Ato II, Cena IV: O palácio

Start from the beginning
                                    

Vai-te embora, sopro de vida meu!

Matou-me uma donzela linda e cruel.

Mortalha branca em muito teixo,

Já deixem tudo feito.

Não houve um outro mais fiel que eu:

Chegou aqui e morreu.

Só meu negro esquife, e nada de flores;

Não espalhem nem mesmo as mais doces.

Nenhum amigo, na despedida,

Onde os meus ossos terão guarida.

Suspiros devem ser poupados!

Que amantes tristes e pálidos

Não encontrem minha cova para

Ali verter suas lágrimas.

Duque – [Entregando-lhe dinheiro:] Aí tens, por teu esforço.

Feste – Não é esforço algum, sir; para mim, cantar é um prazer.

Duque – Estou pagando por teu prazer, então.

Feste – Verdade seja dita, senhor, mais cedo ou mais tarde o prazer nos cobra a conta.

Duque – Agora vou te pedir o favor de me dar licença.

Feste – Que Saturno, o deus da melancolia, vos proteja, e que o alfaiate faça o vosso gibão de um tafetá furta-cor, pois são opalescentes os vossos pensamentos. Homens de tal constância deveriam lançar-se ao mar, fazendo de tudo o seu negócio e levando suas intenções a toda parte, porque é bem isso o que é necessário, sempre, para fazer do nada uma boa viagem. Adeus.

[Sai.]

Duque – Que os outros se retirem, também.

[Saem Cúrio e os outros.]

Uma vez mais, Cesário, vai até lá, encarrega-te da mesma e suprema crueldade. Diz a ela de meu amor, mais nobre que o amor de um simples mortal, porque não valoriza a quantidade de terrenos enlameados. Quanto aos dotes de título e riqueza que o destino lhe concedeu, diz a ela que eu, assim como o destino, não lhes dou importância. O que nela me seduz a alma é esse milagre, realeza de preciosidades com que ela foi ornamentada pela Natureza.

Viola – Mas e se ela não consegue amá-lo, senhor?

Duque – Não posso aceitar tal resposta.

Viola – Na verdade, o senhor precisa. Digamos que alguma dama, que possivelmente existe, sente pelo seu amor uma dor no coração tão cruciante como a que o senhor tem por Olívia. E o senhor não consegue amá-la. O senhor diz isso a ela. Não deve ela aceitar tal resposta?

Duque – Não existe mulher de um tal tamanho que possa guardar em si a batida de uma paixão forte assim como esta que o meu amor confere ao meu coração. Não há coração de mulher que seja tão grande, para segurar tanto. Os corações femininos carecem de retenção. Ai de mim! O amor das mulheres pode ser chamado de apetite: não é emoção que venha do âmago, do fígado, mas vem, isso sim, do paladar, do céu da boca que se farta, se empanturra até ter náuseas. O meu afeto, este é faminto como os mares, e pode digerir tanto quanto um oceano. Não queira comparar o amor que alguma mulher possa ter por mim e o amor que sinto por Olívia.

Viola – Sim, mas eu sei...

Duque – O que é que tu sabes?

Viola – Sei muito bem quanto amor as mulheres podem sentir por um homem. Na verdade, elas têm um coração tão leal quanto o nosso. Meu pai teve uma filha que amou um homem quase que certo da mesma maneira que eu, fosse mulher, teria amado Vossa Senhoria.

Duque – E qual é a história dela?

Viola – Uma incógnita, milorde. Ela jamais declarou o seu amor, mas deixou que esse segredo, como larva dentro de uma rosa em botão, se alimentasse de suas rosadas faces. Ela definhou de tristeza e com melancolia de mórbida palidez deixava-se ficar sentada, como estátua de Paciência, sorridente diante da desgraça. Isso não foi amor? Nós, homens, podemos falar mais, prometer mais, mas na verdade nossas demonstrações são mais que nossos afetos, pois toda vez provamos muito em nossas juras, mas pouco em nosso amor.

Duque – Mas, a tua irmã, morreu desse amor, meu rapaz?

Viola – Eu sou todas as filhas da casa de meu pai, e todos os irmãos homens também, e, no entanto, eu não sei. Devo ir à casa de Lady Olívia, milorde?

Duque – Sim, esse é o nosso assunto. Vai, e corre. Entrega-lhe esta joia. E diz a ela que meu amor não se contém dentro de fronteiras, e não aceites uma recusa.

[Saem.]

Noite de Reis (1602)Where stories live. Discover now