu vou narrar este ridículo drama na minha cabeça, de novo e de novo.

Um romance impossível atropelado por dez mil carros, todas as noites.

Eu te viWhere stories live. Discover now