XXX - Palavra de honra

Começar do início
                                    

— Aí está — sentenciou Morgan — é nisso que dá rasgar Bíblias...

— É nisso que dá vocês serem uns asnos chapados — replicou o doutor — e não terem senso bastante para diferenciar o ar puro do envenenado e os locais secos dos covis infectos e pestilentos. O mais provável, se bem que isso talvez não passe de uma opinião minha, é vocês não conseguirem se livrar da malária. Mas quiseram acampar no meio de um pântano, não quiseram? Só o que me espanta é você, Silver; pois é menos idiota do que todos os que aqui estão, mas parece não ter a menor noção de regras de higiene.

E depois de ter medicado todos e de todos terem recebido as suas prescrições com uma humildade verdadeiramente cômica, mais como meninos de asilo do que como rebeldes e piratas manchados de sangue, prosseguiu:

— Muito bem, por hoje é o bastante. E agora gostaria de ter uma conversa com este mocinho aqui.

E, afetuosamente, fez um sinal com a cabeça na minha direção.

George Merry estava à porta, cuspindo qualquer medicamento de gosto amargo; mas tão logo ouviu as primeiras palavras do doutor, voltou-se furioso e gritou:

— Não! — E soltou uma praga.

Silver bateu no barril com a mão espalmada.

— Silêncio! — rugiu e olhou em torno, impositivo como um leão. — Doutor — retomou, no seu tom habitual —, estava pensando justamente nisso, pois sei da afeição que tem pelo pequeno. Estamos todos humildemente gratos ao senhor por sua amabilidade, e, como vê, temos confiança no senhor e tomamos as drogas que nos dá como se fossem a melhor bebida. Penso que o velho Silver aqui encontrou um meio de agradar todo mundo. Hawkins, quer me dar a sua palavra de honra, como jovem cavalheiro – pois você é um jovem cavalheiro, embora de origem humilde – quer me dar a sua palavra de honra de que não me trairá?

De boa vontade, dei a minha palavra.

— Então, doutor — pronunciou Silver —, o senhor deve passar para fora da paliçada, e, estando lá, levo o garoto. Ele ficará do lado de dentro. Acho que podem conversar por entre as estacas. Muito bom-dia, senhor doutor, e os nossos respeitos ao lorde e ao capitão Smollett.

Assim que o doutor abandonou a cabana, explodiram exclamações de desaprovação de todos os lados, que nem mesmo o olhar fulminante de Silver pôde conter. Silver era acusado de fazer jogo duplo, de procurar fazer uma paz voltada só para ele e de sacrificar os interesses de seus cúmplices e vítimas. Aliás, era exatamente o que estava fazendo. Isso era tão evidente para mim que nem sabia como ele conseguia reduzir-lhes a ira. Mas ele era duas vezes mais homem do que qualquer um ali, e a sua vitória da noite anterior lhe proporcionara uma enorme ascendência. Chamava-os de doidos e cretinos, afirmava que era necessário que eu falasse com o doutor, passava-lhes o mapa em frente aos olhos e perguntava-lhes se queriam romper a trégua bem no dia do recomeço da caça ao tesouro.

— Não, raios! — gritava. — Romperemos a trégua quando a ocasião for propícia; mas até lá continuarei enrolando o doutor, nem que para isso tenha de lhe engraxar as botas com aguardente!

Em seguida, ordenou que atiçassem a fogueira que se apagara lá fora e foi coxeando, apoiado à muleta. Com a mão no meu ombro, deixou-os desnorteados e emudecidos com tanta verborragia; mas não estavam convencidos.

— Devagar, pequeno, devagar — ia dizendo. — Eles podem atirar-se a nós num piscar de olhos se acharem que estamos apertando o passo.

Cautelosamente, pois, atravessamos a areia, na direção em que o doutor nos aguardava do outro lado da paliçada, e, logo que chegamos a uma distância em que podíamos conversar, Silver, parou.

A Ilha do Tesouro (1883)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora