Capítulo 1

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Ana Flor

Brasil, 1800.

Uma comoção sem precedentes iniciada nos andares abaixo me arrebata de meu atual estado de espírito. O torpor que me habitava, desde a última visita indesejável a qual fui submetida, é exorcizado instantaneamente e substituído por uma recém descoberta esperança.   Salto da cama com um único e rápido movimento e ponho-me a correr.  Dor irradia por meu corpo mal tratado assim que meus músculos são postos ao trabalho. Contrariada, transformo minha inconsequente corrida em um leve coxear.

Silenciosamente me aproximo da porta de meu cativeiro. Pressiono a  palma das mãos na superfície lisa  e levo meu rosto ao seu encontro, colando meu ouvido direito nela. Ouço, ou ao menos tento discernir algo coerente, mas o súbito  odor amadeirado invade meus sentidos forçando-me a recordar momentos obscuros  de minha vida.

Prendo a respiração e, conjurando todas as minhas forças, afasto os pensamentos, enviando-os aos cantos mais longínquos de minha mente.
Tento aguçar ainda mais minha audição. O ritmo acelerado de meu coração atrapalha consideravelmente minha missão de atalaia. Tudo que ouço é seu constante ribombar.

Tum tum... tum tum...

Cerro os olhos em concentração.

Tum tum ... Tum tum..

Umedeço com a ponta da língua meus lábios ressecados e expiro devagar, expulsando lenta e cuidadosamente o ar dos meus pulmões.

Tum tum... Tum tum...

Meu ensandecido coração permanece em seu obstinado rufar.

Em meus pensamentos visualizo a comoção a baixo e a pinto em uma tela imaginaria.

Essa sempre foi uma de minhas maiores paixões. Tintas, aquarelas, pincéis e telas. Uma paixão equivocadamente impossível para uma pessoa de minha estirpe.

Inicialmente conjecturo  apenas cores escuras, traçando o contorno de uma sala de jantar repleta de  escravos, assim como eu. Limpando. Cozinhando. Servindo. Uma rotina nem um pouco diferente da costumeira.

Viajo em meus devaneios e imagino que o dia não tenha amanhecido bom para Sinhô Hernesto. Talvez tenha saído da cama com o pé esquerdo esta manhã.  O insiro em minha pintura mental. Uma figura pálida. Um pessoa clara, todavia  completamente ausente de luz. Um pingo de tinta branca que carrega a mais escura das almas.Eu o pinto ensandecido, agredindo física e verbalmente meus conterrâneos. Nenhuma novidade. Apenas praxe. Dia a Dia.

Todavia, a pintura muda de forma quando finalmente consigo discernir uma frase da cacofonia sob meus pés.
Sendo honesta, seria um exagero chamar as duas palavras que ouvi de frase.

Não. Não foi uma frase. Foram apenas duas palavras. Duas palavras proferidas e repetidas inúmeras vezes e, com tamanho fervor que roubam meu chão e me fazem questionar como minha vida toda pode caber em duas, meras e singelas, palavras.

"Ele chegou. "

Reflito um momento sobre  a quem refere-se a sentença proferida e, somente uma pessoa brilha em meus pensamentos.

Com a esperança de rever Felipe irradiando por todo meu ser corro na ponta dos pés e perscruto por entre as diminutas frestas do tapume que veda a janela do sótão.

Aquarelas de LiberdadeOnde as histórias ganham vida. Descobre agora