"Será que eu sou assim por que nasci como uma garota?"

Balancei a cabeça de repente, expulsando aquele pensamento. Sensibilidade não tinha nada a ver com gênero, isso era algo ensinado por meus pais.

— Charlie? — Paul chamou minha atenção, ambos ainda me encaravam, esperando uma resposta. Respirei fundo mais uma vez.

— Você não está pensando em mudar de ideia de novo, está? — O olhar acusatório da minha mãe foi como um soco no estômago. Ela deveria estar pensando que o workshop me fez pensar em desistir de mais uma faculdade, a qual eu ainda nem começara.

O que era pior? Contar que talvez eu fosse trans ou mentir que eu ainda estava indeciso sobre a minha escolha de carreira?

— Eu... Só percebi que estou com medo de trocar de curso, tenho medo de me arrepender depois.

Meu corpo se afundou na cadeira. Não queria ter dito aquilo, mas foi a única coisa que saiu: uma mentira.

Eu não podia contar a verdade, eles pediriam explicações e eu não saberia dar, iriam tentar saber mais sobre isso e nem eu sabia.

Claro que eu também tinha medo de ter tomado uma decisão errada em relação à Publicidade, mas não foi esse o propósito daquela conversa. Estava tudo errado.

A reação dos meus pais se aliviou em parte. Quanto a mim, sentia um frio desconfortável na barriga.

— Meu amor, isso é normal! Eu também fiquei assim quando entrei em Comunicação. — Paul falou com um sorriso leve. Já minha mãe deveria estar pensando que eu traria mais um problema para casa. — Publicidade é um curso maravilhoso, princesa. Você vai se sair bem, e ainda vai ter a ajuda do publicitário aqui. — Paul estendeu o braço para tocar minhas mãos e aceitei o gesto. Forcei um sorriso animador para eles, como se realmente fosse seguir aqueles conselhos. — Não concorda, amor?

Minha mãe se esforçou para dar um sorriso afetuoso, mas não escondeu a inspiração pesada. Ela olhou para Paul e para mim em seguida; logo depois balançou a cabeça, como quem queria afastar um pensamento.

— É, tem razão. E nós sempre vamos te apoiar, independente da sua escolha. Você trocou de área de forma muito brusca, pode ser difícil lidar com isso no início, mas você vai conseguir. Levanta e me dá um abraço, vem! - Madison falou com convicção e não tive outra escolha a não ser obedecer e ir até ela. Seu abraço foi acolhedor e, por um segundo, fingi que eu havia acabado de contar a verdade e que ela estava me apoiando naquele momento.

— Você é uma ótima filha, Charlie. É uma garota incrível.

"É, só durou um segundo mesmo."

Meu padrasto se despediu de nós para ir trabalhar e minha mãe avisou que demoraria no banho para hidratar o cabelo e retocar a tinta. Também me recomendou a assistir um canal no YouTube sobre calouros em faculdades brasileiras, criado por uma pessoa que não prestei atenção no nome.

Eu não estava preocupado com aquilo.

Subi o lance de escadas que dava aos nossos quartos e tranquei a porta do meu assim que entrei. Tirei o casaco e olhei para mim mesmo no espelho que ficava atrás da porta.

"Você é um tremendo mentiroso."

Havia um nó tremendo em minha garganta e ela parecia estar queimando. Abracei meu próprio corpo e comecei a chorar, encarando meu reflexo com as bochechas vermelhas e as primeiras lágrimas saindo. Tudo parecia fora do lugar em minha cabeça. Até o meu corpo parecia fora do lugar.

"Óbvio que está, ele mostra uma garota."

Inconscientemente, nunca gostei de usar as mesmas roupas que as outras meninas da minha idade, pois não queria realçar meu corpo. Não era uma simples questão de gênero em roupas, mas sempre tentei esconder minhas curvas. Meus ombros. Minhas pernas. Tudo que me lembrava um corpo feminino.

