Capítulo único

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Depois de prometer para mim mesma inúmeras vezes que não me colocaria nessa posição de novo, aqui estava eu. Minha cara de boba a observando enquanto ela preparava o jantar só me fazia pensar no que me afastaria do que eu amo dessa vez. Ela morreria ou eu seria forçada a me mudar às pressas e largá-la para trás? Isso tudo me parecia injusto de muitas formas. Com ela, claro, e não comigo.

Ela não se parece com o que Jennifer foi, mas eu não pude acompanhar o que aconteceu com ela depois que parti. Eu relembrava inúmeras vezes nosso último olhar trocado, os olhos marejados dela, os lábios trêmulos e pequenos arranhões nos braços causados pela corrida por entre as árvores. Tentei tantas vezes traçar o que poderia ter acontecido depois e tudo inevitavelmente terminava no fato de que ela era mortal e estava agora abaixo da terra. Pensar nisso me fazia querer matar cada um deles.

Preciso ser justa, eu as comparava mais do que devia. Lilian tem o cabelo nos ombros e bem crespo. É macio ao toque e eu poderia fazer cafunés infinitos nela. Jennifer tinha cabelos ondulados e ruivos que odiava, enormes como mandava a época.

Mesmo assim, eu sentia algo me puxando em direção à Lilian, assim como senti algo me puxando em direção à Jennifer. Mas vivia o tempo inteiro com medo de perdê-la. Ainda que já estivéssemos juntas há alguns meses, esse pensamento era recorrente em mim. Eu não conseguia deixar de temer o momento em que eles nos separaria a força.

— Como foi o trabalho hoje? — ela perguntou, colocando o jantar na mesa.

Repassei meu dia de trabalho na mente, e fui invariavelmente levada a pensar nas outras profissões que tive através dos anos. Já fui até médica, só para provar a mim mesma que eu conseguiria.

— Perdi um dia inteiro de trabalho porque esqueci de dar commit no que fiz pela manhã. A tarde algo quebrou o site e fui forçada a refazer tudo.

— Sinto muito, bem. Conhecendo você, deve estar frustrada agora.

Realmente estava. Quando você tem a minha idade, cada dia passa rápido demais e todos parecem um borrão. Mas, desde que conheci Lilian, tudo vinha desacelerando. Eu desacelerei, arranjei um bom emprego e criei raízes. Meu deus, estou ferrada.

Continuamos uma conversa amena sobre o dia de trabalho dela e nossos planos para o final de semana. Eu fazia algo que aprendi há muitos anos: prestar atenção em uma conversa enquanto meu pensamento divaga. Não fazia isso por desleixo com ela, eu simplesmente estava angustiada demais.

Morávamos juntas havia uma semana e os meus medos estavam mais fortes do que nunca. Eu tentava gravar cada detalhe dela na minha mente, feliz por agora, trezentos anos depois, termos a incrível habilidade de gravar acontecimentos em papel através de fotos. Nós já tínhamos várias, e eu guardava todas dentro do meu caderno de memórias.

A casa ainda estava muito bagunçada. Todo cômodo tinha pelo menos uma caixa enorme e lotada esperando para ser aberta. A maioria, várias delas. Tínhamos mais coisas espalhadas por aí do que de fato em seus lugares. Mesmo assim, eu já conseguia chamar aquelas paredes de lar. Só de saber que aquele era o lugar onde Lilian estava comigo tudo ficava mais fácil.

Naquele momento, senti uma necessidade absurda de pegar aquele caderno com memórias e tocá-lo. Repassar todas as minhas anotações, rever os desenhos todos que fiz de Jennifer, mesmo tendo seu rosto gravado em minha mente. Ver as novas fotos que agora ocupavam muitas e muitas folhas.

Mais de uma hora depois, o relógio passando da meia noite, Lilian me beijou e disse que iria tomar banho e dormir. Ela sabia de minha insônia e percebia fácil quando eu não estava bem. Nessas horas, me dava o espaço que eu precisava.

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