— Droga!

Minhas mãos apertaram os fios em minha nuca, eu sentia raiva de mim mesmo. Ouvi o barulho do chuveiro no quarto dos meus pais.

Exausto, eu me joguei na cama, ainda chorando. Cobri o rosto com o travesseiro e apertei o tecido, tentando extravasar o que estava sentindo. Era um misto de vergonha e medo: vergonha por ter mentido para meus pais e medo do futuro.

Não sei por quanto tempo fiquei ali deitado, chorando. Tudo o que eu queria era desaparecer - talvez morrer e reencarnar, mesmo sem acreditar na vida após a morte.

Em algum momento, ouvi passos pela casa e minha mãe falando ao telefone. Em seguida, a porta de casa se abrindo e fechando, além de uma buzina de carro do lado de fora. Provavelmente pegou carona com alguma recém-colega para ir à igreja.

Com esforço, me levantei da cama. Senti meu corpo dolorido e as roupas incomodavam minha pele. Peguei o celular na cômoda e a toalha de banho que estava pendurada na cadeira da minha escrivaninha.

Enquanto eu caminhava lentamente para o banheiro - o qual ficava entre nossos quartos, no meio do corredor - eu passava o dedo pela tela do celular para ver outras postagens sobre fotografia. Uma foto nova foi postada por Sam Kendrick, dessa vez, de uma frase escrita na parede de uma rua que não consegui identificar.

"Tudo tem a sua beleza, mas nem todos conseguem ver."

Soltei um riso sem graça ao ler, pensando em como era impossível acreditar naquilo. Provavelmente Sam Kendrick era um homem branco bem sucedido na vida que via positividade em tudo porque nunca teve problemas.

Não resisti e fiz um comentário na foto:

"Utópico demais para ser verdade, mas continua sendo uma boa foto!"

Desliguei a tela, entrei no banheiro e deixei o aparelho na pia de granito cinza. Afastei aquele assunto da cabeça e me foquei em retirar minhas roupas para entrar no box. Contudo, antes de fazer isso, notei a tela do celular acesa e vi pela barra de notificações que Sam acabara de me seguir.

E não apenas isso, também havia uma mensagem no meu privado.

Oi! Vi seu comentário e dei uma olhada no seu perfil, achei que seria interessante conversar. Mas fiquei confusa, a sua bio tá em inglês e tu comentou em português. De onde que tu é? Aliás, meu nome é Samantha. E tu?

Uma pontada de vergonha me invadiu pelo meu julgamento de segundos atrás, pois Sam nem era um homem.

Abri o celular e pesquisei "Samantha Kendric", encontrando apenas uma pessoa com esse nome e que também morava em Esplendor. Na foto, uma garota negra de franja estava com o rosto cortado pela imagem.

Além de não ser um homem, ela também não era branca.

"Parabéns, Charlie! Selo de pré-julgamento conquistado com sucesso."

Voltei às mensagens e pensei no que responder. Parecia ser uma pessoa simpática e que nunca me veria pessoalmente, então arrisquei.

Ei, Sam! Meu nome é Charlie, e me desculpa se meu comentário foi ruim, eu só ando meio desanimado hoje. Sou da Carolina do Norte, mas falo português.

Senti uma energia boa em meu corpo ao falar, ou melhor, digitar usando os pronomes masculinos para alguém.

Opa, um gringo no meu perfil! Que tri! — Ela enviou um emoji de piscadela. Guardei na memória a pergunta: o que é tri? — Não tem problema, tu só foi sincero. Mas e aí, por que um guri da Carolina do Norte sabe falar português? Tu mora aonde?

Pisquei várias vezes para entender o que realmente estava acontecendo. Eu já estava entendendo o que guri significava e meu peito queria explodir de alegria.

Era a primeira vez que alguém me tratava como um garoto.

⚧ | Azul é a Cor do SilêncioWhere stories live. Discover now